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Escola de Lisboa da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa

Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados - Brasil (Enfam)


Curso de Direito Constitucional Penal:
Entre os Problemas de Sempre e os Desafios do Futuro

O TRIBUNAL DE ESTRASBURGO E O PRINCÍPIO DO JUIZ DE


GARANTIAS.
DIREITO BRASILEIRO COMPARADO: A AUSÊNCIA DE UM JUIZ DE
GARANTIAS NA OPERAÇÃO LAVA JATO

Flávio Sánchez Leão*

Belém(PA)-Brasil
Setembro - 2018

* Juiz de Direito da 7ª. Vara Criminal da Comarca de Belém(PA)-Brasil. Especialista em Direito


Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais-Brasil. Especialista em Direito
Processual Penal pela Escola Superior da Magistratura do Estado do Pará e Centro Universitário
do Estado do Pará (CESUPA)
2

O TRIBUNAL DE ESTRASBURGO E O PRINCÍPIO DO JUIZ DE


GARANTIAS.
DIREITO BRASILEIRO COMPARADO: A AUSÊNCIA DE UM JUIZ DE
GARANTIAS NA OPERAÇÃO LAVA JATO

Flávio Sánchez Leão

SUMÁRIO: 1. Introdução. – 2. O Tribunal de Estrasburgo e o princípio do juiz de


garantias. – 3. Direito brasileiro comparado: A Ausência de Um Juiz de Garantias na
Operação “Lava Jato”. – 4. Conclusão. – 5. Referências bibliográficas.

1. INTRODUÇÃO.

O presente artigo acadêmico discutirá como a Corte Europeia de Direitos do


Homem, conhecida como Tribunal de Estrasburgo, vem entendendo e aplicando o
princípio do juiz de garantias em conformidade com a Convenção Europeia de Direitos
Humanos.
Para esse fim serão analisados caso concretos julgados pelo Tribunal de
Estrasburgo em que Estados Membros do Conselho da Europa acabaram por ser
condenados pela Corte em razão de desrespeito ao princípio do juiz de garantias,
entendendo-se como violado, portanto, O artigo 6.1 da Convenção.
A título de estudo de direito comparado, será analisado como o princípio do
juiz de garantias está sendo entendido no Brasil, bem como será analisado se o Poder
Judiciário brasileiro vem respeitando tal princípio. Para tal fim recorreremos à análise de
um caso concreto julgado na célebre “Operação Lava Jato”, que levou à condenação de
alguns políticos brasileiros por crimes de corrupção e lavagem de dinheiro, inclusive à
condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

2. O TRIBUNAL DE ESTRASBURGO E O PRINCÍPIO DO JUIZ DE


GARANTIAS.

A Corte Europeia dos Direitos Humanos [1], fundada em 1959, tendo a sua
sede em Estrasburgo, é um tribunal internacional competente para ouvir petições
alegando que um Estado contratante violou direitos consagrados na Convenção Europeia
3

