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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

ANAIS
Maria do Socorro Silva de Aragão
Paulo Aldemir Delfino Lopes
[Organizadores]

João Pessoa
2019
COORDENAÇÃO GERAL
Dr.ª Maria do Socorro Silva de Aragão (UFPB)
Dr. Damião Ramos Cavalcanti (UFPB)
Dr.ª Neide Medeiros Santos (UFPB)
Dr.ª Ivone Tavares de Lucena (UFPB)
Me. Paulo Aldemir Delfino Lopes (UEPB)
Dr.ª Ana Cristina Marinho Lucio (UFPB)
Esp. Ana Isabel de Souza Leão Andrade (UFPB)

COMISSÃO CIENTÍFICA
Dr. Roberto Sarmento Lima (UFAL)
Dr. Cristiano Cezar Gomes da Silva (UNEAL)
Dr.ª Maria Elias Soares (UFC)
Dr.ª Sonia Maria van Dijck Lima (UFPB)
Dr.ª Josete Marinho de Lucena (UFPB)

EQUIPE DE TRABALHO
Prof.ª Dr.ª Maria do Socorro Silva de Aragão
Prof.ª Dr.ª Neide Medeiros Santos
Prof.ª Esp. Ana Isabel de Souza Leão Andrade
Prof.ª Dr.ª Ivone Tavares de Lucena
Prof.ª Dr.ª Ana Cristina Marinho Lúcio
Prof.ª Dr.ª Josete Marinho de Lucena
Prof.ª Dr.ª Marinalva Freire da Silva
Prof. Me. Paulo Aldemir Delfino Lopes
João Paulo Rocha
Todos os textos são de inteira responsabilidade de seus respectivos autores.

Capa / Diagramação:
Paulo Aldemir Delfino Lopes
pauloadl@hotmail.com

E86 Caminhos e Veredas de Graciliano Ramos – Anais do IV Congresso


Nacional de Literatura: IV CONALI. ARAGÃO, Maria do Socorro
Silva de; LOPES, Paulo Aldemir Delfino (Orgs.). João Pessoa:
Mídia Gráfica e Editora Ltda., 2019.

1665p.

ISBN: 978-85-7320-158-1
Literatura Brasileira – Ramos, Graciliano.
CDU: 869.0

Mídia Gráfica e Editora Ltda.


midiaed@gmail.com
Impresso no Brasil – Feito o Depósito Legal
ISBN: 978-85-732-0158-1

A POESIA CARNAVALIZADA DE HILDA HILST

Anderson Felix dos Santos


(UFPE)

Introdução

Hilda Hilst começou a escrever poesia aos dezoito anos e aos vinte lançou seu primeiro
livro, Presságio (1950). Elogiada por Cecília Meireles e críticos da época Hilda publicou seus
livros de poesia até 1966, quando inspirada pelo livro Carta a el Greco de Nikos Kazantzákis
decidiu refugiar-se em uma casa colonial que construiu na propriedade de sua mãe no interior de
Campinas, batizada como Casa do Sol. Foi ali que a poetisa passou a trabalhar mais
intensamente em seus textos enquanto seu, então marido, Dante, esculpia.
Longe da vida boêmia de São Paulo, a autora enveredou pela dramaturgia escrevendo
oito peças de teatro, entre elas O Verdugo (1969), vencedora do Premio Anchieta de Teatro.
Estreou em 1970 na prosa ficcional com o livro Fluxo-Floema e publicou então diversos livros,
entre prosa e poesia.
Apesar de ter sido constante e amplamente elogiada e premiada pela critica, sendo
considerada uma das maiores vozes da literatura em língua de expressão portuguesa, Hilda Hilst
não era lida ou compreendida pela massa, seus livros não vendiam e eram mal distribuídos. A
grande frustração de sua vida era o pouco reconhecimento do público pela sua obra, ela queria
se comunicar, pedia contato através de seus textos, mas aparentemente, do outro lado, ninguém
a ouvia.
Inicia-se assim a tetralogia pornográfica da autora composta pelos livros em prosa O
Caderno Rosa de Lori Lamby (1990), Contos D‘Escarnio/Textos Grotescos (1990), Cartas de
um Sedutor (1991); e o volume de poesia Bufólicas (1992), coroado com ilustrações do Jaguar.
O contexto de produção dessa leva de poemas hilstianos é peculiar. Cansada de ser ignorada
pelo publico e das constantes discussões com editores, Hilda despediu-se da literatura dita séria
e prometeu escrever literatura pornográfica, visando mais vendas e comercialização de seus
livros.
Nesse período foi tida como louca, críticos revogaram seus elogios e sobre ela avultaria
desde então o rótulo de pornográfica. Tampouco essa ação a traria o reconhecimento merecido.
Faleceu em 2004, pouco depois de ter os direitos de sua obra adquirida pela Globo Livros.
Atualmente é publicada pela Companhia das Letras, que se dedica a publicação de volumes que
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reúnem sua obra completa. Confirmando sua importância para a literatura e sua permanência no
tempo, Hilda Hilst é a autora homenageada da FLIP – Festa Literária Internacional de Paraty em
2018.

