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Trans/F o r m / A ç ã o , São Paulo

8 : 79-95 , 1 98 5 .

TRADUçAo / TRANSLATION

I DEAIS DE CON DUTA*

por Charles S a n d e r s P E I R C E
Trad ução e I n trodução d e I vo A s s a d I B R P *

I N TRODUÇÃO

A i m portância d o texto " I deais de C o n d u t a " d o f i l ó s o fo norte-americano C h a r l e s


S a n d e r s P e i rce ( 1 8 3 8 - 1 9 1 4) prende-se à data d e s u a esc r i t u r a : 1 903 ; é u m t e x t o d e m a t u ­
ridad e .
É n í t i d o c o m o , p a r a q u e m tenha e s t u d a d o o a u t o r , o t e x t o fornece u m a a r t i c u l ação
melhor acabada entre as c i ê n c i a s n o r m a t i v a s - a lógica, a ética e a estética - q ua n d o
comparado a o u t r o s anteriores, a exe m p l o d a q ueles referentes à c l a s s i ficação d a s c i ê n ­
c i a s e , m a i s espec i ficam e n t e , à I V C o n ferência ( " O s T rês Tipos d e B em " ) , d a s é r i e
constante n o v o l u m e 5 d o s C o l lec ted P a p e r s , t o d a s referidas ao P ragmatis m o .
O a u t o r a n tec i p a , d e certo m o d o , na filosofia, u m a " estética da i nteligên c i a " c o m o
o quer J o rge L u í s B o rges n a l i teratura .
A r i q u eza do texto reside no seu poder de s í n t e s e ; trata-se de u m a fel iz reunião d a
fenomenologia e da m e t a f í s i c a às c i ê n c i a s n o r m a t i v a s , sob a v i são peircea n a .
D e o u t ro lad o , o t e x t o é , tam b é m , u m a i n s t i g a n te e n t rada n a a r q u i tetôn ica f i l o s ó f i ­
ca do a u t o r - u m c o n v i te ao l e i t o r a u m a v e r s ã o c o n te m porânea d o ideal d e amálgama
entre o B e l o , o B o m e o V e rd a d e i r o , presente n a filosofia a n t i g a , fo rnecendo a d i m e n ­
são d e s t e a u t o r a t é a g o r a t ã o desconhecido e , q u a n d o n ã o , t ã o m a l c o m p reend i d o e n t r e
s e u s p r ó p r i o s conterrâneos .

• In: H A R TS H O R N E , C. & W E I S S , P. ed . - Collecled papers of Charles Sanders Peirce. C a m b r i d g e , Be l k n a p P rcss of H a r ­


v a r d U n i v . P r e s s , 1 97 4 . B o o k 4 , C h a p . 4 , I . 5 9 1 -6 1 5 .
•• Depa r t a m e n t o de F i l o s o fi a - P o n t i fí c i a U n i v e r s i d a d e C a t ó l i c a de S ã o P a u l o - 0 1 000 - São P a u l o - S P .

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P E I R C E , C . S . - Ideais of c o n d u c t . Trad . e i ntrod . de I v o Assad I b r i . Trans/Forml A ç ã o , São Paulo,
8 : 79 -9 5 , 1 98 5 .

5 9 1 . T o d o h o m em t e m certos i d e a i s d e descri ção geral d e conduta q u e convém a u m


a n i m a l racional e m seu p a r t i c u l a r estágio n a v i d a , a q u e m a i s concorda c o m s u a natu re­
za total e relações .
Se você c o n s i d era esta a f i r m ação m u i t o vaga, d i r e i , m a i s especificamente, q u e e xis­
tem três m o d o s n o s q ua i s estes i d e a i s u s u a l m e n t e recom endam-se a s i mesmos e apenas
o fazem . E m p r i m e i ro l u g a r , certos tipos d e c o n d u t a , q uando o homem as c o n t e m p l a ,
têm u m a q u a l i d a d e estética . E l e c o n s idera a q u e l a c o n d u t a be la; e embora s u a noção
possa ser g r o s s e i r a o u s e n t i m e n t a l , mesmo assim ela i r á se alterar no tempo e deverá
tender a ser levada em h a r m o n i a com s u a n a t u reza . D e q ua l q uer modo, seu gosto é seu
. gosto por e n q u a n t o ; isto é t u d o . E m seg u n d o l ug a r , o homem se esforça p o r m o ldar
seus i d e a i s c o n s is t e n t e m e n t e c o m cada outro, p o i s i nc o n s i stência é odiosa para e l e . E m
terceiro l u g a r , e l e i m a g i n a q u a i s c o n s e q ü ê n c i a s acarretariam s e u s i d e i a i s , e se pergu n ta
q u e q u a l id a d e s estéticas estas c o n s e q ü ê n c i a s teriam .
5 9 2 . E s tes i d e a i s , e n t r e t a n t o , são em essência a b s o r v i d o s na i n fân cia . A i n d a , eles
são g rad u a l m e n t e m o l d a d o s à s u a n a t u reza pessoal e às idéias d e seu circulo social pre­
cipuamente p o r u m p rocesso c o n t í n u o d e cresc i m e n t o q u e p o r atos d i s ti ntos d e pensa­
mento. R e fl e t i n d o s o b re estes ideais, ele é levado a p retender fazer s u a própria c o n d u ta
ser c o n f o r m e p e l o m e n o s a u m a parte deles à q u e l a parte na q ual ele acred i t a c o m p l eta­
mente. E m seg u i d a , ele u s u a l m e n t e form u l a , c o n q uanto vagamente, certas regras d e
c o n d u t a . E l e p o d e aj u d a r m u i to fazen d o i s t o . A l ém d i s s o , tais r e g r a s s ã o convenien tes
e servem para m i n i m izar o s efeitos da i n advertência futura e , o que corretamente são
chamado s , dos ard i s d o d e m ô n i o d e n t r o d e l e . A reflexão, s o b re estas regra s , como
t a m b é m s o b r e o s i d e a i s gerais atrás d e l a s , tem u m certo efeito s o b re s u a d i s po s i ç ã o ,
tanto q u e o q u e ele n a t u r a l m e n t e se i n c l i n a a faze r , t o r n a - s e m o d i ficad o . S e n d o tal sua
condição, ele freq ü e n t e m e n t e prevê que u m a ocasião especial está p o r ocorrer; a s s i m ,
u m a certa reu n ião d e s u a s forças começará a s e desencadear , e este trabalho d e seu ser
o levará a c o n si d e r a r como a g i r á , e d e acordo com s u a d i sposição, tal como ela agora é ,
ele é levado a for m a r u m a resolução d e c o m o ele agirá sob aquela ocasião . E s t a resolu­
ção é d a n a t u reza d e u m plano; o u c o m o alguém poderia considerar, u m d iagrama. É
u m a fór m u l a m e n ta l j á m a i s ou m e n o s geral . S e n d o nada m a i s q u e u m a i d é i a , esta re­
solução não necessari a m e n t e i n f l u e n c i a s u a c o n d u ta . M a s agora ele se senta e se d i rige
através d e u m processo s i m i l a r à q u el e d e i m p r i m i r u m a l ição sobre s u a m e m ó r i a , c u j o
r e s u l t a d o é q u e a reso h.í ç ã o , o u fórm u l a m e n tal , é c o n v e r t i d a em u m a determi nação ,
pela q ual eu q uero d izer u m a ação rea l m e n t e eficiente, tal q u e se alguém sabe o q u e é
seu caráter especial , pode-se p r e v e r a c o n d u ta do homem na ocasião especial . N ão se
pode fazer previsões que serão verdadeiras n a maioria das tentativas p o r m e i o d e qual­
q u e r ficção . Deve ser por m e i o d e a l g u m a c o i s a verdadeira e real .
5 9 3 . N ã o s a b e m o s p o r q ua l m aq u i n a r i a a c o n versão de u m a resolu ção em u m a de­
termi nação se dá. M u i t a s h i p ó teses têm sido propostas; m a s elas não n o s concernem
agora . É s u f i c i e n te d izer que a d e t e r m i nação , o u ação eficiente, é algo escon d i d o nas
p r o f u ndezas d e nossa n a t ureza . U ma q u a l i dade d e sentimento pec u l ia r aco m p a n h a os
p r i m e i ro s p a s s o s d o processo d e formação desta i m p ressão ; mas m a i s tarde não temos
consciência dela . P od e m o s n o s tornar conscientes d a disposição, especialme n te se ela é
c o n f i n ad a . N e s t e c a so , n ó s a reconheceremos p o r um s e n t i m e n t o de necessidade ou de­
sej o . E u devo mencionar que um h o m e m não tem sempre u m a o p o r t u n idade d e formar
u m a resolução definida a n tecipadam e n t e . M as em tais casos, existem determi nações
menos d e f i n i d a s m a s bem m arcadas d e s u a n a t u reza, emergindo das regras gerais de
c o n d u t a q u e ele for m u l o u ; e n o caso d e tal regra apropriada não ter s i d o for m u l a d a ,

