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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

DEDC – CAMPUS XIV

RONIVALDO DA SILVA DE ALMEIDA

FOTOGRAFIA: DO FICCIONAL AO REAL

Conceição do Coité

2019
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

DEDC – CAMPUS XIV

RONIVALDO DA SILVA DE ALMEIDA

FOTOGRAFIA: DO FICCIONAL AO REAL

Monografia de conclusão de
curso apresentada ao Curso de
Comunicação Social com
Habilitação em Rádio e TV da
Universidade do Estado da
Bahia, como requisito parcial
à conclusão do curso.

Orientadora: Prof(a). Ma.


Carolina Ruiz de Macedo.

CONCEIÇÃO DO COITÉ

2019
RONIVALDO DA SILVA DE ALMEIDA

FOTOGRAFIA: DO FICCIONAL AO REAL

Monografia de conclusão de curso


apresentada ao Curso de
Comunicação Social com
habilitação em Rádio e TV da
Universidade do Estado da Bahia,
como requisito parcial à
conclusão do curso.

Aprovada em ____/____/_____

Banca Examinadora:

Profª. Ma. Sophia Midian Bagues dos Santos


Examinador UNEB

Prof. Dr. Matheus Araújo dos Santos


Examinador UNEB

Profa. Carolina Ruiz de Macedo


Orientadora

Conceição do Coité – BA

2019
AGRADECIMENTOS

Agradeço, em primeiro lugar, ao meu melhor amigo, Jesus, por me emprestar


o seu colo nos momentos difíceis e me dizer que eu era capaz quando nem
mesmo eu acreditava. Sem Ele eu não teria chegado aqui.

Agradeço a minha família, principalmente meus pais, por acreditar e investir


em mim.

Agradeço a minha orientadora, Profª Ma. Carolina Ruiz, pela escuta e leitura
atenciosa e pelas brilhantes considerações.

Por fim, não menos importante, gratidão a minha futura esposa, Daise Maria,
pela companhia nas angústias e nos êxitos. As nossas conversas ao redor da
mesa tomando café foram essenciais para este trabalho.
E disse Deus: Haja luz; e houve luz.

Gênesis 1:3
RESUMO

A discussão em torno da fotografia se apoiou de forma expressiva em sua


característica indicial, que lhe confere uma ideia de credibilidade e
objetividade, dessa forma sua significação aparece quase sempre ligada à sua
ligação com o real. Neste trabalho defendemos que a fotografia de imediato
nos oferece o voo do imaginário e com isso a criação de ficções, e só em
seguida possibilita um contato com real, quase sempre o questionando. Com
esse propósito discutimos os elementos que dão condições de existência a
fotografia, a saber, o aparelho fotográfico, o fotógrafo e o receptor,
entendendo como cada um sua maneira impõe sentidos que articulam a
fotografia com o terreno da ficção. Nesse sentido, utilizamos algumas
fotografias do Evandro Teixeira e do Victor Hugo Bígoli como gatilho para
pensar o fotográfico, relacionando-as com conceitos e pressupostos relevantes
para a filosofia da fotografia.

Palavras-chave: Fotografia; Real; Ficcional; Produção de Sentido.


ABSTRACT

The discussion around photography was supported in an expressive way in its


indicial characteristic, which gives it an idea of credibility and objectivity,
thus its signification appears almost always linked to its connection with the
real. In this work we argue that photography immediately offers us the flight
of the imaginary and with it the creation of fictions, and only then allows a
contact with real, almost always questioning. For this purpose we discuss the
elements that give conditions of existence to photography, namely, the
photographic apparatus, the photographer and the receiver, understanding
how each of his way imposes meanings that articulate photography with the
terrain of fiction. In this sense, we used some photographs of Evandro Teixeira
and Victor Hugo Bígoli as a trigger to think the photographic, relating them
with concepts and assumptions relevant to the philosophy of photography.

Key-words: Photography; Real; Fictional; Production of Meaning.


SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ------------------------------------------------------------09
2. FOTOGRAFIA E CONSTRUÇÃO DE SENTIDO-----------------14
2.1 Pressupostos Iniciais da Fotografia ---------------------------------------14
2.2 Construção de Sentido ------------------------------------------------------19
3. CONDIÇÕES DE POSSIBILIDADE DA FOTOGRAFIA--------24
3.1 O Aparelho Fotográfico-----------------------------------------------------24
3.2 Fotógrafo----------------------------------------------------------------------27
3.3 Receptor ----------------------------------------------------------------------32
4. A IMAGEM FOTOGRÁFICA -------------------------------------35
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ----------------------------------------46
REFERÊNCIAS ---------------------------------------------------------49
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1. INTRODUÇÃO

Entre 70 e 30 mil anos atrás a humanidade1 (homo sapiens), não se sabe ao certo a causa,
experimentou uma verdadeira revolução em sua história, compreendida como acontecimento
essencial para garantia de sobrevivência dessa espécie e do domínio do ambiente, já que
possibilitou vantagens cognitivas significativas em relação aos demais animais. Tal revolução,
conhecida como a Revolução Cognitiva, permitiu que, pela primeira vez, a humanidade pudesse
utilizar um tipo de linguagem versátil, capaz não apenas de “conectar uma série limitada de
sons e sinais para produzir um número infinito de frases, cada uma delas com um significado
diferente” (HARARI, 2015, p.28), mas, sobretudo, capaz de criar ficções, em outros termos,
capaz inventar histórias, expressar sentimentos, opiniões, dar significado a sua percepção e
compreender o mundo através de projeções mentais, expondo isso de maneira subjetiva e
inteligente (HARARI, 2015). Foi a partir de então que a humanidade começou a utilizar os
signos, inicialmente sonoros e gestuais, e em seguida imagéticos, para dar significado às
situações e fenômenos que lhe ocorriam como forma de transmissão de informação, fato
fundamental para a sobrevivência na pré-história, mas também forma de transmitir os
conhecimentos adquiridos para as próximas gerações (RODRIGUES, 2011).
Daí em diante o homem começou a aprimorar as suas estratégias de comunicação, e é
desse modo que surgem as imagens, representações visuais construídas pelo homem como
forma de expressão sentimental e emotiva, transmissão de conhecimento e dominação de outros
seres humanos, já que eram utilizadas em grande escala com propósitos mágicos e religiosos.
As imagens logo ganharam relevância na mediação do mundo, já que a maior parte da nossa
percepção é visual. Por isso, as imagens, dentre os demais signos, são as que mais fornecem
dados para compreensão dos diversos períodos da história da humanidade, por registrar
“acontecimentos, superstições, crenças, rituais, manifestações artísticas, políticas e culturais”
(RODRIGUES, 2011, p.60).
Da pré-história até o século XIX diversas transformações sociais, culturais, econômicas
e técnicas aconteceram na história da humanidade. Houve um aumento significativo da
população, que, por conta disso, deixou de viver em pequenas comunidades para povoar as
grandes cidades emergentes. Superadas as necessidades imediatas ligadas à sobrevivência,

1
Segundo Yuval Noah Harari (2015) em um determinado momento várias espécies do gênero homo habitaram o
mundo, sendo que apenas a 10 mil anos que a espécie sapiens se torna a única a existir, portanto o uso do termo
humanidade se refere ao homo sapiens.
10

próprias da pré-história, os novos arranjos sociais, alterados com o nascimento da ciência e o


surgimento cada vez mais crescente de técnicas, encetaram na psicologia humana interesses
bem diversos daqueles dos ancestrais pré-históricos. Naturalmente, as modificações que a
humanidade presenciou não isentaram o campo das imagens, que assumiram usos e funções
distintas em diferentes períodos da cultura humana (RODRIGUES, 2011).
2
Rodrigues (2011) aponta que o Renascimento Italiano foi um dos maiores
acontecimentos da história da humanidade, pois causou alterações significativas principalmente
no campo da arte, da cultura e da ciência. É nesse período, por exemplo, que as representações
imagéticas (escultura, relevos, pinturas, joalheria etc.) experimentam uma de suas maiores
descobertas, a da perspectiva, que dá às imagens pictóricas a sensação de profundidade e
tridimensionalidade e os estudos de anatomia que permitem a representação perfeita do corpo
humano, “levando-as à categoria de verdadeiras obras-primas da arte humana” (RODRIGUES,
2011, p.75). Isso ocorre, principalmente, pois, segundo Woortman (1996) houve uma profunda
transformação no campo científico. Esse período foi marcado, principalmente, por fortes
tensões entre a religião e a ciência.
Essas transformações alteraram “o pensamento religioso ao darem independência ao
pensamento científico, mesmo que partindo de princípios místicos” (WOORTMANN, 1966,
p.4) inaugurando assim “novas formulações que fundarão a modernidade e com ela a nova
ciência e concepção do homem” (WOORTMANN, 1966, p.4). Essas novas concepções
inauguraram um novo tipo de sociedade, a sociedade moderna, marcada por alterações nos
modos de produção, surgimento da industrialização, crescimento da urbanização e
generalização da economia de mercado (ROUILLÉ, 2009). Diante de todas essas
transformações, as representações imagéticas utilizadas até então, principalmente a pintura, que
apesar de alcançar um nível de realismo impressionante com o barroco, parecia não atender as
demandas solicitadas pela modernidade. A sociedade desse período demandava um sistema de
representação que se adequasse ao seu nível de desenvolvimento técnico (ROUILLÉ, 2009). É
nesse contexto que ocorre a maior revolução no campo das representações imagéticas: o
surgimento da fotografia.
Dessa maneira, devido à possibilidade técnica de criar imagens dispensando a
habilidade da mão humana, como era comum às demais representações imagéticas, a câmera
imputou na consciência daquela sociedade certa ideia de credibilidade e de verdade para a

2
Um período transitório entre a Idade Média e Idade Moderno marcado por importantes mudanças no âmbito
sócio-cultural, político, econômico e religioso.
11

imagem fotográfica. Tal ideia não se restringiu apenas ao senso comum, inclusive a própria
ciência se amparou nesse potencial documental e de registro que parecia ser o propósito de
invenção da fotografia e até mesmo por isso lhe reservou um lugar de objetividade - não por
outro motivo as primeiras décadas da fotografia foram marcadas pelo uso da fotografia com o
propósito de documento. Desde o seu surgimento a fotografia conviveu com práticas
antagônicas entre documento e arte, no entanto, a valorização do primeiro em relação ao
segundo correspondeu mais aos anseios e valores que estavam em evidência naquela sociedade
do que a limitações técnicas propriamente.
O próprio pensamento teórico acerca da fotografia foi contaminado por essa impressão
de realismo evocada pela imagem fotográfica, e por isso mesmo alguns textos com grande
relevância na área dão centralidade ao índice como sua especificidade. Nesse aspecto Barthes
(1984) e Bazin (1991) são exemplos interessantes para esse entendimento. Em A Câmera Clara,
de Barthes, um clássico sobre teoria da Fotografia, o autor defende o isso-foi, o fato de que o
referente existiu num determinado momento e da forma como se apresentou para a câmera,
como a característica definidora da fotografia, o seu noema. Bazin, na mesma direção, versando
acerca da ontologia da imagem fotográfica afirma que a fotografia se distingue das demais
representações imagéticas porque consegue capturar a aparência do ser tal como ele se
apresentou à objetiva, introduzindo assim uma impressão de realismo e objetividade até então
inéditos. Nesses textos a especificidade da fotografia é pensada a partir da sua relação imediata
com o real. Por isso, graças à centralidade que esses autores atribuem ao índice, a realidade do
referente capturada pela câmera pode ser devolvida através de uma fotografia.
Longe de negar a contribuição desses pensadores para a compreensão de uma filosofia
da fotografia, o objetivo que permeia o nosso trabalho vai além dessas reflexões, sem, no
entanto, negá-las por completo, a defesa que fazemos é de que, ao invés de nos oferecer uma
conexão imediata com o real, a fotografia nos possibilita em primeiro lugar voos imaginários e
a criação de ficções sobre o fotografado, por isso, as questões que se impõem de forma
pertinente neste trabalho são: Em quais condições a fotografia nos conduz à ficção? Quais
elementos são mobilizados para chegar a esse fim? Em qual momento do processo de
construção da foto isso fica mais evidente? Quais sentidos tal constatação aciona à nossa
sensibilidade? Qual o impacto nas projeções que temos do fotografado? E por fim, quais são as
características que nos possibilitam enxergar esse potencial em criar ficções e voos
imaginários? Menos do que obter respostas conclusivas, até mesmo pela porosidade da
fotografia, pretendemos lançar luzes para essas indagações possibilitando formas, ainda que
introdutória, para sua compreensão. Para isso propomos a discussão de alguns conceitos e
12

pressupostos pertinentes para refletirmos a construção de sentido na fotografia. Articulamos o