dos Direitos do Homem. Esse Tribunal não é um órgão da União Europeia, mas uma
jurisdição do Conselho da Europa.
A Convenção Europeia dos Direitos do Homem [2], instituída na cidade de
Roma, no dia 04 de novembro de 1950, instrumento protetor dos direitos humanos,
determinou a criação da própria Corte Europeia dos Direitos Humanos, órgão criado para
atuar caso haja o desrespeito às normas impostas pela Convenção. A Convenção constitui
o documento mais importante no que diz respeito ao estabelecimento e salvaguarda dos
direitos humanos no continente europeu.
O princípio do juiz de garantias está implícito no art. 6.1 da Convenção
Europeia dos Direitos do Homem, que dispõe nos seguintes termos: “ARTIGO 6°. Direito
a um processo equitativo. 1. Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja
examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente
e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus
direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação
em matéria penal dirigida contra ela. O julgamento deve ser público, mas o acesso à sala
de audiências pode ser proibido à imprensa ou ao público durante a totalidade ou parte
do processo, quando a bem da moralidade, da ordem pública ou da segurança nacional
numa sociedade democrática, quando os interesses de menores ou a protecção da vida
privada das partes no processo o exigirem, ou, na medida julgada estritamente
necessária pelo tribunal, quando, em circunstâncias especiais, a publicidade pudesse ser
prejudicial para os interesses da justiça”.
Dizemos que o princípio está implícito porque contido na determinação de que
a pessoa tem direito a que sua causa seja julgada por um tribunal imparcial. O princípio
do juiz de garantias está intimamente ligado à questão da imparcialidade do juiz, pois se
entende este princípio a partir da premissa de que o mesmo magistrado que conheceu do
inquérito policial e nele praticou juízo de valor não deva ser o julgador da ação penal. Isto
em razão de que algumas das mais importantes decisões do juiz no âmbito do inquérito
policial, como decretação de prisões cautelares ou determinação de diligências de busca
e apreensão envolvem obrigatoriamente juízos de valor a serem tomados pelo juiz. Assim,
a separação de funções entre o juiz da instrução - aquele responsável por zelar pelas
garantias dos investigados na fase do inquérito - e do juiz do processo penal após o
oferecimento da denúncia é fundamental para alcançarmos de forma plena a
imparcialidade jurídica.
4

Paulo Victor Freire Ribeiro, ao dissertar sobre o instituto, o qual não está
positivado no ordenamento jurídico brasileiro, ponderando que o magistrado atuante na
fase de investigações do inquérito policial está obrigado a decidir sobre medidas
cautelares como a busca e apreensão e a prisão preventiva, por exemplo, nos dá a
dimensão da importância do princípio do juiz de garantias. Assinala o autor, levando em
conta disposições do Código de Processo Penal brasileiro, o seguinte [3]:

Portanto, para conceder medida cautelar, deve o magistrado


motivar a decisão fundamentando sua certeza da materialidade do delito e a
crença de que o sujeito passivo é o provável autor do delito.
Como se pode crer que o juiz que exare um a decisão desta
poderá, no subsequente processo, sequer considerar qualquer das razões de
absolvição do acusado trazidas nos incisos do art. 386? Com o poderá convencer-
se da inexistência do fato (inc. I), da provável inexistência do fato mediante
falta de provas (inc. II) ou da irrelevância penal do fato (inc. III) se já atestara,
em fundamentação jurídica completa, sua certeza da materialidade do delito
pelo que avaliou com vistas aos elementos informativos que tinha à disposição?
Como se pode crer que o juiz convencer-se-á da não participação do acusado
no episódio delitivo (inc. IV), ou da provável não participação do réu (inc. V )
se fundamentara tão veementemente a sua crença de que o autor provavelmente
cometera o crime quando da sua motivação da decisão cautelar?
O juiz competente para processar e julgar a ação penal, não
tendo sido instado a tomar decisões pertinentes à fase
investigatória, estará muito mais qualificado para realizar o
julgamento justo e imparcial. A participação no inquérito
contamina o juiz, tomando muito mais árdua a tarefa da
defesa de se fazer ouvir no processo.56
Resta claro que há, no atual modelo uma ilusão de
imparcialidade do julgador da ação penal que funcionou na investigação
preliminar.
______________
56. SCHREIBER, Simone. O juiz de garantias no Projeto do Código de Processo Penal.
Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, São Paulo, ano 18, n. 213, agosto
2010.

Estando claro o conceito do princípio do juiz de garantias, passemos a ver como


tem sido aplicado pela Corte Europeia dos Direitos do Homem.