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s e u ideal d e adeq u a r a c o n d u t a t e r á prod uzido a l g u m a d i sposição . F i n a l m e n t e , a oca­


sião a n tecipada d e fato s u rge .
5 9 4 . A f i m de f i x a r n o s sa s i d é i a s , s u p o n h a m o s u m caso . N o c u rso de m i n h a s refle­
xões, sou levado a p e n s a r que seria b o m para mim falar c o m certa pessoa de u m certo
modo . Resolvo que o farei quando n o s e n c o n t rar m o s . M as c o n s iderando como, n o ca­
lor d a conversação, eu poderia ser levado a adotar u m tom d i ferente, eu p rocedo a i m ­
p r i m i r a resolução e m m e u esp í r i t o ; c o m o resultado q u e q u a n d o o encontro ocorrer,
embora m e u s p e n s a m e n t o s estej a m ocupados com o a s s u n t o d a conversa, podendo
n u nca reverter à minha reso l ução, apesar d e t u d o a d e t e r m i nação d e m e u ser i n fl u e n c i a
m i n h a c o n d u t a . Toda a ç ã o c o n c o r d a n t e com u m a deter m i n ação é aco m pa n h ad a p o r
u m s e n t i m e n t o q u e é aprazível ; m a s é u m a q uestão d e d i fí c i l s o l u ç ã o se o s e n t i m e n t o é
agradável no p r ó p r i o i n s t a n te , ou se tal rec o n h e c i m e n t o se dá u m pouco d e p o i s .
5 9 5 . O a r g u m e n t o a p o n t a para o s e n t i m e n t o d e p razer e , p o r t a n t o , é neces s á r i o , a
fim de j u l g á - l o , i r d e e n c o n t r o aos fatos s o b r e este s e n t i m e n t o tão acuradamente q u a n ­
t o possa m o s . I n ic i a n d o - s e u m a s é r i e d e a t o s q u e foram deter m i n a d o s antec i p a d a m e n t e ,
há u m c e r t o s e n t i d o d e alegria, u m a a n t e c ipação e i n í c i o d e u m a relaxação d a s t e n s õ e s
da neces s i d a d e , d a q u a l t o r n a m o - n o s m a i s c ô n sc i o s a g o r a d o q u e a n tes estávam o s . P o ­
de ser q u e t e n h a m o s c o n s c i ê n c i a d o p razer n o p r ó p r i o i n stante d o ato, e m b o ra i s t o sej a
d u b i tável . A n t e s da série de atos ser feita, j á i n i c i a m o s s u a revi s ã o , e nesta revisão reco­
n h ecemos o caráter aprazível d o s s e n t i m e n t o s que acompanham aq ueles ato s .
5 9 6 . R e t o r n a n d o a o m e u e n c o n t r o , tão logo e l e t e n h a acabado eu procedo a revê-lo
mais cautelosamente e então m e perg u n to se m i n h a conduta fo i c o n fo r m e minha reso­
lução . A q uela reso l u ç ã o , c o m o concord a m o s , era uma fór m u l a m e n tal . A memória d e
m i n h a a ç ã o pode ser g r o s s e i r a m e n te descrita c o m o u m a i m agem . E u contem p l o esta
i m agem e coloco a q u estão a mim m e s m o . D i re i que tal i m agem s a t i s faz as e s t i p u l ações
de minha reso l u ç ã o , o u não? A resposta a esta q uestão, c o m o a resposta a q u a l q u e r
q uestão i n t e r n a é necess a r i a m e n t e da natu reza d e u m a fórm u l a m e n tal . E l a é acompa­
nhada, entretanto, p o r uma certa q u a lid a d e d e sentimento q ue está tão relac i o n a d a à
fór m u l a q u anto a c o r da t i n ta co"m a q u a l q u a l q u e r c o i s a é i m pressa, está relacionada
ao sentido daquilo que é i m presso . E assim c o m o p r i m e i r o tornamo-nos conscientes d a
cor pec u l i a r d a t i n t a , e d e p o i s perg u n t a m o s a n ó s m e s m o s se ela é agradável o u não, a o
fo r m u l a r o j u ízo q u e a i m agem d e no s s a c o n d u ta s a t i s faz nossa resolução prév i a , esta­
m o s , no próprio ato d e for m u lação , c o n s c i e n tes d e uma certa q u a l idade d e s e n t i m e n t o ,
o s e n t i m e n t o d e s a t i s fação e d iretamente após rec o n hecem os q u e a q u e l e s e n t i m e n t o foi
aprazível .
5 9 7 . M as agora posso i n vestigar m a i s p r o f u n d a m e n t e m i n h a c o n d u t a , e posso m e
perguntar se concordou com m i n h a s i n tenções gera i s . A q u i novamente haverá u m
j u ízo e u m s e n t i m e n t o o acom p a n h a n d o , e d i retamente a p ó s , u m a recogn ição d e q u e
a q u e l e s e n t i m e n t o f o i aprazível ou d o l o roso . E s te j u ízo, se favorável , provave l m e n t e
proporcionará u m p razer m e n o s i n tenso q u e o o u t r o ; m a s o s e n t i m e n t o d e sat i s fação,
q u e é apraz í v e l , será d i fere n t e e , c o m o d izem o s , u m s e n t i m e n t o m a i s p r o fu n d o .
5 9 8 . P o s s o agora i r a i n d a m a i s a d i a n t e e p e r g u n t a r c o m o a i m agem de m i n h a c o n ­
d u t a concorda c o m m e u s i d e a i s d e c o n d u t a aj u s tando-se a u m h o m e m c o m o eu . A q u i
s e seg u i r á u m n o v o j u í zo aco m pa n h a d o p o r s e u s e n t i m e n t o , seg u i d o por u m reco n h e c i ­
mento d o c a r á t e r aprazí vel ,o u d o loroso deste se n t i m e n t o . E m q ua l q uer ou em todos es­
tes m o d o s , u m h o m e m pode c r i ticar s u a p r ó p r i a conduta; e é essencial notar q u e não é
mero l o u v o r i n ú ti l ou c e n s u r a , c o m o os escritores q u e não são dos m a i s sábios freq üen­
temente d i s t r i buem e n t r e os personagens d a h i s tória . Não, d e fato ! é ap rovação o u d e -

