Você está na página 1de 137

LITERATURA

PORTUGUESA CLÁSSICA

PROFESSOR: AUGUSTO SARMENTO-PANTOJA

18/02 – Apresentação da Atividade Curricular


19/02 – Aula expositiva Renascimento e os Lusíadas
20/02 – Leitura dos Cantos de “Os Lusíadas”
22/02 – Elaboração de Seminário
23/02 – Apresentação de Análises dos Cantos
24/02 – Seminário
25/02 – Seminário
26/02 – O Teatro de Camões – Autos (Apresentação das Tipologias Teatrais)
27/02 – Produção escrita sobre Camões
01/03 – A poesia Maneirista, Barroca e Neo-Clássica
02/03 – Análise de Poesias
03/03 – Análise de Poesias
04/03 – Elaboração de Seminário
05/03 – Seminário e Representação de Montagem
06/03 – Seminário e Representação de Montagem

TEXTO 01
1
CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Ed. organizada por Emanuel Paulo Ramos. Porto: Porto, s.d. 642p.
[71] CANTO PRIMEIRO E não de agreste avena ou frauta ruda, Ponde no chão: vereis um novo exemplo 14
Mas de tuba canora e belicosa, De amor dos pátrios feitos valerosos, Nem deixarão meus versos esquecidos
1 Que o peito acende e a cor ao gesto muda; Em versos divulgado numerosos. Aqueles que nos Reinos lá da Aurora,
As armas e os barões assinalados Dai-me igual canto aos feitos da famosa Se fizeram por armas tão subidos,
Que da Ocidental praia Lusitana Gente vossa, que a Marte tanto ajuda; 10 Vossa bandeira sempre vencedora:
Por mares nunca dantes navegados Que se espalhe e se cante no universo, Vereis amor da pátria, não movido Um Pacheco fortíssimo e os temidos
Passaram ainda além da Taprobana, Se tão sublime preço cabe em verso. De prémio vil, mas alto e quase eterno; Almeidas, por quem sempre o Tejo chora,
Em perigos e guerras esforçados Que não é prémio vil ser conhecido Albuquerque terríbil, Castro forte,
Mais do que prometia a força humana, 6 Por um pregão do ninho meu paterno. E outros em quem poder não teve a morte.
E entre gente remota edificaram E, vós, ó bem nascida segurança Ouvi: vereis o nome engrandecido
Novo Reino, que tanto sublimaram; Da Lusitana antiga liberdade, Daqueles de quem sois senhor superno, 15
E não menos certíssima esperança E julgareis qual é mais excelente, E, enquanto eu estes canto, e a vós não posso,
2 De aumento da pequena Cristandade; Se ser do mundo Rei, se de tal gente. Sublime Rei, que não me atrevo a tanto,
E também as memórias gloriosas Vós, ó novo temor da Maura lança, Tomai as rédeas vós do Reino vosso:
Daqueles Reis que foram dilatando Maravilha fatal da nossa idade, 11 Dareis matéria a nunca ouvido canto.
A Fé, o Império, e as terras viciosas Dada ao mundo por Deus, que todo o mande, Ouvi, que não vereis com vãs façanhas, Comecem a sentir o peso grosso
De África e de Ásia andaram devastando, Pera do mundo a Deus dar parte grande; Fantásticas, fingidas, mentirosas, (Que polo mundo todo faça espanto)
E aqueles que por obras valerosas Louvar os vossos, como nas estranhas De exércitos e feitos singulares,
Se vão da lei da Morte libertando, 7 Musas, de engrandecer-se desejosas: De África as terras e do Oriente os mares.
Cantando espalharei por toda parte, Vós, tenro e novo ramo florecente As verdadeiras vossas são tamanhas
Se a tanto me ajudar o engenho e arte. De ha árvore, de Cristo mais amada Que excedem as sonhadas, fabulosas, [75]16
Que nenha nascida no Ocidente, Que excedem Rodamonte e o vão Rugeiro Em vós os olhos tem o Mouro frio,
3 Cesárea ou Cristianíssima chamada E Orlando, inda que fora verdadeiro. Em quem vê seu exício afigurado;
Cessem do sábio Grego e do Troiano (Vede-o no vosso escudo, que presente Só com vos ver, o bárbaro Gentio
As navegações grandes que fizeram; Vos amostra a vitória já passada, [74] 12 Mostra o pescoço ao jugo já inclinado;
Cale-se de Alexandro e de Trajano Na qual vos deu por armas e deixou Por estes vos darei um Nuno fero, Tethys todo o cerúleo senhorio
A fama das vitórias que tiveram; As que Ele pera si na Cruz tomou); Que fez ao Rei e ao Reino tal serviço, Tem pera vós por dote aparelhado,
Que eu canto o peito ilustre Lusitano, Um Egas e um Dom Fuas, que de Homero Que, afeiçoada ao gesto belo e tento,
A quem Neptuno e Marte obedeceram. [73] 8 A cítara para eles só cobiço; Deseja de comprar-vos pera genro.
Cesse tudo o que a Musa antiga canta, Vós, poderoso Rei, cujo alto Império Pois polos Doze Pares dar-vos quero
Que outro valor mais alto se alevanta. O Sol, logo em nascendo, vê primeiro, Os Doze de Inglaterra e o seu Magriço; 17
Vê-o também no meio do Hemisfério, Dou-vos também aquele ilustre Gama, Em vós se vêm, da Olímpica morada,
[72] 4 E quando dece, o deixa derradeiro; Que para si de Eneias toma a fama. Dos dous avós as almas cá famosas;
E vós, Tágides minhas, pois criado Vós, que esperamos jugo e vitupério Ha, na paz angélica dourada,
Tendes em mi um novo engenho ardente, Do torpe Ismaelita cavaleiro, 13 Outra, pelas batalhas sanguinosas.
Se sempre em verso humilde celebrado Do Turco Oriental e do Gentio Pois se a troco de Carlos, Rei de França, Em vós esperam ver-se renovada
Foi de mi vosso rio alegremente, Que inda bebe o licor do santo Rio: Ou de César, quereis igual memória, Sua memória e obras valerosas;
Dai-me agora um som alto e sublimado, Vede o primeiro Afonso, cuja lança E lá vos têm lugar, no fim da idade,
Um estilo grandíloco e corrente, 9 Escura faz qualquer estranha glória; No templo da suprema Eternidade.
Por que de vossas águas Febo ordene Inclinei por um pouco a majestade E aquele que a seu Reino a segurança
Que não tenham enveja às de Hipocrene. Que nesse tenro gesto vos contemplo, Deixou, co a grande e próspera vitória; 18
Que já se mostra qual na inteira idade, Outro Joane, invicto cavaleiro; Mas, enquanto este tempo passa lento
5 Quando subindo ireis ao eterno templo; O quarto e quinto Afonsos e o terceiro. De regerdes os povos, que o desejam,
Dai-me ha fúria grande e sonorosa, Os olhos da real benignidade Dai vós favor ao novo atrevimento,
Pera que estes meus versos vossos sejam, De outra pedra mais clara que diamante. O duvidoso mar num lenho leve, A fama antiga, ou sua ou fosse estranha.
E vereis ir cortando o salso argento Por vias nunca usadas, não temendo Altamente lhe dói perder a glória
Os vossos Argonautas, por que vejam 23 de Áfrico e Noto a força, a mais se atreve: De que Nisa celebra inda a memória.
Que são vistos de vós no mar irado, Em luzentes assentos, marchetados Que, havendo tanto já que as partes vendo
E costumai-vos já a ser invocado. De ouro e de perlas, mais abaixo estavam Onde o dia é comprido e onde breve, [79]32
Os outros Deuses, todos assentados Inclinam seu propósito e perfia Vê que já teve o Indo sojugado
19 Como a Razão e a Ordem concertavam A ver os berços onde nasce o dia. E nunca lhe tirou Fortuna ou caso
Já no largo Oceano navegavam, (Precedem os antigos, mais honrados, Por vencedor da Índia ser cantado
As inquietas ondas apartando; Mais abaixo os menores se assentavam); [78]28 De quantos bebem a água de Parnaso.
Os ventos brandamente respiravam, Quando Júpiter alto, assi dizendo, «Prometido lhe está do Fado eterno, Teme agora que seja sepultado
Das naus as velas côncavas inchando; Cum tom de voz começa grave e horrendo: Cuja alta lei não pode ser quebrada, Seu tão célebre nome em negro vaso
Da branca escuma os mares se mostravam Que tenham longos tempos o governo D’água do esquecimento, se lá chegam
Cobertos, onde as proas vão cortando [77] 24 Do mar que vê do Sol a roxa entrada. Os fortes Portugueses que navegam.
As marítimas águas consagradas, «Eternos moradores do luzente, Nas águas têm passado o duro Inverno;
Que do gado de Próteu são cortadas, Estelífero Pólo e claro Assento: A gente vem perdida e trabalhada; 33
Se do grande valor da forte gente Já parece bem feito que lhe seja Sustentava contra ele Vénus bela,
[76]20 De Luso não perdeis o pensamento, Mostrada a nova terra que deseja. Afeiçoada à gente Lusitana
Quando os Deuses no Olimpo luminoso, Deveis de ter sabido claramente Por quantas qualidades via nela
Onde o governo está da humana gente, Como é dos Fados grandes certo intento 29 Da antiga, tão amada, sua Romana;
Se ajuntam em consílio glorioso, Que por ela se esqueçam os humanos «E porque, como vistes, têm passados Nos fortes corações, na grande estrela
Sobre as cousas futuras do Oriente. De Assírios, Persas, Gregos e Romanos. Na viagem tão ásperos perigos, Que mostraram na terra Tingitana,
Pisando o cristalino Céu fermoso, Tantos climas e céus exprimentados, E na língua, na qual quando imagina,
Vem pela Via Láctea juntamente, 25 Tanto furor de ventos inimigos, Com pouca corrupção crê que é a Latina
Convocados, da parte de Tonante, «Já lhe foi (bem o vistes) concedido, Que sejam, determino, agasalhados
Pelo neto gentil do velho Atlante. Cum poder tão singelo e ao pequeno, Nesta costa Africana como amigos; 34
Tomar ao Mouro forte e guarnecido E, tendo guarnecida a lassa frota, Estas causas moviam Citereia
21 Toda a terra que rega o Tejo ameno. Tornarão a seguir sua longa rota. E mais, porque das Parcas claro entende
Deixam dos sete Céus o regimento, Pois contra o Castelhano ao temido Que há-de ser celebrada a clara Deia
Que do poder mais alto lhe foi dado, Sempre alcançou favor do Céu sereno: 30 Onde a gente belígera se estende.
Alto poder, que só co pensamento Assi que sempre, enfim, com fama e glória. Estas palavras Júpiter dezia, Assi que, um, pela infâmia que arreceia,
Governa o Céu, a Terra e o Mar irado. Teve os troféus pendentes da vitória. Quando os Deuses, por ordem respondendo, E o outro, pelas honras que pretende,
Ali se acharam juntos num momento Na sentença um do outro difiria, Debatem, e na perfia permanecem;
Os que habitam o Arcturo congelado 26 Razões diversas dando e recebendo. A qualquer seus amigos favorecem.
E os que o Austro têm e as partes onde «Deixo, Deuses, atrás a fama antiga, O padre Baco ali não consentia
A Aurora nasce e o claro Sol se esconde. Que co a gente de Rómulo alcançaram, No que Júpiter disse, conhecendo 35
Quando com Viriato, na inimiga Que esquecerão seus feitos no Oriente Qual Austro fero ou Bóreas na espessura
22 Guerra Romana, tanto se afamaram; Se lá passar a Lusitana gente. De silvestre arvoredo abastecida,
Estava o Padre ali, sublime e dino, Também deixo a memória que os obriga Rompendo os ramos vão da mata escura
Que vibra os feros raios de Vulcano, A grande nome, quando alevantaram 31 Com ímpeto e braveza desmedida,
Num assento de estrelas cristalino, Um por seu capitão, que, peregrino, Ouvido tinha aos Fados que viria Brama toda montanha, o som murmura,
Com gesto alto, severo e soberano; Fingiu na cerva espírito divino. Ha gente fortíssima de Espanha Rompem-se as folhas, ferve a serra erguida:
Do rosto respirava um ar divino, Pelo mar alto, a qual sujeitaria Tal andava o tumulto, levantado
Que divino tornara um corpo humano: 27 Da Índia tudo quanto Dóris banha, Entre os Deuses, no Olimpo consagrado.
Com ha coroa e ceptro rutilante, «Agora vedes bem que, cometendo E com novas vitórias venceria
[80]36 Desistir-se da cousa começada. Mas não lhe sucedeu como cuidava. Estranha polas cordas já subia.
Mas Marte, que da Deusa sustentava Mercúrio, pois excede em ligeireza No gesto ledos vêm, e humanamente
Entre todos as partes em porfia, Ao vento leve e à seta bem talhada, 45 O Capitão sublime os recebia.
Ou porque o amor antigo o obrigava, Lhe vá mostrar a terra onde se informe Eis aparecem logo em companhia As mesas manda pôr em continente;
Ou porque a gente forte o merecia, Da Índia, e onde a gente se reforme.» Uns pequenos batéis, que vêm daquela Do licor que Lieu prantado havia
De antre os Deuses em pé se levantava: Que mais chegada à terra parecia, Enchem vasos de vidro; e do que deitam
Merencório no gesto parecia; 41 Cortando o longo mar com larga vela. Os de Faeton queimados nada enjeitam.
O forte escudo, ao colo pendurado, Como isto disse, o Padre poderoso, A gente se alvoroça e, de alegria,
Deitando pera trás, medonho e irado; A cabeça inclinando, consentiu Não sabe mais que olhar a causa dela. 50
No que disse Mavorte valeroso «Que gente será esta?» (em si diziam) Comendo alegremente, perguntavam,
37 E néctar sobre todos esparziu. «Que costumes, que Lei, que Rei teriam?» Pela Arábica língua, donde vinham,
A viseira do elmo de diamante Pelo caminho Lácteo glorioso Quem eram, de que terra, que buscavam,
Alevantando um pouco, mui seguro, Logo cada um dos Deuses se partiu, 46 Ou que partes do mar corrido tinham?
Por dar seu parecer se pôs diante Fazendo seus reais acatamentos, As embarcações eram na maneira Os fortes Lusitanos lhe tornavam
De Júpiter, armado, forte e duro; Pera os determinados apousentos. Mui veloces, estreitas e compridas; As discretas repostas que convinham:
E dando a pancada penetrante As velas com que vêm eram de esteira, «Os Portugueses somos do Ocidente,
Co conto do bastão no sólio puro, 42 Das folhas de palma, bem tecidas; Imos buscando as terras do Oriente.
O Céu tremeu, e Apolo, de torvado, Enquanto isto se passa na fermosa A gente da cor era verdadeira
Um pouco a luz perdeu, como enfiado; Casa etérea do Olimpo omnipotente, Que Faeton, nas terras acendidas, 51
Cortava o mar a gente belicosa Ao mundo deu, de ousado e não prudente «Do mar temos corrido e navegado
38 Já lá da banda do Austro e do Oriente, (O Pado o sabe e Lampetusa o sente). Toda a parte do Antártico e Calisto,
E disse assi: «Ó Padre, a cujo império Entre a costa Etiópica e a famosa Toda a costa Africana rodeado;
Tudo aquilo obedece que criaste: Ilha de São Lourenço; e o Sol ardente 47 Diversos céus e terras temos visto;
Se esta gente que busca outro Hemisfério. Queimava então os Deuses que Tifeu De panos de algodão vinham vestidos, Dum Rei potente somos, tão amado,
Cuja valia e obras tanto amaste, Co temor grande em pexes converteu. De várias cores, brancos e listrados; Tão querido de todos e benquisto,
Não queres que padeçam vitupério, Uns trazem derredor de si cingidos, Que não no largo mar, com leda fronte,
Como há já tanto tempo que ordenaste, 43 Outros em modo airoso sobraçados; Mas no lago entraremos de Aqueronte.
Não ouças mais, pois és juiz direito, Tão brandamente os ventos os levavam Das cintas pera cima vêm despidos;
Razões de quem parece que é suspeito. Como quem o Céu tinha por amigo; Por armas tem adagas e terçados; [84]52
Sereno o ar e os tempos se mostravam, Com toucas na cabeça; e, navegando, E, por mandado seu, buscando andamos
39 Sem nuvens, sem receio de perigo. Anafis sonorosos vão tocando. A terra Oriental que o Indo rega;
«Que, se aqui a razão se não mostrasse O promontório Prasso já passavam Por ele o mar remoto navegamos,
Vencida do temor demasiado, Na costa de Etiópia, nome antigo, [83]48 Que só dos feios focas se navega.
Bem fora que aqui Baco os sustentasse, Quando o mar, descobrindo, lhe mostrava Cos panos e cos braços acenavam Mas já razão parece que saibamos
Pois que de Luso vêm, seu tão privado; Novas ilhas, que em torno cerca e lava. Às gentes Lusitanas, que esperassem; (Se entre vós a verdade não se nega),
Mas esta tenção sua agora passe, Mas já as proas ligeiras se inclinavam, Quem sois, que terra é esta que habitais,
Porque enfim vem de estâmago danado; [82]44 Pera que junto às Ilhas amainassem. Ou se tendes da Índia alguns sinais?»
Que nunca tirará alheia enveja Vasco da Gama, o forte Capitão, A gente e marinheiros trabalhavam
O bem que outrem merece e o Céu deseja. Que a tamanhas empresas se oferece, Como se aqui os trabalhos se acabassem: 53
De soberbo e de altivo coração, Tomam velas, amaina-se a verga alta, «Somos (um dos das Ilhas lhe tornou)
[81]40 A quem Fortuna sempre favorece, Da âncora o mar ferido em cima salta. Estrangeiros na terra, Lei e nação;
E tu, Padre de grande fortaleza, Pera se aqui deter não vê razão, Que os próprios são aqueles que criou
Da determinação que tens tomada Que inabitada a terra lhe parece. 49 A Natura, sem Lei e sem Razão.
Não tornes por detrás, pois é fraqueza Por diante passar determinava, Não eram ancorados, quando a gente Nós temos a Lei certa que ensinou
O claro descendente de Abraão, Da La os claros raios rutilavam Também o Mouro astuto está confuso,
Que agora tem do mundo o senhorio; Polas argênteas ondas Neptuninas; Olhando a cor, o trajo e a forte armada; 67
A mãe Hebreia teve e o pai, Gentio. As Estrelas os Céus acompanhavam, E, perguntando tudo, lhe dizia Isto dizendo, manda os diligentes
Qual campo revestido de boninas; Se porventura vinham de Turquia. Ministros amostrar as armaduras:
54 Os furiosos ventos repousavam Vêm arneses e peitos reluzentes,
Esta Ilha pequena, que habitamos, Polas covas escuras peregrinas; 63 Malhas finas e lâminas seguras,
É em toda esta terra certa escala Porém da armada a gente vigiava, E mais lhe diz também que ver deseja Escudos de pinturas diferentes,
De todos os que as ondas navegamos, Como por longo tempo costumava. Os livros de sua Lei, preceito ou fé, Pelouros, espingardas de aço puras,
De Quíloa, de Mombaça e de Sofala; Pera ver se conforme à sua seja, Arcos e sagitíferas aljavas,
E, por ser necessária, procuramos, 59 Ou se são dos de Cristo, como crê; Partazanas agudas, chuças bravas.
Como próprios da terra, de habitá-la; Mas, assi como a Aurora marchetada E por que tudo note e tudo veja,
E por que tudo enfim vos notifique, Os fermosos cabelos espalhou Ao Capitão pedia que lhe dê [88]68
Chama-se a pequena Ilha: Moçambique. No Céu sereno, abrindo a roxa entrada Mostra das fortes armas de que usavam As bombas vêm de fogo, e juntamente
Ao claro Hiperiónio, que acordou, Quando cos inimigos pelejavam. As panelas sulfúreas, tão danosas;
55 Começa a embandeirar-se toda a armada Porém aos de Vulcano não consente
«E já que de tão longe navegais, E de toldos alegres se adornou, [87]64 Que dem fogo às bombardas temerosas;
Buscando o Indo Hidaspe e terra ardente, Por receber com festas e alegria Responde o valeroso Capitão, Porque o generoso ânimo e valente,
Piloto aqui tereis, por quem sejais O Regedor das Ilhas, que partia. Por um que a língua escura bem sabia: Entre gentes tão poucas e medrosas,
Guiados pelas ondas sabiamente. «Dar-te-ei, Senhor ilustre, relação Não mostra quanto pode; e com razão,
Também será bem feito que tenhais [86]60 De mi, da Lei, das armas que trazia. Que é fraqueza entre ovelhas ser lião.
Da terra algum refresco, e que o Regente Partia, alegremente navegando, Nem sou da terra, nem da geração
Que esta terra governa, que vos veja A ver as naus ligeiras Lusitanas, Das gentes enojosas de Turquia, 69
E do mais necessário vos proveja.» Com refresco da terra, em si cuidando Mas sou da forte Europa belicosa; Porém disto que o Mouro aqui notou,
[85]56 Que são aquelas gentes inumanas Busco as terras da Índia tão famosa. E de tudo o que viu com olho atento,
Isto dizendo, o Mouro se tornou Que, os apousentos Cáspios habitando, Um ódio certo na alma lhe ficou,
A seus batéis com toda a companhia; A conquistar as terras Asianas 65 Ha vontade má de pensamento;
Do Capitão e gente se apartou Vieram e, por ordem do Destino, «A Lei tenho d’Aquele a cujo império Nas mostras e no gesto o não mostrou,
Com mostras de devida cortesia. O Império tomaram a Costantino. Obedece o visíbil e invisíbil, Mas, com risonho e ledo fingimento,
Nisto Febo nas águas encerrou Aquele que criou todo o Hemisfério, Tratá-los brandamente determina,
Co carro de cristal, o claro dia, 61 Tudo o que sente e todo o insensíbil; Até que mostrar possa o que imagina.