O riso como carnaval

O volume de poesia Bufólicas (1992) reúne sete poemas que correspondem a paródias,
com as personagens oriundas de contos de fadas carnavalizados e morais satirizadas de fábulas.
Ainda seu título faz alusão ao gênero lírico pastoril, bucólica, e ao termo bufão, de cômico
popular. O historiador francês Georges Minois aponta que a figura do bufão era comum na
Grécia antiga, onde participava das tradições religiosas: ―os indivíduos, em cima de carroças,
caçoavam e provocavam os passantes‖ (MINOIS, 2003, p. 55). Eram eles que divertiam os
convidados em banquetes.
De acordo com Mikhail Bakhtin (2013) no livro A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento, a cultura cômica popular pode ser dividida em três grandes categorias, são elas:
ritos e espetáculos que carnavalizam os ideais da igreja e compreende também as obras cômicas
encenadas em praça pública; as obras cômicas verbais, que inclui as paródias e semiparódias,
orais ou escritas; e por fim, as diversas formas do vocabulário familiar e grosseiro que
simbolizam a intimidade do uso frequente de grosserias e palavras injuriadas, principalmente as
grosseiras blasfematórias. Nas Bufólicas, de Hilda Hilst, especialmente nos dois poemas nos
quais nos deteremos, apresentam-se fortemente essas categorias, regidas pelo princípio do
ambivalente, do realismo grotesco e do riso.
Essas categorias estão intimamente ligadas aos festejos de carnaval, onde a divisão entre
a seriedade da vida social e a celebração da carne se tornava inexistente, como aponta Bakhtin
(2013): ―carnaval não era uma forma artística de espetáculo teatral, mas uma forma concreta
(embora provisória) da própria vida, que não era simplesmente representada no palco, antes,
pelo contrário, vivida enquanto durava o carnaval‖ (BAKHTIN, 2013, p. 6). Era como se assim
surgisse uma realidade paralela, distinta dos ideais da igreja, do Estado e da moral, para que o
povo vivesse sem contenções suas cerimônias. Essa realidade não é regida por nenhum principio
mágico ou religioso, festejando a fertilidade e o exagero, o riso e a liberdade do povo
renascentista. O carnaval recupera riso para festeja-lo com o povo.
Por sua vez, o século XX, contexto de publicação do livro de Hilda Hilst, é marcado pela
morte do riso, uma morte por overdose. De acordo com Minois, ―o homem riu de tudo, dos
deuses, dos demônios e, sobretudo, de si mesmo‖ (MINOIS, 2003, p. 553). Portanto, a escrita
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dessa série de poemas por Hilda Hilst pode ser entendida, ao mesmo tempo, como uma
continuação desse pensamento, uma vez que a autora recupera personagens que são,
frequentemente, remetidos à tradição infantil e à instrução moral, logo, que não pode ser
satirizado, mas também como uma insurgência quanto à degradação do riso, ou seja, somente
pelo grotesco e pela sátira é possível realizar um ato de resistência.
O teórico Alfredo Bosi (2000) esclarece que a sátira e a paródia são uma das faces da
resistência, e argumenta: ―O lugar de onde se move a sátira é, claramente, um topos negativo: a
recusa aos costumes, à linguagem e aos modos de pensar correntes‖ (BOSI, 2000, p. 191). Esse
é o papel que a poetisa executa nesses poemas, ao se apropriar das personagens de contos de
fadas insurge contra o real por meio da paródia.
Linda Hutcheon (1985) em Uma teoria da paródia observa que o interesse
contemporâneo por esse gênero surgiu do questionamento sobre a auto referência, configurando
assim uma das mais importantes formas de autorreflexão. A paródia de Hilda Hilst ultrapassa o
conservadorismo e propõe um novo modelo de reflexão. A teórica também aponta que a paródia
não pode ser explicada inteiramente por uma única corrente crítica, mas por várias, podendo
servir como modelo para interpelar o mundo moderno e compreendê-lo. No caso da cultura
popular e da carnavalização, a paródia não significa somente uma sátira, mas, a partir do humor
ambivalente – como as relações entre o divino e o profano, alto e baixo corporal, entre outros –
coloca-se de maneira a constatar a evolução do mundo.
Os personagens desses poemas narrativos são os tipos mais comuns nos contos de fada: a
bruxa, o anão, a fada, o rei, a rainha e até a chapeuzinho vermelho (mais precisamente uma
paródia da clássica personagem), dentre outros. Nesses poemas Hilda Hilst retoma uma
característica do humor na Idade Média, que é se valer do sexo, morte e religião para criticar e
fazer rir. Aqui nos deteremos sobre dois textos em particular: ―Filó, a fadinha lésbica‖ e ―O anão
triste‖.

