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Um quarto de um hospício. Uma mulher idosa, talvez com 107 anos, faz tricot numa
cadeira de baloiço. Está vestida com um casaco muito comprido, usa uma touca preta e
tem óculos garrafais. Durante bastante tempo só a vemos a tricotar. O tempo suficiente
A velha grita de novo. Tapa os ouvidos – Não!! Não! Eles não!! Estou farta de aqui
estar e ainda por cima eles vêm chatear-me? até aqui!! Deixem-me em paz.
Os bisnetos – Avozinha, então? Aqui no hospício está-se tão bem. Tem atenção o dia
todo.
A velha – Tenho atenção, tenho atenção. Tenho a atenção da cadeira de baloiço e das
agulhas de tricot. Façam de conta que estão em vossa casa. Assim como assim estão
sempre a aparecer aqui. E ainda para mais gritam-me tão alto porquê? Acham que sou
velha! E ainda dizem que é o meu aniversário. No natal é o meu aniversário. É porque
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eu marquei essa data no calendário. De outra forma queria ver. E chamam-me avozinha
dezembro. Canalhas.
Os bisnetos – Uma família assim tão unida é uma coisa rara. Estamos contentíssimos
A velha – Sim. Tanta coisa boa que fazem. Uma boa tarde. Uma boa comida. Uma boa
broa. Tanta boa coisa boa. Humpf. No resto do ano ninguém me liga nenhuma. Apenas
sabem que existo. Eu sou a distante. Conhecem? Aquela que ninguém visita nunca.
Aquela que se abraça longe dos dentes para não sentir o hálito. Aquela a quem todos
preferem escrever. Mas o Natal muda tudo. É tão bonito. Canta. A brasa acabou tudo
Os bisnetos – Avozinha não cantes essas coisas. São um disparate. Tens cada uma.
A velha – Canto. Canto e canto. Vocês nunca me deixaram cantar. E eu até sou boa a
fazer letras. Canta. Nós semos as bráboletas das ásas pretas da fita azulíiiiiii, avoemos
Escrever letras e fazer tricot. É tudo o que eu posso fazer com dignidade. É muito
convidarem. “Nós queremo-la esta noite”, “Não, somos nós que a vamos ter connosco”,
“Nós vimos busca-la amanhã ao meio-dia”. Os vencedores levam-me para o sítio deles,
como se eu fosse um copo de água frágil e precioso… abanam-me de tal maneira que eu
pergunto-me se são eles que me amparam ou se sou eu que os levo ao colo. Tenho
direito a dois bonés, a dois tampões de ouvidos, o número dois tornou-se a lei que me
rege. Quando eu digo que o Natal muda tudo eles ficam muito atenciosos “mais um
papelote avozinha?” “sirva-se de mais, tire logo dois”. Eu como bastantes papelotes
deles, fígado cozido, estômago cozido, depois intestino grosso cozido. Sofro do coração.
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Eu engulo até à minha trigésima oitava bola de Berlim com creme. Pausa. O que
A velha – Está quase pronta a comida. Para já ponha este babete para não se sujar nem
babar a roupa. Também faz de guardanapo e é muito bonito. Tem flores verdes e
laranjas como a avozinha tanto gosta. Nunca gostei de nada disso. E não me serve para
nada. Eu babo de propósito para vos enojar. Seus arrogantes pretensiosos. Nenhum de
vocês vai chegar perto da minha idade. 107 anos e rija ainda. Todos os natais impõem-
A velha – Só me faltavas tu. Eu não quero sopa nenhuma. Não gosto de sopa. Quero
uma coxa. Uma coxa de frango assado ou uma coxa de perdiz. Mas aí é melhor serem
duas. E lavem-me a placa. Eu sei que a partilho mas hoje sabe-me a pastéis de nata e eu
não gosto nada de pastéis de nada por isso foi outra pessoa que os comeu com a minha
placa. E escusam de estar a dizer : oh, um copo, oh um cuver, oh, uma garrafa, oh, oh,
ohhhh.