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saprovação d o ú n i c o t i p o respeitável q u e trará frutos no futuro . S e o homem está satis­


fei t o c o n s igo mesmo o u i n sa t i s fe i t o , s u a n a t u reza absorverá a l ição c o m o u m a esponj a ;
e n a próx i m a v e z , e l e tenderá a fazer m e l h o r d o q u e antes fez .
5 9 9 . A d i c i o n a l m e n t e a estas três au to-crí ticas de u m a série s i m ples de ações , um ho­
mem i r á d e t e m p o s e m t e m p o s rever s e u s ideais . Este processo não é u m trabalho que
u m h o m e m se senta para fazer e o acaba . A experiência d e v i d a está c o n t i n uamente
c o n t r i b u i n d o c o m exem p l o s m a i s o u m e n o s elucidativos . Eles são s u m a rizados p r i m e i ­
r o , não n a c o n s c i ê n c i a d o h o m e m , mas nas p ro f u ndezas de seu ser razoável . O s resulta­
dos vêm à consciência mais tarde. Mas a m e d i tação parece agitar u m a massa d e tendên­
c i a s , e p e r m i t i r que elas a f l o r e m m a i s rapidamente para serem rea l m e n te m a i s c o n for­
madas à q u i l o que se aj u s t a ao h o m e m .
600 . F i n a l m e n t e , em adição a esta m e d i tação pessoal no aj ustamento de seus p r ó ­
prios i d e i a s , q u e é d e u m a n a t u reza p r á t i c a , existem estudos puramente t e ó r i c o s d o s es­
tudantes d e é t i c a , que p ro c u r a m determ i n a r , c o m o c u riosidade, no q u e consiste o aj u s ­
t a m e n t o d e u m i d e a l d e c o n d u ta , e d e d u z i r , d e t a l d e f i n i ção d e aj u s t a m e n t o , o q u e a
cond u ta d e v e s e r . A s o p i n i õ e s d i ferem na totalidade deste estudo . Concerne apenas ao
nosso p r o p ó s i t o presente o b s e r v a r q u e , em si m e s m a , é u m a i n v e s t i gação teórica, i n t e i ­
ram e n t e d i s t i n ta d o t r a b a l h o d e m o ldagem d a própria cond u t a . C u id a n d o p a r a q u e
a q u e l e aspecto não sej a p e r d i d o d e v i s t a , e u m e s m o não d u v i d o d e q u e o e s t u d o é m a i s
ou m e n o s favorável à v i d a correta .
60 1 . T e n h o , a s s i m , m e esforçado para descrever p o r c o m p l eto os fenômenos típicos
da ação c o n t rolada . E l e s não estão presentes em todos os caso s . A s s i m , como já men­
c i o n e i , não h á s e m p r e u m a o p o r t u n id a d e d e formar u m a resolução . Especialme n te e n ­
f a t i z e i o f a t o d e q u e a c o n d u t a é deter m i nada pelo q u e a a n tecede no tempo, e n q u a n t o
o rec o n h e c i m e n t o d o p razer s e g u e - s e após a ação . A l g u n s p o d e m o p i n a r q u e não é v e r ­
dade o q u e é c h a m a d o a perseg u i ção d o prazer ; e a d m i t o q u e ex i s t e e s p a ç o para s u a s
o p i n i õ e s , e n q u a n t o e u m e s m o m e i n c l i n o a pensar, por exemplo, q u e a s a t i s fação d e co­
m e r u m b o m j a n ta r n u n c a é u m a satis fação n o . estado p resente, m a s sempre se segue a
e l e . I ns i s t o , d e q u a l q u e r m o d o , q u e um s e n t i m e n t o c o m o u m a mera aparênc i a , não po­
d e ter u m p o d e r real d e produzir q u a l q u e r efeito q u e sej a , c o n q u a n t o i n d i retame n t e .
602 . M i n h a i d é i a d o s fato s , v o c ê observará, d e i x a u m h o m e m em l i berdade p l e n a ,
não i m p o r t a n d o se a d o t a m o s t u d o o q u e r e i v i n d icam o s necessi t a r i stas . I sto é , o h o ­
m e m p o d e , o u se q u i s e r é c o m p e l i d o , a tornar s u a v i d a m a i s razoáve l . Q u e o u t ra i d é i a
d i s t i n t a senão e s t a , g o s t a r i a e u d e c o n h ec e r , pode estar l i gada à p a l a v r a l iberdade?
603 . C o m p a r e m o s agora os fatos que enunciei com o a r g u m e n to c o n t ra o q ual m e
opon h o . A q u e l e a r g u m e n t o repousa e m d u a s p r e m i s ssas p r i n c i p a i s ; p r i m e i r o , q u e é i m ­
p e n s á v e l q u e u m h o m e m a g i r i a p o r o u t r o m o t i v o s e n ã o o p razer, se seu ato for d e l i b e ­
rado ; e s e g u n d o , q u e a ação q u e s e r e f e r e ao p razer não deixa e s p a ç o para q ua l q u e r d i s ­
t i n ç ão e n t r e certo e errad o .
604 . C o n si d e r e m o s se esta segu n d a p r e m i ssa é rea l m e n te verdàd e i ra . Q u a l seria o
req u i s i to a f i m de d e s t r u i r a d i ferença e n t re c o n d u ta i n ocente e c u l pada? A ú n i c a coisa
q u e o faria seria d e s t r u i r a fac u l d ad e d e a u t o - c r í tica efet i v a . Tanto q � anto isto perma­
neceu , t a n t o quanto u m h o m em c o m parou s u a cond u ta com u m padrão p reconcebi d o
e q u e , efet i v a m e n t e , não f a z m u i ta d i ferença, se seu ú n i c o m o t i v o r e a l fosse o p razer ;
p o i s t o r n a r-se-ia d esagradável para e l e ficar s u j e i t o à ferroada da c o n s c i ê nc i a . M a s
a q u e l e s q u e e n g a n a m a s i m e s m o s c o m a q u e l a fal á c i a , não estiveram atentos aos fen ô ­
m e n o s d e c o n fusão d o j u í z o , a p ó s o a t o , q u e a q u e l e ato sat i s fez o u não a s .exigências d e
u m p a d r ã o , c o m u m p r a z e r o u d o r acom p a n h a n d o o ato e m s i m es m o .

