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Paraisópolis

Carlos Palombini
Professor de Musicologia, UFMG; membro permanente do programa de pós-graduação em música,
UNIRIO; bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq.

A Fazenda Morumbi foi propriedade do padre Antônio Diogo Feijó, senhor de engenho
que, segundo o censo de 1813, era dono de treze escravos e produtor de açúcar e
aguardente, além de milho, feijão e arroz para consumo doméstico. Em 1825 o
imigrante inglês John Rudge adquiriu seus 1.694 hectares, onde plantou chá e videiras,
para produção de vinho. Por volta de 1840 a casa começou a passar de mão em mão, até
que, no início do século XX, uma infestação de pragas destruiu as plantações. Em 1920
parte do imóvel ruiu e, em 1921, iniciou-se o loteamento da área, concluído na década
de 1940. Nos anos 1950 trabalhadores, principalmente emigrantes do Nordeste em
busca de oportunidades na construção civil, começaram a ocupar os terrenos do que
viria a ser o bairro de Paraisópolis, no distrito de Vila Andrade, hoje a segunda maior
favela de São Paulo, depois de Heliópolis. O enclave proletário numa área de imóveis
“de alto padrão” tornou-se uma metáfora da senzala bicentenária, preservada a despeito
de sucessivas reformas da antiga casa-grande, atual Casa da Fazenda do Morumbi, sede
de eventos corporativos e sociais.
O baile funk de Paraisópolis acontece na rua Herbert Spencer. Ele teve início a
partir de um pagode de domingo num pequeno bar, o DZ7 Rei das Batidas. Entre um
pagode e outro, automóveis tocavam funk. Quando, à meia-noite, o bar fechava, seguia
o funk. Evento local desde 2010, o baile começa gradualmente a atrair um público de
fora da comunidade, inclusive entre a vizinhança de classe média alta, e passa a
movimentar a economia local com uma frequência de cerca de 5 mil pessoas.
Na madrugada de domingo, primeiro de dezembro de 2019, uma operação da
Polícia Militar do Estado de São Paulo resultou na morte de nove frequentadores:
Gustavo Cruz Xavier, o Risadinha, de 14 anos, estudante do nono ano do ensino
fundamental, que trabalhava em um supermercado; Marcos Paulo Oliveira dos Santos,
de 16, o Guti, estudante do segundo ano do ensino médio; Dennys Guilherme dos
Santos Franco, de 16, estudante do segundo ano do ensino médio; Denys Henrique
Quirino da Silva, de 16, estudante e auxiliar de serviços gerais em uma loja de tapetes e
estofados; Luara Victoria de Oliveira, de 18, estudante do ensino médio, desempregada;
Gabriel Rogério de Moraes, de 20, leiturista terceirizado de uma concessionária de
energia; Eduardo Silva, de 21, mecânico; Bruno Gabriel dos Santos, de 22, operador de
telemarketing, desempregado; e Mateus dos Santos Costa, de 23, vendedor de produtos
de limpeza.
Gustavo sonhava em ter um carro. Marcos Paulo se preparava para fazer
vestibular e queria ser jogador de futebol. Luara, órfã de pai e mãe, corintiana, queria
ser maquiadora. Gabriel Rogério ajudava o pai, desempregado, e a mãe, diabética, e
comemorava o aniversário do amigo Bruno Gabriel, outra das vítimas. Eduardo era pai
de uma criança de 2 anos. Bruno Gabriel fora adotado aos 10 anos de idade e, são-
paulino, sonhava em ser jogador de futebol. Mateus, flamenguista, era natural de
Maracás, na Bahia. As vítimas residiam em localidades como Capão Redondo, Jaraguá,
Vila Formosa, Vila Matilde, Grajaú, Mogi das Cruzes, Cidade Ariston e Carapicuíba.
Por desconhecerem as táticas de evasão locais, foram emboscadas e executadas pela
PMESP. O Instituto Médico Legal restringiu o acesso dos familiares aos corpos de
modo a ratificar a versão dos assassinos.
Na semana seguinte, às 3:15, os alto-falantes de porta-malas de carros, bares e
barracas de bebida emudeceram num tributo. “É para comemorar, extravasar. Eu estou
feliz com o baile, feliz que ele está acontecendo, mas metade do meu coração está
partido: tenho a idade dos meninos que morreram, mas, graças a Deus, estou vivo”
(Lucas Pereira de Souza, 24 anos). “Eu fiquei com medo, mas tive que voltar: esse é
meu ganha pão, eu e muitas pessoas dependemos do baile para sobreviver” (John, 29
anos). “Vários amigos meus não quiseram vir por medo após o que aconteceu, mas eu
vim por dois motivos: primeiro porque é minha única alternativa de lazer; e segundo
porque precisamos mostrar que funk não é só coisa de bandido, como dizem na TV. Em
qual festa eu consigo curtir com 40 Reais no bolso?” (Luan Araújo, 22 anos). “Eu perdi
um amigo aqui no final de semana passado, o Dennys Guilherme, de 16 anos. Pensei em
não vir, mas achei que o Dennys gostaria de ser lembrado por mim aqui. Acho que ele
queria que eu estivesse feliz e homenageando ele” (Samir Marques, 18 anos). “Vou ser
sincera com você, e olha que eu sou trabalhadora, eu estudo e trabalho, saio de casa
5:30 e volto quase meia-noite: os bandidos respeitam mais a gente do que a polícia” (K.
A., 24 anos). “Aqui é um espaço de cultura e lazer que deve ser respeitado pela polícia.
Não deve ser marginalizado, como muitas vezes acaba sendo”, disse o padre Luciano
Borges. Ao amanhecer, sucedeu-se uma missa de sétimo dia.
De acordo com Paul Sneed, professor da Universidade Nacional de Seul: “O
baile é o ponto de encontro do funk: novas modas entram e saem, mas o baile continua
sendo esse espaço; é uma cultura ao vivo. No mundo afro-atlântico, no qual o funk
brasileiro nasceu, o encontro ao vivo sempre foi chave. Historicamente, as comunidades
afro não tinham tanto os prédios fixos ou palavras escritas para contar ou transmitir seu
saber, poder ou ser. História oral, o corpo, a dança, música, os encontros de
comunidade: com esses elementos, eles se juntavam para falar sobre o passado e refletir
sobre o futuro”.
Ao descrever episódio semelhante ocorrido em 27 de setembro de 2009, no baile
da Chatuba da Penha, na Zona Norte do Rio de Janeiro, Vincent Rosenblatt explica:
“Ao fim e ao cabo todo o mundo arrisca a vida por seu baile. A celebração, o ritual do
baile, é tão importante que chega a ser religiosa. É um rito social de tamanha relevância
que aceitamos arriscar a vida”.