Pensamento Fotográfico (CAMARGO), as realidades e ficções inerentes à trama (KOSSOY,
1999), dessa caixa preta (FLUSSER, 2002) que desliza entre arte e documento (ROUILLÉ,
2009), real e ficcional, com uma estética bastante marcada da perda e permanência
(SOULAGES, 2010), entendendo como as implicações específicas do aparelho fotográfico
(FLUSSER, 2002) possibilitam a construção de uma linguagem, de uma poética (CAMARGO,
2017), que ao serem apropriados pelo fotógrafo imprimem na imagem fotográfica estratégias
discursivas, significações e sentidos, criando assim ficções que atuam na nossa relação com
mundo e têm resultados diversos no nosso imaginário sobre o fotografado. Para tanto,
utilizaremos algumas fotografias do Evandro Teixeira, fotojornalista renomado, e do Victor
Hugo Bígoli, fotógrafo humanitário, ambos dedicaram parte de sua obra para fotografar a
cidade de Canudos. Sem pretender uma análise minuciosa, tomamos essas imagens como
gatilho para pensar o fotográfico, tanto as condições de possibilidade como as suas condições
de recepção, ao final, as constatações que fazemos para fotos específicas podem ser alargadas
e experimentadas em fotos que pertencem a categorias diferentes dessas imagens em questão.
No primeiro capítulo intitulado de Fotografia e Construção de Sentido, discutimos, no
primeiro momento, alguns dos pressupostos que se evidenciaram no surgimento da fotografia
entendendo como eles foram determinantes para os sentidos que lhes foram sendo atribuídos.
Em seguida, discutimos algumas das principais teorias modernas que marcaram os estudos da
filosofia da fotografia, afastando-se delas em direção aos pensadores que darão a tônica do
trabalho. Assim, assumimos a fotografia em sintonia como o pensamento de Soulages (2010),
o qual defende a ideia de que toda fotografia é resultado de uma articulação sempre presente
entre o irreversível e o inacabado, e a sua estética fotográfica da perda e permanência. Já no
segundo momento do capítulo sinalizamos que a articulação entre o real e o ficcional torna-se
um dado essencial para construção de sentido na fotografia, além disso, apontamos para o fato
de que para compreendê-la de forma ampla é necessário entender suas especificidades, a saber,
suas condições de possibilidade, de produção e de recepção.
No segundo capítulo, Elementos Específicos da Fotografia, apresentamos
características gerais acerca do aparelho fotográfico, do fotógrafo e do receptor, demarcando
como cada um, ao seu modo, afasta a fotografia da sua relação imediata com a realidade e abrem
margens para voos imaginários e criação de ficções. Por fim, em A Imagem Fotográfica,
terceiro e último capítulo, discutimos a fotografia a partir dos conceitos desenvolvidos ao longo
do trabalho. Nesse momento, exploramos a fotografia propriamente, ou seja, o resultado do
encontro do fotógrafo e do aparelho com o referente, e depois colocada disposição de um
13

receptor, momento que enfim completa o seu significado. Dessa forma, utilizamos as
fotografias, que são o nosso gatilho, para então pensar a fotografia de uma maneira geral, a
partir do incentivo aos voos do imaginário e, com isso, a criação de ficções. Boa leitura!

2. FOTOGRAFIA E CONSTRUÇÃO DE SENTIDO

2.1 Pressupostos iniciais da Fotografia

Que a fotografia provocou uma revolução em todas as esferas da vida humana, não há
como contestar. Pela primeira vez na história da humanidade foi possível formar uma imagem
da realidade sem a intervenção criadora da mão humana (ROUILLÉ, 2009). No entanto, a nova
técnica não encheu os olhos de todos igualmente e várias foram às críticas dirigidas às diversas
práticas fotográficas que cada vez mais assumiam o cotidiano das pessoas. As principais
ofensivas ficaram a encargo dos artistas, críticos e admiradores das belas artes, pois, de alguma
forma, o excesso de exatidão da imagem fotográfica oferecia perigo, principalmente a pintura,
que também fora contaminada pelo fascínio do realismo. Essas tensões e brigas por território
com a arte - sua aceitação - marcaram toda a história da fotografia (ROUILLÉ, 2009). Ao fazer
14

isso, tanto a arte, a pintura principalmente, como a fotografia precisaram demarcar um lugar
específico nesse campo de lutas, ao passo que a existência de uma provocou alterações
significativas na outra.
Diante disso, qual seria então a especificidade da fotografia? O que ela tem de própria
que a difere das demais formas de representações imagéticas, além do fato de ser uma ‘imagem
tecnológica’? Em seu sublime texto A Ontologia da Imagem Fotográfica, Bazin nos apresenta
uma teoria capaz de compreender essa especificidade da fotografia. Ele relaciona a religião
egípcia da mumificação com o surgimento das artes plásticas, dentre elas a pintura e
posteriormente a fotografia. Para ele, tanto uma como a outra são orientadas contra a morte da
aparência do ser, fato que justifica o desejo e o fascínio pela descoberta de uma técnica capaz
de empreender a missão de lutar contra o esquecimento e de alguma forma trazer o ser “de volta
à vida”. A sua tese é de que a fotografia, e as demais formas de representações imagéticas,
assim como a técnica da mumificação, derivam de uma necessidade fundamental da psicologia
humana de “exorcizar o tempo” e “salvar o ser pela aparência”, só que, no caso da fotografia,
o autor considera que isso se concretiza de forma realística e objetiva. E essa, no seu entender,
seria a revolução da fotografia, e, portanto, sua especificidade, pois nenhuma outra imagem
atendia tão realisticamente essa aspiração. Por mais que a câmera obscura pudesse oferecer
uma imagem exata do real, não era capaz de salvar o registro, de lutar contra a passagem
destrutiva do tempo, não era capaz de fixar. Por isso, a revolução que a fotografia provoca no
âmbito das representações imagéticas advém do fato de que tal técnica consegue, de forma
assustadoramente realista, “embalsamar o tempo” e como isso preservar a aparência do ser tal
como ele se apresentou à objetiva, introduzindo assim uma impressão de realismo e
objetividade até então inéditos no campo das artes plásticas (BAZIN, 1991), Rouillé
complementa esse pensamento dizendo que, “enquanto as imagens manuais emanam dos
artistas, longe do real, as imagens fotográficas - que são impressões luminosas - associam o real
à imagem longe do operador” (ROUILLÉ, 2009, p).
Tal especificidade técnica possibilitaria que “pela primeira vez, uma imagem do mundo
exterior, se formasse automaticamente, sem a intervenção criadora do homem, segundo um
rigoroso determinismo.” (BAZIN, 1991, p.22), e dessa forma, “somos obrigados a crer na
existência do objeto representado” (p.22). Conforme Bazin (1991) a fotografia nos daria o
próprio objeto liberado das contingências temporais e é daí que resulta o poder irracional da
fotografia de “nos arrebatar a credulidade”, já que se trata, via de regra, de uma “transferência
de realidade da coisa para a sua representação” (p.22).
15

A fotografia, como já sinalizado, desde seu surgimento, conviveu com práticas


antagônicas. Entender essas práticas e as quais discursos e propósitos obedeciam é fundamental
para compreender as dimensões e os espaços que a fotografia ocupou ao longo de sua história.
Assim que patenteada por Daguerre e anunciada por François Arago à academia de ciência da
França, no mesmo período o processo fotográfico criado por Talbot foi defendido pela academia
de Belas Artes. Esse fato demarca a luta que fará parte da história da fotografia a colocando
entre o documento e a arte (ROUILLÉ, 2009). A apropriação da fotografia pela ciência lhe
ancorou em um discurso documental/objetivista ao ponto de ser utilizada pela medicina, polícia
pericial e na arqueologia, por exemplo, com alguns entusiastas a preferindo em relação à
observação in loco. Essa postura se baseia na ideia de que a fotografia é um vestígio da
existência do objeto fotografado, na crença de que existe uma aderência entre a coisa e a
fotografia (ROUILLÉ, 2009). A sua contingência forneceria provas de que as impressões
luminosas que alcançaram a objetiva foram fixadas por contato com o suporte sensível do
dispositivo fotográfico, sendo, pois, impossível negar a existência do objeto fotografado. A
fotografia vai se apoiar, portanto em um caráter indicial, aspecto que Barthes (1984) dá
centralidade em seu livro A Câmera Clara. Para esse autor, a fotografia não pode nos “dizer”
nada além do fato de que aquele objeto existiu e posou para a câmera atribuindo ao isso foi
aquilo que é específico da fotografia e que lhe diferenciaria das demais formas de
representações imagéticas.
Apesar dessa centralidade que alguns autores dão ao caráter indicial da fotografia, essa
credibilidade advém também do fato de que a sociedade industrial inaugurou valores que de
alguma forma foram atendidos pela fotografia, ao passo que também lhe forneceram terreno
para sua consolidação. O seu contexto de eminência caracterizava-se pela valorização da
objetividade em relação à subjetividade, da superação do local com a globalização. A fotografia
oferece então àquela sociedade cada vez mais móvel, veloz e mecanizada novas visibilidades.
Uma vez que a pintura sempre abordou temas eternos, distantes, transcendentes, a fotografia
com seus temas imanentes devolve ao homem o aqui-agora, o terreno, o outro-lugar inacessível,
mas real, já que capturado pelo dispositivo fotográfico (ROUILLÉ, 2009).
É verdade que o uso documental, graças ao discurso científico, ao contexto da sociedade
e aos valores que estavam em evidência, se sobrepôs ao uso artístico da fotografia, mas o fato
é que este último sempre existiu desde a sua concepção. A defesa da imagem fotográfica
enquanto “... máquina para em vez de representar, captar” (ROUILLÉ, 2009, p.36), capaz de
duplicar o real com uma semelhança assustadora, e entrar em contato com o referente,
produzindo assim exatidão e transparência acabou por marginalizar o uso artístico da fotografia,
16

as suas possibilidades de criação. O pensamento amplamente difundido por críticos e


representantes das Belas Artes, principalmente os pintores, justificativa a impossibilidade
artística da fotografia relacionando-a com a sua expressão visual mais próxima, a pintura, se
nesta é o artista quem age elegendo e sacrificando os detalhes que devem entrar no quadro de
acordo com sua sensibilidade e intenção, e a sua mão e habilidade atestam a qualidade da obra,
diziam, na fotografia, ao contrário, o dispositivo fotográfico, através de um processo físico e
químico, formaria a imagem de forma democrática, sem hierarquizar nenhum elemento da foto,
nem centro nem borda, transportando tudo que está na frente da objetiva para imagem
fotográfica sem sacrifício, e, portanto sem subjetividade (ROUILLÉ, 2009). Apesar desse
pensamento ter prevalecido por muito tempo, a fotografia é antes de tudo o “instrumento de um
ver” e uma máquina de visão, “... segundo meios próprios ela fabrica o mundo, o faz acontecer”
(ROUILLÉ, 2009,p.72). Como defende Rouillé, não existe uma coisa preexistente à fotografia,
“... pois ela produz uma imagem no decorrer de um processo que coloca a coisa em contato
com outros elementos materiais e imateriais” (ROUILLÉ, 2009, p.73), produzindo, pois, um
novo real, o real fotográfico. É esse novo real fotográfico produção do fotógrafo, que de acordo
com sua subjetividade, seleciona qual fragmento do mundo vai fixar, seguindo uma lógica que
é própria do dispositivo fotográfico,

a imagem fotográfica constrói-se no decorrer de uma sucessão estabelecida de etapas (o


ponto de vista, o enquadramento, a tomada, o negativo, a tiragem etc.), através de um
conjunto de códigos de transcrição da realidade empírica: códigos ópticos (a
perspectiva), códigos técnicos (inscritos nos produtos e nos aparelhos), códigos estéticos
(o plano e os enquadramentos, o ponto de vista, a luz, etc, códigos ideológicos, etc.).
(ROUILLÉ, 2009, p.79).