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P E I R C E , C . S . - I deais of conduct. Trad . e i ntrod . de I v o Assad I b r i . T ra n s / F o r m l Ação , São P a u l o ,
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605 . C o n sideremos se a o u t r a p r e m i ssa é verdadeira, q u e é i m pensável q u e u m h o ­


m e m a g i r i a d e l i berad a m e n t e , exceto c o m o o b j e t i v o d o p razer _ Q u a l é o e l e m e n t o , n a
verdade i m pensável , q u e a a ç ã o d e l i berada c a r e c e r i a ? É s i m ples e claramente a deter m i ­
nação . D e i x e a determ i nação permanecer, c o m o é certamente concebí vel q u e e l a deve­
ria permanecer, e m bora o próprio nervo d o p razer fosse cortado, tal q u e o homem fos­
se perfeit a m e n t e i n s e n s í v e l ao p razer e à dor, e ele irá certamente perseg u i r a l i n h a d e
conduta q u e i n t e n c i o n a . O ú n ico efeito seria t o r n a r as i n tenções d o h o m e m m a i s i n ­
flex í v e i s - u m e fei t o , a propósi t o , q u e freq ü e n temente temos o c a s i ã o d e observar n o s
homens c u j o s s e n t i m e n tos estão q uase m o r t o s pela idade o u por a l g u m a pertu r bação
no céreb r o . M as a q u e l e s que raciocinaram deste m od o falac i o s o , c o n f u n d i r a m t a m b é m
a determi nação da n a t u reza h u m an a , q u e é u m . a g e n t e preparado previamente para o
ato , com a com paração da c o n d u t a com u m pad rão , c o m p a ração esta q u e é u m a fór­
m u l a m e n tal geral s u b s e q ü e n t e ao ato e , tend o i d e n t i ficado estas d u a s coisas expressa­
mente d i ferentes, colocara m - nas n o ato m e s m o c o m o u m a mera q u alidade d e s e n t i ­
mento .
606 . S e recorrerm o s ao a r g u m e n t o acusado sobre o racioc í n i o , encontraremos q ue.
ele e n v o l v e o m e s m o t i p o d e c o n fusão d e idéias . O s fen ô m e n o s d o racioc í n i o são, em
seus aspectos gerais, paralelos àq ueles da c o n d u ta gera l . P o i s racioc í n i o é essencial­
m e n t e pensamento q u e está sob auto-controle, a s s i m c o m o a c o n d u t a moral é conduta
sob auto-co n t r o l e . D e fato , o racioc í n i o é u m a espécie d e c o n d u t a c o n t rolada e , c o m o
tal, participa neces s a r i a m e n t e d o s a s p e c t o s essenciais da c o n d u ta c o n t rolada . S e v o c ê s
prestarem a t e n ç ã o aos fenô m e n o s d o racioc í n i o , e m bora eles não sej a m tão fam i l i ares
a você como aqueles d a m o r a l , pois não existe clérigo cuj o trabalho sej a colocá-los
diante d e suas mentes, vocês i r ã o , no entanto, notar sem d i fi c u l d ad e , q u e u m a pessoa
q u e extrai u m a c o n c l u são rac i o n a l , não apenas a pensa c o m o verdad e i r a , m a s pensa
q u e u m racioc í n i o similar seria apenas análogo . S e ele fal h a e m pensar i s t o , a i n ferência
não é chamada racioc í n i o . É m e r a m e n t e u m a idéia sugerida à sua m e n t e , q u e ele não
pode resi s t i r d e a pensar como verdadei ra . M as não tendo sido s u b m e t i d a a q u a l q u e r
revisão o u c o n t r o l e , não é d e l i berad a m e n t e aprovada e não é c h a m a d a racioc í n i o .
Chamá-Ia a s s i m seria i g n o r a r u m a d i s t i n ção q u e m a l se t orn a um ser racional para a
con tem plação . Para es ta r c e r t o , toda i n ferência se força sobre n ó s i r re s i s t i vel m e n t e _ I s­
to é dizer, é i rresi s t í ve l no i n s ta n t e em q u e e l a p r i m e i ro se sugere . N o e n t a n t o , todos te­
mos em nossas m e n tes certas n o r m a s , o u padrões gerais d e racioc í n i o correto, e pode­
mos comparar a i n ferência c o m u m deles e perg u n tar-nos se s a t i s faz a q u e l a regra .
Chamo-a u m a regra, e m b o r a a fo r m u lação p o s s a ser de a l g u m m o d o vaga ; p o r q u e ela
tem o caráter essencial d e uma regra, d e ser uma fórm u l a geral aplicável a casos p a r t i ­
c u l ares . S e j u l g a m o s no s s a n o r m a d e raciocí n i o c o r r e t o c o m o satisfeita, temos u m sen­
timento d e aprovação, e a i n ferência agora não apenas aparece c o m o i r r e s i s t í v e l c o m o
o f e z a n t e s , m a s p rovará ser a d i a n t e m a i s i n a balável p o r q u a l q uer d ú v i d a .
607 . V o c ê s v ê e m i m ed i a t a m e n t e q u e t e m o s a q u i t o d o s o s p r i n c i p a i s e l e m e n t o s d e
c o n d u t a moral : o pad rão g e r a l m e n tal m e n te concebido antecipadamente, o agente efi­
ciente n a natu reza interna, o a t o , a c o m paração s u b se q ü e n te d o ato com o pad rão .
E x a m i n a n d o os fen ô m e n o s m a i s de p e r t o , e n c o n t raremos q u e n e n h u m e l e m e n t o da
conduta m o ral deixa d e ser representado n o racioc í n i o _ A o mesmo tem p o , o caso espe­
cial n a t u r a l m e n t e tem suas p e c u l i a r i d ades .
608 . A s s i m t e m o s u m ideal geral de lógica s ã . M as não deveríamos n a t u ra l m e n te
descrevê-Ia c o m o n o ssa i d é i a de um t i p o de racioc í n i o q u e convém a h o m e n s em nossa
situ ação . C o m o deveríamos descrevê-Ia, então? C o m o se fôssemos c o n s i derar que o