Dando cargo à Irmã que alumiasse Recebe o Capitão alegremente Que padeceu desonra e vitupério,
O largo mundo, enquanto repousasse. O Mouro e toda sua companhia; Sofrendo morte injusta e insofríbil, 70
Dá-lhe de ricas peças um presente, E que do Céu à Terra enfim deceu, Pilotos lhe pedia o Capitão,
57 Que só pera este efeito já trazia; Por subir os mortais da Terra ao Céu. Por quem pudesse à Índia ser levado;
A noite se passou na lassa frota Dá-lhe conserva doce e dá-lhe o ardente, Diz-lhe que o largo prémio levarão
Com estranha alegria e não cuidada, Não usado licor, que dá alegria. 66 Do trabalho que nisso for tomado.
Por acharem da terra tão remota Tudo o Mouro contente bem recebe, «Deste Deus-Homem, alto e infinito, Promete-lhos o Mouro, com tenção
Nova de tanto tempo desejada. E muito mais contente come e bebe Os livros que tu pedes não trazia, De peito venenoso e tão danado
Qualquer então consigo cuida e nota Que bem posso escusar trazer escrito Que a morte, se pudesse, neste dia,
Na gente e na maneira desusada, 62 Em papel o que na alma andar devia. Em lugar de pilotos lhe daria.
E como os que na errada Seita creram, Está a gente marítima de Luso Se as armas queres ver, como tens dito,
Tanto por todo o mundo se estenderam. Subida pela enxárcia, de admirada, Cumprido esse desejo te seria; 71
Notando o estrangeiro modo e uso Como amigo as verás, porque eu me obrigo Tamanho o ódio foi e a má vontade
58 E a linguagem tão bárbara e enleada. Que nunca as queiras ver como inimigos». Que aos estrangeiros súpito tomou,
Sabendo ser sequaces da Verdade Que eu, co grão Macedónio e Romano, «E também sei que tem determinado A gente nos batéis se concertava
Que o filho de David nos ensinou! Dêmos lugar ao nome Lusitano? De vir por água a terra, muito cedo, Como se fosse o engano já sabido;
Ó segredos daquela Eternidade O Capitão, dos seus acompanhado, Mas pôde suspeitar-se facilmente,
A quem juízo algum não alcançou: [90]76 Que da tenção danada nasce o medo Que o coração pressago nunca mente.
Que nunca falte um pérfido inimigo «Não será assi, porque, antes que chegado Tu deves de ir também cos teus armado
Àqueles de quem foste tanto amigo! Seja este Capitão, astutamente Esperá-lo em cilada, oculto e quedo; 85
Lhe será tanto engano fabricado Porque, saindo a gente descuidada, E mais também mandado tinha a terra,
[89]72 Que nunca veja as partes do Oriente. Cairão facilmente na cilada. De antes, pelo piloto necessário,
Partiu-se nisto, enfim, co a companhia, Eu decerei à Terra e o indignado E foi-lhe respondido em som de guerra,
Das naus o falso Mouro despedido, Peito revolverei da Maura gente; 81 Caso do que cuidava mui contrário.
Com enganosa e grande cortesia, Porque sempre por via irá direita E se inda não ficarem deste jeito Por isto, e porque sabe quanto erra
Com gesto ledo a todos e fingido. Quem do oportuno tempo se aproveita.» Destruídos ou mortos totalmente, Quem se crê de seu pérfido adversário,
Cortaram os batéis a curta via Eu tenho imaginada no conceito Apercebido vai como podia
Das águas de Neptuno; e, recebido 77 Outra manha e ardil que te contente: Em três batéis somente que trazia.
Na terra do obsequente ajuntamento, Isto dizendo, irado e quase insano, Manda-lhe dar piloto que de jeito
Se foi o Mouro ao cógnito apousento. Sobre a terra Africana descendeu, Seja astuto no engano, e tão prudente 86
Onde, vestindo a forma e gesto humano, Que os leve aonde sejam destruídos, Mas os Mouros, que andavam pela praia
73 Pera o Prasso sabido se moveu. Desbaratados, mortos ou perdidos.» Por lhe defender a água desejada,
Do claro Assento etéreo, o grão Tebano, E, por milhor tecer o astuto engano, Um de escudo embraçado e de azagaia,
Que da paternal coxa foi nascido, No gesto natural se converteu 82 Outro de arco encurvado e seta ervada,
Olhando o ajuntamento Lusitano Dum Mouro, em Moçambique conhecido, Tanto que estas palavras acabou Esperam que a guerreira gente saia,
Ao Mouro ser molesto e avorrecido, Velho, sábio, e co Xeque mui valido. O Mouro, nos tais casos sábio e velho, Outros muitos já postos em cilada;
No pensamento cuida um falso engano, Os braços pelo colo lhe lançou, E, por que o caso leve se lhe faça,
Com que seja de todo destruído; 78 Agradecendo muito o tal conselho; Põem uns poucos diante por negaça.
E, enquanto isto só na alma imaginava, E, entrando assi a falar-lhe, a tempo e horas, E logo nesse instante concertou
Consigo estas palavras praticava: A sua falsidade acomodadas, Pera a guerra o belígero aparelho, 87
Lhe diz como eram gentes roubadoras Pera que ao Português se lhe tornasse Andam pela ribeira alva, arenosa,
74 Estas que ora de novo são chegadas; Em roxo sangue a água que buscasse. Os belicosos Mouros acenando
«Está do Fado já determinado Que das nações na costa moradoras, Com a adarga e co a hástia perigosa,
Que tamanhas vitórias, tão famosas, Correndo a fama veio que roubadas 83 Os fortes Portugueses incitando
Hajam os Portugueses alcançado Foram por estes homens que passavam, E busca mais, pera o cuidado engano, Não sofre muito a gente generosa
Das Indianas gentes belicosas; Que com pactos de paz sempre ancoravam. Mouro que por piloto à nau lhe mande, Andar-lhe os Cães os dentes amostrando;
E eu só, filho do Padre sublimado, Sagaz, astuto e sábio em todo o dano, Qualquer em terra salta, tão ligeiro,
Com tantas qualidades generosas, 79 De quem fiar se possa um feito grande. Que nenhum dizer pode que é primeiro:
Hei-de sofrer que o Fado favoreça «E sabe mais (lhe diz), como entendido Diz-lhe que, acompanhando o Lusitano,
Outrem, por quem meu nome se escureça? Tenho destes Cristãos sanguinolentos, Por tais costas e mares co ele ande, [94] 88
Que quase todo o mar têm destruído Que, se daqui escapar, que lá diante Qual no corro sanguino o ledo amante,
75 Com roubos, com incêndios violentos; Vá cair onde nunca se alevante. Vendo a fermosa dama desejada,
«Já quiseram os Deuses que tivesse E trazem já de longe engano urdido O touro busca e, pondo-se diante,
O filho de Filipo nesta parte Contra nós; e que todos seus intentos [93]84 Salta, corre, sibila, acena e brada,
Tanto poder que tudo sometesse São pera nos matarem e roubarem, Já o raio Apolíneo visitava Mas o animal atroce, nesse instante,
Debaixo do seu jugo o fero Marte; E mulheres e filhos cativarem. Os Montes Nabateios acendido, Com a fronte cornígera inclinada,
Mas há-se de sofrer que o Fado desse Quando Gama cos seus determinava Bramando, duro corre e os olhos cerra,
A tão poucos tamanho esforço e arte, [92]80 De vir por água a terra apercebido. Derriba, fere e mata e põe por terra.
E vão a seu prazer fazer aguada, Que, havendo por verdade o que dizia, Também nestas palavras lhe mentia,
89 Sem achar resistência nem defesa. De nada a forte gente se temia. Como por regimento, enfim, levava;
Eis nos batéis o fogo se levanta Ficava a Maura gente magoada, Que aqui gente de Cristo não havia,
Na furiosa e dura artilharia; No ódio antigo mais que nunca acesa; 98 Mas a que a Mahamede celebrava.
A plúmbea péla mata, o brado espanta; E, vendo sem vingança tanto dano, E diz-lhe mais, co falso pensamento O Capitão, que em tudo o Mouro cria,
Ferido, o ar retumba e assovia. Somente estriba no segundo engano. Com que Synon os Frígios enganou, Virando as velas, a Ilha demandava;
O coração dos Mouros se quebranta, Que perto está ha Ilha, cujo assento Mas, não querendo a Deusa guardadora,
O temor grande o sangue lhe resfria. 94 Povo antigo Cristão sempre habitou. Não entra pela barra, e surge fora.
Já foge o escondido, de medroso, Pazes cometer manda, arrependido, O Capitão, que a tudo estava atento,
E morre o descoberto aventuroso. O Regedor daquela inica terra, Tanto co estas novas se alegrou 103
Sem ser dos Lusitanos entendido Que com dádivas grandes lhe rogava Estava a Ilha à terra tão chegada
90 Que em figura de paz lhe manda guerra; Que o leve à terra onde esta gente estava. Que um estreito pequeno a dividia;
Não se contenta a gente Portuguesa, Porque o piloto falso prometido, Ha cidade nela situada,
Mas, seguindo a vitória, estrui e mata; Que toda a má tenção no peito encerra, 99 Que na fronte do mar aparecia,
A povoação sem muro e sem defesa Pera os guiar à morte lhe mandava, O mesmo o falso Mouro determina De nobres edifícios fabricada,
Esbombardeia, acende e desbarata. Como em sinal das pazes que tratava. Que o seguro Cristão lhe manda e pede; Como por fora, ao longe, descobria,
Da cavalgada ao Mouro já lhe pesa, Que a Ilha é possuída da malina Regida por um Rei de antiga idade:
Que bem cuidou comprá-la mais barata; 95 Gente que segue o torpe Mahamede. Mombaça é o nome da Ilha e da cidade.
Já blasfema da guerra, e maldizia, O Capitão, que já lhe então convinha Aqui o engano e morte lhe imagina,
O velho inerte e a mãe que o filho cria. Tornar a seu caminho acostumado, Porque em poder e forças muito excede [98]104
Que tempo concertado e ventos tinha À Moçambique esta Ilha, que se chama E sendo a ela o Capitão chegado,
91 Pera ir buscar o Indo desejado, Quíloa, mui conhecida pola fama. Estranhamente ledo, porque espera
Fugindo, a seta o Mouro vai tirando Recebendo o piloto que lhe vinha, De poder ver o povo baptizado,
Sem força, de covarde e de apressado, Foi dele alegremente agasalhado, [97]100 Como o falso piloto lhe dissera,
Apedra, o pau e o canto arremessando; E respondendo ao mensageiro, a tento, Pera lá se inclinava a leda frota; Eis vêm batéis da terra com recado
Dá-lhe armas o furor desatinado. As velas manda dar ao largo vento. Mas a Deusa em Citera celebrada, Do Rei, que já sabia a gente que era;
Já a Ilha, e todo o mais, desemparando, Vendo como deixava a certa rota Que Baco muito de antes o avisara,
À terra firme foge amedrontado; [96]96 Por ir buscar a morte não cuidada, Na forma doutro Mouro, que tomara.
Passa e corta do mar o estreito braço Destarte despedida, a forte armada Não consente que em terra tão remota
Que a Ilha em torno cerca em pouco espaço. As ondas de Anfitrite dividia, Se perca a gente dela tanto amada, 105
Das filhas de Nereu acompanhada, E com ventos contrairos a desvia O recado que trazem é de amigos,
[95]92 Fiel, alegre e doce companhia. Donde o piloto falso a leva e guia. Mas debaxo o veneno vem coberto,
Uns vão nas almadias carregadas, O Capitão, que não caía em nada Que os pensamentos eram de inimigos,
Um corta o mar a nado, diligente; Do enganoso ardil que o Mouro urdia, 101 Segundo foi o engano descoberto.
Quem se afoga nas ondas encurvadas, Dele mui largamente se informava Mas o malvado Mouro, não podendo Oh! Grandes e gravíssimos perigos,
Quem bebe o mar e o deita juntamente. Da Índia toda e costas que passava. Tal determinação levar avante, Oh! Caminho de vida nunca certo,
Arrombam as miúdas bombardadas Outra maldade inica cometendo, Que aonde a gente põe sua esperança
Os pangaios sutis da bruta gente. 97 Ainda em seu propósito constante, Tenha a vida tão pouca segurança!
Destarte o Português, enfim, castiga Mas o Mouro, instruído nos enganos Lhe diz que, pois as águas, discorrendo,
A vil malícia, pérfida, inimiga. Que o malévolo Baco lhe ensinara, Os levaram por força por diante, 106
De morte ou cativeiro novos danos, Que outra Ilha tem perto, cuja gente No mar tanta tormenta e tanto dano,
93 Antes que à Índia chegue, lhe prepara. Eram Cristãos com Mouros juntamente. Tantas vezes a morte apercebida!
Tornam vitoriosos pera a armada, Dando razão dos portos Indianos, Na terra tanta guerra, tanto engano,
Co despojo da guerra e rica presa, Também tudo o que pede lhe declara, 102 Tanta necessidade avorrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano, Com que faças o fim a teu desejo.» Co recado os presentes que traziam, Do Sol foram no mundo, e num momento
Onde terá segura a curta vida, A cidade correram, e notaram Apareceu no rúbido Horizonte
Que não se arme e se indigne o Céu sereno 5 Muito menos daquilo que queriam; Na moça de Titão a roxa fronte,
Contra um bicho da terra tão pequeno? Ao mensageiro o Capitão responde, Que os Mouros cautelosos se guardaram
As palavras do Rei agradecendo, De lhe mostrarem tudo o que pediam; 14
E diz que, porque o Sol no mar se esconde, Que onde reina a malícia, está o receio Tornam da terra os Mouros co recado
[99] CANTO SEGUNDO Não entra pera dentro, obedecendo; Que a faz imaginar no peito alheio. Do Rei pera que entrassem, e consigo
1 Porém que, como a luz mostrar por onde Os dous que o Capitão tinha mandado,
Já neste tempo o lúcido Planeta Vá sem perigo a frota, não temendo, 10 A quem se o Rei mostrou sincero amigo;
Que as horas vai do dia distinguindo, Cumprirá sem receio seu mandado, Mas aquele que sempre a mocidade E sendo o Português certificado
Chegava à desejada e lenta meta, Que a mais por tal senhor está obrigado. Tem no rosto perpétua, e foi nascido De não haver receio de perigo
A luz celeste às gentes encobrindo; De duas mães, que urdia a falsidade E que gente de Cristo em terra havia,
E da casa marítima secreta he estava o Deus 6 Por ver o navegante destruído, Dentro no salso rio entrar queria.
Nocturno a porta abrindo, Pergunta-lhe despois se estão na terra Estava na casa da cidade,
Quando as infidas gentes se chegaram Cristãos, como o piloto lhe dizia; Com rosto humano e hábito fingido, 15
Às naus, que pouco havia que ancoraram. O mensageiro astuto, que não erra, Mostrando-se Cristão, e fabricava Dizem-lhe os que mandou que em terra viram
Lhe diz que a mais da gente em Cristo cria. Um altar sumptuoso que adorava. Sacras aras e sacerdote santo;
2 Desta sorte do peito lhe desterra Que ali se agasalharam e dormiram
Dantre eles um, que traz encomendado Toda a suspeita e cauta fantasia; 11 Enquanto a luz cobriu o escuro manto;
O mortífero engano, assi dizia: Por onde o Capitão seguramente Ali tinha em retrato afigurada E que no Rei e gentes não sentiram
— «Capitão valeroso, que cortado Se fia da infiel e falsa gente. Do alto e Santo Espírito a pintura, Senão contentamento e gosto tanto
Tens de Neptuno o reino e salsa via, A cândida Pombinha, debuxada Que não podia certo haver suspeita
O Rei que manda esta Ilha, alvoraçado 7 Sobre a única Fénix, virgem pura; Na mostra tão clara e tão perfeita.
Da vinda tua, tem tanta alegria E de alguns que trazia, condenados A companhia santa está pintada,
Que não deseja mais que agasalhar-te, Por culpas e por feitos vergonhosos, Dos doze, tão torvados na figura [103]16
Ver-te e do necessário reformar-te. Por que pudessem ser aventurados Como os que, só das línguas que caíram Co isto o nobre Gama recebia
Em casos desta sorte duvidosos, De fogo, várias línguas referiram. Alegremente os Mouros que subiam
3 Manda dous mais sagazes, ensaiados, Que levemente um ânimo se fia
«E porque está em extremo desejoso Por que notem dos Mouros enganosos [102]12 De mostras que tão certas pareciam.
De te ver, como cousa nomeada, A cidade e poder, e por que vejam Aqui os dous companheiros, conduzidos A nau da gente pérfida se enchia,
Te roga que, de nada receoso, Os Cristãos, que só tanto ver desejam. Onde com este engano Baco estava, Deixando a bordo os barcos que traziam.
Entres a barra, tu com toda armada; Põem em terra os giolhos, e os sentidos Alegres vinham todos porque crem
E porque do caminho trabalhoso [101]8 Naquele Deus que o Mundo governava. Que a presa desejada certa tem.
Trarás a gente débil e cansada, E por estes ao Rei presentes manda, Os cheiros excelentes, produzidos
Diz que na terra podes reformá-la, Por que a boa vontade que mostrava Na Pancaia odorífera, queimava 17
Que a natureza obriga a desejá-la. Tenha firme, segura, limpa e branda, O Tioneu, e assi por derradeiro Na terra cautamente aparelhavam
A qual bem ao contrário em tudo estava. O falso Deus adora o verdadeiro. Armas e munições, que, como vissem
[100]4 Já a companhia pérfida e nefanda Que no rio os navios ancoravam,
«E se buscando vás mercadoria Das naus se despedia e o mar cortava: 13 Neles ousadamente se subissem;
Que produze o aurífero levante, Foram com gestos ledos e fingidos Aqui foram de noite agasalhados, E nesta treïção determinavam
Canela, cravo, ardente especiaria Os dous da frota em terra recebidos. Com todo o bom e honesto tratamento Que os de Luso de todo destruíssem,
Ou droga salutífera e prestante; Os dous Cristãos, não vendo que enganados E que, incautos, pagassem deste jeito
Ou se queres luzente pedraria, 9 Os tinha o falso e santo fingimento O mal que em Moçambique tinham feito.
O rubi fino, o rígido diamante, E despois que ao Rei apresentaram Mas, assi como os raios espalhados
Daqui levarás tudo tão sobejo
18 Que em vão assopra o vento, a vela inchando: Que nas mãos inimigas entregar-se. Destes portos a pouca segurança,
As âncoras tenaces vão levando, Põem no madeiro duro o brando peito Bem claro temos visto na aparência
Com a náutica grita costumada; Pera detrás a forte nau forçando; 27 Que era enganada a nossa confiança;
Da proa as velas sós ao vento dando, Outras em derredor levando-a estavam Assi como em selvática alagoa Mas pois saber humano nem prudência
Inclinam pera a barra abalizada. E da barra inimiga a desviavam. As rãs, no tempo antigo Lícia gente, Enganos tão fingidos não alcança,
Mas a linda Ericina, que guardando Se sentem porventura vir pessoa, Ó tu, Guarda Divina, tem cuidado
Andava sempre a gente assinalada, 23 Estando fora da água incautamente, De quem sem ti não pode ser guardado!
Vendo a cilada grande e tão secreta, Quais pera a cova as próvidas formigas, Daqui e dali saltando (o charco soa),
Voa do Céu ao mar como a seta. Levando o peso grande acomodado Por fugir do perigo que se sente, [107]32
As forças exercitam, de inimigas E, acolhendo-se ao couto que conhecem, «E, se Te move tanto a piedade
19 Do inimigo Inverno congelado; Sós as cabeças na água lhe aparecem: Desta mísera gente peregrina,
Convoca as alvas filhas de Nereu, Ali são seus trabalhos e fadigas, Que, só por tua altíssima bondade,
Com toda a mais cerúlea companhia, Ali mostram vigor nunca esperado: [106]28 Da gente a salvas pérfida e malina,
Que, porque no salgado mar nasceu, Tais andavam as Ninfas estorvando Assi fogem os Mouros; e o piloto, Nalgum porto seguro de verdade
Das águas o poder lhe obedecia; À gente Portuguesa o fim nefando. Que ao perigo grande as naus guiara, Conduzir-nos já agora determina,
E, propondo-lhe a causa a que deceu, Crendo que seu engano estava noto, Ou nos amostra a terra que buscamos,
Com todos juntamente se partia [105]24 Também foge, saltando na água amara Pois só por teu serviço navegamos.»
Pera estorvar que a armada não chegasse Torna pera detrás a nau, forçada, Mas, por não darem no penedo imoto,
Aonde pera sempre se acabasse. Apesar dos que leva, que, gritando, Onde percam a vida doce e cara, 33
Mareiam velas; ferve a gente irada, A âncora solta logo a capitaina, Ouviu-lhe estas palavras piadosas
[104]20 O leme a um bordo e a outro atravessando; Qualquer das outras junto dela amaina. A fermosa Dione e, comovida,
Já na água erguendo vão, com grande pressa, O mestre astuto em vão da popa brada, Dantre as Ninfas se vai, que saudosas
Com as argênteas caudas branca escuma; Vendo como diante ameaçando 29 Ficaram desta súbita partida.
Cloto co peito corta e atravessa Os estava um marítimo penedo, Vendo o Gama, atentado, a estranheza Já penetra as Estrelas luminosas,
Com mais furor o mar do que costuma; Que de quebrar-lhe a nau lhe mete medo. Dos Mouros, não cuidada, e juntamente Já na terceira Esfera recebida
Salta Nise, Nerine se arremessa O piloto fugir-lhe com presteza, Avante passa, e lá no sexto Céu,
Por cima da água crespa em força suma; 25 Entende o que ordenava a bruta gente, Pera onde estava o Padre, se moveu.