Desde a idealização na mente do fotógrafo até a sua formação, a imagem fotográfica


está rodeada de escolhas que não são aleatórias, mas fazem parte de um projeto subjetivo,
criativo e, portanto discursivo, “enfim cada máquina (usos da fotografia) é inseparável de
práticas discursivas, de regimes de enunciados”. Se a máquina fotográfica faz crer na mera
repetição do objeto da realidade para outro suporte, ela deixa esconder que o processo
fotográfico “nunca registra sem transformar, sem construir, sem criar” (ROUILLÉ, 2009, p.77).
Em contramão à defesa do caráter indiciário e do culto ao referente fotográfico, François
Soulages em Estética da fotografia: perda e permanência nos apresenta uma estética da
encenação. Em substituição ao isto foi barthesiano ele prefere o isso foi encenado, “fotografar
é sempre construir um teatro do qual se é o diretor, do qual se é, por certo tempo, o Deus
ordenador: dão se ordens, chama-se à ordem, introduz se ordem no real que se quer fotografar”,
diz ele (SOULAGES, 2010, p.67). Defende ainda que diante de qualquer foto somos enganados,
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já que a fotografia é feita por “deuses do instante”, que são dominadas conscientemente ou não
por modelos estéticos, reproduzidos ou evitados, por pulsões e desejos. Portanto, esse jogo em
que o fotógrafo se insere com o referente de alguma forma adultera a realidade, que não pode
ser apreendida fotograficamente. Por isso, Soulages encara o fotógrafo como um homo faber
que em vez de tirar uma foto, fabrica, “o fotógrafo não tira fotos, ela as faz, a partir de
fenômenos visíveis. A partir de imagens psíquicas inventadas por si próprias.” (SOULAGES,
2010, p 80).
A proposta deste trabalho transita em torno daquilo que Soulages entende como a
especificidade da fotografia, que é o conceito de fotograficidade. Toda fotografia é resultado
de uma articulação sempre presente entre o irreversível e o inacabado, a fotografia é resultado
daquilo que se perde e o que permanece. Diante de todo ato fotográfico, o fotógrafo se depara
com um momento que não se repetirá mais, atropelado pelo fluxo do tempo, com as
circunstâncias únicas que se perdem sempre, assim que se dispara o clic, isto é, sua
característica irreversível, ao passo que, invariavelmente, há uma permanência, um eterno
retorno, algo inacabável que diz respeito às diversas possibilidades de transformação que a
fotografia pode sofrer depois de gerada, a serviço de discursos e sentidos os mais diferentes
possíveis.
Sendo assim, na visão de Soulages, a imagem fotográfica não é natural, nem objetiva,
nem neutra, mas cultural e herdeira de técnicas, de práticas e de terapias historicamente
determinadas, já que a fotografia tende a representar os fenômenos externos de uma forma
diferente da do olho humano - de forma perspectiva. A perspectiva é uma invenção
historicamente demarcada, não é um meio neutro que permite restituir a realidade, ao contrário,
ela revela um ponto de vista particular sobre o mundo. O espectador não olha uma foto como
olha o mundo. A imagem fotográfica distorce o tamanho dos objetos, os vínculos com o tempo
e a duração são totalmente diferentes, o movimento desaparece, as cores são transformadas
(SOULAGES, 2010). Ou seja, uma série de coisas separa o objeto da realidade de uma
fotografia, que ao ser recebida por um sujeito particular, vai interpretar de forma pessoal e
única, pois uma fotografia só consegue fixar fenômenos visíveis, fatias temporais, nunca a
totalidade. O fotógrafo age então, selecionando um fenômeno dentre os diversos possíveis, isso
por si só já provoca uma discursividade subjetiva à fotografia, já constrói uma das diversas
ficções possíveis. Essa fotografia gerada entre todas as possíveis vai ser recebida por um
espectador como uma história própria, inserida em uma cultura, com conhecimentos ou não
acerca da fotografia e de sua linguagem.
18

A diferença radical da fotografia em relação às demais artes é o fato de que, como


defende Soulages, ela possui um duplo pertencimento tanto ao objeto fotografado, através de
uma ligação indiciária com o referente, como ao objeto fotográfico, autônomo, fabricado. Essa
oscilação se torna potencialmente enriquecedora para fotografia, visto que reserva um lugar
ideal para a fabricação de uma ideia, de outra realidade, por parte do fotógrafo e ainda fornece
à recepção diversas possibilidades de leitura.
Situamo-nos aqui entre o domínio do documento e da arte, do real e do ficcional.
Compreendemos que, apesar da imagem fotográfica ser rodeada de uma grande credibilidade e
objetividade, assim como as demais formas de representação imagética, ela está suscetível a
determinações subjetivas do seu criador, podendo ser uma ferramenta para interesses que dizem
respeito à ideologia, ao contexto histórico, cultural e social (KOSSOY, 1999). “Toda imagem
fotográfica é, a um só tempo, signo informacional (índice icônico) e obra de arte (boa ou má),
ou seja, é, simultaneamente, o registro do real e uma figuração” (SCHAEFFER, 1996, p. 100,
apud, SOULAGES, 2010, p. 92). Isso nos coloca diante de três realidades específicas da
fotografia: as condições de possibilidade de uma foto, suas condições de produção e suas
condições de recepção (SOULAGES, 2010). Nesse processo em que o ato fotográfico se insere,
é o lugar das estratégias que o fotógrafo lança mão para construir sentidos, imaginários e
conduzir o olhar do espectador para uma direção premeditada desde a escolha da temática,
passando pela perspectiva de abordagem, até às especificidades da linguagem fotográfica – é,
através disso, que o entendemos como um homo faber capaz de intervir no mundo alterando
lhe e oferecendo outras possibilidades de significação.

2.2 Construção de sentido na Fotografia

O momento atual da nossa sociedade é marcado pelo acúmulo excessivo de imagens


“estocadas nos bancos de dados da nossa memória” (COTTON, 2013, p. 192) que povoam o
nosso imaginário, com “... a faculdade de nos comover, nos indignar, nos fazer rir, nos
persuadir, nos distrair, nos fazer fantasiar” (MENDES et al, 2013, p. 13). Essa constante
exposição a que estamos submetidos altera a nossa forma de ver o mundo, cria novas
visualidades e acaba por colonizar a nossa visão com uma estética do ver. Segundo Flusser
(2002), as imagens são mediações entre o homem e o mundo, dessa forma moldam a nossa
percepção e os nossos sentidos. No entanto, ao fazer isso, em vez de nos orientar no
entendimento do mundo, elas acabam por causar o que o autor chama de idolatria, ou seja, “o
19

homem, ao invés de se servir das imagens em função do mundo, passa a viver em função de
imagens” (p. 7).
Até aqui apresentamos alguns pressupostos teórico acerca da fotografia e como eles
foram decisivos para os principais paradigmas que surgiram ao seu respeito. Menos que um
aspecto ontológico, a questão da objetividade da imagem fotográfica se apresenta como uma
resposta aos anseios que ganhavam corpo na sociedade que a inaugurou ao passo que a
dimensão tida como artística, apesar da militância, no primeiro momento, para se afastar do
real, nunca se viu completamente livre do fantasma do rastro. Tal embate, a nosso ver, é apenas
uma disputa pela hegemonia na produção fotográfica, mas que não se constitui de fato uma
oposição - apenas no campo da discursividade - haja vista que toda fotografia está
necessariamente contaminada pelo real e pelo ficcional. Neste trabalho, buscamos seguir com
esse entendimento, pois, como sinalizamos no final do capítulo anterior, o real e o ficcional
estão diluídos na imagem fotográfica, ou como pensa Kiefer (2018) “a imagem é sempre real -
ficcional, pois carrega, além da conexão com o real, as intenções de quem a faz” (p. 8), sendo,
pois o dado que a torna tão sedutora e capaz de despertar tanto interesse. A sua complexidade
e facilidade em produzir ficções e voos imaginativos não está dissociado desse duplo
pertencimento, favorecido, naturalmente, pelo seu suporte, além da linguagem e estética
inauguradas por ele.
A fotografia tem se apresentado como um campo teórico pantanoso, no qual diversos
pensadores somaram e somam esforços para trilharem caminhos que conduzem ao
entendimento de suas especificidades, bem como formas de apropriação, métodos de leitura,
como também seus impactos na sociedade. No entanto, não apenas um campo teórico, a
fotografia é também um fenômeno social e cultural largamente difundido na atualidade, e que
por tal hermeticidade, sua significação não pode ser reduzida a métodos de análise definidos e
consolidados, mas deve se pensar a partir das diversas nuances que se impõem ao pensar o
fotográfico. Com esse objetivo bem nos alerta Soulages (2010), para o qual existem três
realidades que especificam a fotografia: suas condições de possibilidade, de produção e de
recepção. Para se chegar à especificidade da fotografia, seu sentido de modo amplo, pensa o
autor, é necessário dissecar cada uma dessas condições, “não é compreender uma coisa o fato
de só levar em conta o que a torna possível. É preciso também tomar a coisa em si mesma para
compreendê-la” (SOULAGES, 2010, p. 128) sentencia ele. Sendo assim, andaremos nesse
caminho iluminado pelo francês, considerando todos os elementos que atestam suas condições
de existência, especialmente no que se refere ao aparelho e ao fotógrafo, bem como o receptor,
indo além, até chegar enfim, no que ele chama de “a coisa em si”, a fotografia.
20

Propomos, portanto, como forma de reflexão, trazer e também retomar a discussão de


alguns conceitos e pressupostos pertinentes, os quais nos subsidiarão para um entendimento,
ainda que introdutório, da construção de sentido na fotografia. Com isso em mente, articulamos
o Pensamento Fotográfico (CAMARGO), as realidades e ficções inerentes à trama (KOSSOY,
1999), dessa caixa preta (FLUSSER, 2002) que desliza entre arte e documento (ROUILLÉ,
2009), real e ficcional, com uma estética bastante marcada da perda e permanência
(SOULAGES, 2010), entendendo como as implicações específicas do aparelho fotográfico
(FLUSSER, 2002) possibilitam a construção de uma linguagem, de uma poética (CAMARGO,
2017), que ao serem apropriados pelo fotógrafo imprimem na imagem fotográfica estratégias
discursivas, significações e sentidos, criando assim ficções que atuam na nossa relação com
mundo e têm resultados diversos no nosso imaginário sobre o fotografado.
Apresentaremos, no último capítulo, um conjunto de imagens, algumas de um dos
fotojornalistas mais renomados do país, o baiano Evandro Teixeira, e as outras do fotógrafo
humanitário paulista Victor Hugo Bígoli, que também é professor universitário e atua no Projeto
Canudos, projeto de trabalho humanitário no sertão baiano. Esse conjunto de imagens foi
selecionado tendo por critério a leitura que ambos fazem da cidade de Canudos - BA, e seus
moradores. Nesse sentido, buscou-se no conjunto das fotografias uma coerência temática e de
perspectiva de abordagem. As fotografias de Evandro Teixeira foram retiradas do seu livro
Canudos: 100 anos, que reúne imagens e textos do sertão nordestino de Canudos, cenário da
Guerra de Canudos, que em 1997, na data de seu lançamento, fazia 100 anos. Já as fotografias
de Victor Hugo Bígoli estão disponíveis em seu perfil na rede social Instagram, juntamente
com outras fotografias dos diversos lugares em que atua como fotógrafo e humanitarista, além,
claro, de suas fotos pessoais.
Sugerimos no que se refere à discussão das fotografias, uma ampliação das abordagens
optando por métodos menos rígidos, valorizando a subjetividade e o repertório do pesquisador,
pois, no entender de Gonçalves (2009) isso “pode ser uma contribuição positiva à abordagem
de uma imagem” (p.242). A autora completa sua reflexão reforçando que “o processo de
análise, em última instância, é um processo elaborado com intenção de realizar o desvelamento
respeitoso de significações e dinâmicas em diversos níveis” (GONÇALVES, 2009, p. 243).
A fotografia não pode ser dissociada dos seus processos de construção e de recepção,
como já disse Kossoy (2007). No entanto, aliado a isso, chamamos atenção para o fato de que
a interpretação da imagem fotográfica não se dá apenas pelo conhecimento cultural, ou nas
palavras de Barthes, pelo seu studium, mas sua característica diferencial reside no punctum que
21

lança o espectador para fora da imagem, no espaço que aqui chamaremos de imaginário3. Uma
pesquisa realizada por Barros (2014a) a partir do diretório de dissertações e teses da capes 4 e
do diretório de grupos de pesquisa do CNPq5 com o objetivo de averiguar os trabalhos que se
debruçaram sobre a fotografia como episteme entre os anos de 1999 e 2009 “fornecendo pistas
para o que seria uma teoria da fotografia brasileira” (p.28) aponta para o fato de que grande
parte desses trabalhos assume a relação da fotografia com a realidade como fator mais relevante.
Observou-se, ainda, que a maioria dos textos deixa supor certa ontologia da imagem fotográfica,
que na maioria dos casos é seu caráter sígnico, com larga vantagem para o índice. Isso é
facilmente explicado se levarmos em conta uma das características definidora da fotografia,
que é a sua técnica. A partir disso, a autora infere
que a produção teórica brasileira em fotografia não busca tanto um método de leitura de
fotografias e sim uma licença para simplesmente estar em presença delas, deixar agirem
em nós não as imagens afetadas do iconismo exacerbado e sim as imagens inefáveis do
mundus imaginalis (BARROS, 2014, p. 223).

