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Feliz Natal Avozinha

© Bruno Schiappa – inspirado no espetáculo de 1984 com Ivone Silva

Um quarto de um hospício. Uma mulher idosa, talvez com 107 anos, faz tricot numa

cadeira de baloiço. Está vestida com um casaco muito comprido, usa uma touca preta e

tem óculos garrafais. Durante bastante tempo só a vemos a tricotar. O tempo suficiente

para incomodar o público. Não se passa nada. De repente ouve-se em off:

Bisneta – Olá avozinha!

A velha grita de susto.

Bisneto – Olá avozinha!

A velha grita de susto.

Os dois bisnetos – Então avozinha?

A velha grita de novo. Tapa os ouvidos – Não!! Não! Eles não!! Estou farta de aqui

estar e ainda por cima eles vêm chatear-me? até aqui!! Deixem-me em paz.

Os bisnetos – Avozinha, então? Aqui no hospício está-se tão bem. Tem atenção o dia

todo.

A velha – Tenho atenção, tenho atenção. Tenho a atenção da cadeira de baloiço e das

agulhas de tricot. Façam de conta que estão em vossa casa. Assim como assim estão

sempre a aparecer aqui. E ainda para mais gritam-me tão alto porquê? Acham que sou

surda? Falam-me mesmo ao pé da orelha e ainda assim gritam como se eu estivesse

velha! E ainda dizem que é o meu aniversário. No natal é o meu aniversário. É porque
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eu marquei essa data no calendário. De outra forma queria ver. E chamam-me avozinha

dezembro. Canalhas.

Os bisnetos – Uma família assim tão unida é uma coisa rara. Estamos contentíssimos

por estar consigo avozinha.

A velha – Sim. Tanta coisa boa que fazem. Uma boa tarde. Uma boa comida. Uma boa

broa. Tanta boa coisa boa. Humpf. No resto do ano ninguém me liga nenhuma. Apenas

sabem que existo. Eu sou a distante. Conhecem? Aquela que ninguém visita nunca.

Aquela que se abraça longe dos dentes para não sentir o hálito. Aquela a quem todos

preferem escrever. Mas o Natal muda tudo. É tão bonito. Canta. A brasa acabou tudo

com a sardinha e foi ter com o carapau!

Os bisnetos – Avozinha não cantes essas coisas. São um disparate. Tens cada uma.

A velha – Canto. Canto e canto. Vocês nunca me deixaram cantar. E eu até sou boa a

fazer letras. Canta. Nós semos as bráboletas das ásas pretas da fita azulíiiiiii, avoemos

em volta das lêmpedas, queimemos as ásas nã podemos avoáriiiiiiiiiiii.. Pronto. Cantar.

Escrever letras e fazer tricot. É tudo o que eu posso fazer com dignidade. É muito

disputado ter uma avó na noite de consoada. As famílias debatem-se para me

convidarem. “Nós queremo-la esta noite”, “Não, somos nós que a vamos ter connosco”,

“Nós vimos busca-la amanhã ao meio-dia”. Os vencedores levam-me para o sítio deles,

como se eu fosse um copo de água frágil e precioso… abanam-me de tal maneira que eu

pergunto-me se são eles que me amparam ou se sou eu que os levo ao colo. Tenho

direito a dois bonés, a dois tampões de ouvidos, o número dois tornou-se a lei que me

rege. Quando eu digo que o Natal muda tudo eles ficam muito atenciosos “mais um

papelote avozinha?” “sirva-se de mais, tire logo dois”. Eu como bastantes papelotes

deles, fígado cozido, estômago cozido, depois intestino grosso cozido. Sofro do coração.
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Eu engulo até à minha trigésima oitava bola de Berlim com creme. Pausa. O que

acontece é que estou cheia de fome. É tudo.

Os bisnetos – Um bocadinho de paciência avozinha.

A velha – Está quase pronta a comida. Para já ponha este babete para não se sujar nem

babar a roupa. Também faz de guardanapo e é muito bonito. Tem flores verdes e

laranjas como a avozinha tanto gosta. Nunca gostei de nada disso. E não me serve para

nada. Eu babo de propósito para vos enojar. Seus arrogantes pretensiosos. Nenhum de

vocês vai chegar perto da minha idade. 107 anos e rija ainda. Todos os natais impõem-

me uma colher e um babete em vez de um garfo.

Neto – Aqui vem a sopinha avozinha. Está tão boa. Hummm.

A velha – Só me faltavas tu. Eu não quero sopa nenhuma. Não gosto de sopa. Quero

uma coxa. Uma coxa de frango assado ou uma coxa de perdiz. Mas aí é melhor serem

duas. E lavem-me a placa. Eu sei que a partilho mas hoje sabe-me a pastéis de nata e eu

não gosto nada de pastéis de nada por isso foi outra pessoa que os comeu com a minha

placa. E escusam de estar a dizer : oh, um copo, oh um cuver, oh, uma garrafa, oh, oh,

ohhhh.