Neto – aqui está a sua carne picada avozinha. Os seus dentes não dão para comer uma
coxa de nada.
gengiva… O que me faz falta mesmo são os ossos. Qualquer coisa para roer. Qualquer
coisa com cartilagem que faça crack crock. Até uma espinha de peixe me dava prazer.
Mas está tão longe a mesa para mim, não chego à espinha do peixe. E também os ossos.
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É impossível chegar-lhes. Pausa. E quem diria que ali ao fundo está uma cadeirinha
livre a provocar-me. Uma cadeirinha que é só isso, nada mais do que uma cadeirinha,
com um tecidinho amoroso. Pausa. Ah, a família. Que coisa maravilhosa que é a
família. Sempre preocupados todos connosco. Porquê que nos fazem promessas que não
podem cumprir? Ah, amanhã. Oh, depois de amanhã. Uh, para a semana sem falta.
Pausa. Oh, lenços. Chegou a hora dos presentes??? É? E os postaizinhos com votos de
presentes são idênticos todos os anos. Oh, lenços. É exatamente o que eu estava a
precisar. É que só tenho 85 dúzias deles. Oh, uma grande caixa com uma fita enorme à
volta. Deve ser uma grande surpresa. Pausa. É mesmo para mim?
A velha – Oh, não era preciso preocuparem-se. A sério. Tenho horror de gatos. São
A velha – São piores. Não toleram ordens. São desobedientes. E estão sempre a fazer
A velha – Está contente avozinha? Não vai ficar sozinha nunca mais! Vai ver, é uma
grande companhia. Pausa. E então, vamos ver as fotografias? O álbum onde não
conheço ninguém? Gente que nunca vi enquanto estava em casa? Antes de vir para aqui
A velha – Mas está a ver, aqui no hospício pode fazer o que lhe apetece que ninguém
leva a mal. Nem sequer ligam nenhuma. Num lar estavam sempre a ralhar consigo por
causa da baba, do xixi na cama…Pausa. Eu era como a outra. A minha vida era um
conto de fadas. Quando nasci uma fada boa providenciou que eu seria bela e bondosa.
Apareceu uma fada má, a seguir, que me deu a maldição de crescer com muito bom
gosto, gostos caros, e tesa que nem uma carapau para não poder chegar a eles. Pausa.
Canta. “Estou fazendo amor com oito pessoas”, “Um é pouco, doze é bom, treze é
demais”
A velha – Ai ai ai, mijei-me toda agora. Que grande merda. Pausa. Eu gosto muito da
beleza. Eu sei que uma coisa é bela quando choro ao vê-la. É preciso ter uma certa idade
para perceber isso. Olha. Agora caiu-me uma malha. Ri e chora ao mesmo tempo. Eu
A famíla – Avozinha, assim é que vão pensar que está mesmo maluquinha de todo. A
A velha – Ai não? Não tinha? Tinha e ainda tenho. Não se me partem os ossos. Simula
um striptease.
A velha – Eu tenho direito a experimentar. Nós temos isso em comum com as crianças.
Poibida. É uma palavra que eles adoram no hospício. É proibido dar de comer aos
pássaros. É proibido trazer vinho para o quarto. É proibido usar o nome de casada.
Fazem tudo para nos fazer voltar á infância. Ente os “proibidos” do princípio e do fim,
passei a minha vida toda excomungada. Faz “aquele” gesto com os dedos.
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A velha – É porco mas é vivo. Olha eles todos a olharem para mim. São mesmo parvos.
Ficaram chateados. Amanhã vão fazer uma reclamação ao hospício. E depois o hospício
chateia-me. Proíbe-me. E eles “ah aqui podes estar à vontade, ninguém te chateia”,
ninguém me chateia, ninguém me chateia, humpf. Roubam, como nos lares. Só que aqui
se nós dissermos ou fizermos queixa dizem que somos doidas varridas. E se um de nós
vai para o hospital um dia, quando voltamos já não temos o nosso quarto com as nossas
misturadas com gente do piorio. Alguns até estão amarrados. E se alguma de nós morre
e não tem parentes, vem logo alguém que diz que nos conhece para nos levar as coisas
poucas que temos. Que lindo é viver no hospício. O diretor espera-me, severo, furioso.