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P E I R C E , C . S . - IdeaIs of c o n d u c t . Trad . e i ntrod . de I v o Assad I b r i . T rans/Form/ Ação , São Paulo,
8 : 79-95 , 1 98 5 .

bom racioc í n i o é o q u e em todo estado c o n c e b í vel do u n iverso os fatos estabelec i d o s


nas prem i s sas são verdad e i r o s , e o f a t o e n u nciado n a c o n c l u são será, d e s t e m o d o , v e r ­
dadeiro . A obj eção a esta a f i r m ação é q u e ela a p e n a s cobre o rac i o c í n i o necessário, i n ­
c l u i n d o o rac i o c í n i o s o b r e p r o b a b i l idades . E x i s t e outro rac i o c í n i o q u e é defensável c o ­
m o provável , n o s e n t i d o q u e e n q u a n t o a c o n c l u são possa ser m a i s ou menos errônea,
sendo o mesmo p roced i m en t o d i l ig e n t e m e n t e persi s t i d o , ele deve, em todo u n iverso
concebível n o qual e l e leva a q u al q uer r e s u l t a d o , levar a u m resul tado i n d e fi n i d a m e n te
apro x i m a t i v o da verdad e . Q u a n d o for o c a s o , farem o s j ustiça seg u i n d o este método,
c o n t a n t o que recon h e ç a m o s seu caráter verdad e i r o , desde q u e n o ssa relação com o u n i ­
verso não n o s p e r m i t a ter q u a l q u e r c o n h ec i m e n t o necessário dos fatos p o s i t i vo s . Você
observará que, e m tal caso, n o s s o ideal é m o ldado pela c o n s i d eração d e nossa s i tuação
em relação ao u ni v e r s o d e e x i s t ê n c i a s .
E x i s t e m a i n d a o u t ra s operações da m e n t e para as q u a i s o n o m e " racioc í n i o " é espe­
c i a l m e n t e a p r o p r i a d o , e m bora não sej a o hábito d e l i n g u agem pred o m i nante c h a m á - l a s
a s s i m . E l a s são c o n j e c t u r a s , m a s conjecturas racionai s ; s u a j u s t i ficação é q u e a m e n os
q u e o h o m e m t e n h a u m a t end ênci a d e a d i v i nha r corre tam e n te , a m e n os q u e suas a d i v i ­
n h ações sej a m m e l h ores q u e l a n ç a r u m a moeda, n e n h u m a v e r d a d e q u e ele j á não pos­
s u i v i r t u a l m e n t e p o d e r i a s e r - l h e revelad a , d e tal m o d o q u e ele poderia d e s i s t i r d e toda
ten tativa d e racioc í n i o ; e n q u a n t o que se ele tem qualquer tendência determinada para
a d i v i n h a r correta m e n t e , como ele p o d e t e r , então não i m porta q u ão freq ü e n temente
ele erre, e l e a t i n g i r á p o r ú l t i m o a verdad e . E stas c o n s iderações certamente levam e m
conta a n a t u reza i n te r n a d o h o m em tanto q u a n t o suas relações exter nas ; tal q u e os.
ideais da boa lógica são verdadeiramente da m e s m a natu reza geral q u e os ideais de boa
con d u t a . V im o s que três tipos d e c o n s i derações suportam os ideais d e conduta . Fora m ,
d e i n í c i o , q u e certa c o n d u t a parece b e l a e m s i m e s m a . A s s i m c o m o certas conjecturas
parecem p l a u s í v e i s e fácei s e m s i m e s m a s . E m segu n d o l u g a r , desej a m o s q u e nossa c o n ­
d u ta sej a c o n s i stente . A s s i m c o m o o ideal ( d o ) racioc í n i o necessário é c o n s i stêncía s i m ­
p l e s m e n te . Tercei r o , c o n s i d er a m o s q u e e f e i t o g e r a l t e r i a acarretado n o s s o s ideai s . A s ­
s i m c o m o certos m o d o s d e rac i o c í n i o rec o m e n d a m a s i m e s m o s p o r q u e se persistente­
m e n te levados adiante, eles d e v e m c o n d u z i r à verdad e . O paralel i s m o é q uase exat o .