Neto – aqui está a sua carne picada avozinha. Os seus dentes não dão para comer uma

coxa de nada.

A velha – Infelizmente. Seus lambe-botas. Deixem-me em paz com os meus dentes. Se

já não posso mastigar, gengivo, do verbo gengivar, eu gengivo tu gengivas ele

gengiva… O que me faz falta mesmo são os ossos. Qualquer coisa para roer. Qualquer

coisa com cartilagem que faça crack crock. Até uma espinha de peixe me dava prazer.

Mas está tão longe a mesa para mim, não chego à espinha do peixe. E também os ossos.
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É impossível chegar-lhes. Pausa. E quem diria que ali ao fundo está uma cadeirinha

livre a provocar-me. Uma cadeirinha que é só isso, nada mais do que uma cadeirinha,

com cor de cadeirinha, cheiro de cadeirinha, ar de cadeirinha, com as costas vestidinhas

com um tecidinho amoroso. Pausa. Ah, a família. Que coisa maravilhosa que é a

família. Sempre preocupados todos connosco. Porquê que nos fazem promessas que não

podem cumprir? Ah, amanhã. Oh, depois de amanhã. Uh, para a semana sem falta.

Pausa. Oh, lenços. Chegou a hora dos presentes??? É? E os postaizinhos com votos de

saúde e felicidade? Não? É muito importante fazer um ar de surpresa. Mesmo se os

presentes são idênticos todos os anos. Oh, lenços. É exatamente o que eu estava a

precisar. É que só tenho 85 dúzias deles. Oh, uma grande caixa com uma fita enorme à

volta. Deve ser uma grande surpresa. Pausa. É mesmo para mim?

A família – Sim avozinha. A velha grita. É um gatinho avozinha.

A velha – Oh, não era preciso preocuparem-se. A sério. Tenho horror de gatos. São

medonhos, inquietos, assustam a nossa saúde, dançam a valsa.

A família – Mas não é um gato avozinha. É um gatinho.

A velha – São piores. Não toleram ordens. São desobedientes. E estão sempre a fazer

ron ron niau niau

A família – As festas fazem-se no pescoço avozinha, não na cauda.

A velha – Está contente avozinha? Não vai ficar sozinha nunca mais! Vai ver, é uma

grande companhia. Pausa. E então, vamos ver as fotografias? O álbum onde não

conheço ninguém? Gente que nunca vi enquanto estava em casa? Antes de vir para aqui

para este hospício? Porquê que não me puseram num lar?

A família – Vá lá avozinha, não comece com essas coisas.


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A velha – Mas está a ver, aqui no hospício pode fazer o que lhe apetece que ninguém

leva a mal. Nem sequer ligam nenhuma. Num lar estavam sempre a ralhar consigo por

causa da baba, do xixi na cama…Pausa. Eu era como a outra. A minha vida era um

conto de fadas. Quando nasci uma fada boa providenciou que eu seria bela e bondosa.

Apareceu uma fada má, a seguir, que me deu a maldição de crescer com muito bom

gosto, gostos caros, e tesa que nem uma carapau para não poder chegar a eles. Pausa.

Canta. “Estou fazendo amor com oito pessoas”, “Um é pouco, doze é bom, treze é

demais”

A família – Treze SÃO demais avozinha.

A velha – Ai ai ai, mijei-me toda agora. Que grande merda. Pausa. Eu gosto muito da

beleza. Eu sei que uma coisa é bela quando choro ao vê-la. É preciso ter uma certa idade

para perceber isso. Olha. Agora caiu-me uma malha. Ri e chora ao mesmo tempo. Eu

devia era ter sido stripper.

A famíla – Avozinha, assim é que vão pensar que está mesmo maluquinha de todo. A

avozinha tinha lá físico para isso.

A velha – Ai não? Não tinha? Tinha e ainda tenho. Não se me partem os ossos. Simula

um striptease.

A família – Está proibida de fazer isso, avozinha.

A velha – Eu tenho direito a experimentar. Nós temos isso em comum com as crianças.

Poibida. É uma palavra que eles adoram no hospício. É proibido dar de comer aos

pássaros. É proibido trazer vinho para o quarto. É proibido usar o nome de casada.

Fazem tudo para nos fazer voltar á infância. Ente os “proibidos” do princípio e do fim,

passei a minha vida toda excomungada. Faz “aquele” gesto com os dedos.
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A família – Isso é porco, avozinha.

A velha – É porco mas é vivo. Olha eles todos a olharem para mim. São mesmo parvos.