Se grande parte das pesquisas no campo da fotografia elege um elemento como central
para o entendimento da imagem fotográfica, queremos chamar atenção para as inter-relações
estabelecidas no ato fotográfico. A dispersão teórica apontada por Barros (2014b) por um lado
“vem confirmar a incipiência da formação de um corpo teórico na área” (BARROS, 2014b, p.
221), mas também nos oferece uma luz para pensar a fotografia de uma forma não limitante.
Nesse sentido, concordamos com Rouillé (2009), no momento que diz que uma fotografia
nunca está sozinha, mas sempre inserida em uma rede na qual se interpõem elementos tanto
materiais como imateriais. De forma clara, existe sempre na fotografia a atuação de partes em
certo sentido autônomas, mas que no momento do ato fotográfico se relacionam de forma que
um elemento condicione e seja condicionado pelo outro. O fotógrafo com suas escolhas é
suscitado por um referente, tendo em mãos um dispositivo cheio de vontade e com
especificações demarcadas, o resultado desse encontro será a imagem fotográfica, que se
completará no contato com o receptor. Perceber esse jogo relacional é fundamental para
entender como a fotografia atua como construtora de ficções e imaginários.

3
Não pretendemos com isso adentrar nas teorias dos Estudos do Imaginário, campo teórico em crescente nos
últimos anos. Para efeito de definição, utilizaremos imaginário nos referindo a essa capacidade criadora que a
fotografia sugere ao receptor, bem como o conjunto de imagens mentais e técnicas que compõem a discursividade
de um determinado lugar ou temática.
4
Capes - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
5
CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
22

Graças às inovações técnicas trazidas no bojo da revolução industrial, a inédita


possibilidade de formação de uma imagem a partir de uma tecnologia que dispensava a atuação
do homem em boa parte do processo de feitura consolidou no senso comum um forte sentimento
de credibilidade diante do que era gerado. Tal credibilidade é importante frisar, menos do que
uma característica intrínseca à câmera é um efeito de sentido que pode ser criado “como
qualquer outro componente social” (CAMARGO, 2018, p. 12). Nesse sentido, retomar a aurora
da fotografia nos oferece as pistas mais valiosas para compreensão daquilo que ainda hoje
permeia seu significado. Um bom exemplo disso é o fato de que, desde que anunciada pela
academia de Ciências em Paris, a fotografia caminhou ancorada na ideia de verdade e realidade.
De fato, é oportuno afirmar que ciência e verdade sempre apareceram de mãos dadas no
imaginário social. Se montarmos uma linha do tempo observando o percurso evolutivo da
fotografia constataremos que toda evolução técnica respondia a um anseio em voga na
sociedade e, principalmente, cada modificação no aparato original responsável pela fotografia
resultava em uma melhoria na qualidade da imagem, ao passo que, “ao fazer isto também
criavam um sistema de modelamento capaz de interferir, manipular a imagem [que] ao invés
de torná-la mais próxima do mundo natural por sua objetividade e precisão, acabou por afastá-
la dele” (CAMARGO, p. 4). Parece-nos uma luta ganha, depois de mais de um século e meio
de discussões, a defesa de um espaço ficcional na fotografia, já que, como bem pontua
Fontcuberta (2012), “a fotografia já nasceu com uma dupla faceta, notarial e especulativa, de
registro e de ficção” (p. 4), porém, não queremos nos deter nesse ponto mais do que o
necessário. As questões que se impõem de forma pertinente, neste momento, são: Em quais
condições a fotografia nos conduz à ficção? Quais elementos são mobilizados para chegar a
esse fim? Em qual momento do processo de construção da foto isso fica mais evidente? Quais
sentidos tal constatação aciona à nossa sensibilidade? E qual o impacto disso nas projeções que
temos do fotografado? Já que a fotografia é uma mediação que nos coloca em contato com o
mundo e também por isso em contato com nossa subjetividade, essas indagações podem nos
oferecer uma luz para pensar a fotografia em sua relação com a realidade, abordando outras
possibilidades para sua compreensão. Com o objetivo de chegar ao cerne da nossa problemática
intentamos apresentar um panorama acerca dos componentes que, em nossa opinião, imprimem
suas contribuições no resultado de uma fotografia, nos referimos ao aparelho fotográfico, ao
fotógrafo e em última instância, ao receptor.
23

3. CONDIÇÕES DE POSSIBILIDADE DA FOTOGRAFIA

3.1 O Aparelho Fotográfico

Diante disso, vamos no deter, por ora, no fato de que a câmera enceta certa forma de
configurar o mundo sancionando valores morais “como o rigor, a verdade e a memória”
(FONTCUBERTA, 2012). E é esse o primeiro ponto que pulula nossas inquietações: a câmera
com todos os seus processos internos não é neutra ou passiva, mas também convoca e provoca
um significado, inaugura uma estética, um modo de ver, adultera, transforma, cria, sugere,
ordena, predetermina e tudo isso, sem incluir, ainda, a intencionalidade do fotógrafo. Por mais
escorregadio que seja diante de uma recepção desatenta, essas constatações são extremamente
determinantes daquilo que se entende por fotografia.
O processo fotográfico constitui-se de “um sistema técnico capaz de realizar a mediação
entre a luminosidade do meio ambiente e o suporte sensível no qual é instaurada” (CAMARGO,
2018, p. 1), essa luz captada, que reflete diretamente dos objetos, ao incidir no suporte sensível
é apreendida de maneira que fique gravada como uma representação do mundo. Ao contrário
do que se creu por muito tempo, “esta mediação não é literal ou automática tampouco especular,
mas resulta da manipulação tanto do aparelho e de quem realiza esta mediação, quanto do
conceito que ampara tal imagem” (CAMARGO, 2018, p. 1). Ou seja, entre aquilo que vemos
na imagem fotográfica e o que vemos na realidade se interpõem uma série de intervenções tanto
de caráter técnico como autoral. Nesse sentido, foi Flusser (2002) quem nos ofereceu as bases
mais sólidas para compreender tais intervenções. Para esse autor, a aparente objetividade das
imagens técnicas é ilusória e, dessa forma, “devem ser decifradas por quem deseja captar lhes
o significado” (FLUSSER, 2002, p. 10). Para que tal deciframento ocorra, é necessário atentar
para o elo que se interpõe entre imagem e significado, que é o que ele chama de “aparelho-
operador”, sendo o aparelho a caixa preta responsável pela fotografia e o operador um agente
humano que o manipula (fotógrafo, cinegrafista) e é exatamente essa relação que liga imagem
e significado.
Camargo (2017) nos mune de uma constatação bastante relevante para compreendermos
a imagem fotográfica de uma forma mais completa. Para esse autor, o Pensamento Fotográfico,
“processo cognitivo que tem orientado [suas] pesquisas acadêmicas em busca dos sentidos e
significações que constituem a fotografia como manifestação estética”. (p. 2) deve ser pautado
partindo do pressuposto que o mecanismo responsável por mediar o transladamento da luz do
meio ambiente para o interior da câmera, gerando a imagem, é justamente o “que define a
24

constituição visual das fotografias” (CAMARGO, 2017, p. 1). Esse mecanismo é o princípio
ótico e formativo original da fotografia denominado de estenopo, palavra que vem do grego e
“pode ser traduzido como furo, orifício” (p. 1). É na junção do estenopo com todas as
configurações técnicas que foram sendo acopladas ao aparelho fotográfico que iremos entender
a fotografia em toda sua plenitude, pois tais artifícios técnicos se tornaram modeladores da
imagem. Inclusive, entender as imposições desse mecanismo originário da fotografia menos do
que validar o culto ao referente, nos subsidia para colocá-la a serviço da criação, da ficção e da
imaginação, visto que, cada adaptação imposta ao estenopo dotava-o de um poder que o corpo
humano não possuía. Nas palavras de Camargo (2018), “é necessário reconhecer que sempre
que se acoplou algo ao estenopo, ao orifício, isto também interferiu na constituição da imagem
e, consequentemente, nos seus sentidos e significação” (p. 5), ou como formula Flusser (2002)
“o que vemos ao contemplar as imagens técnicas não é “o mundo”, mas determinados conceitos
relativos ao mundo” (p. 10). Dessa forma a fotografia se vê invadida por um dilema com
grandes repercussões para sua filosofia,

de um lado pretende trazer para a sociedade um meio capaz de promover registros


eficientes do mundo natural, dispensando a arbitrariedade da qual a arte visual sempre
foi acusada e, de outro, acaba criando um sistema capaz de alterar, adulterar, modificar,
transformar, manipular imagens afastando-se radicalmente de seu propósito original que
era reproduzir imagens como se fosse uma imitação mimética do visível, um
espelhamento. (CAMARGO, 2018, p. 4)

A partir da manipulação do estenopo alguns fenômenos ópticos foram sendo


descobertos e são, na verdade, os recursos determinantes para a criação da imagem fotográfica,6
a saber, o controle da medida do orifício por onde se penetra a luz para o interior da câmara e
do tempo em que esse orifício permanece exposto à luminosidade. Temos, portanto, duas
estratégias de produção de sentido que surgem a partir do estenopo. O primeiro é o diafragma,
que diz respeito à qualidade da imagem, “na medida em que o diâmetro do estenopo fosse
reduzido a nitidez aumentava” (CAMARGO, 2017, p. 5) e vice-versa. O segundo é o obturador,
que tem por finalidade facilitar a variação do tempo/período de exposição e o seu efeito de
sentido é a noção “de movimento ou sua ausência na fotografia” (CAMARGO, 2017, p. 8).
Temos então o seguinte, a manipulação dos recursos fundantes da fotografia dão existência e
visibilidade às imagens revelando por meio delas as escolhas, recortes e tomadas que lhes dão
estrutura, Camargo (2017) chega a defender que todas essas variações de caráter formal,

6
Vale dizer que nos referimos aqui a Fotografia enquanto conceito, haja vista as diversas formas de se produzir
fotografia na atualidade, sem necessariamente ter em posse uma câmera fotográfica.
25

estrutural, Sintático promovem variações de caráter estético, conceitual, Semântico no Discurso


Fotográfico,

recursos discursivos importantes para a construção plástica e estética da imagem


fotográfica tanto no que diz respeito à sua poética, quanto para o desenvolvimento de
seu discurso enquanto meio de informação ou comunicação. (CAMARGO, 2017, p.8).

Esse sistema tão complexo, responsável por formar a imagem, jamais pode ser
penetrado totalmente pelo fotógrafo, pois o que se vê é apenas input e output e “quem vê input
e output vê o canal e não o processo codificador que se passa no interior da caixa preta”
(FLUSSER, 2002, p.15). A questão determinante da fotografia então seria o fato de que,
diferente da pintura, onde se procura decifrar ideais, surge a necessidade de decifrar a
participação da técnica no resultado final. Na visão de Flusser as imagens técnicas,
materializam determinados conceitos a respeito do mundo, “justamente os conceitos que
norteiam a construção dos aparelhos que lhes dão forma” (MACHADO, 1999, p. 2). Para
complementar esse raciocínio Soulages (2010) nos diz que uma foto só se assemelha a uma foto
e não ao fenômeno visado, pois a câmera fotográfica funciona de modo bastante diferente do
olho humano. Como pensa Soulages (2010) a imagem fotográfica não é natural, nem objetiva,
nem neutra, mas cultural e herdeira de técnicas, de práticas e de terapias historicamente
determinadas. Apesar de sua fascinante possibilidade de nos colocar diante de uma
representação visual bastante fiel do objeto, a fotografia não pode ser consumida como uma
imagem objetiva da realidade ou testemunha fiel de um fato, ao contrário disso, sua existência
atesta a possibilidade de criar ficções, que se relacionam com o objeto apenas por uma questão
tecnológica, que, mais do que qualquer outra representação imagética, possui a capacidade de
fabricar novos mundos, ideias e imaginários. Diante de uma foto há de se pensar que sua
semelhança indiscutível com o objeto da realidade é apenas uma distração da sua verdadeira
intenção. Como bem defendeu Flusser (2002), as imagens, na tentativa de serem mapas do
mundo, de traduzi-los, acabam por se tornar biombos, escondê-los.
As imagens que resultam do ato fotográfico já saem predeterminadas, programadas e
assim a fotografia vai modelando seus receptores. As fotografias são, então, realizações de
algumas das potencialidades pré-inscritas no aparelho (FLUSSER, 2002). De modo geral, as
contribuições de Flusser nos levam a pensar além da questão da realidade, apontada como
central nos estudos de fotografia, que seria bastante frágil a partir desse ponto de vista, mas
também acerca da questão da criação e autoria em fotografia. Isso nos leva a fazer algumas
ponderações, tais como: se as imagens técnicas transformam conceitos científicos em cenas,
isso supõe que a sua estética é determinada por um conjunto de aparelhagem técnica que escapa
26

ao fotógrafo e refletem mais a intenção de quem o programou do que as de quem o manipula.