609 . H á t a m b é m a l g o c o m o u m a i n tenção geral l ó g i c a . M as n ã o é en fatizada pelo


motivo que a vontade não e n t ra tão v i o l e n ta m e n t e no racioc í n i o , c o m o na conduta mo­
ral . Já m e n c i o n e i as n o r m a s lógicas, que correspondem às leis morais . Tomando q u a l ­
q u e r p r o b l e m a d i fí c i l d e racioc í n i o , for m u la m o s p a r a n ó s m e s m o s u m a resolução l ó g i ­
c a ; m a s a q u i n o v a m e n t e , d e v i d o à v o n tade não e s t a r e m a l t a tensão no racioc í n i o , c o ­
m o freq ü e n t e m e n t e está n a c o n d u ta a u to-controlada, e s t a s resoluções n ã o s ã o fenôme­
n o s m u i t o p r o e m i n e n tes . Devido a esta c i r c u n s tâ n c i a , a deter m i n ação eficíente d e nos­
sa n a t u reza, ' q u e n o s leva a racioc i n a r e m cada caso, c o m o faze m o s , tem m e n os relação
com as r e s o l u ç õ e s que c o m a s n o r m a s lógicas . O ato e m s i mesmo é , no i n � t a n t e , irre­
s i s t í v e l e m a m b o s o s caso s . Mas i m ed iatamente após, ele é s u b m et i d o à auto-crítica por
c o m paração c o m u m pad rão p r é v i o que é s e m p re a norma, o u regra, no caso d o ra­
c i oc í n i o , embora n o caso d a c o n d u ta externa c o n t e n t a r m o - n o s e m com parar o ato com
a reso lução . No caso d a c o n d u t a geral , a l ição d e s a t i s fação o u i n s a t i s fação é freq ü e n ­
temente n ã o m ui t o i n c u t i d a n o c o r a ç ã o , i n fl ue n c i a n d o pouco a c o n d u t a futura . M a s n o
c a s o d o racioc í n i o , u m a i n ferência q u e a a u t o - c r í t i c a desaprova é s e m p r e i n s ta n tanea­
mente a n u l a d a , p o r q u e não é d i fí c i l fazer i s t o . F i n a l m e n t e , todos os d i ferentes s e n t i ­
m e n t o s q u e , c o m o d i s s e m o s , acom p a n h a m as d i ferentes operações d a c o n d u t a auto-

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P E I R C E , C . S . - IdeaIs of c o n d u c t . Trad . e introd . de Ivo Assad I b r i . Trans/Form/ A ç ã o , São P a u l o ,
8 : 79-95 , 1 98 5 .

controlada, i g u a l m e n t e acom panham aquelas d o racioc í n i o , em bora elas n ã o sej am tão


vividas.
6 1 0 . O paralel i s m o é , ass i m , per fei to . N e m , rep i t o , p o d e r i a f a l h a r e m s ê - l o , se n o s ­
s a descrição d o s fen ô m e n o s d a c o n d u t a c o n t rolada foi verdad e i r a , desde q u e o r a ­
ciocí n i o é a p e n a s u m tipo especial d e c o n d u t a auto-contro lada . . .
6 1 1 . N o q u e c o n s i ste o racio c í n i o correto? E l e c o n s i s t e no racio c í n i o q u e será c o n ­
d u t i v o ao nosso o b j e t i v o ú l t i m o . Q u a l , e n t ã o , é nosso o b j e t i v o ú l t i m o ? Talvez não sej a
necessário q u e o lógico responda esta q uestão . Talvez pudesse s e r p o s s í v e l d e d u z i r a s
regras corretas d o racioc í n i o d a mera s u p o sição d e q u e temos a l g u m objetivo ú l t i m o .
M a s n ã o v ej o c o m o i s t o poderia s e r fei t o . S e n ã o tivéssem o s , p o r exe m p l o , nen h u m o u ­
t r o obj etivo q u e o p razer d o m o m e n t o , poderíamos cair n a me sm a falta d e q ua l q uer l ó ­
g i c a q u e o a r g u m e n t o falacioso n o s l e v a r i a . N ão t e r í a m o s i d e a l d e racioc í n i o e , c o n s e ­
q ü e n t e m e n t e , n e n h u m a n o r m a . P a rece- m e q u e o l ó g i c o deve reconhecer o q u e é o o b j e ­
tivo ú l t im o . P a r e c e r i a ser u m a tarefa d o m o r a l i s ta e n c o n t r á - l o , e q u e o lógico teria d e
aceitar o e n s i n a m e n t o d a ética n o q u e r e s p e i t a a i s to . M as o m o r a l i s t a , tanto q ua n to
posso c o m p reendê-lo, m e r a m e n te n o s d i z q u e temos um poder de auto-controle, q u e
n e n h u m o b j e t i v o estreito o u egoísta p o d e eternamente se p r o v a r s a t i s fat ó r i o , q u e o ú n i ­
c o objetivo s a t i s fatório é o m a i s a m p l o , o m a i s elevado e o m a i s geral p o s s í vel ; e p o r
n e n h u m a i n for m ação m a i s d e f i n i d a , c o m o c o n c e b o o a s s u n t o , ele tem d e n o s r e f e r i r a o
esteta, cuj a tarefa é d izer q u a l é o e s t a d o d e c o i s a s q u e é m a i s a d m i rável e m s i m e s m o ,
s e m relação com q u al q u e r razão u l terio r .
6 1 2 . A s s i m , e n t ã o , apelamos para o esteta para n o s d izer o q u e é a d m irável sem
q ualquer razão para s ê - l o , além d e seu caráter inerente . Porque isto, ele replica, é o be­
l o . Sim, frisamos, tal é o n o m e q u e você l h e d á , m a s o q u e ele é ? O q u e é o seu caráter?
S e ele res p o n d e q u e c o n s i s te e m u m a certa q u alidade d e sentimento, u m certo êxtase,
eu, de m i n h a parte, d ec l i n o c o m p leta m e n te para aceitar a resposta c o m o s u ficien t e . Eu
lhe diria, m e u caro senhor, se você po d e p r o va r -me q u e esta q u alidade de s e n t i m e n t o
de q u e f a l a , c o m o u m f a t o , l i ga-se ao q u e você c h a m a d e b e l o , o u q u e a q u i l o q u e s e r i a
a d m i rável sem q u a l q u e r razão para o ser, estou b a s t a n t e d isposto a l h e acred i t a r ; m a s
eu não p o s s o , sem u m a prova vigorosa, ad m i t i r q u e q u a l q u e r q u alidade d e s e n t i m e n t o
p a r t i c u l a r é a d m i rável sem u m a razão . P o i s é b a s t a n t e r e v o l t a n t e para ser c r i d o , a m e ­
nos q u e alguém sej a fo rçado a fazê - l o .
6 1 3 . U m a q u es tão f u n d a m e n ta l c o m o e s t a , c o n q u a n t o p r á t i c o s p o s s a m ser seus r e ­
s u l tados, d i fere i n te i r a m e n t e d e q u a l q u e r q u estão p r á t i c a o r d i n á r i a , n a q u i l o q u e o q u e
q u e r q u e sej a aceito c o m o b o m em s i m e s m o d e v a s e r aceito s e m c o m p r o m i s s o . D e c i ­
d i n d o q u a l q u e r q uestão e s p e c i a l d e c o n d u t a , é freq ü e n t e m e n t e bastante c o r r e t o perm i ­
t i r ponderar d i ferentes c o n s iderações con flitantes, e c a l c u l a r s u a res u l t a n t e . M as é
acentuadamente d i ferente em relação à q u i l o q u e é o o b j e t i v o de todo e s forço . O objeto
a d m i rável q u e é a d m irável p e r s i d ev e, sem dúvida, ser gera l . Todo ideal é m a i s o u me­
nos geral ; ele deve ter unidade, p o r q u e é uma i d é i a , e u n idade é essencial a toda idéia e
todo ideal . O b j etos de t i p o s c o m p le t a m e n te d i s t i n to s podem , sem d ú v i d a , ser a d m i r á ­
v e i s , p o r q u e a l g u m a razão e s p e c i a l pode fazer cada u m deles assi m . M as q u a n d o ele se
torna o ideal d o a d m irável e m s i m e s m o , a p r ó p r i a n a t u reza d e seu ser é ser uma i d é i a
p r e c i s a ; e se alguém d i z q u e ele é isto o u a q u i l o , o u a q u i l o o u t r o , eu l h e d i g o : " é c l a r o
q u e você não tem idéia d o q u e precisa m e n te ele é . " M as u m ideal deve ser c a p a z d e s e r
abarcado e m u m a i d é i a gera l , o u a b s o l u t a m e n t e não é u m ideal . P o r t a n t o , não p o d e
h a v e r c o m p r o m i s s o s ent r e d i ferentes c o n s i derações aq u i . O ideal a d m i rável não pode