A fada que reverbera

―Filó, a fadinha lésbica‖ é poema que encerra a série de sete poemas satíricos hilstianos.
O título é bastante sugestivo quanto à história a ser narrada: conta sobre uma lésbica fadinha,
pequena, gorda e peluda, que costuma se travestir para enganar mocinhas. Muito buliçosa, Filó
deixa uma marquinha de estrela em tudo que toca e faz a felicidade dos moradores da Vila do
Troço ao manter relações sexuais com todos eles. Outra particularidade da personagem é que o
fato de à noite nascer-lhe entre as pernas um bastão grosso, semelhante a um falo. Embora o

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cenário pareça bastante feliz, o gozo é rompido com o surgimento de um desconhecido


―troncudão‖ que sequestra a fada e deixa apenas o rastro de tristeza na vila.
A história aproxima o corpo de Filó do corpo masculino, gordo e peludo ―como a mão de
um mono‖, que se traveste, masculiniza-se e assume um caráter grotesco para o que comumente
assimila-se a uma fada. Esse tipo de realismo grotesco, que materializa e degrada está ligado ao
baixo corporal, mas também ao princípio festivo e abundante do carnaval. Paralelamente, esse
corpo grotesco simboliza a potência e a força da fada.
Tudo que Filó toca recebe uma marca colorida, ―Fúcsia, bordô / Ninguém sabia o nome
daquela cor‖ (HILST, 2002, p. 31). Sugestivamente as cores variam ao longo dos versos, mas
sempre próximos à cor vermelha, representando a volúpia e o prazer, o gozo de Filó, dos
moradores da Vila do Troço e até mesmo do sequestrador. Essas cores também podem ser
relacionadas aos órgãos genitais, principio da vida e do nascimento: mais uma vez a imagem é
ambivalente.
As fadas são criaturas, mitologicamente, ligadas à água e seu nome faz referência à
fatalidade e destino. De certa forma, a água está representada no nado do gigante, que a levava
para a ilha e seu destino é o tema da fábula, a fatalidade é representada pelo final triste dos
moradores da vila. As fadas são também criaturas que intervêm a favor dos humanos, que lhes
socorrem nas mais difíceis situações, basta lembrarmo-nos da fada da versão clássica de
Cinderela. A fada hilstiana assume duas facetas, por um lado, contrária a mitologia, afinal, uma
criatura que sempre ajuda e orienta, representando a bondade e a caridade, no texto de Hilst, se
traveste e engana mocinhas, por outro lado, realmente acode e traz felicidade, com seu falo
encantado, de cor misteriosa, que encanta os moradores da vida.
O bastão que cresce em Filó e assume a função do pênis que alegra os moradores, pode
ser interpretado como uma alusão à varinha de condão, famosa nas histórias de fada, é com ele
que Filó faz seus encantos. Outra leitura possível é a substituição da varinha de condão pela
mão, Filó é tátil, sedenta pelo tocar e deixa uma marca (lilás, fúcsia, bordô, ninguém sabia o
nome daquela cor) em tudo que tocava.
Ao final, Hilda Hilst resgata uma característica famosa das fábulas, a moral da história,
nesse caso duas. A primeira, referente à fadinha: ―Quando menos se espera, tudo reverbera‖
(HILST, 2002, p.35) a qual Silva (2009) em sua tese ―O Riso em espiral‖, interpreta como o
salvamento de Filó, afinal, é com o sequestrador que pela primeira vez na vida ela ―revira os
olhinhos‖, assim, teria encontrado o prazer maior. Porém, é também de repente que o gigante
aparece e a sequestra. A segunda moral diz respeito aos moradores da vila: ―Não acredite em
fadinhas. / Muito menos com cacete. / Ou somem feito andorinhas / Ou te deixam cacoetes‖
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(HILST, 2002, p.35). O final dos moradores não podia ser mais trágico, acabam sem aquela que
era motivo de sua felicidade.
É evidente que ao escolher Filó como protagonista dessa reinvenção, Hilda se apropria
da categoria das obras cômicas verbais paródias e semiparódias, sugerida por Bakhtin (2013),
assim como a categoria do vocabulário familiar e grosseiro, no que diz respeito às palavras de
calão e demais ousadias, legitimadas pelo carnaval. Do mesmo modo estão representadas
também as diversas manifestações do corpo material, do exagero e da ambivalência.