Analisemos o julgamento do caso Piersack vs. Bélgica [4] pelo Tribunal de


Estrasburgo, no qual se passou a fazer uma distinção entre imparcialidade objetiva e
imparcialidade subjetiva. Afirmou o Tribunal: “Se a imparcialidade se define
ordinariamente pela ausência de pré-juízos ou parcialidades, sua existência pode ser
apreciada, especialmente conforme o art. 6.1 da Convenção, de diversas maneiras. Pode
se distinguir entre um aspecto subjetivo, que trata de verificar a convicção de um juiz
5

determinado em um caso concreto, e um aspecto objetivo, que se refere a se este oferece


garantias suficientes para excluir qualquer dúvida razoável ao respeito”.

No mesmo julgamento, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos afirmou que


“todo juiz em relação ao qual possa haver razões legítimas para duvidar de sua
imparcialidade deve abster-se de julgar o processo. O que está em jogo é a confiança
que os tribunais devem inspirar nos cidadãos em uma sociedade democrática”; e
concluiu: “é possível afirmar que o exercício prévio no processo de determinadas
funções processuais pode provocar dúvidas de parcialidade”.

Em outro julgado, o Caso De Cubber vs. Bélgica [5], o Tribunal Europeu de


Direitos Humanos decidiu que “na própria direção, praticamente exclusiva, da instrução
preparatória das ações penais empreendidas contra o Requerente, o citado magistrado
havia formado já nesta fase do processo, segundo toda verossimilhança, uma idéia sobre
a culpabilidade daquele. Nestas condições, é legítimo temer que, quando começaram os
debates, o magistrado não disporia de uma inteira liberdade de julgamento e não
ofereceria, em consequência, as garantias de imparcialidade necessárias”.

Portanto, os casos julgados indicam a necessidade de separação das funções


judiciais, pois nos julgamentos em que não exista a figura do juiz de garantias,
confundindo-se o juiz do processo criminal que irá julgar a causa com aquele que atuou
na fase preliminar de investigações criminais, é justo que se levante dúvidas sobre a
parcialidade do juiz. Somente a separação das funções garante a imparcialidade objetiva
que os julgados do Tribunal de Estrasburgo proclamam como necessária.

A Corte Europeia dos Direitos do Homem tem consagrado em seus julgados,


também, a “teoria da aparência de imparcialidade da justiça”.

Assim, além de o juiz ter que ser subjetivamente imparcial, também é necessário
que a sociedade acredite que o julgamento se deu perante um juiz objetivamente
imparcial. Portanto, tão importante quanto o juiz ser imparcial é o juiz parecer ser
imparcial.

É como nos relata a história que registra ter Júlio César se divorciado de
Pompeia, afirmando, sem ter provas acerca de qualquer infidelidade, que "minha esposa
não deve estar nem sob suspeita", episódio que deu origem ao provérbio que diz: "À
mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta".
6

O Tribunal de Estrasburgo, no julgamento do Caso Delcourt vs. Bélgica,


proclamou: “Justice must not only be done; it must also be seen to be done”! [6] Numa
tradução livre: “a justiça não deve simplesmente ser feita: deve também ser vista para ser
feita".

Assim sendo, a partir do Caso Piersack vs. Bélgica e, sobretudo, no Caso De


Cubber vs. Bélgica, já aludidos, a Corte de Estrasburgo passou a entender que a aparência
de imparcialidade se mostrava prejudicada nos casos em intervinha na fase de
investigação o mesmo juiz que apreciaria o mérito da ação penal. Em tais situações, o
acusado, e a sociedade como um todo, poderia suspeitar legitimamente de que o réu não
seria julgado por um juiz ou tribunal imparcial.

Posteriormente, o Tribunal Europeu de Direitos do Homem flexibilizou esta


“teoria da aparência de imparcialidade da justiça”. Especialmente no caso Caso
Hauschildt vs. Dinamarca [7], onde o Tribunal passou a interpretar que não só a presença
do julgador na fase de investigação, mas a verificação da natureza dos atos por ele
praticados é que será relevante para determinar, caso a caso, se houve vínculo psicológico
do juiz, que tenderá a decidir no mesmo sentido na sentença final, comprometendo a
imparcialidade objetiva.