Abrem caminho as ondas encurvadas, A celeuma medonha se alevanta E vendo, sem contraste e sem braveza
De temor das Nereidas apressadas. No rudo marinheiro que trabalha; Dos ventos ou das águas sem corrente. 34
O grande estrondo a Maura gente espanta, Que a nau passar avante não podia, E, como ia afrontada do caminho,
21 Como se vissem hórrida batalha; Havendo-o por milagre, assi dizia: Tão fermosa no gesto se mostrava
Nos ombros de um Tritão, com gesto aceso, Não sabem a razão de fúria tanta, Que as Estrelas e o Céu e o Ar vizinho
Vai a linda Dione furiosa; Não sabem nesta pressa quem lhe valha: 30 E tudo quanto a via, namorava.
Não sente quem a leva o doce peso, Cuidam que seus enganos são sabidos «Oh! Caso grande, estranho e não cuidado! Dos olhos, onde faz seu filho o ninho,
De soberbo com carga tão fermosa. E que hão-de ser por isso aqui punidos. Oh! Milagre claríssimo e evidente, Uns espíritos vivos inspirava,
Já chegam perto donde o vento teso Oh! Descoberto engano inopinado, Com que os Pólos gelados acendia,
Enche as velas da frota belicosa; 26 Oh! Pérfida, inimiga e falsa gente! E tornava do Fogo a Esfera, fria.
Repartem-se e rodeiam nesse instante Ei-los subitamente se lançavam Quem poderá do mal aparelhado
As naus ligeiras, que iam por diante. A seus batéis veloces que traziam; Livrar-se sem perigo, sabiamente, 35
Outros em cima o mar alevantavam Se lá de cima a Guarda Soberana E, por mais namorar o soberano
22 Saltando n’água, a nado se acolhiam; Não acudir à fraca força humana? Padre, de quem foi sempre amada e cara,
Põe-se a Deusa com outras em direito De um bordo e doutro súbito saltavam, Se lhe apresenta assi como ao Troiano,
Da proa capitaina, e ali fechando Que o medo os compelia do que viam; 31 Na selva Ideia, já se apresentara.
O caminho da barra, estão de jeito Que antes querem ao mar aventurar-se «Bem nos mostra a Divina Providência Se a vira o caçador que o vulto humano
Perdeu, vendo Diana na água clara, [109]40 Que esses chorosos olhos soberanos; Não poder resistir ao Luso horrendo.
Nunca os famintos galgos o mataram, Este povo, que é meu, por quem derramo. Que eu vos prometo, filha, que vejais
Que primeiro desejos o acabaram. As lágrimas que em vão caídas vejo, Esquecerem-se Gregos e Romanos, 49
Que assaz de mal lhe quero, pois que o amo, Pelos ilustres feitos que esta gente E Vereis o Mar Roxo, tão famoso,
[108]36 Sendo tu tanto contra meu desejo; Há-de fazer nas partes do Oriente. Tornar-se-lhe amarelo, de enfiado;
Os crespos fios d’ouro se esparziam Por ele a ti rogando, choro e bramo, Vereis de Ormuz o Reino poderoso
Pelo colo que a neve escurecia; E contra minha dita enfim pelejo. 45 Duas vezes tomado e sojugado.
Andando, as lácteas tetas lhe tremiam, Ora pois, porque o amo é mal tratado; Que, se o facundo Ulisses escapou Ali vereis o Mouro furioso
Com quem Amor brincava e não se via; Quero-lhe querer mal, será guardado. De ser na Ogígia Ilha eterno escravo, De suas mesmas setas traspassado;
Da alva petrina flamas lhe saíam, E se Antenor os seios penetrou Que quem vai contra os vossos, claro veja
Onde o Minino as almas acendia. 41 Ilíricos e a fonte de Timavo, Que, se resiste, contra si peleja.
Polas lisas colunas lhe trepavam Mas moura enfim nas mãos das brutas gentes, E se o piadoso Eneias navegou
Desejos, que como hera se enrolavam. Que pois eu fui.» E nisto, de mimosa, De Cila e de Caríbdis o mar bravo, 50
O rosto banha em lágrimas ardentes, Os vossos, mores cousas atentando, «Vereis a inexpugnábil Dio forte
37 Como co orvalho fica a fresca rosa. Novos mundos ao mundo irão mostrando. Que dous cercos terá, dos vossos sendo;
Cum delgado cendal as partes cobre Calada um pouco, como se entre os dentes Ali se mostrará seu preço e sorte,
De quem vergonha é natural reparo; Lhe impedira a fala piedosa, 46 Feitos de armas grandíssimos fazendo.
Porém nem tudo esconde nem descobre Torna a segui-la; e indo por diante, Fortalezas, cidades e altos muros Envejoso vereis o grão Mavorte
O véu, dos roxos lírios pouco avaro; Lhe atalha o poderoso e grão Tonante. Por eles vereis, filha, edificados; Do peito Lusitano, fero e horrendo;
Mas, pera que o desejo acenda e dobre, Os Turcos belacíssimos e duros Do Mouro ali verão que a voz extrema do
Lhe põe diante aquele objecto raro. 42 Deles sempre vereis desbaratados; falso.
Já se sentem no Céu, por toda a parte, E destas brandas mostras comovido, Os Reis da Índia, livres e seguros, Mahamede ao Céu blasfema.
Ciúmes em Vulcano, amor em Marte. Que moveram de um tigre o peito duro, Vereis ao Rei potente sojugados,
Co vulto alegre, qual, do Céu subido, E por eles, de tudo enfim senhores, 51
38 Torna sereno e claro o ar escuro, Serão dadas na terra leis milhores. Goa vereis aos Mouros ser tomada,
E mostrando no angélico sembrante As lágrimas lhe alimpa e, acendido, O qual virá despois a ser senhora
Co riso a tristeza misturada, Na face a beija e abraça o colo puro; 47 De todo o Oriente, e sublimada
Como dama que foi do incauto amante De modo que dali, se só se achara, Vereis este que agora, pressuroso, Cos triunfos da gente vencedora.
Em brincos amorosos mal tratada, Outro novo Cupido se gerara Por tantos medos o Indo vai buscando, Ali, soberba, altiva e exalçada,
Que se aqueixa e se ri num mesmo instante Tremer dele Neptuno de medroso, Ao Gentio que os Ídolos adora
E se torna entre alegre, magoada, 43 Sem vento suas águas encrespando. Duro freio porá, e a toda a terra
Destarte a Deusa a quem nenha iguala, E, co seu apertando o rosto amado, Oh! Caso nunca visto e milagroso, Que cuidar de fazer aos vossos guerra.
Mais mimosa que triste ao Padre fala: Que os saluços e lágrimas aumenta, Que trema e ferva o mar, em calma estando!
Como minino da ama castigado, Oh! Gente forte e de altos pensamentos, [112]52
39 Que quem no afaga o choro lhe acrecenta, Que também dela hão medo os Elementos! Vereis a fortaleza sustentar-se
«Sempre eu cuidei, ó Padre poderoso, Por lhe pôr em sossego o peito irado, De Cananor, com pouca força e gente;
Que, pera as cousas que eu do peito amasse, Muitos casos futuros lhe apresenta. [111]48 E vereis Calecu desbaratar-se,
Te achasse brando, afábil e amoroso, Dos Fados as entranhas revolvendo, «Vereis a terra que a água lhe tolhia, Cidade populosa e tão potente;
Posto que a algum contrairo lhe pesasse; Desta maneira enfim lhe está dizendo: Que inda há-de ser um porto mui decente, E vereis em Cochim assinalar-se
Mas, pois que contra mi te vejo iroso, Em que vão descansar da longa via Tanto um peito soberbo e insolente
Sem que to merecesse nem te errasse, [110]44 As naus que navegarem do Ocidente Que cítara jamais cantou vitória
Faça-se como Baco determina; «Fermosa filha minha, não temais Toda esta costa, enfim, que agora urdia Que assi mereça eterno nome e glória.
Assentarei, enfim, que fui mofina. Perigo algum nos vossos Lusitanos, O mortífero engano, obediente
Nem que ninguém comigo possa mais Lhe pagará tributos, conhecendo 53
Nunca com Marte instruto e furioso Com esta, as tristes almas revocava Mansamente as amarras lhe cortavam,
Se viu ferver Leucate, quando Augusto Do Inferno, e o vento lhe obedece; 62 Por serem, dando à costa, destruídos;
Nas civis Áctias guerras, animoso, Na cabeça o galero costumado; Não tens aqui senão aparelhado Mas com vista de linces vigiavam
O Capitão venceu Romano injusto, E destarte a Melinde foi chegado. O hospício que o cru Diomedes dava, Os Portugueses, sempre apercebidos;
Que dos povos de Aurora e do famoso Fazendo ser manjar acostumado Eles, como acordados os sentiram,
Nilo e do Bactra Cítico e robusto 58 De cavalos a gente que hospedava; Voando, e não remando, lhe fugiram.
A vitória trazia e presa rica, Consigo a Fama leva, por que diga As aras de Busíris infamado,
Preso da Egípcia linda e não pudica, Do Lusitano o preço grande e raro, Onde os hóspedes tristes imolava, 67
Que o nome ilustre a um certo amor obriga, Terás certas aqui, se muito esperas: Mas já as agudas proas apartando
54 E faz, a quem o tem, amado e caro. Fuge das gentes pérfidas e feras! Iam as vias húmidas de argento;
Como vereis o mar fervendo aceso Destarte vai fazendo a gente, amiga, Assopra-lhe galerno o vento e brando,
Cos incêndios dos vossos, pelejando, Co rumor famosíssimo e perclaro. 63 Com suave e seguro movimento.
Levando o Idololatra e o Mouro preso, Já Melinde em desejos arde todo Vai-te ao longo da costa discorrendo Nos perigos passados vão falando,
De nações diferentes triunfando; De ver da gente forte o gesto e modo. E outra terra acharás de mais verdade Que mal se perderão do pensamento
E, sujeita a rica Áurea Quersoneso, Lá quase junto donde o Sol, ardendo, Os casos grandes, donde em tanto aperto
Até o longico China navegando 59 Iguala o dia e noite em quantidade; A vida em salvo escapa por acerto.
E as Ilhas mais remotas do Oriente, Dali pera Mombaça logo parte, Ali tua frota alegre recebendo,
Ser-lhe-á todo o Oceano obediente. Aonde as naus estavam temerosas, Um Rei, com muitas obras de amizade, [116]68
Pera que à gente mande que se aparte Gasalhado seguro te daria Tinha ha volta dado o Sol ardente
55 Da barra imiga e terras suspeitosas; E, pera a Índia, certa e sábia guia.» E noutra começava, quando viram
De modo, filha minha, que de jeito Porque mui pouco val esforço e arte No longe dous navios, brandamente
Amostrarão esforço mais que humano, Contra infernais vontades enganosas; [115]64 Cos ventos navegando, que respiram.
Que nunca se verá tão forte peito, Pouco val coração, astúcia e siso, Isto Mercúrio disse, e o sono leva Porque haviam de ser da Maura gente,
Do Gangético mar ao Gaditano, Se lá dos Céus não vem celeste aviso. Ao Capitão, que, com mui grande espanto, Pera eles arribando, as velas viram.
Nem das Boreais ondas ao Estreito Acorda e vê ferida a escura treva Um, de temor do mal que arreceava,
Que mostrou o agravado Lusitano, [114]60 De üa súbita luz e raio santo; Por se salvar a gente à costa dava.
Posto que em todo o mundo, de afrontados, Meio caminho a noite tinha andado, E vendo claro quanto lhe releva
Ressucitassem todos os passados.» E as Estrelas no Céu, co a luz alheia, Não se deter na terra inica tanto, 69
Tinham largo Mundo alumiado, Com novo esprito ao mestre seu mandava Não é o outro que fica tão manhoso,
[113]56 E só co sono a gente se recreia. Que as velas desse ao vento que assoprava. Mas nas mãos vai cair do Lusitano,
Como isto disse, manda o consagrado O Capitão ilustre, já cansado Sem o rigor de Marte furioso.
Filho de Maia à Terra, por que tenha De vigiar a noite que arreceia, 65 E sem a fúria horrenda de Vulcano;
Um pacífico porto e sossegado, Breve repouso antão aos olhos dava, «Dai velas (disse) dai ao largo vento, Que, como fosse débil e medroso.
Pera onde sem receio a frota venha; A outra gente a quartos vigiava; Que o Céu nos favorece e Deus o manda; Da pouca gente o fraco peito humano,
E, pera que em Mombaça, aventurado, Que um mensageiro vi do claro Assento, Não teve resistência; e, se a tivera,
O forte Capitão se não detenha, 61 Que só em favor de nossos passos anda.» Mais dano, resistindo, recebera.
Lhe manda mais que em sonhos lhe mostrasse Quando Mercúrio em sonhos lhe aparece, Alevanta-se nisto o movimento
A terra onde quieto repousasse. Dizendo: «Fuge, fuge, Lusitano, Dos marinheiros, de ha e de outra banda; 70
Da cilada que o Rei malvado tece, Levam gritando as âncoras acima, E como o Gama muito desejasse
57 Por te trazer ao fim e extremo dano! Mostrando a ruda força que se estima. Piloto pera a Índia, que buscava,
Já pelo ar o Cileneu voava; Fuge, que o vento e o Céu te favorece; Cuidou que entre estes Mouros o tomasse,
Com as asas nos pés à Terra dece; Sereno o tempo tens e o Oceano, 66 Mas não lhe sucedeu como cuidava;
Sua vara fatal na mão levava, E outro Rei mais amigo, noutra parte, Neste tempo que as ancoras levavam, Que nenhum deles há que lhe ensinasse
Com que os olhos cansados adormece; Onde podes seguro agasalhar-te! Na sombra escura os Mouros escondidos A que parte dos céus a Índia estava;
Porém dizem-lhe todos que tem perto O Rei, que já sabia da nobreza Como porto mui forte e mui seguro,
Melinde, onde acharão piloto certo. Que tanto os Portugueses engrandece, De todo o Oriente conhecido, [120]84
Tomarem o seu porto tanto preza Te vimos a buscar, pera que achemos E porque é de vassalos o exercício
71 Quanto a gente fortíssima merece; Em ti o remédio certo que queremos. Que os membros têm, regidos da cabeça,
Louvam do Rei os Mouros a bondade, E com verdadeiro ânimo e pureza, Não quererás, pois tens de Rei o ofício,
Condição liberal, sincero peito, Que os peitos generosos enobrece, [119]80 Que ninguém a seu Rei desobedeça;
Magnificência grande e humanidade, Lhe manda rogar muito que saíssem «Não somos roubadores que, passando Mas as mercês e o grande benefício
Com partes de grandíssimo respeito. Pera que de seus reinos se servissem. Pelas fracas cidades descuidadas, Que ora acha em ti, promete que conheça
O Capitão o assela por verdade, A ferro e a fogo as gentes vão matando, Em tudo aquilo que ele e os seus puderem,
Porque já lho dissera deste jeito [118]76 Por roubar-lhe as fazendas cobiçadas; Enquanto os rios pera o mar correrem.»
O Cileneu em sonhos; e partia São oferecimentos verdadeiros Mas, da soberba Europa navegando,
Pera onde o sonho e o Mouro lhe dizia. E palavras sinceras, não dobradas, Imos buscando as terras apartadas 85
As que o Rei manda aos nobres cavaleiros Da Índia, grande e rica, por mandado Assi dizia; e todos juntamente,
[117]72 Que tanto mar e terras têm passadas. De um Rei que temos, alto e sublimado. Uns com outros em prática falando,
Era no tempo alegre, quando entrava Manda-lhe mais lanígeros carneiros Louvavam muito o estâmago da gente
No roubador de Europa a luz Febeia, E galinhas domésticas cevadas, 81 Que tantos céus e mares vai passando;
Quando um e o outro corno lhe aquentava, Com as frutas que antão na terra havia; Que gèração tão dura há hi de gente, E o Rei ilustre, o peito obediente
E Flora derramava o de Amalteia; E a vontade à dádiva excedia. Que bárbaro costume e usança feia, Dos Portugueses na alma imaginando,
A memória do dia renovava Que não vedem os portos tão somente, Tinha por valor grande e mui subido
O pressuroso Sol, que o Céu rodeia, 77 Mas inda o hospício da deserta areia? O do Rei que é tão longe obedecido;
Em que Aquele a quem tudo está sujeito Recebe o Capitão alegremente Que má tenção, que peito em nós se sente,
O selo pôs a quanto tinha feito; O mensageiro ledo e seu recado; Que de tão pouca gente se arreceia? 86
E logo manda ao Rei outro presente, Que, com laços armados, tão fingidos, E com risonha vista e ledo aspeito,
73 Que de longe trazia aparelhado: Nos ordenassem ver-nos destruídos? Responde ao embaixador, que tanto estima:
Quando chegava a frota àquela parte Escarlata purpúrea, cor ardente, «Toda a suspeita má tirai do peito,
Onde o Reino Melinde já se via, O ramoso coral, fino e prezado, 82 Nenhum frio temor em vós se imprima,
De toldos adornada e leda de arte Que debaxo das águas mole crece, Mas tu, em quem mui certo confiamos Que vosso preço e obras são de jeito
Que bem mostra estimar o Santo dia. E, como é fora delas, se endurece. Achar-se mais verdade, ó Rei benino, Pera vos ter o mundo em muita estima;
Treme a bandeira, voa o estandarte, E aquela certa ajuda em ti esperamos E quem vos fez molesto tratamento
A cor purpúrea ao longe aparecia; 78 Que teve o perdido Ítaco em Alcino, Não pode ter subido pensamento.
Soam os atambores e pandeiros; Manda mais um, na prática elegante, A teu porto seguros navegamos,
E assi entravam ledos e guerreiros. Que co Rei nobre as pazes concertasse Conduzidos do intérprete divino; 87
E que de não sair, naquele instante, Que, pois a ti nos manda, está mui «De não sair em terra toda a gente,
74 De suas naus em terra, o desculpasse. Claro Que és de peito sincero, humano e raro. Por observar a usada preminência,
Enche-se toda a praia Melindana Partido assi o embaixador prestante, Ainda que me pese estranhamente,
Da gente que vem ver a leda armada, Como na terra ao Rei se apresentasse, 83 Em muito tenho a muita obediência
Gente mais verdadeira e mais humana Com estilo que Palas lhe ensinava, E não cuides, ó Rei, que não saísse Mas, se lho o regimento não consente,
Que toda a doutra terra atrás deixada. Estas palavras tais falando orava: O nosso Capitão esclarecido Nem eu consentirei que a excelência
Surge diante a frota Lusitana, A ver-te ou a servir-te, porque visse De peitos tão leais em si desfaça,
Pega no fundo a âncora pesada; 79 Ou suspeitasse em ti peito fingido; Só porque a meu desejo satisfaça.
Mandam fora um dos Mouros que tomaram, «Sublime Rei, a quem do Olimpo puro Mas saberás que o fez, por que cumprisse
Por quem sua vinda ao Rei manifestaram. Foi da suma Justiça concedido O regimento, em tudo obedecido, [121]88
Refrear o soberbo povo duro, De seu Rei, que lhe manda que não saia, «Porém, como a luz crástina chegada
75 Não menos dele amado, que temido: Deixando a frota, em nenhum porto ou praia. Ao mundo for, em minhas almàdias
Eu irei visitar a forte armada, Quando o Rei Melindano se embarcava, Não menos guarnecido, o Lusitano, Cas mostras de espanto e admiração,
Que ver tanto desejo há tantos dias. A ver a frota que no mar estava. Nos seus batéis, da frota se partia, O Mouro o gesto e o modo lhe notava,
E, se vier do mar desbaratada A receber no mar o Melindano, Como quem em mui grande estima tinha
Do furioso vento e longas vias, 93 Com lustrosa e honrada companhia. Gente que de tão longe à Índia vinha.
Aqui terá de limpos pensamentos Viam-se em derredor ferver as praias, Vestido o Gama vem ao modo Hispano,
Piloto, munições e mantimentos.» Da gente que a ver só concorre leda; Mas Francesa era a roupa que vestia, 102
Luzem da fina púrpura as cabaias, De cetim da Adriática Veneza, E com grandes palavras lhe oferece
89 Lustram os panos da tecida seda. Carmesi, cor que a gente tanto preza; Tudo o que de seus reinos lhe cumprisse,
Isto disse; e nas águas se escondia Em lugar de guerreiras azagaias E que, se mantimento lhe falece,
O filho de Latona; e o mensageiro, E do arco que os cornos arremeda 98 Como se próprio fosse, lho pedisse.
Co a embaixada, alegre se partia Da La, trazem ramos de palmeira, De botões d’ouro as mangas vêm tomadas Diz-lhe mais que por fama bem conhece
Pera a frota no seu batel ligeiro. Dos que vencem, coroa verdadeira. Onde o Sol, reluzindo, a vista cega; A gente Lusitana, sem que a visse;
Enchem-se os peitos todos de alegria, As calças soldadescas, recamadas Que já ouviu dizer que noutra terra
Por terem o remédio verdadeiro 94 Do metal que Fortuna a tantos nega; Com gente de sua Lei tivesse guerra;
Pera acharem a terra que buscavam; Um batel grande e largo, que toldado E com pontas do mesmo, delicadas,
E assi ledos a noite festejavam. Vinha de sedas de diversas cores, Os golpes do gibão ajunta e achega; 103
Traz o Rei de Melinde, acompanhado Ao Itálico modo a áurea espada; E como por toda África se soa,
90 De nobres de seu Reino e de senhores. Pruma na gorra, um pouco declinada. Lhe diz, os grandes feitos que fizeram
Não faltam ali os raios de artifício, Vem de ricos vestidos adornado, Quando nela ganharam a coroa
Os trémulos cometas imitando; Segundo seus costumes e primores; 99 Do Reino onde as Hespéridas viveram;
Fazem os bombardeiros seu ofício, Na cabeça, ha fota guarnecida Nos de sua companhia se mostrava E com muitas palavras apregoa
O céu, a terra e as ondas atroando; De ouro, e de seda e de algodão tecida; Da tinta que dá o múrice excelente O menos que os de Luso mereceram
Mostra-se dos Cyclopas o exercício, A vária cor, que os olhos alegrava, E o mais que pela fama o Rei sabia;
Nas bombas que de fogo estão queimando; 95 E a maneira do trajo diferente. Mas desta sorte o Gama respondia:
Outros com vozes com que o céu feriam, Cabaia de Damasco rico e dino, Tal o fermoso esmalte se notava
Instrumentos altíssonos tangiam. Da Tíria cor, entre eles estimada; Dos vestidos, olhados juntamente, [125]103
Um colar ao pescoço, de ouro fino, Qual aparece o arco rutilante «Ó tu que, só, tiveste piedade,
91 Onde a matéria da obra é superada, Da bela Ninfa, filha de Taumante. Rei benigno, da gente Lusitana,
Respondem-lhe da terra juntamente, Cum resplandor reluze adamantino; Que com tanta miséria e adversidade
Co raio volteando com zunido; Na cinta a rica adaga, bem lavrada; [124]100 Dos mares exprimenta a fúria insana:
Anda em giros no ar a roda ardente, Nas alparcas dos pés, em fim de tudo, Sonorosas trombetas incitavam Aquela alta e divina Eternidade
Estoira o pó sulfúreo escondido; Cobrem ouro e aljôfar ao veludo. Os ânimos alegres, ressoando; Que o Céu revolve e rege a gente humana,
A grita se alevanta ao céu, da gente; Dos Mouros os batéis o mar coalhavam, Pois que de ti tais obras recebemos,
O mar se via em fogos acendido [123]96 Os toldos pelas águas arrojando; Te pague o que nós outros não podemos.