Referências
O primeiro parágrafo, sobre a Fazenda Morumbi, se baseia no cruzamento de
informações, às vezes contraditórias, obtidas de documentos em linha. O segundo, sobre
as origens do baile, tem como fonte o vídeo “Como surgiu o baile da DZ7” (13 ago.
2019, https://youtu.be/QH9pWluct3Q) e a entrevista “MC Robs fala sobre o massacre
no baile da DZ7” (12 dez. 2019, https://globoplay.globo.com/v/8162039). O terceiro, o
quarto e o quinto parágrafos, sobre o massacre e suas consequências, derivam de
matérias da imprensa. O excerto de Paul Sneed, no sexto parágrafo, provém de matéria
de Gabriela Ferreira, “Funk carioca vira tema de livro internacional” (7 jan. 2020,
https://kondzilla.com/m/funk-carioca-vira-tema-de-livro-internacional). O excerto de
Vincent Rosenblatt, no sétimo parágrafo, foi extraído da entrevista “Vincent na
Chatuba” (27 dez. 2014, http://www.proibidao.org/vincent-na-chatuba). Sobre o Baile
da Chatuba, ver Adriana Facina e Carlos Palombini, “O Patrão e a Padroeira: momentos
de perigo na Penha, Rio de Janeiro” (Mana 23/2: 341–70,
2017http://ref.scielo.org/p3r2xg).

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