Eu fi-lo perder tempo. “pensionária nº 4, devia ter revisto a sua lição sobre como rir”,
mas senhor diretor eu não tenho motivos para rir, “é preciso prever para ter”. Durante
uma semana, vão privar-me do batom cor-de-rosa, e durante outra semana vão obrigar-
me a vigiar-me. Se eu recusar educadamente talvez lhes pareça que estou e sou normal.
Se eu continuar a contar as escadas de dois em dois quando tenho bastante tempo livre,
de quatro em quatro quando tenho pressa e de seis em seis se há fogo, estarei conforme?
Quando vou à Segurança Social buscar a reforma, é a porta 213. Tem escadas. Ali não
corro riscos. Estou sozinha. Dizem que é melhor esperar pela reforma para viajar e
usufruir da vida. Mas agora, reformada, não tenho energia para viajar, a reforma não
chega para viajar, estou cansada muitas vezes, perdi tanto tempo a pensar no futuro que
não vivi o presente. E a vida passou. Todos os anos, quando chega o Natal, é mais um
ano em que faço anos. Agora sei que é preciso combate-los. Grande erro confiarmos
neles. Eles pensam que se livram de mim reduzindo-me a uma cadeira e tricot. Mas não
quero morrer antes de ter percebido o barulho do silêncio. Não quero morrer antes de ter
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veneno nas salas de São Bento, ter matado os ratos que brindam. Pausa. Aos velhos só
dão o direito a estarem calados. Se eu decidi acordar todas as manhãs, se aceitei viver
suicidar – coisa que até os outros animais fazem – é porque quero continuar cá. Viver é
aceitarmos os nossos medos. Que temos medo. Eu escolhi os meus medos. O meu
medo.
A família – O café está servido, todos para a sala. Maria, acenda a televisão. Já
perdemos a missa do galo mas eles fazem um compacto. É maravilhoso o tempo em que
vivemos. Podem ver mais tarde nos tablets e nos smartphones. Não partam as chávenas.
Elas têm que estar intactas no Natal do próximo ano. Eu estou tão cheio/cheia. Eu
também. As tostas com foie gras estavam…. Hummm. E o perú? Bem….Enfim, estava
tudo tão bom. Parabéns ao cozinheiro. Um enorme bravo à dona da casa. Aplausos.
A velha – Feliz Natal, feliz natal. Eu é que estou para aqui e vocês é que fazem asneira
da grande como quando o vosso tio cego estava a jantar lá em casa, foi à casa de banho
e eu fui a única que se lembrou de acender a luz do corredor para ele não ir às escuras.
um vestido todos os meses. Nova coleção. Novos sapatos. Nova maquilhagem. Novo
penteado. E eu ficava boa com’ó milho. Um dia, dei por mim, e nem me lembro
quando, deixei de me arranjar. Já não ligava. Não sei o que aconteceu. Trauteia
enquanto vai tirando a roupa de velha. Beija uma, beija duas, beija-me 3 vezes. Há
tanto tempo que espero por ti. Beija uma, beija duas, beija-me 3 vezes há tanto tempo
que estou aqui. Quando termina de tirar a roupa de velha fica o ator.
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Comprava uma roupa nova todos os meses. Nova coleção. Novos sapatos. Novo corte
de cabelo. Saía. Elegante. Gostava de me sentir assim. E eu ficava bom com’ó milho.
Um dia, dei por mim, e nem me lembro quando, deixei de me arranjar. Já não ligava.
Não sei o que aconteceu. Trauteia enquanto se vê ao espelho. Beija uma, beija duas,
beija-me 3 vezes. Há tanto tempo que espero por ti. Beija uma, beija duas, beija-me 3
vezes há tanto tempo que estou aqui. Dança enquanto sai. Beija uma fotografia. Feliz
Natal Avozinha!
FIM