Dadas as circunstâncias seria possível para o fotógrafo articular alguma ideia a partir da
fotografia? Qual seria, portanto, o tipo de mensagem advinda de tal aparelho, ou melhor, qual
efeito de sentido a imagem fotográfica produz em seus receptores? Como se articulam o
binômio realidade-ficção na fotografia e quais seus efeitos no imaginário do receptor? O
objetivo dessas indagações não é indicar que possuímos respostas conclusivas, mas apontar um
caminho de reflexão e uma das possibilidades de ser ler a fotografia, prática com bastante
repercussão na atualidade. Dessa forma, é oportuno trazermos ao debate a figura do fotógrafo,
um dos componentes que asseguram as condições de possibilidade de uma foto.

3.2 Fotógrafo

Temos então a seguinte questão: o aparelho fotográfico não é apenas um instrumento


passivo, facilmente dominado, pelo contrário, possui uma intenção clara “programar a
sociedade através das fotografias para um comportamento que lhe permita aperfeiçoar-se”
(FLUSSER, 2002, p. 25). A fotografia não pode ser, portanto, o ‘mundo’, “mas conceitos
transcodificados que pretendem ser impressões automáticas do mundo” (FLUSSER, 2002, p.
23). No entanto, o aparelho não funciona sozinho, “o jogo do aparelho implica agentes
humanos, “funcionários”, salvo em casos de automação total de aparelhos” (FLUSSER, 2002,
p. 17). Dessa forma, o gesto fotográfico se desenvolve no encontro entre duas intenções
codificadoras: a do fotógrafo e a do aparelho. Para que haja um deciframento satisfatório da
fotografia “basta decifrar o processo codificador que se passa durante o gesto fotográfico, no
movimento do complexo ‘fotógrafo-aparelho’” (FLUSSER, 2002, p. 24). Já apresentamos
algumas ponderações acerca do aparelho, vamos nos deter, por hora, na particularidade do
fotógrafo. O que ele pode diante de um aparelho tão poderoso? Resistir ou sucumbir ao
automatismo tentador?
Nos primórdios da sua invenção, a fotografia, acusada de duplicar a realidade com uma
fidelidade nunca antes vista, foi relegada apenas ao papel de documento dos fatos. Nesses
termos, era impossível ao fotógrafo alcançar o tão sublime posto de artista, uma vez que,
diziam, tratar-se apenas de uma atividade mecânica, na qual, depois de apertar o botão, as
demais atribuições ficavam ao encargo da máquina. Levou muito tempo, e muitas disputas e
reformulações no terreno da arte, até que o fotógrafo pudesse gozar do direito de ser chamado
de autor. As ponderações de Flusser (2002) nos levam a um terreno parecido, pois, afirma ele,
“o fotógrafo somente pode fotografar o fotografável, isto é, o que está inscrito no aparelho”
27

(FLUSSER, 2002, p. 19), retirando deste, ou pelo menos questionando, seu papel de autoria.
Isso nos coloca diante de duas argumentações, no primeiro caso dando relevância a objetividade
técnica e no segundo na sua condição de aparelho com programa. Embora tais ponderações
sejam contrárias, em certo sentido, alcançam a mesma finalidade: pôr em xeque a possibilidade
de criação do fotógrafo.
Nesse período em que vivemos, no qual “todos possuem uma câmera fotográfica”
(RAMPAZZO, 2014, p. 45), e que caracteriza o fazer fotográfico como “um jogo
estruturalmente complexo, mas funcionalmente simples” (FLUSSER, 2002, p. 30) podemos
nos questionar qual é, por certo, a contribuição do fotógrafo em meio ao tanto de imagens
automatizadas que nos cercam, já que os avanços que acontecem no aparelho fotográfico
acabam por automatizar ainda mais o gesto fotográfico, “o aparelho fotográfico assim
comprado será de “último modelo”: menor, mais barato, mais automático e eficiente que o
anterior” (FLUSSER, 2002, p. 30). O efeito imediato disso é que “boas” fotografias podem ser
tiradas sem necessariamente saber o que se passa no interior do aparelho.
Estamos agora diante de uma questão bastante profícua, e as respostas para as
indagações que têm sido feitas ao longo deste trabalho começam a ganhar corpo quando nos
deparamos com a distinção que Flusser (2002) faz entre funcionário e fotógrafo. No seu
entender, o primeiro seria uma pessoa que brinca com aparelho e age em função dele, já o
segundo seria aquele que procura inserir na imagem informações imprevistas pelo aparelho
fotográfico. Para esse fim, considerando o gesto de fotografar enquanto um jogo, Rampazzo
(2014) faz a seguinte interpretação, “enquanto o fotógrafo joga, o funcionário é uma peça do
jogo” (RAMPAZZO, 2014, p. 47). Podemos agora apontar um caminho para, em breve,
avançarmos nas nossas discussões, então temos o seguinte: A fotografia é um jogo com
possibilidades que beiram o infinito. Esse jogo se inicia quando o fotógrafo aperta o botão, “ao
apertar o botão de disparo do aparelho, o fotógrafo, anteriormente, estabeleceu suas intenções.
Neste mesmo instante o aparelho responde ou ignora dentro de suas intenções pré-
estabelecidas” (RAMPAZZO, 2014, p. 44). Esse combate e colaboração de intenções entre
fotógrafo e aparelho, afirma Flusser (2002), vai marcar toda fotografia, pois

Esquematicamente, a intenção do fotógrafo é esta: 1. codificar, em forma de imagens,


os conceitos que tem na memória; 2. servir-se do aparelho para tanto; 3. fazer com que
tais imagens sirvam de modelos para outros homens; 4. fixar tais imagens para sempre.
Resumindo: A intenção é a de eternizar seus conceitos em forma de imagens acessíveis
a outros, a fim de se eternizar nos outros. Esquematicamente, a intenção programada no
aparelho é esta: 1. codificar os conceitos inscritos no seu programa, em forma de
imagens; 2. servir-se de um fotógrafo, a menos que esteja programado para fotografar
automaticamente; 3. fazer com que tais imagens sirvam de modelos para homens; 4.
28

fazer imagens sempre mais aperfeiçoadas. Resumindo: a intenção programada no


aparelho é a de realizar o seu programa, ou seja, programar os homens para que lhe
sirvam de feedback para o seu contínuo aperfeiçoamento. (FLUSSER, 2002, p. 24).

Embora ocorra esse embate constante, com intenções claras de cada um dos elementos,
“o aparelho funciona, efetiva e curiosamente em função da intenção do fotógrafo” (FLUSSER,
2002, p. 15). Por isso, o fotógrafo, diferente do funcionário, é capaz de resistir à força e
determinação do aparelho, ou seja, não se conforma com seu automatismo, mas
age em prol do esgotamento do programa e em prol da realização do universo
fotográfico. Já que o programa é muito “rico”, o fotógrafo se esforça por descobrir
potencialidades ignoradas. O fotógrafo manipula o aparelho, o apalpa, olha para dentro
e através dele, a fim de descobrir sempre novas potencialidades (FLUSSER, 2002, p.
15).

Agora sim parece que podemos avançar. Mas, antes disso, abramos um parêntese. É
notório que a argumentação em torno da possibilidade de autoria do fotógrafo diante do
automatismo do aparelho fotográfico advém de uma defesa tradicional da arte em que “mantém-
se uma relação de contiguidade entre a ação humana e o produto, que passa a conter marcas
individuais do gesto que o gerou” (ENTLER, 2000, p. 179), o que ocorre em um processo
artístico mediado por uma tecnologia, no entanto, como reforça Entler, é que o artista abre mão
de seu papel totalitário na produção, sem se tornar submisso a máquina, e nisso está o seu mérito
artístico,
O homem não é, por princípio, alheio à produção técnica, mas apenas distanciado
corporalmente dela. Isso deve ser compreendido não como ausência de elementos
humanos, mas, ao contrário, como sua possibilidade de desdobramento e multiplicação
(ENTLER, 2000, p. 180).

De fato, concordamos Simondon (1969), citado por Entler (2000), que a essência da
evolução técnica não reside na automação, pelo contrário, “o funcionamento de uma máquina
abarca certa margem de indeterminação. É esta indeterminação que permite à máquina estar
sensível a uma informação exterior” (SIMONDON, 1969, apud ENTLER, 2000, pp.180-181)
que, nesse caso, entendemos como o espaço em que o fotógrafo deve atuar para criar, produzir
sentidos e experiências estéticas. Parece-nos claro agora que conseguimos encontrar
possibilidades de atuação do fotógrafo, mesmo quando este, nos termos de Flusser, brinca com
um aparelho tão complexo e automático. O objetivo deste trabalho não é apontar atuações que
visam “desprogramar”, embranquecer a caixa preta, mas defender as possibilidades de atuação
nos limites do aparelho. Ou seja, acreditamos que o fotógrafo, aquele que domina os códigos
da linguagem fotográfica, pode, em certo sentido, sujeitar o aparelho a sua intenção e por fim
construir significações diversas, partindo do pressuposto que “qualquer artista cria, não apesar
29

da técnica, mas através dela” (ENTLER, 1994, p. 61). Uma vez que se trata de um jogo
inesgotável com potencialidades infinitas, todas as combinações que são realizadas, quando
inseridas numa lógica de insatisfação com o automatismo do programa, respondem a aspectos
subjetivos e de criação. A partir disso, podemos inferir “até que ponto conseguiu o fotógrafo
apropriar-se da intenção do aparelho e submetê-la à sua própria? Que métodos utilizou: astúcia,
violência, truques?” (FLUSSER, 2002, p. 24).
Nesse momento nos aproximamos da ideia de Soulages (2010), para quem o fotógrafo
é um homo faber, que “não tira fotos, ele as faz, a partir de fenômenos visíveis” (SOULAGES,
2010, p. 80). Nessa fabricação não há reprodução, mas produção em série, produção esta que
não pode ser do real tal como conhecemos, apesar de referenciá-lo, já que “toda foto pode
produzir ficção e toda recepção de uma foto tende a ficção” (SOULAGES, 2010, p. 116). Aqui
já podemos perceber o potencial da fotografia em criar rupturas com o seu contexto original,
resultando em ficções e voos imaginativos, principalmente no momento da sua recepção.
Interessa-nos, nessa ocasião, entender que as diversas articulações que aparecem e que dão
forma a fotografia são construtoras de significado, imprimem características e, inclusive,
demandam certas disposições do receptor, visto dessa forma, “a fotografia não deve ser
entendida apenas como um meio técnico de reprodução”, mas “é necessário compreender a
porosidade do seu fazer, sempre considerando a presença e a expressão do fotógrafo”
(KIEFFER, 2018, p. 169).
Como pensa Kossoy (2009), “a imagem fotográfica é antes de tudo uma representação
a partir do real segundo o olhar e a ideologia de seu autor”. (KOSSOY, 2009, p. 30). O
fotógrafo, ao idealizar e compor uma fotografia elabora esse processo através de agenciamentos
culturais, estéticos e técnicos, por isso a imagem fotográfica transita como “uma representação
resultante do processo de criação/construção do fotógrafo” (KOSSOY, 2009, p. 30). Ainda
nessa argumentação, Kiefer associa o fotógrafo ao autor literário, já que ambos, cada um no seu
suporte, exprimem seus anseios, parâmetros, questionamentos, críticas, dúvidas, sonhos e
desejos (KIEFER, 2018). A autora chega a pensar no termo fotógrafo-autor, que emerge como
uma voz literária e “cria histórias, partir da fotografia” (KIEFER, 2018, p. 169).
Um dado que torna interessante a atuação do fotógrafo em relação aos demais artistas é
que a sua matéria prima é tudo aquilo que reflete luz e está disponível ao alcance da sua câmera,
ou seja, um objeto do mundo, com características próprias, anteriores ao momento da tirada da
foto. “O fotógrafo se utiliza de formas prontas, que ele encontra, para reorganizá-las segundo
as opções de que dispõe, colocando as num suporte” (ENTLER, 1994, p. 66), o resultado disso
é que, na foto, esses objetos não ocuparão, necessariamente, o mesmo papel que
30

desempenhavam no seu contexto original, então teremos um produto autônomo, resultado da


expressão do fotógrafo,

colocada sob os igno de arte, a personalidade do artista torna-se ela própria energia
formante, vontade e iniciativa de arte, ou melhor, modo de formar, isto é, estilo. É o
modo de formar, (...) o “gesto” do fazer, ‘estilo’, que introduz na obra a espiritualidade
do artista e aí a entrega de modo tão eloquente e definitivo. (PAREYSON, 1989, p.57
apud ENTLER, 1994, p. 66).