E não menos a terra; e assi festeja Com um redondo emparo alto de seda, As bombardas horríssonas bramavam,
Um ao outro, à maneira de peleja. Na alta e dourada hástia enxerido, Com as nuvens de fumo o Sol tomando; 105
Um ministro à solar quentura veda Amiúdam-se os brados acendidos, «Tu só, de todos quantos queima Apolo,
[122]92 Que não ofenda e queime o Rei subido. Tapam com as mãos os Mouros os ouvidos. Nos recebes em paz, do mar profundo;
Mas já o Céu inquieto, revolvendo, Música traz na proa, estranha e leda, Em ti, dos ventos hórridos de Eolo
As gentes incitava a seu trabalho; De áspero som, horríssono ao ouvido, 101 Refúgio achamos, bom, fido e jucundo.
E já a mãe de Menon, a luz trazendo De trombetas arcadas em redondo, Já no batel entrou do Capitão Enquanto apacentar o largo Pólo
Ao sono longo punha certo atalho; Que, sem concerto, fazem rudo estrondo. O Rei, que nos seus braços o levava; As Estrelas, e o Sol der lume ao Mundo,
Iam-se as sombras lentas desfazendo, Ele, co a cortesia que a razão Onde quer que eu viver, com fama e glória
Sobre as flores da terra em frio orvalho, 97 (Por ser Rei) requeria, lhe falava. Viverão teus louvores em memória.»
Vendo os costumes bárbaros, alheios, Assi o claro inventor da Medicina,
106 Que a nossa África ruda tem criado; De quem Orfeu pariste, ó linda Dama, 6
Isto dizendo, os barcos vão remando Conta, que agora vêm cos áureos freios Nunca por Dafne, Clície ou Leucotoe, Entre a Zona que o Cancro senhoreia,
Pera a frota, que o Mouro ver deseja; Os cavalos que o carro marchetado Te negue o amor divido, como soe. Meta Setentrional do Sol luzente,
Vão as naus ha e ha rodeando, Do novo Sol, da fria Aurora trazem; E aquela que por fria se arreceia
Por que de todas tudo note e veja. O vento dorme, o mar e as ondas jazem. 2 Tanto, como a do meio por ardente,
Mas pera o Céu Vulcano fuzilando, Põe tu, Ninfa, em efeito meu desejo, Jaz a soberba Europa, a quem rodeia,
A frota co as bombardas o festeja 111 Como merece a gente Lusitana; Pela parte do Arcturo e do Ocidente.
E as trombetas canoras lhe tangiam; «E não menos co tempo se parece Que veja e saiba o mundo que do Tejo Com suas salsas ondas o Oceano,
Cos anafis os Mouros respondiam. O desejo de ouvir-te o que contares; O licor de Aganipe corre e mana. E pela Austral, o Mar Mediterrano.
Que quem há que por fama não conhece Deixa as flores de Pindo, que já vejo
107 As obras Portuguesas singulares? Banhar-me Apolo na água soberana; 7
Mas, despois de ser tudo já notado Não tanto desviado resplandece Senão direi que tens algum receio Da parte donde o dia vem nascendo,
Do generoso Mouro, que pasmava De nós o claro Sol, pera julgares Que se escureça o teu querido Orpheio. Com Ásia se avizinha; mas o rio
Ouvindo o instrumento inusitado, Que os Melindanos têm tão rudo peito Que dos Montes Rifeios vai correndo
Que tamanho terror em si mostrava, Que não estimem muito um grande feito. 3 Na alagoa Meótis, curvo e frio,
Mandava estar quieto e ancorado Prontos estavam todos escuitando As divide, e o mar que, fero e horrendo,
N’água o batel ligeiro que os levava, [127]112 O que o sublime Gama contaria, Viu dos Gregos o irado senhorio,
Por falar de vagar co forte Gama Cometeram soberbos os Gigantes, Quando, despois de um pouco estar cuidando Onde agora de Tróia triunfante
Nas cousas de que tem notícia e fama. Com guerra vã, o Olimpo claro e puro; Alevantando o rosto, assi dizia: Não vê mais que a memória o navegante.
Tentou Perito e Teseu, de ignorantes, «Mandas-me, ó Rei, que conte declarando
[126]108 O Reino de Plutão, horrendo e escuro. De minha gente a grão genealogia; [131]8
Em práticas o Mouro diferentes Se houve feitos no mundo tão possantes, Não me mandas contar estranha história, Lá onde mais debaxo está do Pólo
Se deleitava, perguntando agora Não menos é trabalho ilustre e duro, Mas mandas-me louvar dos meus a glória. Os Montes Hiperbóreos aparecem
Pelas guerras famosas e excelentes Quanto foi cometer Inferno e Céu, E aqueles onde sempre sopra Eolo,
Co povo havidas que a Mafoma adora; Que outrem cometa a fúria de Nereu. [130]4 E co nome dos sopros se enobrecem
Agora lhe pergunta pelas gentes Que outrem possa louvar esforço alheio, Aqui tão pouca força têm de Apolo
De toda a Hespéria última, onde mora; 112 Cousa é que se costuma e se deseja; Os raios que no mundo resplandecem,
Agora, pelos povos seus vizinhos, Queimou o sagrado templo de Diana, Mas louvar os meus próprios, arreceio que a neve está contino pelos montes,
Agora, pelos húmidos caminhos. Do sutil Tesifónio fabricado, Que louvor tão suspeito mal me esteja; Gelado o mar, geladas sempre as fontes.
Heróstrato, por ser da gente humana E, pera dizer tudo, temo e creio
109 Conhecido no mundo e nomeado. Que qualquer longo tempo curto seja; 9
«Mas antes, valeroso Capitão, Se também com tais obras nos engana Mas, pois o mandas, tudo se te deve; Aqui dos Citas grande quantidade
Nos conta (lhe dizia), diligente, O desejo de um nome aventajado, Irei contra o que devo, e serei breve. Vivem, que antigamente grande guerra
Da terra tua o clima e região Mais razão há que queira eterna glória Tiveram, sobre a humana antiguidade,
Do mundo onde morais, distintamente; Quem faz obras tão dinas de memória.». 5 Cos que tinham antão a Egípcia terra;
E assi de vossa antiga geração, Além disso, o que a tudo enfim me obriga Mas quem tão fora estava da verdade
E o princípio do Reino tão potente, É não poder mentir no que disser, (Já que o juízo humano tanto erra),
Cos sucessos das guerras do começo, [129] CANTO TERCEIRO Porque de feitos tais, por mais que diga, Pera que do mais certo se informara,
Que, sem sabê-las, sei que são de preço; 1 Mais me há-de ficar inda por dizer. Ao campo Damasceno o perguntara.
Agora tu, Calíope, me ensina Mas, porque nisto a ordem leve e siga,
110 O que contou ao Rei o ilustre Gama; Segundo o que desejas de saber, 10
«E assi também nos conta dos rodeios Inspira imortal canto e voz divina Primeiro tratarei da larga terra, Agora nestas partes se nomeia
Longos em que te traz o Mar irado, Neste peito mortal, que tanto te ama. Despois direi da sanguinosa guerra. A Lápia fria, a inculta Noruega,
Escandinávia Ilha, que se arreia Braço forte, de gente sublimada Tem o Tarragonês, que se fez claro Voando deste Rei a fama estranha
Das vitórias que Itália não lhe nega. Não menos nos engenhos que na espada. Sujeitando Parténope inquieta; Do Herculano Calpe à Cáspia Serra,
Aqui, enquanto as águas não refreia O Navarro, as Astúrias, que reparo Muitos, pera na guerra esclarecer-se,
O congelado Inverno, se navega 15 Já foram contra a gente Mahometa; Vinham a ele e à morte oferecer-se.
Um braço do Sarmático Oceano «Em torno o cerca o Reino Neptunino, Tem o Galego cauto e o grande e raro
Pelo Brússio, Suécio e frio Dano. Cos muros naturais por outra parte; Castelhano, a quem fez o seu Planeta [135]24
Pelo meio o divide o Apenino, Restituidor de Espanha e senhor dela; E com um amor intrínseco acendidos
11 Que tão ilustre fez o pátrio Marte; Bétis, Lião, Granada, com Castela. Da Fé, mais que das honras populares,
«Entre este Mar e o Tánais vive estranha Mas, despois que o Porteiro tem divino, Eram de várias terras conduzidos,
Gente, Rutenos, Moscos e Livónios, Perdendo o esforço veio e bélica arte; [134]20 Deixando a pátria amada e próprios lares.
Sármatas outro tempo; e na montanha Pobre está já de antiga potestade. Eis aqui, quase cume da cabeça Despois que em feitos altos e subidos
Hircínia os Marcomanos são Polónios. Tanto Deus se contenta de humildade! De Europa toda, o Reino Lusitano, Se mostraram nas armas singulares,
Sujeitos ao Império de Alemanha Onde a terra se acaba e o mar começa Quis o famoso Afonso que obras tais
São Saxones, Boémios e Panónios [133]16 E onde Febo repousa no Oceano. Levassem prémio dino e dões iguais.
E outras várias nações, que o Reno frio Gália ali se verá, que nomeada Este quis o Céu justo que floreça
Lava, e o Danúbio, Amásis e Álbis rio. Cos Cesáreos triunfos foi no mundo; Nas armas contra o torpe Mauritano, 25
Que do Séquana e Ródano é regada Deitando-o de si fora; e lá na ardente Destes Anrique (dizem que segundo
[132]12 E do Garuna frio e Reno fundo. África estar quieto o não consente. Filho de um Rei de Hungria exprimentado)
Entre o remoto Istro e o claro Estreito Logo os montes da Ninfa sepultada, Portugal houve em sorte, que no mundo
Aonde Hele deixou, co nome, a vida, Pirene, se alevantam, que, segundo 21 Então não era ilustre nem prezado;
Estão os Traces de robusto peito, Antiguidades contam, quando arderam, Esta é a ditosa pátria minha amada, E, pera mais sinal de amor profundo,
Do fero Marte pátria tão querida, Rios de ouro e de prata antão correram. À qual se o Céu me dá que eu sem perigo Quis o Rei Castelhano que casado
Onde, co Hemo, o Ródope sujeito Torne, com esta empresa já acabada, Com Teresa, sua filha, o Conde fosse;
Ao Otomano está, que sometida 17 Acabe-se esta luz ali comigo. E com ela das terras tomou posse.
Bizâncio tem a seu serviço indino: Eis aqui se descobre a nobre Espanha, Esta foi Lusitânia, derivada
Boa injúria do grande Costantino! Como cabeça ali de Europa toda, De Luso ou Lisa, que de Baco antigo 26
Em cujo senhorio e glória estranha Filhos foram, parece, ou companheiros, Este, despois que contra os descendentes
13 Muitas voltas tem dado a fatal roda; E nela antão os íncolas primeiros. Da escrava Agar vitórias grandes teve,
Logo de Macedónia estão as gentes, Mas nunca poderá, com força ou manha, Ganhando muitas terras adjacentes,
A quem lava do Áxio a água fria; A Fortuna inquieta por-lhe noda 22 Fazendo o que a seu forte peito deve,
E vós também, ó terras excelentes Que lha não tire o esforço e ousadia Desta o pastor nasceu que no seu nome Em prémio destes feitos excelentes
Nos costumes, engenhos e ousadia, Dos belicosos peitos que em si cria. Se vê que de homem forte os feitos teve; Deu-lhe o supremo Deus, em tempo breve,
Que criastes os peitos eloquentes Cuja fama ninguém virá que dome, Um filho que ilustrasse o nome ufano
E os juízos de alta fantasia, 18 Pois a grande de Roma não se atreve. Do belicoso Reino Lusitano.
Com quem tu, clara Grécia, o Céu penetras, Com Tingitânia entesta; e ali parece Esta, o Velho que os filhos próprios come,
E não menos por armas, que por letras. Que quer fechar o Mar Mediterrano Por decreto do Céu, ligeiro e leve, 27
Onde o sabido Estreito se enobrece Veio a fazer no mundo tanta parte, Já tinha vindo Anrique da conquista
14 Co extremo trabalho do Tebano. Criando-a Reino ilustre; e foi destarte: Da cidade Hierosólima sagrada,
Logo os Dálmatas vivem; e no seio Com nações diferentes se engrandece, E do Jordão a areia tinha vista,
Onde Antenor já muros levantou, Cercadas com as ondas do Oceano; 23 Que viu de Deus a carne em si lavada
A soberba Veneza está no meio Todas de tal nobreza e tal valor Um Rei, por nome Afonso, foi na Espanha, (Que, não tendo Gotfredo a quem resista,
Das águas, que tão baxa começou. Que qualquer delas cuida que é milhor. Que fez aos Sarracenos tanta guerra, Despois de ter Judeia sojugada,
Da terra um braço vem ao mar, que, cheio Que, por armas sanguinas, força e manha, Muitos que nestas guerras o ajudaram
De esforço, nações várias sujeitou; 19 A muitos fez perder a vida e a terra. Pera seus senhorios se tornaram);
Da maldade dos pais, da culpa alheia, De Egas Moniz; mas não consente o peito Ó grão fidelidade Portuguesa
[136]28 Olhai que inda Teresa peca mais! Do moço ilustre a outrem ser sujeito. De vassalo, que a tanto se obrigava!
Quando, chegado ao fim de sua idade, Incontinência má, cobiça feia, Que mais o Persa fez naquela empresa
O forte e famoso Húngaro estremado, São as causas deste erro principais: 37 Onde rosto e narizes se cortava?
Forçado da fatal necessidade, Cila, por ha mata o velho pai; Chegado tinha o prazo prometido, Do que ao grande Dario tanto pesa,
O esprito deu a Quem lho tinha dado. Esta, por ambas, contra o filho vai. Em que o Rei Castelhano já aguardava Que mil vezes dizendo suspirava
Ficava o filho em tenra mocidade, Que o Príncipe, a seu mando sometido. Que mais o seu Zopyro são prezara
Em quem o pai deixava seu traslado, 33 Lhe desse a obediência que esperava. Que vinte Babilónias que tomara.
Que do mundo os mais fortes igualava: Mas já o Príncipe claro o vencimento Vendo Egas que ficava fementido,
Que de tal pai tal filho se esperava. Do padrasto e da inica mãe levava; O que dele Castela não cuidava, 42
Já lhe obedece a terra, num momento, Determina de dar a doce vida Mas já o Príncipe Afonso aparelhava
29 Que primeiro contra ele pelejava; A troco da palavra mal cumprida. O Lusitano exército ditoso,
Mas o velho rumor (não sei se errado, Porém, vencido de ira o entendimento, Contra o Mouro que as terras habitava
Que em tanta antiguidade não há certeza) A mãe em ferros ásperos atava; 38 De além do claro Tejo deleitoso;
Conta que a mãe, tomando todo o estado, Mas de Deus foi vingada em tempo breve. E com seus filhos e mulher se parte Já no campo de Ourique se assentava
Do segundo himeneu não se despreza. Tanta veneração aos pais se deve! A alevantar co eles a fiança, O arraial soberbo e belicoso,
O filho órfão deixava deserdado, Descalços e despidos, de tal arte Defronte do inimigo Sarraceno,
Dizendo que nas terras a grandeza 34 Que mais move a piedade que a vingança. Posto que em força e gente tão pequeno,
Do senhorio todo só sua era, Eis se ajunta o soberbo Castelhano «Se pretendes, Rei alto, de vingar-te
Porque, pera casar, seu pai lhas dera. Pera vingar a injúria de Teresa, De minha temerária confiança 43
Contra o, tão raro em gente, Lusitano, (Dizia) eis aqui venho oferecido Em nenha outra cousa confiado,
30 A quem nenhum trabalho agrava ou pesa. A te pagar co a vida o prometido senão no sumo Deus que o Céu regia,
Mas o Príncipe Afonso (que destarte Em batalha cruel, o peito humano, Que tão pouco era o povo bautizado,
Se chamava, do avô tomando o nome), Ajudado da Angélica defesa, 40 Que, pera um só, cem Mouros haveria.
Vendo-se em suas terras não ter parte, Não só contra tal fúria se sustenta, Vês aqui trago as vidas inocentes Julga qualquer juízo sossegado
Que a mãe com seu marido as manda e come, Mas o inimigo aspérrimo afugenta. Dos filhos sem pecado e da consorte; Por mais temeridade que ousadia
Fervendo-lhe no peito o duro Marte, Se a peitos generosos e excelentes Cometer um tamanho ajuntamento,
Imagina consigo como as tome: 35 Dos fracos satisfaz a fera morte, Que pera um cavaleiro houvesse cento.
Revolvidas as causas no conceito, Não passa muito tempo, quando o forte Vês aqui as mãos e a língua delinquentes:
Ao propósito firme segue o efeito. Príncipe em Guimarães está cercado Nelas sós exprimenta toda sorte [140]44
De infinito poder, que desta sorte De tormentos, de mortes, pelo estilo Cinco Reis Mouros são os inimigos,
31 Foi refazer-se o imigo magoado; De Sínis e do touro de Perilo.» Dos quais o principal Ismar se chama;
De Guimarães o campo se tingia Mas, com se oferecer à dura morte Todos exprimentados nos perigos
Co sangue próprio da intestina guerra, O fiel Egas amo, foi livrado; [139]40 Da guerra, onde se alcança a ilustre fama.
Onde a mãe, que tão pouco o parecia, Que, de outra arte, pudera ser perdido, Qual diante do algoz o condenado, Seguem guerreiras damas seus amigos,
A seu filho negava o amor e a terra. Segundo estava mal apercebido. Que já na vida a morte tem bebido, Imitando a fermosa e forte Dama
Co ele posta em campo já se via; Põe no cepo a garganta e já entregado De quem tanto os Troianos se ajudaram,
E não vê a soberba o muito que erra [138]36 Espera pelo golpe tão temido: E as que o Termodonte já gostaram.
Contra Deus, contra o maternal amor; Mas o leal vassalo, conhecendo Tal diante do Príncipe indinado
Mas nela o sensual era maior. Que seu senhor não tinha resistência, Egas estava, a tudo oferecido. 45
Se vai ao Castelhano, prometendo Mas o Rei vendo a estranha lealdade, A matutina luz, serena e fria,
[137]32 Que ele faria dar-lhe obediência. Mais pôde, enfim, que a ira, a piedade. As Estrelas do Pólo já apartava,
Ó Progne crua, ó mágica Medeia! Levanta o inimigo o cerco horrendo, Quando na Cruz o Filho de Maria,
Se em vossos próprios filhos vos vingais Fiado na promessa e consciência 41 Amostrando-se a Afonso, o animava.
Ele, adorando Quem lhe aparecia, Escrevendo a memória, em vária tinta, Cuja alta fama antão subia aos céus,
Na Fé todo inflamado assi gritava: 50 Daquele de Quem foi favorecido. Foi posto cerco aos muros Ulisseus.
«Aos Infiéis, Senhor, aos Infiéis, Destarte o Mouro, atónito e Torvado, Em cada um dos cinco, cinco pinta,
E não a mi, que creio o que podeis!» Toma sem tento as armas mui depressa; Porque assi fica o número cumprido, 59
Não foge, mas espera confiado, Contando duas vezes o do meio, Cinco vezes a La se escondera
46 E o ginete belígero arremessa. Dos cinco azuis que em cruz pintando veio. E outras tantas mostrara cheio o rosto,
Com tal milagre os ânimos da gente O Português o encontra denodado, Quando a cidade, entrada, se rendera
Portuguesa inflamados, levantavam Pelos peitos as lanças lhe atravessa; 55 Ao duro cerco que lhe estava posto
Por seu Rei natural este excelente Uns caem meios mortos e outros vão Passado já algum tempo que passada Foi a batalha tão sanguina e fera
Príncipe, que do peito tanto amavam; A ajuda convocando do Alcorão. Era esta grão vitória, o Rei subido Quanto obrigava o firme prosuposto
E diante do exército potente A tomar vai Leiria, que tomada De vencedores ásperos e ousados
Dos imigos, gritando, o céu tocavam, 51 Fora, mui pouco havia, do vencido. E de vencidos já desesperados.