O anão em riste

O quinto poema da série Bufólicas é ―O anão triste‖, que conta a história de Cidão, um
anão com um falo descomunal, aqui evocamos mais uma vez a ideia do corpo grotesco, tão
grande, que não pode ser usado para lhe dar prazer, dessa forma o anão segue triste. Certo dia
resolve pedir a Deus, que este interceda por si, e lhe ―livre daquela estrovenga‖. O pedido é
atendido, embora não da forma imaginada pelo anão, que se vê sem membro algum, pois Deus
tirou-lhe tudo. Passava por ali um douto que questionou por que Cidão não detalhou melhor seu
pedido, ao que este contestou que para Deus ―qualquer dica é compreensão segura‖.
Bakhtin (2013) aponta que o conceito de exagero geralmente está relacionado à
fertilidade, crescimento, um conceito profundamente positivo. Porém o realismo grotesco é
permeado por uma ambivalência que rebaixa o plano positivo. Existe também uma inclinação a
associar tamanho a prazer e força, logo, Cidão deveria ser um sujeito bastante realizado,
entretanto, sua força é tão grande que se torna uma fraqueza, uma vez que ele não pode utilizá-
lo para sua satisfação sexual. Outro ponto que chama a atenção é o nome do personagem, Cidão,
é um aumentativo, curiosamente um ser diminuto tem um nome que lhe confere certa grandeza.
O corpo de Cidão, grotesco e exagerado, é justificado pelo realismo grotesco, onde as
imagens são exageradas e hipertrofiadas: ―No realismo grotesco, o elemento material e corporal
é um princípio profundamente positivo, que nem aparece sob uma forma egoísta, nem separado
dos demais aspectos da vida‖ (BAKHTIN, 2013, p. 17). Assim, são afirmados os conceitos de
fertilidade, abundancia e festejo do carnaval vivo e alegre.
Quanto à ambivalência encontrada, caracteriza-se por uma condição topográfica onde o
alto representa o plano espiritual e o baixo, o plano corporal. Embora o realismo grotesco
rebaixe e corporifique, a degradação do baixo corporal está relacionada ao espiritual. É o
rebaixamento do anão, a degradação e o grosseiro que é seu corpo que o liga com o plano divino
e superior.
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Assim como as fadas são lidas como criaturas ligadas a água, os anões são ligados á
terra, assim o personagem hilstiano senta-se numa pedra fria e preta, para fazer seu contato com
os céus. Existe a associação do plano material (o baixo), ligado ao cósmico (alto e espiritual)
que é esse Deus. Curiosamente, esse é um deus que castiga, portanto, mais uma vez apresenta-se
a ambivalência. Bakhtin (2013) observa que ―todas as outras formas do realismo grotesco que
rebaixam, aproximam da terra e corporifica. Essa é a qualidade essencial desse realismo, que
separa das demais formas ‗nobres‘ da literatura e da arte medieval‖ (BAKHTIN, 2013, 18). Ao
associar a figura do anão de um membro imenso com a terra e ainda o colocar sentado em uma
pedra para pensar Deus, destaca-se o principio topográfico do realismo grotesco, onde o baixo é
representado, não exclusivamente, pelos órgãos genitais e o ―alto‖ com o divino. Ainda assim,
essas imagens topográficas não estão dissociadas, mas em constante relação ambivalente onde
se degrada para fazer elevar.
Assim, são evocadas não apenas as categorias do vocabulário familiar e grosseiro e a da
paródia, mas, principalmente, a das obras cômicas verbais. O anão faz contato com Deus, ser
onipotente e onisciente, para o qual ―qualquer dica é compreensão segura‖, que por sua vez, não
é capaz de interpretar a mensagem, ou deliberadamente castiga Cidão, deixando-o tão triste
quanto no início do poema.
Observamos também a categoria do vocabulário familiar e grosseiro na forma como o
anão se coloca ao fazer contato com Deus, prometendo-lhe dinheiro para as suas igrejas em
troca de favores. Também não há nenhum pudor em colocar o nome de Deus, sacralizado pela
tradição, ao lado da imagem do anão de membro absurdo e narrado pelo vocabulário popular.