Grosso modo, vimos que o aparelho e o fotógrafo inscrevem o referente em outra


configuração, cada um a sua maneira distancia-o da sua realidade primeira, o que
definitivamente impõe determinados sentidos, ou pelo menos deixa supô-los, quando
apropriados por um referente. Buscamos construir uma linha na qual apresentamos os
elementos responsáveis para criação de uma foto, sem ordem de intervenção ou de importância,
até o momento em que de fato ela conquista um significado, quando submetida à leitura de um
receptor. Não queremos com isso tomar um receptor como sujeito padrão, apenas
apresentaremos reflexões gerais acerca das possibilidades de convivência entre receptor e uma
foto. Pretendemos, de maneira ampla, chegar a uma discussão da fotografia em seus aspectos
gerais, ou seja, depois de entender as determinações que possibilitam sua existência e lhes dão
significado de que maneira podemos discutir a fotografia? Quais são as características que nos
possibilita enxergar o seu potencial em criar ficções e voos imaginários? Com isso em mente,
afunilaremos a discussão lançando nosso olhar no conjunto de fotos que são o gatilho das nossas
elucubrações.

3.3 Receptor
Quando nos propomos discutir a imagem fotográfica não podemos deixar de levar
em conta as suas especificidades, como temos feito ao longo deste trabalho. Por exemplo,
não há como se pensar na significação e poética 7 da fotografia sem levar em conta duas
constatações elementares: o fato de que ela opera a partir de um objeto real que emite luz8 e
que sua essência inédita é apreensão do tempo (SALLES, 2009). Tais características mais do

7
“Ao dizermos Poética Fotográfica, incluímos os aparelhos, componentes, acessórios, materiais, suportes,
instrumentos e demais procedimentos que dão existência a ela. Neste caso, entram nesse campo de estudo, todos
os aspectos que constituem sua visualidade e discursividade, bem como, as motivações que a geraram”.
(CAMARGO, 2017, p.8).
8
Consideramos com essa afirmação toda foto que é feita a partir do seu processo óptico e técnico gerativo, o
estenopo, sem querer, no momento, discutir fotografias digitalmente manipuladas ou construídas.
31

que um dado operativo em relação ao fazer fotográfico se constituem uma determinante na


leitura de uma foto, ou seja, em sua gênese, um referente existe ou existiu num instante
apreendido do espaço-tempo e, dependendo da intencionalidade do fotógrafo, o receptor
estará em frente a usos diferenciados da fotografia.
Posto dessa forma, teremos duas atitudes possíveis em relação à fotografia: uma que
“explora esta específica virtude do suporte, o congelar do tempo” (SALLES, 2009, p.4), que
em geral centra sua atenção nas características próprias do assunto em detrimento daquelas
inauguradas pela foto, comumente utilizado no fotojornalismo, dado seu inegável valor de
registro, e a outra, pelo contrário, não pretende nenhum “vínculo expressivo com o tempo”,
dessa forma, liberta, por assim dizer, a fotografia do potencial informativo emanado pelo
referente, podendo, na maior parte dos casos, conferir a foto maior liberdade de significado.
Não estamos tentando dizer que as fotos com forte apelo para o registro são menos
expressivas ou até mesmo tirar os méritos de criação artística de quem se utiliza dessa faceta.
Referimo-nos ao fato de que numa foto em que haja um alto teor informativo o referente
acaba se sobrepondo a foto em si, já no caso contrário, liberado das particularidades do
referente, a foto pode ter um sentido ampliado pelo receptor. No momento oportuno
apresentamos sobre qual tipo de fotografia debruçamos nossa atenção. Por enquanto, vamos
nos concentrar na recepção de uma foto em seus aspectos gerais.
Por mais que não tenha como negar ou mesmo interromper as conexões que se
mantém entre o objeto fotografado e a foto propriamente dita, a defesa que fazemos,
principalmente em relação às fotos que utilizamos como objeto neste trabalho, é a mesma de
Soulages, para quem uma fotografia se refere mais a ela do que ao seu referente. Reforçando
esta compreensão, Entler (1994) fala em uma autonomia da fotografia em relação ao seu
referente, pois “a fotografia também transforma quando recorta certas qualidades do objeto
e as insere num novo contexto pragmático” (ENTLER, 1994, p. 65). Por isso, o fazer artístico
do fotógrafo atua em conjunto com as especificidades do meio no sentido de combinar a
referência externa com aquilo que lhe é interior, seus desejos, opiniões, sentimentos, dados
que compõem sua reação diante do referente (ENTLER, 1994). Dessa forma, entre o
referente e a foto recebida por um sujeito há inúmeras rupturas e metamorfoses: o aparelho
fotográfico só consegue captar um dentre os fenômenos possíveis, diante da infinidade de
escolhas, no momento do clic, só uma é levada a cabo pelo fotógrafo, apenas um recorte
dentro do vasto espaço-tempo. Soma-se a isso, o fato de que a interpretação do receptor varia
conforme a sua história, sua cultura, e seu conhecimento - inexistente ou real – da linguagem
fotográfica (SOULAGES, 2010).
32

Flusser (2002) assinala que o caráter objetivo das imagens técnicas, aqui inclui a
fotografia, faz com que elas sejam lidas como se fossem janelas e não imagens, uma vez que
“o significado da imagem encontra-se na superfície e pode ser captado por um golpe de vista”
(FLUSSER, 2002, p. 7). Colocado dessa forma, um grande problema se apresenta em relação à
recepção da imagem fotográfica, posto que já nos consideramos leitores capacitados a decifrar
seus significados, graças sua semelhança e contingência com o referente. Não é por outro
motivo que no senso comum geralmente não se faz distinção entre a foto e aquilo que ela
representa. Não obstante, uma fotografia não é um conjunto de símbolos denotativos, pelo
contrário, oferece sempre aos seus receptores um espaço interpretativo e “quem quiser
‘aprofundar’ o significado e restituir as dimensões abstraídas, deve permitir à sua vista vaguear
pela superfície da imagem” (FLUSSER, 2002, p. 7), tal vaguear, chamado pelo autor de
scanning, “segue a estrutura da imagem (sua constituição/intenção/autoria), mas também
impulsos no íntimo do observador” (FLUSSER, 2002, p. 7). É por isso que defendemos a
recepção como um dos fatores que compõem a fotografia, haja vista sua relevância para
completar o sentido da obra.
Interessa-nos, então, apresentar a maneira como se dá, via de regra, a leitura de uma
foto pelo receptor e, dessa maneira, quais os seus efeitos de sentido. Para esse fim, novamente
é Flusser (2002) quem nos oferece as melhores respostas. Conforme coloca,

o olhar da leitura fotográfica é circular, um elemento é visto após o outro e um que já


foi visto torna a ser revisto, o “eterno retorno”. O olhar tende sempre a voltar para
elementos preferenciais, estes passam a ser centrais, preferenciais no significado.

Flusser (2002) conclui que o tempo que circula e estabelece relações significativas no
momento da leitura de uma foto é um tempo mágico, diferente do linear, o qual estabelece
relações causais entre eventos,

no tempo linear, o nascer do sol é a causa do canto do galo; no circular, o canto do galo
dá significado ao nascer do sol, e este dá significado ao canto do galo. Em outros termos:
no tempo da magia, um elemento explica o outro, e este explica o primeiro. O significado
das imagens é o contexto mágico das relações reversíveis. (FLUSSER, 2002, p. 7)

Nessa perspectiva, se a fotografia surge para evitar as diversas possibilidades de


imaginação que o texto escrito admite, continuando com Flusser (2002), suas especificidades
técnicas, o fotógrafo e o receptor fornecem condições ainda mais favoráveis para a criação de
ficções e imaginários. Diante de todos os postulados que já expomos até aqui conseguimos
concluir que, mesmo que a recepção admita a fotografia como prova do real, ela é apenas índice
33

de um jogo, “diante de qualquer foto somos enganados”, sugere Soulages (2010, p. 75). A
fotografia ao representar a realidade, adultera-a, pois o receptor pode dar um sentido à foto de
acordo com sua subjetividade, “a fotografia é a arte do imaginário por excelência, bem mais do
que o cinema, talvez porque seja muda, sem movimento e sem futuro, puro fragmento do
nonsense que pede uma construção de sentido imaginária por parte do receptor” (SOULAGES,
2010, p. 78).

4. A IMAGEM FOTOGRÁFICA

Trilhamos até aqui um percurso no qual analisamos os elementos que dão condições
para a existência da fotografia e lhes garantem especificidades, conferindo-a, cada um a seu
modo, uma fatia de significado que são, em tese, melhor compreendidos a partir do resultado
do encontro entre um fotógrafo e uma câmera, gerando a imagem fotográfica - depois colocada
à disposição de um referente. Ao longo desta pesquisa apontamos um considerável número de
referências que serão solicitadas agora, ainda que de forma indireta, para nos auxiliar em uma
possibilidade de entendimento, mesmo que introdutório, da fotografia. Os conceitos já
apresentados serão melhores discutidos com o auxílio das fotografias que já citamos ser o nosso
34

objeto. Apontaremos características da fotografia que servem ao propósito de entender com ela
incentiva voos do imaginário e, com isso, a criação de ficções, por isso, estes termos serão
utilizados com frequência ao longo do texto.
No entanto, antes de adentramos na discussão propriamente, cabe-nos agora esclarecer
ao que exatamente nos referimos com o conceito de ficção. Para tanto, nos apoiamos em Costa
(2019), se referindo à ficção como uma “forma peculiar da comunicação humana que,
estimulando a imaginação e o devaneio, propõe uma experiência intersubjetiva na qual a
realidade que a circunda se apresenta de forma indireta” (COSTA, 2019, p. 12). Esse tipo de
comunicação, no entanto, apesar de não se orientar diretamente para o real, também não lhe
opõe apenas entende-o subjetivamente, ou seja, “nem pura objetividade, nem pura interioridade,
a ficção se realiza como o encontro desses dois mundos” (COSTA, 2019, p. 13). Isto posto,
temos na fotografia uma representação que funciona a partir do real, mas que aciona o trânsito
de significados intersubjetivos, de quem produz e de quem recebe.
Dessa forma, ao contrário do que muitas pesquisas no campo apontam, a fotografia ao
invés de nos oferecer uma relação imediata com real, e, portanto, algo crível, deve ser entendida
como uma potencializadora de ficções, com intensas reverberações na nossa subjetividade,
alterando assim, o nosso imaginário do fotografado. Salientando, o efeito imediato que a
fotografia nos causa é da ordem da ficção, porém sua atuação, ao invés de expelir
completamente o real, nos proporciona modos de compreendê-lo, “a fotografia permite não
captar a realidade, mas chegar à contrarrealidade que, por contragolpe, crítica a realidade do
mundo: a ficção talvez seja o melhor meio de se compreender a realidade” (SOULAGES, 2010,
p. 78).
A relação que enxergamos entre fotografia e ficção vai além daquela assinalada por
Kiefer (2018), que está ligada “às estratégias dos artistas em produzir sentido” (p. 2), nossa
defesa é de que a fotografia, mesmo quando o fotógrafo não intenta, conduz o seu receptor a
esses espaços favoráveis aos voos da imaginação, que é propriamente o algo a mais a que a
fotografia alude. Citamos anteriormente dois aspectos da fotografia que se evidenciam em sua
relação com o tempo e com o referente. Para este trabalho escolhemos a categoria de fotos que,
no nosso entendimento, se afasta do testemunho, pelo menos no sentido pretendido pelo
fotojornalismo, em que o referente traz por si só algum atrativo e se aproxima daqueles temas
considerados banais que passaram a ser o terreno da arte na contemporaneidade, uma vez que,
além de não se apegar ao potencial informativo do referente, não intenta nenhum vínculo
expressivo com o tempo.
35