Dizendo em alta voz: «Real, real, Ali se vêm encontros temerosos, Com esta a forte Arronches sojugada
Por Afonso, alto Rei de Portugal!» Pera se desfazer ha alta serra, Foi juntamente; e o sempre enobrecido [144]60
E os animais correndo furiosos Scabelicastro, cujo campo ameno Destarte, enfim, tomada se rendeu
47 Que Neptuno amostrou, ferindo a terra; Tu, claro Tejo, regas tão sereno. Aquela que, nos tempos já passados,
Qual cos gritos e vozes incitado, Golpes se dão medonhos e forçosos; À grande força nunca obedeceu
Pela montanha, o rábido moloso Por toda a parte andava acesa a guerra; [143]56 Dos frios povos Cíticos ousados,
Contra o touro remete, que fiado Mas o de Luso arnês, couraça e malha, «A estas nobres vilas sometidas Cujo poder a tanto se estendeu
Na força está do corno temeroso; Rompe, corta desfaz abola e talha. Ajunta também Mafra, em pouco espaço, Que o Ibero o viu e o Tejo amedrontados;
Ora pega na orelha, ora no lado, E, nas serras da La conhecidas, E, enfim, co Bétis tanto alguns puderam
Latindo mais ligeiro que forçoso, [142]52 Sojuga a fria Sintra o duro braço; Que à terra, de Vandália nome deram.
Até que enfim, rompendo-lhe a garganta, Cabeças pelo campo vão saltando, Sintra, onde as Naiades, escondidas
Do bravo a força horrenda se quebranta: Braços, pernas, sem dono e sem sentido, Nas fontes, vão fugindo ao doce laço 61
E doutros as entranhas palpitando, Onde Amor as enreda brandamente, Que cidade tão forte porventura
[141]48 Pálida a cor, o gesto amortecido. Nas águas acendendo fogo ardente. Haverá que resista, se Lisboa
Tal do Rei novo o estâmago acendido Já perde o campo o exército nefando; Não pôde resistir à força dura
Por Deus e polo povo juntamente, Correm rios do sangue desparzido, 57 Da gente cuja fama tanto voa?
O Bárbaro comete, apercebido Com que também do campo a cor se perde, E tu, nobre Lisboa, que no mundo Já lhe obedece toda a Estremadura,
Co animoso exército rompente. Tornado carmesi, de branco e verde. Facilmente das outras és princesa, Óbidos, Alanquer, por onde soa
Levantam nisto os Perros o alarido Que edificada foste do facundo O tom das frescas águas entre as pedras,
Dos gritos; tocam a arma, ferve a gente, 53 Por cujo engano foi Dardânia acesa; Que murmurando lava, e Torres Vedras.
As lanças e arcos tomam, tubas soam, Já fica vencedor o Lusitano, Tu a quem obedece o Mar profundo
Instrumentos de guerra tudo atroam! Recolhendo os troféus e presa rica; Obedeceste à força Portuguesa, 62
Desbaratado e roto o Mauro Hispano Ajudada também da forte armada E vós também, ó terras Transtaganas,
49 Três dias o grão Rei no campo fica. Que das Boreais partes foi mandada. Afamadas co dom da flava Ceres,
Bem como quando a flama, que ateada Aqui pinta no branco escudo ufano, Obedeceis às forças mais que humanas,
Foi nos áridos campos (assoprando Que agora esta vitória certifica, 58 Entregando-lhe os muros e os poderes;
O sibilante Bóreas), animada Cinco escudos azuis esclarecidos, Lá do Germânico Álbis e do Reno E tu, lavrador Mouro, que te enganas,
Co vento, o seco mato vai queimando; Em sinal destes cinco Reis vencidos. E da fria Bretanha conduzidos, Se sustentar a fértil terra queres:
A pastoral companha, que deitada A destruir o povo Sarraceno Que Elvas e Moura e Serpa, conhecidas,
Co doce sono estava, despertando 54 Muitos com tenção santa eram partidos. E Alcáçare do Sal estão rendidas.
Ao estridor do fogo que se ateia, E nestes cinco escudos pinta os trinta Entrando a boca já do Tejo ameno,
Recolhe o fato e foge pera a aldeia: Dinheiros por que Deus fora vendido, Co arraial do grande Afonso unidos, 63
Eis a nobre cidade, certo assento Dum pânico terror todo assombrado, [147]72 No Bárbaro que tem cercado Beja.
Do rebelde Sertório antigamente, Só de segui-lo o exército procura; «Posto que a rica Arábia e que os feroces Não tarda muito o Príncipe ditoso
Onde ora as águas nítidas de argento Sendo estes que fizeram tanto abalo Heníocos e Colcos, cuja fama Sem ver o fim daquilo que deseja.
Vêm sustentar de longo a terra e a gente No mais que só sessenta de cavalo. O Véu dourado estende, e os Capadoces Assi estragado, o Mouro na vingança
Pelos arcos reais, que, cento e cento, E Judeia, que um Deus adora e ama, De tantas perdas põe sua esperança.
Nos ares se alevantam nobremente, [146]68 E que os moles Sofenos e os atroces
Obedeceu por meio e ousadia «Logo segue a vitória, sem tardança, Cilícios, com a Arménia, que derrama 77
De Giraldo, que medos não temia. O grão Rei incansabil, ajuntando As águas dos dous rios cuja fonte Já se ajuntam do monte a quem Medusa
Gentes de todo o Reino, cuja usança Está noutro mais alto e santo monte, O corpo fez perder que teve o Céu;
[145]64 Era andar sempre terras conquistando. Já vêm do promontório de Ampelusa
Já na cidade Beja vai tomar Cercar vai Badajoz e logo alcança 73 E do Tinge, que assento foi de Anteu.
Vingança de Trancoso destruída O fim de seu desejo, pelejando E posto, enfim, que desde o mar de Atlante O morador de Abila não se escusa,
Afonso, que não sabe sossegar, Com tanto esforço e arte e valentia, Até o Cítico Tauro, monte erguido, Que também com suas armas se moveu,
Por estender co a fama a curta vida. Que a fez fazer às outras companhia. Já vencedor te vissem, não te espante Ao som da Mauritana e ronca tuba,
Não se lhe pode muito sustentar Se o campo Emátio só te viu vencido; Todo o Reino que foi do nobre Juba.
A cidade; mas, sendo já rendida, 69 Porque Afonso verás, soberbo e ovante,
Em toda a cousa viva a gente irada Mas o alto Deus, que pera longe guarda Tudo render e ser despois rendido. 78
Provando os fios vai da dura espada. O castigo daquele que o merece, Assi o quis o Conselho alto, celeste, Entrava, com toda esta companhia,
Ou pera que se emende, às vezes tarda, Que vença o sogro a ti e o genro a este! O Miralmomini em Portugal;
65 Ou por segredos que homem não conhece Treze Reis mouros leva de valia,
Com estas sojugada foi Palmela Se até qui sempre o forte Rei resguarda 74 Entre os quais tem o ceptro Imperial.
E a piscosa Sesimbra e, juntamente, Dos perigos a que ele se oferece, Tornado o Rei sublime, finalmente, E assi, fazendo quanto mal podia,
Sendo ajudado mais de sua estrela, Agora lhe não deixa ter defesa Do divino Juízo castigado; O que em partes podia fazer mal,
Desbarata um exército potente Da maldição da mãe que estava presa: Despois que em Santarém soberbamente, Dom Sancho vai cercar em Santarém;
(Sentiu-o a vila e viu-o a serra dela), 70 Em vão, dos Sarracenos foi cercado, Porém não lhe sucede muito bem.
Que a socorrê-la vinha diligente Que, estando na cidade que cercara, E despois que do martyre Vicente
Pela fralda da serra, descuidado Cercado nela foi dos Lioneses, O santíssimo corpo venerado 79
Do temeroso encontro inopinado. Porque a conquista dela lhe tomara, Do Sacro Promontório conhecido Dá-lhe combates ásperos, fazendo
De Lião sendo, e não dos Portugueses. À cidade Ulisseia foi trazido; Ardis de guerra mil, o Mouro iroso;
66 A pertinácia aqui lhe custa cara, Não lhe aproveita já trabuco horrendo,
O Rei de Badajoz era, alto Mouro, Assi como acontece muitas vezes, 75 Mina secreta, aríete forçoso;
Com quatro mil cavalos furiosos, Que em ferros quebra as pernas, indo aceso Por que levasse avante seu desejo, Porque o filho de Afonso, não perdendo
Inúmeros peões, de armas e de ouro À batalha, onde foi vencido e preso. Ao forte filho manda o lasso velho Nada do esforço e acordo generoso,
Guarnecidos, guerreiros e lustrosos; Que às terras se passasse de Alentejo, Tudo provê com ânimo e prudência,
Mas, qual no mês de Maio o bravo touro, 71 Com gente e co belígero aparelho. Que em toda a parte há esforço e resistência.
Cos ciúmes da vaca, arreceosos, «Ó famoso Pompeio, não te pene Sancho, de esforço e de ânimo sobejo,
Sentindo gente, o bruto e cego amante De teus feitos ilustres a ruína, Avante passa e faz correr vermelho [149]80
Salteia o descuidado caminhante: Nem ver que a justa Némesis ordene O rio que Sevilha vai regando, Mas o velho, a quem tinham já obrigado
Ter teu sogro de ti vitória dina, Co sangue Mauro, bárbaro e nefando. Os trabalhosos anos ao sossego,
67 Posto que o frio Fásis ou Siene, Estando na cidade cujo prado
Destarte Afonso, súbito mostrado, Que pera nenhum cabo a sombra inclina, [148]76 Enverdecem as águas do Mondego,
Na gente dá, que passa bem segura; O Bootes gelado e a linha ardente E, com esta vitória cobiçoso, Sabendo como o filho está cercado,
Fere, mata, derriba, denodado; Temessem o teu nome geralmente. Já não descansa o moço, até que veja Em Santarém, do Mauro povo cego,
Foge o Rei Mouro e só da vida cura; Outro estrago como este, temeroso, Se parte diligente da cidade;
Que não perde a presteza co a idade. Imitando seu pai na valentia, Da soberba Tuí, que a mesma sorte 94
E que em sua vida já se exprimentara Viu ter a muitas vilas suas vizinhas, Por esta causa, o Reino governou
81 Quando o Bétis de sangue se tingia Que por armas tu, Sancho, humildes tinhas. O Conde Bolonhês, despois alçado
E, co a famosa gente, à guerra usada, E o bárbaro poder desbaratara Por Rei, quando da vida se apartou
Vai socorrer o filho; e assi ajuntados, Do Ismaelita Rei de Andaluzia, 90 Seu irmão Sancho, sempre ao ócio dado.
A Portuguesa fúria costumada E mais quando os que Beja em vão cercaram Mas, entre tantas palmas salteado Este, que Afonso o Bravo se chamou,
Em breve os Mouros tem desbaratados. Os golpes de seu braço em si provaram; Da temerosa morte, fica herdeiro Despois de ter o Reino segurado,
A campina, que toda está coalhada Um filho seu, de todos estimado, Em dilatá-lo cuida, que em terreno
De marlotas, capuzes variados, 86 Que foi segundo Afonso e Rei terceiro. Não cabe o altivo peito, tão pequeno.
De cavalos, jaezes, presa rica, Despois que foi por Rei alevantado, No tempo deste, aos Mauros foi tomado
De seus senhores mortos cheia fica. Havendo poucos anos que reinava, Alcáçare do Sal, por derradeiro; 95
A cidade de Silves tem cercado, Porque dantes os Mouros o tomaram, «Da terra dos Algarves, que lhe fora
82 Cujos campos o Bárbaro lavrava. Mas agora estruídos o pagaram. Em casamento dada, grande parte
Logo todo o restante se partiu Foi das valentes gentes ajudado Recupera co braço, e deita fora
De Lusitânia, postos em fugida; Da Germânica armada que passava, 91 O Mouro, mal querido já de Marte.
O Miralmomini só não fugiu, De armas fortes e gente apercebida, Morto despois Afonso, lhe sucede Este de todo fez livre e senhora
Porque, antes de fugir, lhe foge a vida. A recobrar Judeia já perdida. Sancho segundo, manso e descuidado; Lusitânia, com força e bélica arte,
A Quem lhe esta vitória permitiu Que tanto em seus descuidos se desmede E acabou de oprimir a nação forte,
Dão louvores e graças sem medida; 87 Que de outrem quem mandava era mandado. Na terra que aos de Luso coube em sorte.
Que, em casos tão estranhos, claramente Passavam a ajudar na santa empresa De governar o Reino, que outro pede,
Mais peleja o favor de Deus que a gente. O roxo Federico, que moveu Por causa dos privados foi privado, [153]96
O poderoso exército, em defesa Porque, como por eles se regia, Eis despois vem Dinis, que bem parece
83 Da cidade onde Cristo padeceu, Em todos os seus vícios consentia. Do bravo Afonso estirpe nobre e dina,
De tamanhas vitórias triunfava Quando Guido, co a gente em sede acesa, Com quem a fama grande se escurece
O velho Afonso, Príncipe subido, Ao grande Saladino se rendeu, [152]92 Da liberalidade Alexandrina.
Quando quem tudo enfim vencendo andava, No lugar onde aos Mouros sobejavam Não era Sancho, não, tão desonesto Co este o Reino próspero florece
Da larga e muita idade foi vencido. As águas que os de Guido desejavam. Como Nero, que um moço recebia (Alcançada já a paz áurea divina)
A pálida doença lhe tocava, Por mulher e, despois, horrendo incesto Em constituições, leis e costumes,
Com fria mão, o corpo enfraquecido; [151]88 Com a mãe Agripina cometia; Na terra já tranquila claros lumes.
E pagaram seus anos, deste jeito, Mas a fermosa armada, que viera Nem tão cruel às gentes e molesto
À triste Libitina seu direito. Por contraste de vento àquela parte, Que a cidade queimasse onde vivia; 97
Sancho quis ajudar na guerra fera, Nem tão mau como foi Heliogabalo, Fez primeiro em Coimbra exercitar-se
[150]84 Já que em serviço vai do santo Marte. Nem como o mole Rei Sardanapalo. O valeroso ofício de Minerva;
«Os altos promontórios o choraram, Assi como a seu pai acontecera E de Helicona as Musas fez passar-se
E dos rios as águas saudosas Quando tomou Lisboa, da mesma arte 93 A pisar de Mondego a fértil erva.
Os semeados campos alagaram, Do Germano ajudado, Silves toma Nem era o povo seu tiranizado, Quanto pode de Atenas desejar-se
Com lágrimas correndo piadosas; E o bravo morador destrui e doma. Como Sicília foi de seus tiranos; Tudo o soberbo Apolo aqui reserva.
Mas tanto pelo mundo se alargaram, Nem tinha, como Fálaris, achado Aqui as capelas dá tecidas de ouro,
Com fama suas obras valerosas, 89 Género de tormentos inumanos; Do bácaro e do sempre verde louro.
Que sempre no seu reino chamarão E se tantos troféus do Maometa Mas o Reino, de altivo e costumado
«Afonso! Afonso!» os ecos; mas em vão. Alevantando vai, também do forte A senhores em tudo soberanos, 98
Lionês não consente estar quieta A Rei não obedece nem consente Nobres vilas de novo edificou,
85 A terra, usada aos casos de Mavorte, Que não for mais que todos excelente. Fortalezas, castelos mui seguros,
Sancho, forte mancebo, que ficara Até que na cerviz seu jugo meta E quase o Reino todo reformou
Com edifícios grandes e altos muros; Estas palavras tais, chorando, espalha: Os Eborenses campos vão coalhados; Despreza o fraco moço mal vestido,
Mas despois que a dura Átropos cortou Lustra co Sol o arnês, a lança, a espada; Que, rodeando a funda, o desengana
O fio de seus dias já maduros, 103 Vão rinchando os cavalos jaezados; (Quanto mais pode a Fé que a força humana!)
Ficou-lhe o filho pouco obediente, «Quantos povos a terra produziu A canora trombeta embandeirada
Quarto Afonso, mas forte e excelente. De África toda, gente fera e estranha, Os corações, à paz acostumados, [157]112
O grão Rei de Marrocos conduziu Vai às fulgentes armas incitando, Destarte o Mouro pérfido despreza
99 Pera vir possuir a nobre Espanha: Polas concavidades retumbando O poder dos Cristãos, e não entende
Este sempre as soberbas Castelhanas Poder tamanho junto não se viu Que está ajudado da alta Fortaleza
Co peito desprezou firme e sereno, Despois que o salso mar a terra banha [156]108 A quem o Inferno horrífico se rende.
Porque não é das forças Lusitanas Trazem ferocidade e furor tanto «Entre todos no meio se sublima, Co ela o Castelhano, e com destreza,
Temer poder maior, por mais pequeno; Que a vivos medo e a mortos faz espanto! Das insígnias Reais acompanhado, De Marrocos o Rei comete e ofende;
Mas porém, quando as gentes Mauritanas, O valeroso Afonso, que por cima O Português, que tudo estima em nada,
A possuir o Hespérico terreno, [155]104 De todos leva o colo alevantado, Se faz temer ao Reino de Granada.
Entraram pelas terras de Castela, Aquele que me deste por marido, E somente co gesto esforça e anima
Foi o soberbo Afonso a socorrê-la. Por defender sua terra amedrontada, A qualquer coração amedrontado. 113
Co pequeno poder, oferecido Assi entra nas terras de Castela «Eis as lanças e espadas retiniam
[154]100 Ao duro golpe está da Maura espada; Com a filha gentil, Rainha dela. Por cima dos arneses (bravo estrago!);
Nunca com Semirâmis gente tanta E, se não for contigo socorrido, Chamam (segundo as Leis que ali seguiam),
Veio os campos Idáspicos enchendo, Ver-me-ás dele e do Reino ser privada; 109 Uns Mafamede e os outros Santiago.
Nem Átila, que Itália toda espanta, Viúva e triste e posta em vida escura, Juntos os dous Afonsos, finalmente Os feridos com grita o céu feriam,
Chamando-se de Deus açoute horrendo, Sem marido, sem Reino e sem ventura. Nos campos de Tarifa estão defronte Fazendo de seu sangue bruto lago,
Gótica gente trouxe tanta, quanta Da grande multidão da cega gente, Onde outros, meios mortos, se afogavam,
Do Sarraceno bárbaro, estupendo, 105 Pera quem são pequenas campo e monte. Quando do ferro as vidas escapavam.
Co poder excessivo de Granada, Portanto, ó Rei, de quem com puro medo Não há peito tão alto e tão potente
Foi nos campos Tartéssios ajuntada. O corrente Muluca se congela, Que de desconfiança não se afronte, 114
Rompe toda a tardança, acude cedo Enquanto não conheça e claro veja Com esforço tamanho estrui e mata
101 À miseranda gente de Castela. Que co braço dos seus Cristo peleja. O Luso ao Granadil, que em pouco espaço
E, vendo o Rei sublime Castelhano Se esse gesto, que mostras claro e ledo, Totalmente o poder lhe desbarata,
A força inexpugnabil, grande e forte, De pai o verdadeiro amor assela, 110 Sem lhe valer defesa ou peito de aço.
Temendo mais o fim do povo Hispano, Acude e corre, pai, que, se não corres, Estão de Agar os netos quase rindo De alcançar tal vitória tão barata
Já perdido ha vez, que a própria morte, Pode ser que não aches quem socorres.» Do poder dos Cristãos, fraco e pequeno, Inda não bem contente o forte braço,
Pedindo ajuda ao forte Lusitano As terras como suas repartindo, Vai ajudar ao bravo Castelhano,
Lhe mandava a caríssima consorte, 106 Antemão, entre o exército Agareno, Que pelejando está co Mauritano.
Mulher de quem a manda e filha amada Não de outra sorte a tímida Maria Que, com título falso, possuindo
Daquele a cujo Reino foi mandada. Falando está que a triste Vénus, quando Está o famoso nome Sarraceno. 115
A Júpiter, seu pai, favor pedia Assi também, com falsa conta e nua, Já se ia o Sol ardente recolhendo
102 Pera Eneias, seu filho, navegando; À nobre terra alheia chamam sua. Pera a casa de Tétis, e inclinado
Entrava a fermosíssima Maria Que a tanta piedade o comovia Pera o Ponente, o véspero trazendo,
Polos paternais paços sublimados, Que, caído das mãos o raio infando, 111 Estava o claro dia memorado,
Lindo o gesto, mas fora de alegria, Tudo o clemente Padre lhe concede, Qual o membrudo e bárbaro Gigante, Quando o poder do Mauro, grande e horrendo,
E os seus olhos em lágrimas banhados; Pesando-lhe do pouco que lhe pede. Do Rei Saul, com causa tão temido, Foi pelos fortes Reis desbaratado,
Os cabelos angélicos trazia Vendo o Pastor inerme estar diante, Com tanta mortindade que a memória
Pelos ebúrneos ombros espalhados. 107 Só de pedras e esforço apercebido, Nunca no mundo viu tão grão vitória.
Diante do pai ledo, que a agasalha, Mas já cos esquadrões da gente armada Com palavras soberbas, o arrogante,
[158]116 Que a Fortuna não deixa durar muito, Que mais que a própria morte a magoava, Entre liões e tigres, e verei
Não matou a quarta parte o forte Mário Nos saudosos campos do Mondego, Se neles achar posso a piedade
Dos que morreram neste vencimento, De teus fermosos olhos nunca enxuto, 125 Que entre peitos humanos não achei.
Quando as águas co sangue do adversário Aos montes ensinando e às ervinhas Pera o céu cristalino alevantando, Ali, co amor intrínseco e vontade
Fez beber ao exército sedento; O nome que no peito escrito tinhas. Com lágrimas, os olhos piedosos Naquele por quem mouro, criarei
Nem o Peno, asperíssimo contrário (Os olhos, porque as mãos lhe estava atando Estas relíquias suas, que aqui viste,
Do Romano poder, de nascimento, 121 Um dos duros ministros rigorosos); Que refrigério sejam da mãe triste.»
Quando tantos matou da ilustre Roma, Do teu Príncipe ali te respondiam E despois nos mininos atentando,
Que alqueires três de anéis dos mortos toma. As lembranças que na alma lhe moravam, Que tão queridos tinha e tão mimosos, 130
Que sempre ante seus olhos te traziam, Cuja orfindade como mãe temia, Queria perdoar-lhe o Rei benino,
117 Quando dos teus fermosos se apartavam; Pera o avô cruel assi dizia: Movido das palavras que o magoam;
E se tu tantas almas só pudeste De noite, em doces sonhos que mentiam, Mas o pertinaz povo e seu destino
Mandar ao Reino escuro de Cocito, De dia, em pensamentos que voavam; 126 (Que desta sorte o quis) lhe não perdoam.