Ficaram chateados. Amanhã vão fazer uma reclamação ao hospício. E depois o hospício

chateia-me. Proíbe-me. E eles “ah aqui podes estar à vontade, ninguém te chateia”,

ninguém me chateia, ninguém me chateia, humpf. Roubam, como nos lares. Só que aqui

se nós dissermos ou fizermos queixa dizem que somos doidas varridas. E se um de nós

vai para o hospital um dia, quando voltamos já não temos o nosso quarto com as nossas

coisas. Mudam-nos para um dormitório. Uma camarata com beliches e ficamos

misturadas com gente do piorio. Alguns até estão amarrados. E se alguma de nós morre

e não tem parentes, vem logo alguém que diz que nos conhece para nos levar as coisas

poucas que temos. Que lindo é viver no hospício. O diretor espera-me, severo, furioso.

Eu fi-lo perder tempo. “pensionária nº 4, devia ter revisto a sua lição sobre como rir”,

mas senhor diretor eu não tenho motivos para rir, “é preciso prever para ter”. Durante

uma semana, vão privar-me do batom cor-de-rosa, e durante outra semana vão obrigar-

me a vigiar-me. Se eu recusar educadamente talvez lhes pareça que estou e sou normal.

Se eu continuar a contar as escadas de dois em dois quando tenho bastante tempo livre,

de quatro em quatro quando tenho pressa e de seis em seis se há fogo, estarei conforme?

Quando vou à Segurança Social buscar a reforma, é a porta 213. Tem escadas. Ali não

corro riscos. Estou sozinha. Dizem que é melhor esperar pela reforma para viajar e

usufruir da vida. Mas agora, reformada, não tenho energia para viajar, a reforma não

chega para viajar, estou cansada muitas vezes, perdi tanto tempo a pensar no futuro que

não vivi o presente. E a vida passou. Todos os anos, quando chega o Natal, é mais um

ano em que faço anos. Agora sei que é preciso combate-los. Grande erro confiarmos

neles. Eles pensam que se livram de mim reduzindo-me a uma cadeira e tricot. Mas não

quero morrer antes de ter percebido o barulho do silêncio. Não quero morrer antes de ter
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mutilado todos os braços direitos, pintado de preto as eminências cinzentas, posto

veneno nas salas de São Bento, ter matado os ratos que brindam. Pausa. Aos velhos só

dão o direito a estarem calados. Se eu decidi acordar todas as manhãs, se aceitei viver

com todo o desgosto que há em mim, se todos os dias decido esquecer-me de me

suicidar – coisa que até os outros animais fazem – é porque quero continuar cá. Viver é

aceitarmos os nossos medos. Que temos medo. Eu escolhi os meus medos. O meu

medo.

A família – O café está servido, todos para a sala. Maria, acenda a televisão. Já

perdemos a missa do galo mas eles fazem um compacto. É maravilhoso o tempo em que

vivemos. Podem ver mais tarde nos tablets e nos smartphones. Não partam as chávenas.

Elas têm que estar intactas no Natal do próximo ano. Eu estou tão cheio/cheia. Eu

também. As tostas com foie gras estavam…. Hummm. E o perú? Bem….Enfim, estava

tudo tão bom. Parabéns ao cozinheiro. Um enorme bravo à dona da casa. Aplausos.

Aplausos a ela. Aplau – ela – a – sos. Feliz Natal Avozinha.

A velha – Feliz Natal, feliz natal. Eu é que estou para aqui e vocês é que fazem asneira

da grande como quando o vosso tio cego estava a jantar lá em casa, foi à casa de banho

e eu fui a única que se lembrou de acender a luz do corredor para ele não ir às escuras.

Pausa. Eu gostava de me arranjar. Até aos 45 anos eu gostava de me arranjar. Comprava

um vestido todos os meses. Nova coleção. Novos sapatos. Nova maquilhagem. Novo

penteado. E eu ficava boa com’ó milho. Um dia, dei por mim, e nem me lembro

quando, deixei de me arranjar. Já não ligava. Não sei o que aconteceu. Trauteia

enquanto vai tirando a roupa de velha. Beija uma, beija duas, beija-me 3 vezes. Há

tanto tempo que espero por ti. Beija uma, beija duas, beija-me 3 vezes há tanto tempo

que estou aqui. Quando termina de tirar a roupa de velha fica o ator.
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O ator – Eu gostava de me arranjar. Até aos 45 anos eu gostava de me arranjar.

Comprava uma roupa nova todos os meses. Nova coleção. Novos sapatos. Novo corte

de cabelo. Saía. Elegante. Gostava de me sentir assim. E eu ficava bom com’ó milho.

Um dia, dei por mim, e nem me lembro quando, deixei de me arranjar. Já não ligava.

Não sei o que aconteceu. Trauteia enquanto se vê ao espelho. Beija uma, beija duas,

beija-me 3 vezes. Há tanto tempo que espero por ti. Beija uma, beija duas, beija-me 3

vezes há tanto tempo que estou aqui. Dança enquanto sai. Beija uma fotografia. Feliz

Natal Avozinha!

FIM

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