Ousamos discordar de tal flexibilização do entendimento da Corte de


Estrasburgo, pois, com isto, criou-se situação de insegurança jurídica. Ficamos com a
posição consagrada na doutrina brasileira por Aury Lopes Jr. que entende da seguinte
forma: “atualmente, existe uma presunção absoluta de parcialidade do juiz-instrutor,
que lhe impede de julgar o feito”. [8]

3. DIREITO BRASILEIRO COMPARADO: A AUSÊNCIA DE UM JUIZ DE


GARANTIAS NA OPERAÇÃO “LAVA JATO”.

No Brasil, o Código de Processo Penal brasileiro vigente [9], não contempla a


figura do Juiz de Garantias, não havendo regra que imponha o impedimento a Juiz que
tenha atuado em investigação para atuar na ação penal que irá julgar o mérito da acusação.

Pelo contrário, o parágrafo único, do art. 75, do Código de Processo Penal


brasileiro atrai a competência para julgar a ação penal, por prevenção, para o juiz que
7

tenha atuado na fase das investigações, conforme a seguinte disposição do código: “Art.
75. Parágrafo único. A distribuição realizada para o efeito da concessão de fiança ou
da decretação de prisão preventiva ou de qualquer diligência anterior à denúncia ou
queixa prevenirá a da ação penal”. [10]

Entendemos que o referido dispositivo viola o princípio constitucional


acusatório introduzido pela Constituição Federal brasileira de 1988, ínsito no art. 129,
inciso I, da Carta Magna, o qual dispõe que é função institucional do Ministério Público
“promover, privativamente, a ação penal pública” [11]. Assim, a Constituição Federal
deu exclusividade da ação penal ao Ministério Público, separando, claramente, as funções
dos sujeitos processuais. A imparcialidade do juiz está, portanto, implícita no sistema
acusatório adotado pela ordem constitucional vigente no Brasil.

Ocorre que o juiz federal Sérgio Moro, da 13ª. Vara Federal de Curitiba(PR)-
Brasil, vem atuando nos processos da chamada “Operação Lava Jato”, que trata de crimes
cometidos em detrimento do patrimônio da Petróleo Brasileiro S.A. (Petrobras), com
competência por prevenção, há vários anos, tendo, inclusive, tido esta atribuição
exclusiva prorrogada por várias resoluções do Tribunal Regional Federal da 4ª. Região -
Brasil.

No exercício dessa competência, o juiz Sérgio Moro praticou vários atos na fase
de investigações destes crimes, especialmente no processo em foi condenado o ex-
Presidente Luis Inácio Lula da Silva, o qual se encontra preso numa carceragem da Polícia
Federal em Curitiba em decorrência de sentença condenatória proferida pelo referido juiz
no processo nº 5046512-94.2016.4.04.7000 [12].

É sobre alguns destes atos praticados ainda na fase de investigações pelo mesmo
juiz que proferiu a condenação que iremos nos debruçar para aferi-los à luz do princípio
do juiz de garantias e do princípio da imparcialidade do juiz e à luz da jurisprudência da
Corte Europeia de Direito do Homem.

No decorrer das investigações, o ex-Presidente Lula foi alvo de medidas


cautelares expedidas pelo juiz Sérgio Moro no âmbito da “Operação Lava Jato”, que
determinou a busca e apreensão de bens e documentos, não apenas na residência do ex-
presidente e de seus familiares, como também na sede do Instituto Lula e, ainda, do
Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, onde anos atrás o ex-presidente
havia sido diretor do sindicato. Também ordenou a condução coercitiva do ex-presidente
8

Lula para depor, sem que tivesse havido qualquer tentativa prévia de intimação para tal
ato.