Quando a santa Cidade desfizeste E quanto, enfim, cuidava e quanto via Se já nas brutas feras, cuja mente Arrancam das espadas de aço fino
Do povo pertinaz no antigo rito, Eram tudo memórias de alegria. Natura fez cruel de nascimento, Os que por bom tal feito ali apregoam.
Permissão e vingança foi celeste, E nas aves agrestes, que somente Contra ha dama, ó peitos carniceiros,
E não força de braço, ó nobre Tito, 122 Nas rapinas aéreas têm o intento, Feros vos amostrais e cavaleiros?
Que assi dos Vates foi profetizado De outras belas senhoras e Princesas Com pequenas crianças viu a gente
E despois por JESU certificado. Os desejados tálamos enjeita, Terem tão piadoso sentimento 131
Que tudo, enfim, tu, puro amor, desprezas Como co a mãe de Nino já mostraram, Qual contra a linda moça Policena,
118 Quando um gesto suave te sujeita. E cos irmãos que Roma edificaram: Consolação extrema da mãe velha,
Passada esta tão prospera vitória, Vendo estas namoradas estranhezas, Porque a sombra de Aquiles a condena,
Tornado Afonso à Lusitana terra, O velho pai sesudo, que respeita 127 Co ferro o duro Pirro se aparelha;
A se lograr da paz com tanta glória O murmurar do povo e a fantasia Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito Mas ela, os olhos com que o ar serena
Quanta soube ganhar na dura guerra, Do filho, que casar-se não queria, (Se de humano é matar ha donzela, (Bem como paciente e mansa ovelha)
O caso triste, e dino da memória Fraca e sem força, só por ter sujeito Na mísera mãe postos, que endoudece,
Que do sepulcro os homens desenterra. 123 O coração a quem soube vencê-la), Ao duro sacrifício se oferece:
Aconteceu da mísera e mesquinha Tirar Inês ao mundo determina, A estas criancinhas tem respeito,
Que despois de ser morta foi Rainha. Por lhe tirar o filho que tem preso, Pois o não tens à morte escura dela; [162]132
Crendo co sangue só da morte indina Mova-te a piedade sua e minha, Tais contra Inês os brutos matadores,
119 Matar do firme amor o fogo aceso. Pois te não move a culpa que não tinha. No colo de alabastro, que sustinha
«Tu só, tu, poro Amor, com força crua, Que furor consentiu que a espada fina As obras com que Amor matou de amores
Que os corações humanos tanto obriga, Que pôde sustentar o grande peso [161]128 Aquele que despois a fez Rainha,
Deste causa à molesta morte sua, Do furor Mauro, fosse alevantada E se, vencendo a Maura resistência, As espadas banhando, e as brancas flores,
Como se fora pérfida inimiga. Contra a fraca dama delicada? A morte sabes dar com fogo e ferro, Que ela dos olhos seus regadas tinha,
Se dizem, fero Amor, que a sede tua Sabe também dar vida com clemência Se encarniçavam, férvidos e irosos
Nem com lágrimas tristes se mitiga, [160]124 A quem pera perdê-la não fez erro. No futuro castigo não cuidosos.
É porque queres, áspero e tirano, Traziam-na os horríficos algozes Mas, se to assi merece esta inocência,
Tuas aras banhar em sangue humano. Ante o Rei, já movido a piedade; Põe-me em perpétuo e mísero desterro, 133
Mas o povo, com falsas e ferozes Na Cítia fria ou lá na Líbia ardente, Bem puderas, ó Sol, da vista destes,
[159]120 Razões, à morte crua o persuade. Onde em lágrimas viva eternamente. Teus raios apartar aquele dia,
Estavas, linda Inês, posta em sossego, Ela, com tristes e piedosas vozes, Como da seva mesa de Tiestes,
De teus anos colhendo doce fruto, Saídas só da mágoa e saudade 129 Quando os filhos por mão de Atreu comia!
Naquele engano da alma, ledo e cego, Do seu Príncipe e filhos, que deixava, Põe-me onde se use toda a feridade, Vós, ó côncavos vales, que pudestes
A voz extrema ouvir da boca fria, 138 O ouro e o alabastro transparente? No berço o corpo e a voz alevantou:
O nome do seu Pedro, que lhe ouvistes, Do justo e duro Pedro nasce o brando Quem, de ha peregrina fermosura, «Portugal, Portugal (alçando a mão,
Por muito grande espaço repetistes! (Vede da natureza o desconcerto!), De um vulto de Medusa propriamente, Disse) polo Rei novo, Dom João!»
Remisso e sem cuidado algum, Fernando, Que o coração converte, que tem preso,
134 Que todo o Reino pôs em muito aperto; Em pedra, não, mas em desejo aceso? [166]4
Assi como a bonina, que cortada Que, vindo o Castelhano devastando «Alteradas então do Reino as gentes
Antes do tempo foi, cândida e bela, Às terras sem defesa, esteve perto 143 Co ódio que ocupado os peitos tinha,
Sendo das mãos lacivas maltratada De destruir-se o Reino totalmente; Quem viu um olhar seguro, um gesto brando, Absolutas cruezas e evidentes
Da minina que a trouxe na capela, Que um fraco Rei faz fraca a forte gente. Ha suave e angélica excelência, Faz do povo o furor, por onde vinha;
O cheiro traz perdido e a cor murchada: Que em si está sempre as almas Matando vão amigos e parentes
Tal está, morta, a pálida donzela, 139 transformando, Do adúltero Conde e da Rainha,
Secas do rosto as rosas e perdida Ou foi castigo claro do pecado Que tivesse contra ela resistência? Com quem sua incontinência desonesta
A branca e viva cor, co a doce vida. De tirar Lianor a seu marido Desculpado por certo está Fernando, Mais (despois de viúva) manifesta.
E casar-se com ela, de enlevado Pera quem tem de amor experiência;
135 Num falso parecer mal entendido, Mas antes, tendo livre a fantasia, 5
As filhas do Mondego a morte escura Ou foi que o coração, sujeito e dado Por muito mais culpado o julgaria. Mas ele, enfim, com causa desonrado,
Longo tempo chorando memoraram, Ao vício vil, de quem se viu rendido, Diante dela a ferro frio morre,
E, por memória eterna, em fonte pura Mole se fez e fraco; e bem parece De outros muitos na morte acompanhado,
As lágrimas choradas transformaram. Que um baxo amor os fortes enfraquece. Que tudo o fogo erguido queima e corre:
[165] CANTO QUARTO
O nome lhe puseram, que inda dura, Quem, como Astianás, precipitado,
1
Dos amores de Inês, que ali passaram. [164]140 Sem lhe valerem ordens, de alta torre;
Despois de procelosa tempestade,
Vede que fresca fonte rega as flores, «Do pecado tiveram sempre a pena A quem ordens, nem aras, nem respeito;
Nocturna sombra e sibilante vento,
Que lágrimas são a água e o nome Amores! Muitos, que Deus o quis e permitiu: Quem nu por ruas, e em pedaços feito.
Traz a manhã serena claridade,
Os que foram roubar a bela Helena,
Esperança de porto e salvamento;
[163]136 E com Ápio também Tarquino o viu. 6
Aparta o Sol a negra escuridade,
Não correu muito tempo que a vingança Pois por quem David Santo se condena? Podem-se pôr em longo esquecimento
Removendo o temor ao pensamento:
Não visse Pedro das mortais feridas, Ou quem o Tribo ilustre destruiu As cruezas mortais que Roma viu,
Assi no Reino forte aconteceu
Que, em tomando do Reino a governança, De Benjamim? Bem claro no-lo ensina Feitas do feroz Mário e do cruento
Despois que o Rei Fernando faleceu.
A tomou dos fugidos homicidas; Por Sarra Faraó, Siquém por Dina. Cila, quando o contrário lhe fugiu.
Do outro Pedro cruíssimo os alcança, Por isso Lianor, que o sentimento
2
Que ambos, imigos das humanas vidas, 141 Do morto Conde ao mundo descobriu,
«Porque, se muito os nossos desejaram
O concerto fizeram, duro e injusto, E pois, se os peitos fortes enfraquece Faz contra Lusitânia vir Castela,
Quem os danos e ofensas vá vingando
Que com Lépido e António fez Augusto. Um inconcesso amor desatinado, Dizendo ser sua filha herdeira dela.
Naqueles que tão bem se aproveitaram
Bem no filho de Almena se parece
Do descuido remisso de Fernando,
137 Quando em Ônfale andava transformado. 7
Despois de pouco tempo o alcançaram,
Este, castigador foi rigoroso De Marco António a fama se escurece Beatriz era a filha, que casada
Joane, sempre ilustre, alevantando
De latrocínios, mortes e adultérios; Com ser tanto a Cleópatra afeiçoado. Co Castelhano está que o Reino pede,
Por Rei, como de Pedro único herdeiro
Fazer nos maus cruezas, fero e iroso, Tu também, Peno próspero, o sentiste Por filha de Fernando reputada,
(Ainda que bastardo) verdadeiro.
Eram os seus mais certos refrigérios. Despois que ha moça vil na Apúlia viste. Se a corrompida fama lho concede.
3
As cidades guardando, justiçoso, Com esta voz Castela alevantada,
«Ser isto ordenação dos Céus divina
De todos os soberbos vitupérios, 142 Dizendo que esta filha ao pai sucede,
Por sinais muito claros se mostrou,
Mais ladrões, castigando, à morte deu, Mas quem pode livrar-se, porventura, Suas forças ajunta, pera as guerras,
Que o vagabundo Alcides ou Teseu. Quando em Évora a voz de ha minina, De várias regiões e várias terras.
Dos laços que Amor arma brandamente
Ante tempo falando, o nomeou.
Entre as rosas e a neve humana pura,
E, como causa, enfim, que o Céu destina,
[167]8 Cos poucos do seu Reino se aparelha; Presos, afora a presa que tiveram? Que, com lhe ouvir as últimas razões,
Vem de toda a província que de um Brigo E, não porque conselho lhe falece, Removem o temor frio, importuno,
(Se foi) já teve o nome derivado; Cos principais senhores se aconselha, 17 Que gelados lhe tinha os corações.
Das terras que Fernando e que Rodrigo Mas só por ver das gentes as sentenças, «Com quem foram contino sopeados Nos animais cavalgam de Neptuno,
Ganharam do tirano e Mauro estado. Que sempre houve entre muitos diferenças. Estes, de quem o estais agora vós, Brandindo e volteando arremessões;
Não estimam das armas o perigo Por Dinis e seu filho sublimados, Vão correndo e gritando, a boca aberta:
Os que cortando vão co duro arado 13 Senão cos vossos fortes pais e avôs? «Viva o famoso Rei que nos liberta!»
Os campos Lioneses, cuja gente «Não falta com razões quem desconcerte Pois se, com seus descuidos ou pecados,
Cos Mouros foi nas armas excelente. Da opinião de todos, na vontade; Fernando em tal fraqueza assim vos pôs, 22
Em quem o esforço antigo se converte Torne-vos vossas forças o Rei novo, Das gentes populares, uns aprovam
9 Em desusada e má deslealdade, Se é certo que co Rei se muda o povo. A guerra com que a pátria se sustinha;
Os Vândalos, na antiga valentia Podendo o temor mais, gelado, inerte, Uns as armas alimpam e renovam,
Ainda confiados, se ajuntavam Que a própria e natural fidelidade. 18 Que a ferrugem da paz gastadas tinha:
Da cabeça de toda Andaluzia, Negam o Rei e a Pátria e, se convém, Rei tendes tal que, se o valor tiverdes Capacetes estofam, peitos provam,
Que do Guadalquibir as águas lavam. Negarão (como Pedro) o Deus que têm. Igual ao Rei que agora alevantastes, Arma-se cada um como convinha;
A nobre Ilha também se apercebia Desbaratareis tudo o que quiserdes, Outros fazem vestidos de mil cores,
Que antigamente os Tírios habitavam, 14 Quanto mais a quem já desbaratastes. Com letras e tenções de seus amores.
Trazendo por insígnias verdadeiras Mas nunca foi que este erro se sentisse E se com isto, enfim, vos não moverdes
As Hercúleas colunas nas bandeiras. No forte Dom Nuno aluerez; mas antes, Do penetrante medo que tomastes, 23
Posto que em seus irmãos tão claro o visse, Atai as mãos a vosso vão receio, Com toda esta lustrosa companhia
10 Reprovando as vontades inconstantes, Que eu só resistirei ao jugo alheio. Joane forte sai da fresca Abrantes,
Também vêm lá do Reino de Toledo, Àquelas duvidosas gentes disse, Abrantes, que também da fonte fria
Cidade nobre e antiga, a quem cercando Com palavras mais duras que elegantes, 19 Do Tejo logra as águas abundantes.
O Tejo em torno vai, suave e ledo, A mão na espada, irado e não facundo, Eu só, com meus vassalos e com esta Os primeiros armígeros regia
Que das serras de Conca vem manando. Ameaçando a terra, o mar e o mundo: (E dizendo isto arranca meia espada), Quem pera reger era os mui possantes
A vós outros também não tolhe o medo Defenderei da força dura e infesta Orientais exércitos sem conto
Ó sórdidos Galegos, duro bando, 15 A terra nunca de outrem sojugada. Com que passava Xerxes o Helesponto;
Que, pera resistirdes, vos armastes, «Como? Da gente ilustre Portuguesa Em virtude do Rei, da pátria mesta,
Àqueles cujos golpes já provastes. Há-de haver quem refuse o pátrio Marte? Da lealdade já por vós negada, [171]24
Como? Desta província, que princesa Vencerei não só estes adversários, Dom Nuno Álvares digo: verdadeiro
11 Foi das gentes na guerra em toda parte, Mas quantos a meu Rei forem contrários!» Açoute de soberbos Castelhanos,
Também movem da guerra as negras fúrias Há-de sair quem negue ter defesa? Como já o fero Huno o foi primeiro
A gente Biscainha, que carece Quem negue a Fé, o amor, o esforço e arte [170]20 Pera Franceses, pera Italianos.
De polidas razões, e que as injúrias De Português, e por nenhum respeito Bem como entre os mancebos recolhidos Outro também, famoso cavaleiro,
Muito mal dos estranhos compadece. O próprio Reino queira ver sujeito? Em Canúsio, relíquias sós de Canas, Que a ala direita tem dos Lusitanos,
A terra de Guipúscua e das Astúrias, Já pera se entregar quase movidos Apto pera mandá-los e regê-los,
Que com minas de ferro se enobrece, [169]16 À fortuna das forças Africanas, Mem Rodrigues se diz de Vasconcelos.
Armou dele os soberbos moradores, Como? Não sois vós inda os descendentes Cornélio moço os faz que, compelidos
Pera ajudar na guerra a seus senhores. Daqueles que, debaixo da bandeira Da sua espada, jurem que as Romanas 25
Do grande Henriques, feros e valentes, Armas não deixarão, enquanto a vida E da outra ala, que a esta corresponde,
[168]12 Vencestes esta gente tão guerreira, Os não deixar ou nelas for perdida: Antão Vasques de Almada é capitão,
Joanne, a quem do peito o esforço crece, Quando tantas bandeiras, tantas gentes Que despois foi de Abranches nobre Conde;
Como a Sansão Hebreio da guedelha, Puseram em fugida, de maneira 21 Das gentes vai regendo a sestra mão.
Posto que tudo pouco lhe parece, Que sete ilustres Condes lhe trouxeram «Destarte a gente força e esforça Nuno, Logo na retaguarda não se esconde
Das Quinas e Castelos o pendão, 30 De Ceita está o fortíssimo lião Muitos lançaram o último suspiro.
Com Joane, Rei forte em toda parte, Começa-se a travar a incerta guerra: Que cercado se vê dos cavaleiros
Que escurecendo o preço vai de Marte. De ambas partes se move a primeira ala; Que os campos vão correr de Tutuão: 39
Uns leva a defensão da própria terra, Perseguem-no com as lanças, e ele, iroso, «Porque eis os seus, acesos novamente
26 Outros as esperanças de ganhá-la. Torvado um pouco está, mas não medroso; De ha nobre vergonha e honroso fogo,
Estavam pelos muros, temerosas Logo o grande Pereira, em quem se encerra Sobre qual mais, com ânimo valente,
E de um alegre medo quase frias, Todo o valor, primeiro se assinala: 35 Perigos vencerá do Márcio jogo,
:Rezando, as mães, irmãs, damas e esposas, Derriba e encontra e a terra enfim semeia, Com torva vista os vê, mas a natura Porfiam; tinge o ferro o fogo ardente;
Prometendo jejuns e romarias. Dos que a tanto desejam, sendo alheia. Ferina e a ira não lhe compadecem Rompem malhas primeiro e peitos logo.
Já chegam as esquadras belicosas Que as costas dê, mas antes na espessura Assi recebem junto e dão feridas,
Defronte das imigas companhias, 31 Das lanças se arremessa, que recrecem. Como a quem já não dói perder as vidas.
Que com grita grandíssima os recebem; Já pelo espesso ar os estridentes Tal está o cavaleiro, que a verdura
E todas grande dúvida concebem. Farpões, setas e vários tiros voam; Tinge co sangue alheio; ali perecem [175]40
Debaxo dos pés duros dos ardentes Alguns dos seus, que o ânimo valente «A muitos mandam ver o Estígio lago,
27 Cavalos treme a terra, os vales soam. Perde a virtude contra tanta gente. Em cujo corpo a morte e o ferro entrava.
Respondem as trombetas mensageiras, Espedaçam-se as lanças, e as frequentes O Mestre morre ali de Santiago,
Pífaros sibilantes e atambores; Quedas co as duras armas tudo atroam. [174]36 Que fortissimamente pelejava;
Alférezes volteiam as bandeiras, Recrecem os imigos sobre a pouca Sentiu Joane a afronta que passava Morre também, fazendo grande estrago,
Que variadas são de muitas cores. Gente do fero Nuno, que os apouca. Nuno, que, como sábio capitão, Outro Mestre cruel de Calatrava.
Era no seco tempo que nas eiras Tudo corria e via e a todos dava, Os Pereiras também, arrenegados,
Ceres o fruto deixa aos lavradores; [173]32 Com presença e palavras, coração. Morrem, arrenegando o Céu e os Fados.
Entra em Astreia o Sol, no mês de Agosto; Eis ali seus irmãos contra ele vão Qual parida lioa, fera e brava,
Baco das uvas tira o doce mosto. (Caso feio e cruel!); mas não se espanta, Que os filhos, que no ninho sós estão, 41
Que menos é querer matar o irmão, Sentiu que, enquanto pasto lhe buscara, «Muitos também do vulgo vil, sem nome,
[172]28 Quem contra o Rei e a Pátria se alevanta. O pastor de Massília lhos furtara, Vão, e também dos nobres, ao Profundo,
Deu sinal a trombeta Castelhana, Destes arrenegados muitos são Onde o trifauce Cão perpétua fome
Horrendo, fero, ingente e temeroso; No primeiro esquadrão, que se adianta 37 Tem das almas que passam deste mundo.
Ouviu-o o monte Artabro, e Guadiana Contra irmãos e parentes (caso estranho), «Corre raivoso e freme e com bramidos E por que mais aqui se amanse e dome
Atrás tornou as ondas de medroso. Quais nas guerras civis de Júlio e Magno Os montes Sete Irmãos atroa e abala: A soberba do imigo furibundo,
Ouviu o Douro e a terra Transtagana; Tal Joane, com outros escolhidos A sublime bandeira Castelhana
Correu ao mar o Tejo duvidoso; 33 Dos seus, correndo acode à primeira ala: Foi derribada aos pés da Lusitana.
E as mães, que o som terribil escuitaram, O tu, Sertório, ó nobre Coriolano, «O fortes companheiros, ó subidos
Aos peitos os filhinhos apertaram. Catilina, e vós outros dos antigos Cavaleiros, a quem nenhum se iguala, 42
Que contra vossas pátrias com profano Defendei vossas terras, que a esperança Aqui a fera batalha se encruece
29 Coração vos fizestes inimigos: Da liberdade está na nossa lança! Com mortes, gritos, sangue e cutiladas;
Quantos rostos ali se vêm sem cor, E se lá no reino escuro de Sumano A multidão da gente que perece
Que ao coração acode o sangue amigo! Receberdes gravíssimos castigos, 38 Tem as flores da própria cor mudadas.
Que, nos perigos grandes, o temor Dizei-lhe que também dos Portugueses Vedes-me aqui, Rei vosso e companheiro, Já as costas dão e as vidas; já falece
É maior muitas vezes que o perigo. Alguns tredores houve algas vezes. Que entre as lanças e setas e os arneses O furor e sobejam as lançadas;
E se o não é, parece-o; que o furor Dos inimigos corro e vou primeiro; Já de Castela o Rei desbaratado
De ofender ou vencer o duro imigo 34 Pelejai, verdadeiros Portugueses! » Se vê e de seu propósito mudado.
Faz não sentir que é perda grande e rara Rompem-se aqui dos nossos os primeiros, Isto disse o magnânimo guerreiro
Dos membros corporais, da vida cara. Tantos dos inimigos a eles vão! E, sopesando a lança quatro vezes, 43
Está ali Nuno, qual pelos outeiros Com força tira; e deste único tiro O campo vai deixando ao vencedor,
Contente de lhe não deixar a vida. Dar os Reis inimigos por maridos [178]52 A derribarem quanto acham diante.
Seguem-no os que ficaram, e o temor As duas Ilustríssimas Inglesas, Viu ser cativo o santo irmão Fernando Maravilhas em armas, estremadas
Lhe dá, não pés, mas asas à fugida. Gentis, fermosas, ínclitas princesas. (Que a tão altas empresas aspirava), E de escritura dinas elegante,
Encobrem no profundo peito a dor Que, por salvar o povo miserando Fizeram cavaleiros nesta empresa,
Da morte, da fazenda despendida, [177]48 Cercado, ao Sarraceno se entregava. Mais afinando a fama Portuguesa.