Assim, a escolha das fotografias de Victor Hugo Bígoli e de Evandro Teixeira se dá


porque nesse conjunto de fotografias percebemos uma autonomia da imagem em relação ao seu
referente (ENTLER, 1994), ou seja, não são as grandes personalidades ou até mesmo os fatos
de grande relevância social que aparecem nas fotos, mas sujeitos comuns como qualquer outro,
que, inclusive por isso, assumem o lugar de arquétipos do lugar em que estão inseridos. As
qualidades do assunto são relegadas em prol da configuração que este adquire no suporte
fotográfico, onde não há necessariamente um vínculo com seu contexto original e daí resulta as
possibilidades de expressividade do fotógrafo e, principalmente, impulsiona a criação de
ficções por parte do receptor (ENTLER, 1994).
Graças a isso podemos pensar uma aproximação da fotografia com o ready-made, termo
criado por Marcel Duchamp, no qual um objeto qualquer, de uso cotidiano, produzido em
massa, é deslocado de seu contexto, com ou sem interferência por parte do artista, e exposto
como obra de arte em espaços especializados. Assim, o ready-made tal como a fotografia
encontra sentido ao deslocar o objeto do seu contexto original e o colocar num sistema que
possibilita um tipo específico de fruição por parte do receptor. Por fim, queremos sinalizar que,
apesar de fazermos considerações levando em conta os aspectos específicos da fotografia que
está sendo discutida, não significa com isso, que essas mesmas considerações não possam servir
para as demais fotografias que compõem o nosso corpus ou até mesmo para fotografias que se
encaixam em outras categorias.
36

Figura 01: fotografia de Victor Hugo Bígoli Figura 02: fotografia de Evandro Teixeira

Fonte: Instagram de Victor Hugo Bígoli Fonte: Blog Cariri Cangaço

Nessas fotografias (Figuras 01 e 02), por exemplo, não podemos apreender nenhuma
informação que nos permita conhecer os sujeitos que lhes tematizam. As fotos em si não nos
fornecem detalhes acerca da realidade dos assuntos, sabemos de fato, que eles existem ou
existiram, pelo menos no momento em que o fotógrafo colocou a sua câmera diante deles. As
demais informações que conseguimos coletar estão fora da imagem, nos suportes que foram
distribuídas. Para Kossoy (2009), há duas realidades que cercam a composição fotográfica, uma
primeira diz respeito à realidade do assunto em si, seu contexto, sua história particular, já a
segunda realidade é aquela resultante da transposição da realidade do objeto para a dimensão
da representação. Essa segunda realidade é a que nos interessa aqui, pois, dada a dificuldade de
chegarmos à primeira realidade do objeto através da própria fotografia, teríamos que nos apoiar
em recursos exteriores que nem sempre serão possíveis. Além de que, concordamos que,

uma imagem não é isenta de significados, tampouco é inocente, ingênua ou neutra; ao


contrário, é plena ou potencialmente impregnada de sentidos. As imagens, independente
dos suportes ou veículos em que se encontrem, devem ser tomadas, reconhecidas e
entendidas como entidades autônomas, ou seja, como presenças significantes em si
mesmas (CAMARGO, 2005, p. 14).

Portanto, para os propósitos deste trabalho, consideraremos a leitura da fotografia a


partir das características que lhes são específicas. Apesar de admitir a interferência do suporte
de distribuição nos sentidos que serão atribuídos à imagem fotográfica, não o abordaremos para
o objetivo aqui pretendido, que é a relação da fotografia com o território da ficção, não porque
nesse caso tal concepção não seja possível, mas porque nos suportes de distribuição, por vezes,
37

além de contar com outros recursos, como o texto, por exemplo, a imagem fotográfica já
aparece submetida a funções e finalidades, o que efetivamente limita a suas possibilidades de
significar quando em contato com o receptor. Com essa intenção, Camargo (2005) afirmou que
as imagens fotográficas

devem ser também vistas como manifestações capazes de produzirem sentido,


independente de serem apoiadas em ditos verbais (como nas legendas), explicações ou
descrições que aparecem nos suportes impressos ou digitais, como se fossem meras
ilustrações desses textos (CAMARGO, 2005, pp. 14-15).

Destarte, nas fotografias acima (figuras 01 e 02), o fato de sabermos que ambas
tematizam a cidade de Canudos - no primeiro caso, porque o fotógrafo realiza um trabalho
humanitário nesta cidade e publica as fotos no seu perfil no Instagram com uma legenda
contendo a localização, e no segundo caso, porque a foto faz parte do livro Canudos: 100 anos,
que reúne fotografias referentes a Canudos em ocasião dos 100 anos da guerra - por certo já
direciona a nossa leitura para certo sentido, todavia, quando não temos essas informações
permitimos que a nossa imaginação se disperse completando a história dos personagens a partir
de pulsões que nos são íntimas. O receptor supre, portanto, aquilo que não está representado,
alargando com isso as possibilidades de significação de uma foto. Assim, podemos perceber
uma autonomia da foto em relação ao seu referente e ao direcionamento do suporte, deixando
mais claro que a fotografia se constrói a partir de algumas particularidades (combate entre
fotógrafo e aparelho), mas de fato, só existe como presença significativa quando visualizada
por um receptor.
38

Figura 03: Fotografia de Victor Hugo Bígoli Figura 04: Fotografia de Evandro Teixeira

Fonte: Instagram de Victor Hugo Bígoli Fonte: Blog Cariri do Cangaço

Com efeito, não olhamos para uma fotografia como vemos a coisa no mundo,
justamente porque o corte que opera na fotografia isola o objeto, ou como no ready-made, o
coloca em outro espaço, nesse caso, o espaço fotográfico, e lhe atribui uma configuração que
não seria facilmente percebida no meio de tantas outras no fluxo contínuo do tempo (ENTLER,
1994). Mesmo que o referente seja um rastro da realidade, a fotografia não pode oferecê-la ao
espectador, pelo contrário, tem ainda mais em si a possibilidade de questioná-la, já que está
sempre rodeada de um extracampo visual que é inacessível (SOULAGES, 2010). Por isso,
garante Soulages (2010), diante de qualquer foto somos sempre enganados, “a fotografia é a
arte do imaginário por excelência” (SOULAGES, 2010, p. 78), pois quando estamos diante de
uma foto, diferentemente de quando vemos a mesma coisa no mundo, somos condicionados a
interpretá-la, lhe dar sentido, trazê-la à existência. No entanto, fazemos isso com base no recorte
de um espaço múltiplo e de um tempo contínuo, sendo que “a fotografia diz menos do que o
acontecido” (MARTINS, 2011, p. 43). Diante de uma fotografia, partimos do pressuposto de
que se alguém capturou aquele instante ele é merecedor da nossa atenção. É como se a fotografia
emprestasse a qualquer referente certa sedução. Já que vemos tudo em movimento, a pausa que
a fotografia oferece é um convite para refletir, pensar, ver o que não pode ser visto de outra
forma. Nesse aspecto, os nossos critérios de leitura são bastante diferentes dos que adotamos
diante de um evento da realidade, principalmente porque nossa concepção de tempo se estrutura
39

a partir da noção de início e fim (KIEFER, 2018), e na fotografia, como bem sabemos, o
fragmento recortado nos oferece uma cena de um evento que nem sequer sabemos a dimensão
temporal, por consequência, somos conduzidos a completar a história, a elegermos um final,
darmos completude àquilo que agoniza a impossibilidade de fazer sentido em si mesmo, desse
modo,

toda fotografia é uma ficção que se apresenta como verdadeira. Contra o que nos
incutiram, contra o que costumamos pensar, a fotografia mente sempre, mente por
instinto, mente porque sua natureza não lhe permite fazer outra coisa
(FONTCUBERTA, 2010, p.13 apud KIEFER, 2018, p.288)

Por isso, para além de perceber uma intencionalidade aparente, por parte do fotógrafo,
em produzir uma ficção através da fotografia, há necessariamente o estímulo para tal efeito de
sentido, na medida em que “uma foto de uma coisa permite sempre imaginar outra coisa”
(SOULAGES, 2010, p. 78). Entender uma fotografia se trata de, em primeiro lugar, entender
que é mais uma criação do que uma reprodução e sendo assim, a relação que mantém com o
real aumenta ainda mais o seu fascínio. No momento em que o fotógrafo captura o instante, há
o estabelecimento de relações entre todos os elementos que estão dentro do enquadramento,
mesmo que não haja nenhum tipo de conexão entre eles, a não ser a contextual. Então, quando
vagueamos nosso olhar pela foto assumimos uma relação de causalidade entre tudo que está no
quadro para chegarmos a um sentido final. Não somos capazes de afirmar com exatidão qual o
papel que os personagens representados nas fotos (figuras 03 e 04) desempenhavam e muito
menos a história de cada um em seu contexto original, - a menos que isso seja exposto por
alguém, e nesse caso teríamos que confiar no relato, tal como confiamos na fotografia - mas de
fato, podemos afirmar que, no momento em que o fotógrafo seleciona uma fatia do tempo e do
espaço, esses sujeitos são inseridos em outro contexto, em outra relação. O que veremos na
imagem fotográfica, então, será resultado de um ponto de vista e de uma interferência técnica.
Antes de chegar a um receptor, o instante já passou por alguns filtros e cada um deles
potencialmente significativos. Nas fotografias (figuras 03 e 04), independente de qual seja a
relação entre os personagens, eles estarão para sempre interligados. As configurações que
adquiriram no momento do clic, graças à intenção do fotógrafo e as possibilidades técnicas da
câmera, serão então admitidas como uma qualidade ou até mesmo uma condição dos sujeitos
fotografados. Na primeira foto (figura 03), por mais que não saibamos como se dá a relação do
provável casal, a ideia que irá perpetuar em nossa mente, possivelmente, é a de uma relação
bastante afetiva e até mesmo simbólica daquilo que entendemos por amor. Então para nós,
receptores, esses sujeitos estarão libertos da sua história real e serão personagens da nossa
40

história imaginária, ficcional, na qual participam da trama fotógrafo, aparelho fotográfico e nós,
receptores. Na segunda foto (figura 04), podemos supor que se trata de uma mãe com suas
filhas - note que estamos sempre sendo convidados a dar voos imaginários através da fotografia
- realizando uma atividade comum em algumas regiões do sertão com dificuldade de acesso à
água, devido às condições climáticas e principalmente ao descaso político. Mesmo que essa
cena tenha sido uma situação isolada, ou mesmo que tenha se repetido por algumas vezes, a
forma como as personagens estão dispostas no enquadramento, da maior para menor, nos leva
a pensar numa certa relatividade, uma inevitabilidade dessa condição, inclusive, nos transmite
a ideia de que a situação é herdada e passada de geração para geração sem que haja alternativa
de escapar desse destino. A última personagem, a menor de todas, sem o balde na cabeça, nos
sugere que, em breve, ela poderá ser mais uma a carregar a mesma sina. Logo, o potencial da
fotografia está no fato de que o seu sentido é provocado pelo que é visível, mas só pode ser
encontrado nos invisíveis, espaços imaginários e imaginados que somos lançados quando em
sua presença, e ainda, diferente das demais representações que se amparam ou disparam ficções,
o seu atrativo é possibilidade em nos reportar a um referente que de fato existe ou existiu.

Figura 05: Fotografia de Evandro Teixeira Figura 06: Fotografia de Victor Hugo Bígoli Fonte:

Fonte: Instagram

Como forma de atribuir à fotografia uma especificidade em comparação com as demais


representações visuais, Salles (2009) afirma que aquilo que a faz um suporte realmente sui
generis é a sua relação com o tempo, ela teria uma essência inédita, justamente a de congelá-
lo. Realmente, tal característica é deveras fascinante, pois nos possibilitaria estar em contato
com uma das configurações que o referente apresentou em um dado momento que não poderá
ser restituído, tendo o valor para nós de preservação do que nunca mais se repetirá
41

existencialmente (BARTHES, 1984). Mas efetivamente o que a fotografia pode diante do


tempo? Poderia de fato congelá-lo?
Parece-nos que a ideia de congelar o tempo é mais uma consequência da força do
discurso realista que caracterizou a fotografia desde o seu surgimento, do que de fato uma
possibilidade filosófica, a respeito disso, concordamos com Martins (2011) para quem o fluxo
do real não pode ser interrompido, já que o instante paralisado e perpetuado permanece latente
até ser despertado por um receptor. Isso no faz pensar que o

célebre noema barthesiano (Isso-foi) indica que fotografia é, sobretudo passado, mas
sua dependência do presente não é menos verdadeira, já que é no aqui e agora que o
sentido se materializa (o significado das imagens muda conforme os contextos espaço-
temporais nos quais elas se inserem e a partir dos quais são observadas). (BARROS,
2017, p. 150).