Considerações Finais

Observa-se nas Bufólicas hilstianas o rompimento com a ordem, onde o riso se une ao
grotesco para parodiar os contos de fadas e fábulas, subvertendo suas morais numa poesia de
sátira e escárnio trabalhada antes por grandes autores, como Gregório de Matos e François
Rabelais, entre outros. Como diz Minois na introdução de seu livro História do riso e do
escárnio ―o riso faz parte das respostas fundamentais do homem confrontado com sua
existência‖. (MINOIS, 2003, p. 19). Ele aponta também que na Idade Média as fabulas era, em
geral, grotescas e de escárnio. Eram histórias de autores anônimos, clérigos, monges, que eram
apresentadas nas cortes ou nas praças públicas, o que remete a categoria do cômico popular
indicada por Bakhtin.

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Nota-se entre os dois poemas uma semelhança especial: os desfechos trágicos. Em


ambas as histórias não há um final feliz, ao contrário do que se espera de uma história de fadas
comum. O anão acaba triste, sem um pênis, fato que o deixa tão infeliz quanto ter um pênis
descomunal e inútil. Já Filó, embora depois de sequestrada, tenha encontrado um prazer que a
faça revirar ―os óinho‖, o desfecho dos moradores da Vila do Troço é triste e fatal, todos
desiludidos.
Bufólicas escancara a moral e abusa de recursos populares para se afirmarem,
primeiramente pelo riso, o exagero, o grotesco e as blasfêmias, categorias sinalizadas por
Bakhtin, e também pela paródia, que Hutcheon (1985) aponta como um evento metadiscursivo e
autor reflexivo, da necessidade humana de pensar suas próprias referências.
Outro fato, coerente com a proposta da autora, é trazer personagens que contrariam a
representação de contos de fadas de maneira subversiva. Ao retratar a fadinha e o anão de forma
hipersexualizada, Hilda Hilst joga um facho de luz sobre essas curiosas figuras de sexo
descomunal, de sexualidades diversas e grotescas.
Em um primeiro momento o leitor ri do absurdo e das inversões propostas, mas um olhar
mais atento requer um questionamento: afinal, estamos rindo de quê? De um lado um sequestro
e o rastro de tristeza, de outro um Deus incapaz de realizar de forma satisfatória um pedido de
uma criatura triste. E a moral que encerra cada poema evidencia a ironia das situações.
Em seu conjunto de poemas Hilda Hilst já antecipava o absurdo como componente
essencial para ao riso no século XXI, as personagens de seus poemas narrativos e fabulares
estão a todo o momento sendo questionados e postos diante desse grande absurdo que são o
prazer e Deus. Aparentemente o livro é uma estratégia comercial, frustrada, mas cumpre a papel
de fundir, com bastante ironia, o grotesco, o fantástico o real. De certo modo, a poeta já
anunciava sua missão ao concluir o primeiro poema do livro: ―A palavra é necessária diante do
absurdo‖ (HILST, 2002, p. 14).

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de


François Rabelais. 2. ed. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2013.

BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

HILST, Hilda. Bufólicas. São Paulo: Globo, 2002.

HUTCHEON, Linda. Uma teoria da paródia. Tradução de Teresa Louro Pérez. Lisboa:
Edições 70, 1985.

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INSTITUTO MOREIRA SALLES. Cadernos de literatura brasileira. São Paulo: Instituto


Moreira Salles, n.8, out.1999.

MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. Tradução de Maria Elena O. Ortiz


Assumpção. São Paulo: Unesp, 2003.

SILVA, J. R. Os risos na espiral: percursos literários hilstianos. Recife: 2009. Tese (Doutorado
em Letras) – Universidade Federal de Pernambuco.

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