Da mágoa, da desonra e triste nojo Não sofre o peito forte, usado à guerra, Só por amor da pátria está passando
De ver outrem triunfar de seu despojo. Não ter imigo já a quem faça dano; A vida, de senhora feita escrava, 57
E assi, não tendo a quem vencer na terra, Por não se dar por ele a forte Ceita. «Porém despois, tocado de ambição
[176]44 Vai cometer as ondas do Oceano Mais o público bem que o seu respeita. E glória de mandar, amara e bela,
Alguns vão maldizendo e blasfemando Este é o primeiro Rei que se desterra Vai cometer Fernando de Aragão,
Do primeiro que guerra fez no mundo; Da pátria, por fazer que o Africano 53 Sobre o potente Reino de Castela.
Outros a sede dura vão culpando Conheça, pelas armas, quanto excede Codro, por que o inimigo não vencesse, Ajunta-se a inimiga multidão
Do peito cobiçoso e sitibundo, A lei de Cristo à lei de Mafamede. Deixou antes vencer da morte a vida; Das soberbas e várias gentes dela,
Que, por tomar o alheio, o miserando Régulo, por que a pátria não perdesse, Desde Caliz ao alto Perineo,
Povo aventura às penas do Profundo, 49 Quis mais a liberdade ver perdida. Que tudo ao Rei Fernando obedeceu.
Deixando tantas mães, tantas esposas, Eis mil nadantes aves, pelo argento Este, por que se Espanha não temesse,
Sem filhos, sem maridos, desditosas. Da furiosa Tétis inquieta, A cativeiro eterno se convida! 58
Abrindo as pandas asas vão ao vento, Codro, nem Cúrcio, ouvido por espanto, Não quis ficar nos Reinos occioso
45 Pera onde Alcides pôs a extrema meta. Nem os Décios leais, fizeram tanto. O mancebo Joane, e logo ordena
O vencedor Joane esteve os dias O monte Abila e o nobre fundamento De ir ajudar o pai ambicioso,
Costumados no campo, em grande glória; De Ceita toma, e o torpe Maometa 54 Que então lhe foi ajuda não pequena.
Com ofertas, despois, e romarias, Deita fora, e segura toda Espanha Mas Afonso, do Reino único herdeiro, Saiu-se, enfim, do trance perigoso,
As graças deu a Quem lhe deu vitória. Da Juliana, má e desleal manha. Nome em armas ditoso em nossa Hespéria. Com fronte não torvada, mas serena.
Mas Nuno, que não quer por outras vias Que a soberba do Bárbaro fronteiro Desbaratado o pai sanguinolento,
Entre as gentes deixar de si memória 50 Tornou em baxa e humílima miséria, Mas ficou duvidoso o vencimento;
Senão por armas sempre soberanas, Não consentiu a morte tantos anos Fora por certo invicto cavaleiro,
Pera as terras se passa Transtaganas. Que de Herói tão ditoso se lograsse Se não quisera ir ver a terra Ibéria. 59
Portugal, mas os coros soberanos Mas África dirá ser impossibil Porque o filho, sublime e soberano,
46 Do Céu supremo quis que povoasse. Poder ninguém vencer o Rei terribil. Gentil, forte, animoso cavaleiro,
Ajuda-o seu destino de maneira Mas, pera defensão dos Lusitanos, Nos contrários fazendo imenso dano,
Que fez igual o efeito ao pensamento, Deixou Quem o levou, quem governasse 55 Todo um dia ficou no campo inteiro.
Porque a terra dos Vândalos, fronteira, E aumentasse a terra mais que dantes: Este pôde colher as maçãs de ouro Destarte foi vencido Octaviano,
Lhe concede o despojo e o vencimento. Ínclita geração, altos Infantes. Que somente o Tiríntio colher pôde. E António vencedor, seu companheiro,
Já de Sevilha a Bética bandeira, Do jugo que lhe pôs, o bravo Mouro Quando daqueles que César mataram
E de vários senhores, num momento 51 A cerviz inda agora não sacode. Nos Filípicos campos se vingaram.
Se lhe derriba aos pés, sem ter defesa, Não foi do Rei Duarte tão ditoso Na fronte a palma leva e o verde louro
Obrigados da força Portuguesa. O tempo que ficou na suma alteza, Das vitórias do Bárbaro, que acode [180]60
Que assi vai alternando o tempo iroso A defender Alcácer, forte vila, Porém, despois que a escura noite eterna
47 O bem co mal, o gosto co a tristeza. Tangere populoso e a dura Arzila. Afonso apousentou no Céu sereno,
Destas e outras vitórias longamente Quem viu sempre um estado deleitoso? O Príncipe que o Reino então governa
Eram os Castelhanos oprimidos, Ou quem viu em Fortuna haver firmeza? [179]56 Foi Joane segundo e Rei trezeno.
Quando a paz, desejada já da gente, Pois inda neste Reino e neste Rei «Porém elas, enfim, por força entradas Este, por haver fama sempiterna,
Deram os vencedores aos vencidos, Não usou ela tanto desta lei? Os muros abaxaram de diamante Mais do que tentar pode homem terreno
Despois que quis o Padre omnipotente Às Portuguesas forças, costumadas Tentou, que foi buscar da roxa Aurora
Os términos, que eu vou buscando agora. Da Índia, da Carmânia e Gedrosia, Despois que os olhos longos estendera, 74
Vendo vários costumes, várias manhas, Viu de antigos, longincos e altos montes Eu sou o ilustre Ganges, que na terra
61 Que cada região produze e cria. Nacerem duas claras e altas fontes. Celeste tenho o berço verdadeiro;
Manda seus mensageiros, que passaram Mas de vias tão ásperas, tamanhas, Estoutro é o Indo, Rei que, nesta serra
Espanha, França, Itália celebrada, Tornar-se facilmente não podia. 70 Que vês, seu nascimento tem primeiro.
E lá no ilustre porto se embarcaram Lá morreram, enfim, e lá ficaram, Aves agrestes, feras e alimárias Custar-te-emos contudo dura guerra;
Onde já foi Parténope enterrada: Que à desejada pátria não tornaram. Pelo monte selvático habitavam; Mas, insistindo tu, por derradeiro,
Nápoles, onde os Fados se mostraram, Mil árvores silvestres e ervas várias Com não vistas vitórias, sem receio
Fazendo-a a várias gentes subjugada, 66 O passo e o trato às gentes atalhavam. A quantas gentes vês porás o freio.»
Pola ilustrar, no fim de tantos anos, «Parece que guardava o claro Céu Estas duras montanhas, adversárias
Co senhorio de ínclitos Hispanos. A Manuel e seus merecimentos De mais conversação, por si mostravam 75
Esta empresa tão árdua, que o moveu Que, dês que Adão pecou aos nossos anos, «Não disse mais o Rio ilustre e santo,
62 A subidos e ilustres movimentos; Não as romperam nunca pés humanos. Mas ambos desparecem num momento.
«Polo mar alto Sículo navegam; Manuel, que a Joane sucedeu Acorda Emanuel cum novo espanto
Vão-se às praias de Rodes arenosas; No Reino e nos altivos pensamentos, 71 E grande alteração de pensamento.
E dali às ribeiras altas chegam Logo como tomou do Reino cargo, Das águas se lhe antolha que saíam, Estendeu nisto Febo o claro manto
Que com morte de Magno são famosas; Tomou mais a conquista do mar largo. Para ele os largos passos inclinando, Pelo escuro Hemispério sonolento;
Vão a Mênfis, e às terras que se regam Dous homens, que mui velhos pareciam, Veio a manhã no céu pintando as cores
Das enchentes Nilóticas undosas; 67 De aspeito, inda que agreste, venerando. De pudibunda rosa e roxas flores.
Sobem à Etiópia, sobre Egipto, «O qual, como do nobre pensamento Das pontas dos cabelos lhe saíam
Que de Cristo lá guarda o santo rito. Daquela obrigação que lhe ficara Gotas, que o corpo todo vão banhando; [184]76
De seus antepassados, cujo intento A cor da pele, baça e denegrida; «Chama o Rei os senhores a conselho
63 Foi sempre acrecentar a terra cara, A barba hirsuta, intonsa, mas comprida. E propõe-lhe as figuras da visão;
Passam também as ondas Eritreias, Não deixasse de ser um só momento As palavras lhe diz do santo velho,
Que o povo de Israel sem nau passou; Conquistado, no tempo que a luz clara [183]72 Que a todos foram grande admiração.
Ficam-lhe atrás as serras Nabateias, Foge, e as estrelas nítidas que saem De ambos de dous a fronte coroada Determinam o náutico aparelho,
Que o filho de Ismael co nome ornou. A repouso convidam quando caem, Ramos não conhecidos e ervas tinha. Pera que, com sublime coração,
As costas odoríferas Sabeias, Um deles a presença traz cansada, Vá a gente que mandar cortando os mares
Que a mãe do belo Adónis tanto honrou, [182]68 Como quem de mais longe ali caminha; A buscar novos climas, novos ares.
Cercam, com toda a Arábia descoberta, «Estando já. deitado no áureo leito, E assi a água, com ímpeto alterada,
Feliz, deixando a Pétrea e a Deserta. Onde imaginações mais certas são, Parecia que doutra parte vinha, 77
Revolvendo contino no conceito Bem como Alfeu de Arcádia em Siracusa «Eu, que bem mal cuidava que em efeito
[181]64 De seu ofício e sangue a obrigação, Vai buscar os abraços de Aretusa. Se pusesse o que o peito me pedia,
«Entram no Estreito Pérsico, onde dura Os olhos lhe ocupou o sono aceito, Que sempre grandes coisas deste jeito,
Da confusa Babel inda a memória; Sem lhe desocupar o coração; 73 Pressago, o coração me prometia,
Ali co Tigre o Eufrates se mistura, Porque, tanto que lasso se adormece, Este, que era o mais grave na pessoa, Não sei por que razão, por que respeito,
Que as fontes onde nascem têm por glória. Morfeu em várias formas lhe aparece. Destarte pera o Rei de longe brada: Ou por que bom sinal que em mi se via,
Dali vão em demanda da água pura «Ó tu, a cujos reinos e coroa Me põe o ínclito Rei nas mãos a chave
(Que causa inda será de larga história) 69 Grande parte do mundo está guardada, Deste cometimento grande e grave.
Do Indo, pelas ondas do Oceano, Aqui se lhe apresenta que subia Nós outros, cuja fama tanto voa,
Onde não se atreveu passar Trajano. Tão alto que tocava à prima Esfera, Cuja cerviz bem nunca foi domada, 78
Donde diante vários mundos via, Te avisamos que é tempo que já mandes E com rogo e palavras amorosas,
65 Nações de muita gente, estranha e fera. A receber de nós tributos grandes. Que é um mando nos Reis que a mais obriga,
«Viram gentes incógnitas e estranhas E lá bem junto donde nace o dia, Me disse: - «As cousas árduas e lustrosas
Se alcançam com trabalho e com fadiga; Quem a tamanhas cousas se oferece. Que nas praias do mar está assentado, Vos esquece a afeição tão doce nossa?
Faz as pessoas altas e famosas Que o nome tem da terra, pera exemplo, Nosso amor, nosso vão contentamento,
A vida que se perde e que periga, 83 Donde Deus foi em carne ao mundo dado. Quereis que com as velas leve o vento?»
Que, quando ao medo infame não se rende, Foram de Emanuel remunerados, Certifico-te, ó Rei, que, se contemplo
Então, se menos dura, mais se estende. Por que com mais amor se apercebessem, Como fui destas praias apartado, [188]92
E com palavras altas animados Cheio dentro de dúvida e receio, Nestas e outras palavras que diziam,
79 Pera quantos trabalhos sucedessem. Que apenas nos meus olhos ponho o freio. De amor e de piadosa humanidade,
Eu vos tenho entre todos escolhido Assi foram os Mínias ajuntados, Os velhos e os mininos os seguiam,
Pera ha empresa, qual a vós se deve, Pera que o Véu dourado combatessem, [187]88 Em quem menos esforço põe a idade.
Trabalho ilustre, duro e esclarecido, Na fatídica nau, que ousou primeira A gente da cidade, aquele dia, Os montes de mais perto respondiam,
O que eu sei que por mi vos será leve.» Tentar o mar Euxínio, aventureira. (Uns por amigos, outros por parentes, Quase movidos de alta piedade;
«Não sofri mais, mas logo: - «Ó Rei subido, Outros por ver somente) concorria, A branca areia as lágrimas banhavam,
Aventurar-me a ferro, a fogo, a neve, [186]84 Saudosos na vista e descontentes Que em multidão com elas se igualavam.
É tão pouco por vós que mais me pena E já no porto da ínclita Ulisseia, E nós, co a virtuosa companhia
Ser esta vida cousa tão pequena. Cum alvoroço nobre e cum desejo De mil Religiosos diligentes, 93
(Onde o licor mistura e branca areia Em procissão solene, a Deus orando, Nós outros, sem a vista alevantarmos
[185]80 Co salgado Neptuno o doce Tejo) Pera os batéis viemos caminhando. Nem a mãe, nem a esposa, neste estado,
«Imaginai tamanhas aventuras As naus prestes estão; e não refreia Por nos não magoarmos, ou mudarmos
Quais Euristeu a Alcides inventava: Temor nenhum o juvenil despejo, 89 Do propósito firme começado,
O lião Cleonéu, Harpias duras, Porque a gente marítima e a de Marte Em tão longo caminho e duvidoso Determinei de assi nos embarcarmos,
O porco de Erimanto, a Hidra brava, Estão pera seguir-me a toda a parte. Por perdidos as gentes nos julgavam, Sem o despedimento costumado,
Decer, enfim, às sombras vãs e escuras As mulheres cum choro piadoso Que, posto que é de amor usança boa,
Onde os campos de Dite a Estige lava; 85 Os homens com suspiros que arrancavam. A quem se aparta, ou fica, mais magoa.
Porque a maior perigo, a mor afronta, Pelas praias vestidos os soldados Mães, Esposas, Irmãs, que o temeroso
Por vós, ó Rei, o esprito e carne é pronta.» De várias cores vêm e várias artes, Amor mais desconfia, acrecentavam 94
E não menos de esforço aparelhados A desesperação e frio medo Mas um velho, de aspeito venerando,
81 Pera buscar do mundo novas partes. De já nos não tornar a ver tão cedo. Que ficava nas praias, entre a gente,
«Com mercês sumptuosas me agardece Nas fortes naus os ventos sossegados Postos em nós os olhos, meneando
E com razões me louva esta vontade; Ondeiam os aéreos estandartes; 90 Três vezes a cabeça, descontente,
Que a virtude louvada vive e crece Elas prometem, vendo os mares largos, Qual vai dizendo: «Ó filho, a quem eu tinha A voz pesada um pouco alevantando,
E o louvor altos casos persuade. De ser no Olimpo estrelas, como a de Argos. Só pera refrigério e doce emparo Que nós no mar ouvimos claramente,
A acompanhar-me logo se oferece, Desta cansada já velhice minha, Cum saber só de experiências feito,
Obrigado de amor e de amizade, 86 Que em choro acabará, penoso e amaro Tais palavras tirou do experto peito:
Não menos cobiçoso de honra e fama, Despois de aparelhados, desta sorte, Porque me deixas, mísera e mesquinha?
O caro meu irmão Paulo da Gama. De quanto tal viagem pede e manda, Porque de mi te vás, ó filho caro, 95
Aparelhámos a alma pera a morte, A fazer o funéreo enterramento «Ó glória de mandar, ó vã cobiça
82 Que sempre aos nautas ante os olhos anda. Onde sejas de pexes mantimento?» Desta vaidade a quem chamamos Fama!
«Mais se me ajunta Nicolau Coelho, Pera o sumo Poder, que a etérea Corte Ó fraudulento gosto, que se atiça
De trabalhos mui grande sofredor. Sustenta só co a vista veneranda, 91 Ca aura popular, que honra se chama!
Ambos são de valia e de conselho, Implorámos favor que nos guiasse Qual em cabelo: «Ó doce e amado esposo, Que castigo tamanho e que justiça
De experiência em armas e furor. E que nossos começos aspirasse. Sem quem não quis Amor que viver possa, Fazes no peito vão que muito te ama!
Já de manceba gente me aparelho, Porque is aventurar ao mar airoso Que mortes, que perigos, que tormentas,
Em que crece o desejo do valor; 87 Essa vida que é minha e não é vossa? Que crueldades neles experimentas!
Todos de grande esforço; e assi parece Partimo-nos assi do santo templo Como, por um caminho duvidoso,
[189]96 Se tu pola de Cristo só pelejas? Deixa intentado a humana geração.
«Dura inquietação d’alma e da vida Não tem cidades mil, terra infinita, Mísera sorte! Estranha condição!» 5
Fonte de desemparos e adultérios, Se terras e riqueza mais desejas? Passámos a grande Ilha da Madeira,
Sagaz consumidora conhecida Não é ele por armas esforçado, Que do muito arvoredo assi se chama;
De fazendas, de reinas e de impérios! Se queres por vitórias ser louvado? [193] CANTO QUINTO Das que nós povoámos a primeira,
Chamam-te ilustre, chamam-te subida, 1 Mais célebre por nome que por fama.
Sendo dina de infames vitupérios; 101 Estas sentenças tais o velho honrado Mas, nem por ser do mundo a derradeira,
Chamam-te Fama e Glória soberana, Deixas criar às portas o inimigo, Vociferando estava, quando abrimos Se lhe aventajam quantas Vénus ama;
Nomes com quem se o povo néscio engana! Por ires buscar outro de tão longe, As asas ao sereno e sossegado Antes, sendo esta sua, se esquecera
Por quem se despovoe o Reino antigo, Vento, e do porto amado nos partimos. De Cipro, Gnido, Pafos e Citera.
97 Se enfraqueça e se vá deitando a longe; E, como é já no mar costume usado,
A que novos desastres determinas Buscas o incerto e incógnito perigo A vela desfraldando, o céu ferimos, 6
De levar estes Reinos e esta gente? Por que a Fama te exalte e te lisonje Dizendo: «Boa viagem!». Logo o vento Deixámos de Massília a estéril costa,
Que perigos, que mortes lhe destinas, Chamando-te senhor, com larga cópia, Nos troncos fez o usado movimento. Onde seu gado os Azenegues pastam,
Debaixo dalgum nome preminente? Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia. Gente que as frescas águas nunca gosta,
Que promessas de reinos e de minas 2 Nem as ervas do campo bem lhe abastam;
D’ouro, que lhe farás tão facilmente? 102 Entrava neste tempo o eterno lume A terra a nenhum fruto, enfim, disposta,
Que famas lhe prometerás? Que histórias? Oh, maldito o primeiro que, no mundo, No animal Nemeio truculento; Onde as aves no ventre o ferro gastam,
Que triunfos? Que palmas? Que vitórias? Nas ondas vela pôs em seco lenho! E o Mundo, que co tempo se consume, Padecendo de tudo extrema inópia,
Dino da eterna pena do Profundo, Na sexta idade andava, enfermo e lento. Que aparta a Barbaria de Etiópia.
98 Se é justa a justa Lei que sigo e tenho! Nela vê, como tinha por costume,
Mas, ó tu, geração daquele insano Nunca juízo algum, alto e profundo, Cursos do Sol catorze vezes cento, 7
Cujo pecado e desobediência Nem cítara sonora ou vivo engenho Com mais noventa e sete, em que corria, Passámos o limite aonde chega
Não somente do Reino soberano Te dê por isso fama nem memória, Quando no mar a armada se estendia. O Sol, que pera o Norte os carros guia;
Te pôs neste desterro e triste ausência, Mas contigo se acabe o nome e glória! Onde jazem os povos a quem nega
Mas inda doutro estado mais que humano, [194]3 O filho de Climene a cor do dia.
Da quieta e da simpres inocência, 103 Já a vista, pouco e pouco, se desterra Aqui gentes estranhas lava e rega
Idade d’ouro, tanto te privou, Trouxe o filho de Jápeto do Céu Daqueles pátrios montes, que ficavam; Do negro Sanagá a corrente fria,
Que na de ferro e de armas te deitou: O fogo que ajuntou ao peito humano, Ficava o caro Tejo e a fresca serra Onde o Cabo Arsinário o nome perde,
Fogo que o mundo em armas acendeu, De Sintra, e nela os olhos se alongavam; Chamando-se dos nossos Cabo Verde.
99 Em mortes, em desonras (grande engano!). Ficava-nos também na amada terra
Já que nesta gostosa vaidade Quanto milhor nos fora, Prometeu, O coração, que as mágoas lá deixavam; [195]8
Tanto enlevas a leve fantasia, E quanto pera o mundo menos dano, E, já despois que toda se escondeu, Passadas tendo já as Canárias ilhas,
Já que à bruta crueza e feridade Que a tua estátua ilustre não tivera Não vimos mais, enfim, que mar e céu. Que tiveram por nome Fortunadas,
Puseste nome, esforço e valentia, Fogo de altos desejos, que a movera! Entrámos, navegando, polas filhas
Já que prezas em tanta quantidade : 4 Do velho Hespério, Hespéridas chamadas;
O desprezo da vida, que devia [191] Assi fomos abrindo aqueles mares, Terras por onde novas maravilhas
De ser sempre estimada, pois que já 104 Andaram vendo já nossas armadas.
Que geração alga não abriu,
Temeu tanto perdê-la Quem a dá: Não cometera o moço miserando Ali tomámos porto com bom vento,
As novas Ilhas vendo e os novos ares
O carro alto do pai, nem o ar vazio Por tomarmos da terra mantimento.
Que o generoso Henrique descobriu;
[190]100 O grande arquitector co filho, dando
De Mauritânia os montes e lugares,
Não tens junto contigo o Ismaelita, Um, nome ao mar, e o outro, fama ao rio. 9
Terra que Anteu num tempo possuiu,
Com quem sempre terás guerras sobejas? Nenhum cometimento alto e nefando Àquela ilha aportámos que tomou
Deixando à mão esquerda, que à direita
Não segue ele do Arábio a lei maldita, Por fogo, ferro, água, calma e frio, O nome do guerreiro Santiago,
Não há certeza doutra, mas suspeita.