Portanto, visto dessa forma, há sempre um descongelamento impetrado pelo receptor,


já que a “experiência do fotográfico só pode acontecer no presente do ser” (BARROS, 2017,
p.154). Assim, pouco importa uma foto mais recente (Figura 06) ou uma mais antiga (figura
05), nós a interpretamos a partir do que somos hoje, ou seja, a cada vez que olhamos para uma
mesma fotografia acrescentamos novos significados referentes aos nossos constructos vividos.
Portanto, a relação da fotografia com o tempo mais do que nos reportar ao acontecido nos
reporta ao momento em que estamos vivendo, mais do que reportar ao referente, reporta ao
receptor, “afinal de contas, a fotografia está no nosso mundo, não no mundo em que o clique
foi feito” (BARROS, 2017, p. 155).
Assim, podemos falar que em sua intervenção sobre o fluxo contínuo do tempo, a
fotografia inaugura uma nova categoria de tempo, ou pelo menos, nos permite estabelecer com
ele outra aproximação. Nesse “novo tempo” há a interação daquilo que está na foto e aquilo
que o receptor adiciona e como resultado disso temos a convivência de “um presente tensionado
com o passado intangível” (BARROS, 2017, p. 152). O passado solicitado pelo presente sempre
renovável intervém diretamente na nossa relação com o conhecido e o desconhecido. Soma-se
a isso, a existência do tempo da magia, proposto por Flusser (2002), no qual um elemento
explica o outro e este explica o primeiro inaugurando uma infinidade de sentidos que nos
colocam em uma relação nebulosa com o que é preservado. Já que a fotografia tem como um
dos seus usos a preservação de certas informações na memória, podemos, a partir dessas
inferências, pensar que menos do que a preservação das condições que o referente apresentou
estamos diante de uma propulsão para criação de mundos imaginários (BARROS, 2017).
Podemos falar então de uma memória atualizada, já que sempre temos a possibilidade de
acrescentar uma novidade à imagem fotográfica, que por assim ser, torna-se potencialmente
42

capaz de construir ficções e imaginários. Por exemplo, as fotografias (figuras 05 e 06) se


referem ao mesmo lugar, a cidade de Canudos, no entanto, feitas por fotógrafos diferentes e em
momentos diferentes. Nisso, a leitura que fazemos de ambas, de acordo com as categorias do
presente, menos que um registro do momento em que foram fotografadas e daquele contexto,
por exemplo, os 100 anos da guerra de Canudos (figura 05) ou a Canudos contemporânea nossa
(figura 06), nos conduzem a criação de uma atmosfera do lugar, ou seja, um conjunto de
referências visuais de ordem imaginária que pouco tem a ver com o contexto histórico do lugar.
Portanto, a nossa relação com a fotografia é marcada por aquilo que Soulages (2010) defende
ser a sua estética, uma a articulação entre o que se perde e o que permanece, ou seja, a fotografia
denuncia a perda do passado que não poderá ser restituído pelo receptor ao mesmo tempo em
que possibilita a permanência de um instante que sempre terá o seu sentido atualizado, tanto
modificando a matriz fotográfica, através de softwares de edição, como através da presença
mutante do receptor, ou seja, diante de uma foto estamos sempre diante de um passado
irreversível e de um sentido inacabável.

Figura 07: fotografia Victor Hugo Bígoli Figura 08: fotografia Evandro Teixeira

Fonte: Instagram Fonte:

Para finalizar a nossa discussão acerca do impulso ficcional que a fotografia provoca
43

em nós, escolhemos essas duas fotografias (figuras 07 e 08), pois elas são significativas do que
queremos trazer à tona. Apesar de, nesse caso, o significado parecer óbvio, e ser oferecido pela
manipulação de elementos da linguagem técnica, queremos propor que também pode ser
aplicado às demais fotos deste trabalho ou até a fotografia de um modo geral, mesmo aquelas
que não se utilizam de tais recursos. Referimo-nos a possibilidade estética de uma interferência
em relação a nitidez das fotos através da manipulação do diafragma. Na primeira fotografia
(figura 07), o fotógrafo optou por uma tomada com pouca profundidade de campo, resolvendo
ressaltar os detalhes em primeiro plano, já no segundo temos uma foto com maior profundidade
de campo e, portanto, com mais áreas em nitidez. A partir disso temos dois efeitos de sentido
gerados. Para embasar o nosso raciocínio tomaremos emprestado os termos Revelações e
Apagamentos 9 , de Camargo (2018). Assim, no o primeiro caso (figura 07), através da
valorização de algumas informações, o homem e a sanfona, em relação ao horizonte a fotografia
promove um apagamento de algumas informações que compõem o enquadramento, ainda no
momento de feitura da foto, e no segundo caso (figura 08) temos o efeito de sentido de revelação
dos componentes do ambiente através da valorização de tudo é possível enquadrar pela câmera.
Portanto, a partir dessa configuração oferecida pela linguagem fotográfica, pouca ou muita
profundidade de campo, podemos pensar que a atuação da fotografia implica sempre em
mudanças nas condições pelas quais o fenômeno se apresentou diante da câmera, e por isso,
age sempre em torno de Revelações e Apagamentos. Podemos afirmar que em toda fotografia
há um grau de arbitrariedade, pois “sempre há, à direita e à esquerda, acima e abaixo, coisas
que o fotógrafo elegeu não incluir, ou que não pode incluir. Às vezes se constrói a imagem com
a tensão entre o que se mostra e o que se exclui” (BECEYRO, 2006, p.121 apud GONÇALVES,
2009, p. 235).

Diante disso, a reflexão que queremos provocar é de que a Fotografia se articula entre
Revelações, da vontade de quem fotografa, da vontade da câmera, de aspectos do contexto, e
do imaginário social, mas também impõe Apagamentos, das condições do ambiente, das
qualidades do referente, do vínculo imediato com o real, através disso a Fotografia aciona nossa
imaginação para dentro de um mundo representado,

moldável de acordo com nossas imagens mentais, nossas fantasias, e ambições, nossos
conhecimentos e ansiedades, nossas realidades e nossas ficções. A imagem fotográfica
ultrapassa, na mente do receptor, o fato que representa (KOSSOY, 1999, p.46 apud
GONÇALVES, 2009, p. 237)

9
Apesar de tomar emprestado esses termos utilizados por Camargo (2018) não vamos atribuir o mesmo
significado que ele propôs, apenas tomar o potencial reflexivo que os termos evocam.
44

Assim sendo, a realidade das fotos não é a realidade do mundo, mas é a realidade
engendrada por um fotógrafo, mediada por um aparelho e recebida por sujeitos variados. A
junção de todos esses elementos adiciona à fotografia uma incontornável capacidade de criar
ficções que constroem “relações novas entre a aparência e a realidade, o singular e o comum, o
visível e sua significação” (KIEFER, 2018, p.10), que nos colocam em diálogo com o passado
permitindo apontar caminhos possíveis para o futuro, já que como matéria prima do seu fazer
se debruça sobre o vivido.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
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À guisa de conclusão, podemos afirmar que a fotografia traz de fato uma carga de
realidade e de veridicção, pois para que ela exista é necessário que haja algumas condições pré-
existentes no meio natural, tais como a luminosidade, a espacialidade e a presença de algo que
a motive (CAMARGO, 2018). A fotografia inaugura uma condição inédita, que é absorver um
fenômeno natural de formação de imagens e o transformar em tecnologia, e faz isso justamente
em um período que a sociedade estava contaminada com valores de objetividade e tecnicidade,
agenciadas pelo surgimento de novas concepções de ciência e do homem requeridas pela
modernidade. Graças a isso, a fotografia se apoiou num status credibilidade impossível a
qualquer outra representação visual, pois conseguia capturar o referente tal como ele se
apresentou a câmera, e por isso mesmo foi utilizada ao longo da história pela ciência, pela
comunicação e pela sociedade em geral como a finalidade de documentar os fatos, registrar
acontecimentos e preservá-los na memória.
Se o dispositivo fotográfico foi, e ainda é, o responsável por impor toda essa crença à
imagem fotográfica, a proposta que escolhemos neste trabalho foi justamente a de considerá-lo
um dos elementos que possibilitam a criação de ficções, já que ao capturar o objeto distancia-
se dele em diversos níveis. Na verdade, o aparelho fotográfico goza da possibilidade de
manipulação da realidade das formas mais diversas possíveis. A sua fidelidade a aparência do
objeto serve apenas ao propósito de criar um simulacro, ou seja, “deforma o objeto, embora se
fazendo passar por ele” (ROUILLÉ, 2009, p.75). É notório que a fotografia compartilha
características com algumas representações visuais, inclusive, é herdeira de algumas delas, no
entanto, para entendê-la é necessário atentar ao conjunto de elementos e processos que se
estabelecem no seu fazer e no seu fruir.
As ideias que nortearam as nossas inquietações estão inseridas na associação que a
fotografia estabelece com o real e o ficcional. Procuramos entender qual é o efeito de sentido
imediato provocado pela fotografia dado a sua efervescência em nossa sociedade. A partir da
análise das partes que compõem o processo fotográfico pudemos constatar que, apesar da
fotografia se dirigir ao real, o que ela nos oferece num primeiro momento é o voo do imaginário
e a criação de ficções. Assim, o fotógrafo, o aparelho fotográfico e o receptor são os elementos
que a nosso ver promovem a aproximação da fotografia com a criação de condições diferentes
das que o referente apresentou em seu contexto original. Num momento em que a
contemporaneidade se ver inundada por práticas sociais que dão centralidade aos aspectos
subjetivos, é importante entender como a fotografia, por muito tempo entendida como
testemunha fiel dos fatos, participa deste cenário.
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Ao longo do nosso trabalho trouxemos a discussão alguns conceitos e pressupostos que


nos deram uma dimensão acerca da construção de sentido na fotografia e nos ofereceram
possibilidades de pensar a fotografia além da ideia limitante de apreensão da realidade. Nesse
sentido, a defesa que fizemos foi de que a fotografia é sempre a articulação entre o real e o
ficcional. Real porque sempre nos remete a um referente que existe ou existiu, por outro lado,
ficcional porque permite sempre que o que foi fotografado ganhe autonomia e signifique mais
do que aquilo que está representado, ou seja, o receptor impõe sentidos diversos e atualizados
a fotografia, levando também em conta determinações do fotógrafo e da câmera. A imagem
fotográfica evidencia então estratégias discursivas, significações e sentidos que criam ficções
que atuam na nossa relação com mundo e têm resultados diversos no nosso imaginário sobre o
fotografado.
A partir das reflexões que apresentamos ao longo do trabalho podemos inferir que a
fotografia não oferece o real, pelo contrário, nos coloca em outra relação com ele. Tal relação
inclusive nos possibilita outras formas de compreensão, questionando-o. Nesse sentido, a
fotografia é tão potente como ferramenta capaz de produzir sentidos e discursos porque
denuncia a forma como vemos os fenômenos que nos acontecem.
Apontamos que a fotografia só pode ser entendida a partir de pulsões subjetivas, tal
constatação tem nos provocado a refletir e questionar aquilo que entendemos como real. Dessa
maneira, seria possível falar em realidade ou verdade se pensarmos que a nossa relação com o
mundo é também sempre mediada por filtros subjetivos? Já que a ficção se articula sempre no
encontro entre dois mundos, o exterior e o interior, não estaríamos sempre produzindo ficções?
Alargando a discussão, podemos inclusive utilizar a fotografia como um gatilho para refletir
acerca da forma como agimos enquanto sujeitos sociais, numa sociedade marcada pela
dissolução do público e do privado, promovendo apagamentos de características que
consideramos desfavoráveis e por outro lado revelando aquilo que julgamos serem as nossas
qualidades. É claro que a discussão é densa demais para ser simplificada em um curto parágrafo,
talvez em um outro momento possamos retomá-la com a atenção que exige, no momento
queremos encerrar as nossas reflexões nesse campo bastante movediço que é a filosofia da
fotografia, sinalizando que diversas são as possibilidades que ainda existem para pensar o
fotográfico, a abordagem que fizemos aqui, longe de intentar esgotar a temática, nos alertou
acerca da necessidade ainda de se compreender a fotografia de forma que esta ganhe escopo
enquanto campo do saber.
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