A busca e apreensão autorizada nos autos do processo n. 5006617-


29.2016.4.04.7000 [13] foi deferida pelo juiz federal Sérgio Moro com fundamentação
que revela antecipação de juízo de valor, como se verifica nos trechos abaixo,
reproduzidos da decisão do referido juiz no processo citado:

“De todo modo, observo que, no esquema criminoso que


vitimou a Petrobrás, surgiram, mais recentemente, alguns indícios do possível
envolvimento do ex-Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva.
(...)
Na representação, levanta o MPF suspeitas sobre os
pagamentos efetuados por empreiteiras envolvidas no esquema criminoso que
vitimou a Petrobrás para o Instituto Luiz Inácio Lula da Silva e para a LILS
Palestras, Eventos e Publicações Ltda., ambas controladas pelo exPresidente.
(...)
Não se pode concluir pela ilicitude dessas transferências, mas
é forçoso reconhecer que tratam-se de valores vultosos para doações e
palestras, o que, no contexto do esquema criminoso da Petrobrás, gera dúvidas
sobre a generosidade das aludidas empresas e autoriza pelo menos o
aprofundamento das investigações.
(...)
A aparente ocultação e dissimulação de patrimônio pelo ex-
Presidente, o apartamento e o sítio, as reformas e aquisições de bens e serviços,
em valores vultosos, por empreiteiras envolvidas no esquema criminoso da
Petrobrás, necessitam ser investigadas a fundo.
(...)
Em princípio, podem os fatos configurar crimes de corrupção
e de lavagem de dinheiro no contexto do esquema criminoso que vitimou a
Petrobrás.
(...)
Há, portanto, causa provável para a realização das buscas e
apreensões pretendidas.
A busca deve abranger o endereço dos investigados,
residenciais e comerciais, diante da possibilidade de que guardem documentos
relevantes em um e outro”.

Tudo isso na fase de investigações, quando não havia sequer denúncia contra o
ex-presidente. E o que se viu é que o investigado acabou sendo condenado pelo mesmo
juiz federal com base, exatamente, na hipótese acatada por ele, ainda na fase de
investigações, de que o ex-presidente Lula tivesse ocultado e dissimulado a propriedade
de um apartamento triplex que, na sentença, o juiz afirma pertencer ao condenado.
9

Pior, ainda, foi a situação referente à condução coercitiva do ex-presidente,


levado debaixo de vara, no vocabulário do antigo processo lusitano, por ordem do juiz
federal Sérgio Moro, à polícia para depor sem que jamais tivesse sido intimado para
prestar tal depoimento, como, no mínimo, prevê o art. 260 do Código de Processo Penal
brasileiro, in verbis: “Art. 260. Se o acusado não atender à intimação para o
interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser
realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença” [14]. Ou seja, o
dispositivo legal autorizaria a condução coercitiva somente se o acusado não atendesse à
intimação para o interrogatório.

Ao tentar justificar a medida invasiva, inclusive, do direito de ir e vir do ex-


presidente, o juiz federal Sérgio Moro fez constar na sua decisão, tomada no processo n.
5007401-06.2016.4.04.7000 [15], o seguinte:

“Evidentemente, a utilização do mandado só será necessária


caso o ex-Presidente convidado a acompanhar a autoridade policial para
prestar depoimento na data das buscas e apreensões, não aceite o convite.
Expeça-se quanto a ele mandado de condução coercitiva,
consignando o número deste feito, a qualificação e o respectivo endereço
extraído da representação.
(...)
O mandado SÓ DEVE SER UTILIZADO E CUMPRIDO, caso
o ex-Presidente, convidado a acompanhar a autoridade policial para
depoimento, recuse-se a fazê-lo”.

Ou seja, almejando emprestar uma aparência – muito frágil – de legalidade à


medida, o juiz federal afirma que o ex-presidente Lula teria a “opção” de aceitar o convite
da autoridade policial para depor. Ou seja, ou aceitava ou seria, imediatamente, conduzido
coercitivamente. Isto não é opção nenhuma. Na verdade, a medida vedou o direito de
intimação prévia com tempo suficiente para que o investigado pudesse consultar-se com
advogados para preparar defesa acerca das suspeitas que tivesse a polícia contra si.