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P E I R C E , C . S . - I d ea i s of c o n d u c t . Trad . e i n trod . de I v o Assad I b r i . T r a n s / F o r m / A ç ã o , São P a u l o ,
8 : 79-9 5 , 1 98 5 .

ser ex tremamente ad m i ráve l . Q u ão m a i s c o m p letamente ele te n ha o caráter q u a l q u e r


q u e sej a , q u e l h e é e s s e n c ia l , m a i s a d m i rável ele deve ser .
6 1 4 . O q ue seria a d o u t r i n a de q u e a q u i l o q u e é a d m i rável em si m e s m o é u m a q u a l i ­
dade d e s e n t i m e n t o se t o m a d a em toda s u a p u reza e l e v a d a ao seu m a i s d i stante extre­
m o - que seria o extremo d a a d m i r a b i l idade? Seria e q u ivalente dizer que o único obje­
to a d m irável ú l t i m o é a i r r e s t r i t a grati ficação d e u m d esej o , sem c o n s iderar qual a natu­
reza deste obj eto . P o ré m , i s t o é m u ito c h ocante . Seria a d o u t r i n a d e que todos os mais
altos modos d e c o n s c i ê n c i a c o m o s q u a i s estamos acostumados em n ó s m e s m o s , tais
como o amor e a razão , são bons apenas e n q u a n t o s u bservem o mais baixo de todos os
m o d o s de c o n s c i ê n c i a . S er i a a d o u tr i n a d e q u e este vasto u n i verso d a N atu reza, que
contem p l a m o s c o m tal reverê n c i a , é b o m apenas para prod u z i r u m a certa q ua l i d ad e d e
sen t i m e n t o . C e r t a m e n t e e u devo ser d e s c u l pado por não ad m i t i r e s t a d o u t r i n a , a m e n o s
q u e sej a p r o v a d a c o m a m a i s e x t r e m a evidência . A s s i m , então, q u e p r o v a h á q u e sej a
verdadeira? A ú n ica razão para ela q u e estou apto a aprender é q u e grati ficação, pra­
zer, é o ú n i c o res u l ta d o c o n c e b í v e l que s a t i s faz a si m e sm o ; e , portan t o , desde que esta­
m o s b u sc a n d o p o r a q u i l o que é belo e ad m i rável , sem q u a l q uer razão além de s i mes­
m o , prazer, êxtase, é o único objeto q u e pode s a t i s fazer as cond ições . E ste é u m argu­
m e n t o respeitável . Ele m e rece c o n s i deração . Sua p r e m i s s a , de q u e o p razer é o ú n i c o re­
s u l tado concebível que é perfeitamente a u t o - s a t i s fa t ó r i o , deve ser ad m i t i d o . Apenas,
nestes d i a s d e i d é i a s e v o l u c i o n á r i a s q u e são traçáveis d a Revol ução Francesa c o m o i n s ­
tigad ora, e r e t o r n a n d o ao experi m ent o d e G a l i leu na torre d e P i s a , e ain da mais atrás, a
todas as p o s i ç õ e s de L u tero , e m e s m o de Robert de L i n c o l n contra as tentativas de l igar
a razão h u m a n a a q ua l q u e r p rescrição fixada avante - nestes dias, eu digo, q uando es­
tas idéias d e progresso e cresci m e n t o cresceram tanto, d e modo a ocupar nossas m e n tes
como agora o fazem , como podem esperar que perm i t a m o s a pressuposição d e que o
ad m i rável em si m e s m o é q u a l q u e r resultado estac i o n á r i o ? A expl icação da c i r c u n s t â n ­
cia de q u e o ú n ico r e s u l t a d o q u e é s a t i s fatório c o n s i go m e s m o é u m a q u a l idade de senti­
m e n t o , é que a razão sem p re o l h a adiante para u m f u t u r o sem fim e espera i n fi n i tamen­
te aperfeiçóar s e u s res u l ta d o s .
6 1 5 . C o n s i d e r e , p o r u m m o m e n t o , o q u e a Razão , tanto q u a n t o possamos h oj e
concebê-Ia, rea l m e n t e é . E u n ã o q uero d izer a fac u l dade d o h o m e m q u e assim é chama­
da pela s u a i n c or p o ração e m alguma m e d i d a d a Razão, o u N o v e:; , como a l g u m a coisa
m a n i fe s t a n d o - s e n a mente, na h i stória d o desenvolvimento d a m e n te , e na natu reza . O
q u e é esta Razão? E m p r i m e i ro l u gar, é a l g u m a coisa q u e n u nca pode ter s i d o c o m p l e ­
tamente i n c o r p o r ad a . A m a i s i n s i g n i ficante das idéias gerais j á e n v o l v e p redição c o n d i ­
cionai o u req u e r para seu p r ee n c h i m en t o q u e os eventos es tej all} em f l u x o , e t u d o q u e
sempre p o d e estar e m f l u x o , deve estar apto a comp letar suas exigênc i a s . U m peq ueno
exem p l o s e r v i rá para i l u strar o que e s t o u d izen d o . Tome q u a l q uer termo geral q u e sej a .
A f i r m o q u e u m a pedra é dura. I sto s i g n i fica, tanto q u anto a pedra permaneça d u ra ,
q u e todo e n s a i o d e s t i n a d o a riscá-Ia pela p r e s s ã o m o d e r a d a de u m a faca, certamente
fal h ará . D e n o m i n a r uma ped ra d e d u ra é prever q u e não im porta q uão fre q ü e n temente
você tente o experi m e n t o , ele i r á fal har toda vez . A q u e l a i n u merável série de p redições
c o n d i c i o n a i s está e n v o l v i d a n o s i g n i ficado deste adj etivo despretencioso . O que quer
q u e p o s s a ter sido feito n ã o c o m eça a exau r i r seu s i g n i ficad o . A o mesmo tempo, o pró­
p r i o ser d o G er a l , d a Razão, é d e tal m o d o que este ser consiste, n a verdade, n o s even­
tos governados pela R a zão . S u p o n h a u m pedaço de carbo r ú n d i o que ten h a s i d o feito e
q u e , s u b s e q ü e n t e m e n t e , tenha s i d o d i s s o l v i d o em água régia sem q u e n i n g u é m , n e n h u ­
m a vez , t a n t o q ua n t o s e i , t e n h a t e n t a d o r i s c á - l o com u m a fac a . Sem d ú v i d a , eu posso