Porém, mais grave foi o ocorreu quando foram divulgadas gravações obtidas por
meio de interceptação telefônica pelo juiz federal Sérgio Moro nos autos de nº. 5006205-
98.2016.4.04.7000. Em despacho dado nestes autos, o juiz federal levantou o sigilo do
feito nos seguintes termos:
10

“Observo que, apesar de existirem diálogos do ex-Presidente


com autoridades com foro privilegiado, somente o terminal utilizado pelo ex-
Presidente foi interceptado e jamais os das autoridades com foro privilegiado,
colhidos fortuitamente.
(...)
Não havendo mais necessidade do sigilo, levanto a medida a
fim de propiciar a ampla defesa e publicidade.
Como tenho decidido em todos os casos semelhantes da assim
denominada Operação Lavajato, tratando o processo de apuração de possíveis
crimes contra a Administração Pública, o interesse público e a previsão
constitucional de publicidade dos processos (art. 5º, LX, e art. 93, IX, da
Constituição Federal) impedem a imposição da continuidade de sigilo sobre
autos. O levantamento propiciará assim não só o exercício da ampla defesa
pelos investigados, mas também o saudável escrutínio público sobre a atuação
da Administração Pública e da própria Justiça criminal. A democracia em uma
sociedade livre exige que os governados saibam o que fazem os governantes,
mesmo quando estes buscam agir protegidos pelas sombras.
(...)
Concomitantemente, diante da notícia divulgada na presente
data de que o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva teria aceito convite para
ocupar o cargo de Ministro Chefe da Casa Civil, deve o feito, com os conexos,
ser remetido, após a posse, aparentemente marcada para a próxima terça-feira
(dia 22), quando efetivamente adquire o foro privilegiado, ao Egrégio Supremo
Tribunal Federal”. [16]

A decisão do juiz federal de primeiro grau revelou diálogo telefônico mantido


entre Luiz Inácio Lula da Silva, o Ministro de Estado Jacques Wagner e a Presidenta da
República, Sra. Dilma Vana Rousseff. Ou seja, embora ciente de que dois dos
interlocutores contavam com foro por prerrogativa de função deixou de remeter os autos
de forma imediata ao Supremo Tribunal Federal, preferindo antes levantar o sigilo das
conversações telefônicas que haviam sido interceptadas.

Justificou seu ato afirmando que: “O levantamento propiciará assim não só o


exercício da ampla defesa pelos investigados, mas também o saudável escrutínio público
sobre a atuação da Administração Pública e da própria Justiça criminal. A democracia
em uma sociedade livre exige que os governados saibam o que fazem os governantes,
mesmo quando estes buscam agir protegidos pelas sombras”.

Entendemos que, nesse momento, o magistrado que atuava na fase de


investigações criminais já havia prejulgado a culpabilidade do ex-presidente, bem como,
até mesmo, já havia prejulgado a culpabilidade da presidenta Dilma que sequer era
investigada.
11

Tanto tinha prejulgado o caso que entendeu de revelar para a população os


diálogos a fim que o povo pudesse também fazer o seu prejulgamento.

Diante da intensa atuação da autoridade judiciária na fase das investigações


policiais, cremos que o juiz federal Sérgio Moro não poderia ter continuado no
julgamento da ação penal, mas assim o fez e proferiu sentença condenatória, sentença em
razão da qual se encontra preso o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Acreditamos
que, em razão da violação do princípio da imparcialidade e do princípio da aparência de
imparcialidade da justiça, o procedimento adotado pelo Judiciário brasileiro no âmbito da
operação Lava Jato não passaria pelo crivo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem,
numa situação hipotética de ser pela apreciado Corte de Estrasburgo.

4. CONCLUSÃO.

Entendemos que a solução para evitar a repetição de processos pelo Brasil afora
em que o magistrado que atua na fase de investigações perde a imparcialidade e, ainda
assim, continua prevento para julgar o mérito da ação penal é atribuir a juízes diferentes
a função de atuar na fase de investigação preliminar e a função de julgar o processo
judicial.

É esta a solução que foi apresentada no Senado brasileiro pelo Projeto de Código
de Processo Penal brasileiro – PLS nº 156/2009 [17] –, que prevê a figura do “Juiz das
garantias”, “responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela
salvaguarda dos direitos individuais” (art. 15). Expressamente, o art. 17 do Projeto de
Lei dispõe que: “O juiz que, na fase de investigação, praticar qualquer ato incluído nas
competências do art. 15 ficará impedido de funcionar no processo”.

Aguardamos a aprovação do dispositivo de lei.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[1]. European Court of Human Rights. Disponível em:


<https://www.echr.coe.int/Pages/home.aspx?p=home> Acesso em 27 set. 2018.
12

[2]. Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades


Fundamentais. Disponível em:
<http://www.echr.coe.int/Documents/Convention_POR.pdf>. Acesso em 27 set. 2018.

[3]. RIBEIRO, Paulo Victor Freire. O juízo de garantias: definição, regramento e


consequências. R. Fac. Dir. Univ. SP v. 105 p. 939-988 jan./dez. 2011. Disponível em: <
https://doi.org/10.11606/issn.2318-8235.v105i0p939-988>. Acesso em 27 set. 2018.

[4]. TEDH, Caso Piersack vs. Bélgica, sentença de 01.10.1982.

[5]. TEDH, Caso De Cubber vs. Bélgica, sentença de 26.10.1984.

[6]. TEDH, Caso Delcourt vs. Bélgica, sentença de 17 de janeiro de 1970.

[7]. TEDH, Caso Hauschildt vs. Dinamarca, sentença de 24.05.1989.

[8]. LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. 3.
ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. v. I, p. 126.

[9]. BRASIL. Planalto. Código de Processo Penal. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689.htm>. Acesso em 29 set.
2018.

[10]. BRASIL. Planalto. Código de Processo Penal. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689.htm>. Acesso em 29 set.
2018.
13

[11]. BRASIL, Constituição Federal Da República. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 29
set. 2018.

[12]. BRASIL. Poder Judiciário. JUSTIÇA FEDERAL, Seção Judiciária do Paraná, 13ª
Vara Federal de Curitiba. Disponível em <https://www.conjur.com.br/dl/sentenca-
condena-lula-triplex.pdf>. Acesso em 29 set. 2018.

[13]. BRASIL. Poder Judiciário. JUSTIÇA FEDERAL, Seção Judiciária do Paraná, 13ª
Vara Federal de Curitiba. Disponível em
<https://www.migalhas.com.br/arquivos/2016/3/art20160304-07.pdf>. Acesso em 29
set. 2018.

[14]. BRASIL. Planalto. Código de Processo Penal. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689.htm>. Acesso em 29 set.
2018.

[15]. BRASIL. Poder Judiciário. JUSTIÇA FEDERAL, Seção Judiciária do Paraná, 13ª
Vara Federal de Curitiba. Disponível em <https://www.conjur.com.br/dl/pf-violou-lei-
penal-ordem-moro-conduzir.pdf>. Acesso em 29 set. 2018.

[16]. BRASIL. Poder Judiciário. JUSTIÇA FEDERAL, Seção Judiciária do Paraná, 13ª
Vara Federal de Curitiba. Disponível em < https://www.conjur.com.br/dl/decisao-
levantamento-sigilo.pdf>. Acesso em 29 set. 2018.

[17] BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado n° 156, de 2009. Disponível em
<https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=4574315&disposition=inline>.
Acesso em 29 set. 2018.

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