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P E I R C E , C . S . - I deaIs of c o n d u c t . Trad . e in trod . de I v o A s sad I b r i . T ra n s / F o r m / A ç ã o , São Paulo,
8 : 79-95 , 1 98 5 .

t e r b o a razão , no e n t a n t o , d e c h a m á - l o d u r o ; porq u e a l g u m fato real ocorre u , de tal


modo que a Razão compele-me a fazê - l o , e uma idéia geral de todos os fatos do caso
pode apenas ser fo rmada se e u o chamo assi m . N este caso, chamá-lo duro é u m evento
real governado pela l e i d a d u reza do pedaço d e carború n d i o . Mas se não ho uvesse ne­
nhum fato real que fosse expressivo por d izer que o pedaço de c a r b o r ú n d i o era d u r o ,
n ã o h a v e r i a o m e n o r s i g n i ficado na p a l a v r a d u r o , c o m o a ele a p l i c a d a . O p r ó p r i o ser
d o Geral, d a Razão, c o n s i s te n o fato d e governar eventos i n d i v i d u a i s . A s s i m , então, a
essência da R azão é tal q u e seu ser n u nca pode ser com pletamente perfe i t o . E l e deve es­
tar em u m estado d e i n c i p i ê n c i a , de cresc i m e n to . É como o caráter d e u m homem , q u e
c o n s i s t e nas i d é i a s q u e ele i r á conceber e n o s esforços q u e ele f a r á , e q u e apenas se d e ­
senvolve q ua n d o s u rgem ocasiões rea i s . P o i s e m t o d a s u a v i d a , n e n h u m f i l h o de Adão
j am a i s m a n i festou plenamen te o que havia nele. A s s i m , então, o desenvo l v i m ento da
R azão req u e r , como uma parte dela, a ocorrência de mais eventos i n d i v i d u a i s do q u e
c o n t i n u a m e n t e p o s s a ocorre r . E l a req u e r , ta m b é m , t o d a a colocação de t o d a s as q u a l i ­
dades d e s e n t i m e n t o , i n c l u i n d o o p razer em seu l ugar p r ó p r i o entre o resta n t e . Este d e ­
senvol v i m en t o da Razão c o n s i s t e , v o c ê observará, na incorporação, i s t o é , na m an i fes­
tação . A c riação do u n i v e r s o , que não ocorreu d u rante certa semana atarefada d o ano
4004 a . c . , m a s está em curso hoj e , e n u nca i r á estar pronta, é este próprio desen v o l v i ­
mento da Razão . E u não posso ver c o m o alguém possa ter u m ideal m a i s s a t i s fatório
do ad m i rável q u e o desen v o l v i m ento da Razão a s s i m entend i d o . A ú n ica coisa cuja ad­
m i r a b i l i d a d e não é devida a uma razão além , é a p r ó p r i a Razão , c o m p reendida em toda
sua p l e n i t u d e , tanto q ua n t o possamos c o m p reendê- I a . Sob esta concepção, a idéia de
c o n d u ta será exec u t a r nossa pequena função na operação da criação por dar uma con­
t r i b u ição para tornar o m u n d o m a i s razoá vel , sempre q ue estiver ao nosso alcance fazê­
lo. E m lógica, será observado que c o n h e c i m e n t o é razoa b i l id a d e ; e o ideal do ra­
c i o c í n i o será seg u i r os métodos que devem desenvolver o c o n h e c i m e n t o o mais rapida­
men te . . .

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