Santo que os Espanhóis tanto ajudou Tendo o término ardente já passado Vi, claramente visto, o lume vivo Às ondas torna as ondas que tomou,
fazerem nos Mouros bravo estrago. Onde o meio do Mundo é limitado. Que a marítima gente tem por santo, Mas o sabor do sal lhe tira e tolhe.
Daqui, tanto que Bóreas nos ventou, Em tempo de tormenta e vento esquivo, Vejam agora os sábios na escritura
Tornámos a cortar o imenso lago 14 De tempestade escura e triste pranto. Que segredos são estes de Natura!
Do salgado Oceano, e assi deixámos Já descoberto tínhamos diante, Não menos foi a todos excessivo
A terra onde o refresco doce achámos. Lá no novo Hemisperio, nova estrela, Milagre, e cousa, certo, de alto espanto, 23
Não vista de outra gente, que, ignorante, Ver as nuvens, do mar com largo cano, Se os antigos Filósofos, que andaram
10 Alguns tempos esteve incerta dela. Sorver as altas águas do Oceano. Tantas terras, por ver segredos delas,
Por aqui rodeando a larga parte Vimos a parte menos rutilante As maravilhas que eu passei, passaram,
De África, que ficava ao Oriente E, por falta de estrelas, menos bela, 19 A tão diversos ventos dando as velas,
(A província Jalofo, que reparte Do Pólo fixo, onde inda se não sabe Eu o vi certamente (e não presumo Que grandes escrituras que deixaram!
Por diversas nações a negra gente; Que outra terra comece ou mar acabe. Que a vista me enganava): levantar-se Que influição de sinos e de estrelas!
A mui grande Mandinga, por cuja arte No ar um vaporzinho e sutil fumo Que estranhezas, que grandes qualidades!
Logramos o metal rico e luzente, 15 E, do vento trazido, rodear-se; E tudo, sem mentir, puras verdades.
Que do curvo Gambeia as águas bebe, Assi, passando aquelas regiões De aqui levado um cano ao Pólo sumo
As quais o largo Atlântico recebe), Por onde duas vezes passa Apolo, Se via, tão delgado, que enxergar-se [199]24
Dous Invernos fazendo e dous Verões, Dos olhos facilmente não podia; «Mas já o Planeta que no Céu primeiro
11 Enquanto corre dum ao outro Pólo, Da matéria das nuvens parecia. Habita, cinco vezes, apressada,
As Dórcadas passámos, povoadas Por calmas, por tormentas e opressões, Agora meio rosto, agora inteiro,
Das Irmãs que outro tempo ali viviam, Que sempre faz no mar o irado Eolo, [198]20 Mostrara, enquanto o mar cortava a armada,
Que, de vista total sendo privadas, Vimos as Ursas, a pesar de Juno, Ia-se pouco e pouco acrecentando Quando da etérea gávea, um marinheiro,
Todas três dum só olho se serviam. Banharem-se nas águas de Neptuno. E mais que um largo masto se engrossava; Pronto co a vista: «Terra! Terra!» brada.
Tu só, tu, cujas tranças encrespadas Aqui se estreita, aqui se alarga, quando Salta no bordo alvoroçada a gente,
Neptuno lá nas águas acendiam, [197]16 Os golpes grandes de água em si chupava; Cos olhos no horizonte do Oriente.
Tornada já de todas a mais feia, Contar-te longamente as perigosas Estava-se co as ondas ondeando;
De bívoras encheste a ardente areia. Cousas do mar, que os homens não entendem, Em cima dele ha nuvem se espessava, 25
Súbitas trovoadas temerosas, Fazendo-se maior, mais carregada, A maneira de nuvens se começam
[196]12 Relâmpados que o ar em fogo acendem, Co cargo grande d’água em si tomada. A descobrir os montes que enxergamos;
Sempre, enfim, pera o Austro a aguda proa, Negros chuveiros, noites tenebrosas, As âncoras pesadas se adereçam;
No grandíssimo gólfão nos metemos, Bramidos de trovões, que o mundo fendem, 21 As velas, já chegados, amainamos.
Deixando a Serra aspérrima Lioa, Não menos é trabalho que grande erro, Qual roxa sanguessuga se veria E, pera que mais certas se conheçam
Co Cabo a quem das Palmas nome demos. Ainda que tivesse a voz de ferro. Nos beiços da alimária (que, imprudente, As partes tão remotas onde estamos,
O grande rio, onde batendo soa Bebendo a recolheu na fonte fria) Pelo novo instrumento do Astrolábio,
O mar nas praias notas, que ali temos, 17 Fartar co sangue alheio a sede ardente; Invenção de sutil juízo e sábio,
Ficou, co a Ilha ilustre, que tomou Os casos vi, que os rudos marinheiros, Chupando, mais e mais se engrossa e cria,
O nome dum que o lado a Deus tocou. Que têm por mestra a longa experiência, Ali se enche e se alarga grandemente: 26
Contam por certos sempre e verdadeiros, Tal a grande coluna, enchendo, aumenta Desembarcamos logo na espaçosa
13 Julgando as cousas só pola aparência, A si e a nuvem negra que sustenta. Parte, por onde a gente se espalhou,
Ali o mui grande reino está de Congo, E que os que têm juízos mais inteiros, De ver cousas estranhas desejosa,
Por nós já convertido à fé de Cristo, Que só por puro engenho e por ciência 22 Da terra que outro povo não pisou.
Por onde o Zaire passa, Claro e longo, Vêm do mundo os segredos escondidos, Mas, despois que de todo se fartou, Porém eu, cos pilotos, na arenosa
Rio pelo antigos nunca visto. Julgam por falsos ou mal entendidos. O pé que tem no mar a si recolhe Praia, por vermos em que parte estou,
Por este largo mar, enfim, me alongo E pelo céu, chovendo, enfim voou, Me detenho em tomar do Sol a altura
Do conhecido Pólo de Calisto, 18 Por que co a água a jacente água molhe; E compassar a universal pintura.
Mas, sendo um grande espaço já passado, Daqueles cães, depressa um pouco vim, Tão grande era de membros que bem posso
27 Em que algum bom sinal saber procuro, Por me lembrar que estáveis cá sem mim.» Certificar-te que este era o segundo
Achámos ter de todo já passado Estando, a vista alçada, co cuidado De Rodes estranhíssimo Colosso,
Do semicapro Pexe a grande meta, No aventureiro, eis pelo monte duro [202]36 Que um dos sete milagres foi do mundo.
Estando entre ele e o circulo gelado Aparece e, segundo ao mar caminha, Contou então que, tanto que passaram Cum tom de voz nos fala, horrendo e grosso,
Austral, parte do mundo mais secreta. Mais apressado do que fora, vinha. Aquele monte os negros de quem falo, Que pareceu sair do mar profundo.
Eis, de meus companheiros rodeado, Avante mais passar o não deixaram, Arrepiam-se as carnes e o cabelo,
Vejo um estranho vir, de pele preta, [201]32 Querendo, se não torna, ali matá-lo; A mi e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo!
Que tomaram per força, enquanto apanha O batel de Coelho foi depressa E tornando-se, logo se emboscaram,
De mel os doces favos na montanha. Polo tomar; mas, antes que chegasse, Por que, saindo nós pera tomá-lo, 41
Um Etíope ousado se arremessa Nos pudessem mandar ao reino escuro, E disse: «Ó gente ousada, mais que quantas
[200]28 A ele, por que não se lhe escapasse; Por nos roubarem mais a seu seguro. No mundo cometeram grandes cousas,
Torvado vem na vista, como aquele Outro e outro lhe saem; vê-se em pressa Tu, que por guerras cruas, tais e tantas,
Que não se vira nunca em tal extremo; Veloso, sem que alguém lhe ali ajudasse; 37 E por trabalhos vãos nunca repousas,
Nem ele entende a nós, nem nós a ele, Acudo eu logo, e, enquanto o remo aperto, Porém já cinco Sóis eram passados Pois os vedados términos quebrantas
Selvagem mais que o bruto Polifemo. Se mostra um bando negro, descoberto. Que dali nos partíramos, cortando E navegar meus longos mares ousas,
Começo-lhe a mostrar da rica pele Os mares nunca de outrem navegados, Que eu tanto tempo há já que guardo e tenho,
De Colcos o gentil metal supremo, 33 Prosperamente os ventos assoprando, Nunca arados de estranho ou próprio lenho:
A prata fina, a quente especiaria: Da espessa nuvem setas e pedradas Quando ha noute, estando descuidados
A nada disto o bruto se movia. Chovem sobre nós outros, sem medida; Na cortadora proa vigiando, 42
E não foram ao vento em vão deitadas, Ha nuvem que os ares escurece, Pois vens ver os segredos escondidos
29 Que esta perna trouxe eu dali ferida. Sobre nossas cabeças aparece. Da natureza e do húmido elemento,
Mando mostrar-lhe peças mais somenos: Mas nós, como pessoas magoadas, A nenhum grande humano concedidos
Contas de cristalino transparente, A reposta lhe demos tão tecida 38 De nobre ou de imortal merecimento,
Alguns soantes cascavéis pequenos, Que em mais que nos barretes se suspeita Tão temerosa vinha e carregada, Ouve os danos de mi que apercebidos
Um barrete vermelho, cor contente; Que a cor vermelha levam desta feita. Que pôs nos corações um grande medo; Estão a teu sobejo atrevimento,
Vi logo, por sinais e por acenos, Bramindo, o negro mar de longe brada, Por todo o largo mar e pola terra
Que com isto se alegra grandemente. 34 Como se desse em vão nalgum rochedo. Que inda hás-de sojugar com dura guerra.
Mando-o soltar com tudo e assi caminha E, sendo já Veloso em salvamento, «Ó Potestade (disse) sublimada:
Pera a povoação, que perto tinha. Logo nos recolhemos pera a armada, Que ameaço divino ou que segredo 43
Vendo a malícia feia e rudo intento Este clima e este mar nos apresenta, «Sabe que quantas naus esta viagem
30 Da gente bestial, bruta e malvada, Que mor cousa parece que tormenta?» Que tu fazes, fizerem, de atrevidas,
Mas, logo ao outro dia, seus parceiros, De quem nenhum milhor conhecimento Inimiga terão esta paragem,
Todos nus e da cor da escura treva, Pudemos ter da Índia desejada 39 Com ventos e tormentas desmedidas;
Decendo pelos ásperos outeiros, Que estarmos inda muito longe dela. Não acabava, quando ha figura E da primeira armada que passagem
As peças vêm buscar que estoutro leva. E assi tornei a dar ao vento a vela. Se nos mostra no ar, robusta e válida, Fizer por estas ondas insofridas,
Domésticos já tanto e companheiros se nos De disforme e grandíssima estatura; Eu farei de improviso tal castigo
mostram, que fazem que se atreva 35 O rosto carregado, a barba esquálida, Que seja mor o dano que o perigo!
Fernão Veloso a ir ver da terra o trato Disse então a Veloso um companheiro Os olhos encovados, e a postura
E partir-se co eles pelo mato. (Começando-se todos a sorrir): Medonha e má e a cor terrena e pálida; [204]44
«Oula, Veloso amigo! Aquele outeiro Cheios de terra e crespos os cabelos, Aqui espero tomar, se não me engano,
31 É milhor de decer que de subir!» A boca negra, os dentes amarelos. De quem me descobriu suma vingança;
É Veloso no braço confiado «Si, é (responde o ousado aventureiro); E não se acabará só nisto o dano
E, de arrogante, crê que vai seguro; Mas, quando eu pera cá vi tantos vir [203]40 De vossa pertinace confiança:
Antes, em vossas naus vereis, cada ano, Pola grandeza feia de meu gesto, Da mágoa e da desonra ali passada,
Se é verdade o que meu juízo alcança, 49 Determinei por armas de tomá-la A buscar outro mundo, onde não visse
Naufrágios, perdições de toda sorte, Mais ia por diante o monstro horrendo, E a Dóris este caso manifesto. Quem de meu pranto e de meu mal se risse.
Que o menor mal de todos seja a morte! Dizendo nossos Fados, quando, alçado, De medo a Deusa então por mi lhe fala;
Lhe disse eu: «Quem és tu? Que esse Mas ela, cum fermoso riso honesto, 58
45 estupendo Respondeu: «Qual será o amor bastante Eram já neste tempo meus Irmãos
E do primeiro Ilustre, que a ventura Corpo, certo me tem maravilhado!» De Ninfa, que sustente o dum Gigante? Vencidos e em miséria extrema postos,
Com fama alta fizer tocar os Céus, A boca e os olhos negros retorcendo E, por mais segurar-se os Deuses vãos,
Serei eterna e nova sepultura, E dando um espantoso e grande brado, 54 Alguns a vários montes sotopostos.
Por juízos incógnitos de Deus. Me respondeu, com voz pesada e amara, Contudo, por livrarmos o Oceano E, como contra o Céu não valem mãos,
Aqui porá da Turca armada dura Como quem da pergunta lhe pesara: De tanta guerra, eu buscarei maneira Eu, que chorando andava meus desgostos,
Os soberbos e prósperos troféus; Com que, com minha honra, escuse o dano.» Comecei a sentir do Fado imigo,
Comigo de seus danos o ameaça 50 Tal resposta me torna a mensageira. Por meus atrevimentos, o castigo:
A destruída Quíloa com Mombaça. «Eu sou aquele oculto e grande Cabo Eu, que cair não pude neste engano
A quem chamais vós outros Tormentório, (Que é grande dos amantes a cegueira), 59
46 Que nunca a Ptolomeu, Pompónio, Estrabo, Encheram-me, com grandes abondanças, Converte-se-me a carne em terra dura;
Outro também virá, de honrada fama, Plínio e quantos passaram fui notório. O peito de desejos e esperanças. Em penedos os ossos se fizeram;
Liberal, cavaleiro, enamorado, Aqui toda a Africana costa acabo Estes membros que vês, e esta figura,
E consigo trará a fermosa dama Neste meu nunca visto Promontório, 55 Por estas longas águas se estenderam.
Que Amor por grão mercê lhe terá dado. Que pera o Pólo Antártico se estende, Já néscio, já da guerra desistindo, Enfim, minha grandíssima estatura
Triste ventura e negro fado os chama A quem vossa ousadia tanto ofende. Ha noite, de Dóris prometida, Neste remoto Cabo converteram
Neste terreno meu, que, duro e irado, Me aparece de longe o gesto lindo Os Deuses; e, por mais dobradas mágoas,
Os deixará dum cru naufrágio vivos, 51 Da branca Tétis, única, despida. Me anda Tétis cercando destas águas.»
Pera verem trabalhos excessivos. Fui dos filhos aspérrimos da Terra, Como doudo corri de longe, abrindo
Qual Encélado, Egeu e o Centimano; Os braços pera aquela que era vida [208]60
47 Chamei-me Adamastor, e fui na guerra Deste corpo, e começo os olhos belos Assi contava; e, cum medonho choro,
Verão morrer com fome os filhos caros, Contra o que vibra os raios de Vulcano; A lhe beijar, as faces e os cabelos. Súbito de ante os olhos se apartou;
Em tanto amor gerados e nacidos; Não que pusesse serra sobre serra, Desfez-se a nuvem negra, e cum sonoro
Verão os Cafres, ásperos e avaros, Mas, conquistando as ondas do Oceano, [207]56 Bramido muito longe o mar soou.
Tirar à linda dama seus vestidos; Fui capitão do mar, por onde andava Oh que não sei de nojo como o conte! Eu, levantando as mãos ao santo coro
Os cristalinos membros e perclaros A armada de Neptuno, que eu buscava. Que, crendo ter nos braços quem amava, Dos Anjos, que tão longe nos guiou,
À calma, ao frio, ao ar, verão despidos, Abraçado me achei cum duro monte A Deus pedi que removesse os duros
Despois de ter pisada, longamente, [206]52 De áspero mato e de espessura brava. Casos, que Adamastor contou futuros.
Cos delicados pés a areia ardente. Amores da alta esposa de Peleu Estando cum penedo fronte a fronte,
Me fizeram tomar tamanha empresa; Que eu polo rosto angélico apertava, 61
[205]48 Todas as Deusas desprezei do Céu, Não fiquei homem, não; mas mudo e quedo «Já Flégon e Piróis vinham tirando,
E verão mais os olhos que escaparem Só por amar das águas a Princesa. E, junto dum penedo, outro penedo! Cos outros dous, o carro radiante,
De tanto mal, de tanta desventura, Um dia a vi, co as filhas de Nereu, Quando a terra alta se nos foi mostrando
Os dous amantes míseros ficarem Sair nua na praia e logo presa 57 Em que foi convertido o grão Gigante.
Na férvida, implacabil espessura. A vontade senti de tal maneira Ó Ninfa, a mais fermosa do Oceano, Ao longo desta costa, começando
Ali, despois que as pedras abrandarem Que inda não sinto cousa que mais queira. Já que minha presença não te agrada, Já de cortar as ondas do Levante,
Com lágrimas de dor, de mágoa pura, Que te custava ter-me neste engano, Por ela abaixo um pouco navegámos,
Abraçados, as almas soltarão 53 Ou fosse monte, nuvem, sonho ou nada? Onde segunda vez terra tomámos.
Da fermosa e misérrima prisão.» Como fosse impossibil alcançá-la, Daqui me parto, irado e quase insano
62 Só conduzidos de árduas esperanças. Inimiga de nossa humanidade! Onde as praias e vales bem se viam,
A gente que esta terra possuía, Co mar um tempo andámos em porfias, Num rio, que ali sai ao mar aberto,
Posto que todos Etiopes eram, Que, como tudo nele são mudanças, 71 Batéis à vela entravam e saíam.
Mais humana no trato parecia Corrente nele achámos tão possante, Corrupto já e danado o mantimento, Alegria mui grande foi, por certo,
Que os outros que tão mal nos receberam. Que passar não deixava por diante: Danoso e mau ao fraco corpo humano Acharmos já pessoas que sabiam
Com bailos e com festas de alegria E, além disso, nenhum contentamento, Navegar, porque entre elas esperámos
Pela praia arenosa a nós vieram, 67 Que sequer da esperança fosse engano. De achar novas algas, como achámos.
As mulheres consigo e o manso gado Era maior a força em demasia, Crês tu que, se este nosso ajuntamento
Que apacentavam, gordo e bem criado. Segundo pera trás nos obrigava, De soldados não fora Lusitano, [212]76
Do mar, que contra nós ali corria, Que durara ele tanto obediente, Etíopes são todos, mas parece
63 Que por nós a do vento que assoprava. Porventura, a seu Rei e a seu regente? Que com gente milhor comunicavam;
As mulheres, queimadas, vêm em cima Injuriado Noto da porfia Palavra alga Arábia se conhece
Dos vagarosos bois, ali sentadas, Em que co mar (parece) tanto estava, [211]72 Entre a linguagem sua que falavam;
Animais que eles têm em mais estima Os assopros esforça iradamente, Crês tu que já não foram levantados E com pano delgado, que se tece
Que todo o outro gado das manadas. Com que nos fez vencer a grão corrente. Contra seu Capitão, se os resistira, De algodão, as cabeças apertavam;
Cantigas pastoris, ou prosa ou rima, Fazendo-se piratas, obrigados Com outro, que de tinta azul se tinge,
Na sua língua cantam, concertadas [210]68 De desesperação, de fome, de ira? Cada um as vergonhosas partes cinge.
Co doce som das rústicas avenas, Trazia o Sol o dia celebrado Grandemente, por certo, estão provados,
Imitando de Títiro as Camenas. Em que três Reis das partes do Oriente Pois que nenhum trabalho grande os tira 77
Foram buscar um Rei, de pouco nado, Daquela Portuguesa alta excelência Pela Arábica língua que mal falam
[209]64 No qual Rei outros três há juntamente; De lealdade firme e obediência. E que Fernão Martins mui bem entende,
Estes, como na vista prazenteiros Neste dia outro porto foi tomado Dizem que, por naus que em grandeza igualam
Fossem, humanamente nos trataram, Por nós, da mesma já contada gente, 73 As nossas, o seu mar se corta e fende;
Trazendo-nos galinhas e carneiros Num largo rio, ao qual o nome demos Deixando o porto, enfim, do doce rio Mas que, lá donde sai o Sol, se abalam
A troco doutras peças que levaram; Do dia em que por ele nos metemos. E tornando a cortar a água salgada, Pera onde a costa ao Sul se alarga e estende,
Mas como nunca, enfim, meus companheiros Fizemos desta costa algum desvio, E do Sul pera o Sol, terra onde havia
Palavra sua alga lhe alcançaram 69 Deitando pera o pego toda a armada; Gente, assi como nós, da cor do dia.
Que desse algum sinal do que buscamos, Desta gente refresco algum tomámos Porque, ventando Noto, manso e frio,
As velas dando, as âncoras levamos. E do rio fresca água; mas contudo Não nos apanhasse a água da enseada 78
Nenhum sinal aqui da Índia achámos Que a costa faz ali, daquela banda Mui grandemente aqui nos alegrámos
65 No povo, com nós outros casi mudo. Donde a rica Sofala o ouro manda. Co a gente, e com as novas muito mais.
Já aqui tínhamos dado um grão rodeio Ora vê, Rei, quamanha terra andámos. Pelos sinais que neste rio achámos
À costa negra de África, e tornava Sem sair nunca deste povo rudo, 74 O nome lhe ficou dos Bons Sinais.
A proa a demandar o ardente meio Sem vermos nunca nova nem sinal Esta passada, logo o leve leme Um padrão nesta terra alevantámos,
Do Céu, e o Pólo Antártico ficava. Da desejada parte Oriental. Encomendado ao sacro Nicolau, Que, pera assinalar lugares tais,
Aquele ilhéu deixámos onde veio Pera onde o mar na costa brada e geme, Trazia alguns; o nome tem do belo
Outra armada primeira, que buscava 70 A proa inclina da e doutra nau; Guiador de Tobias a Gabelo.
O Tormentório Cabo e, descoberto, Ora imagina agora quão coitados Quando, indo o coração que espera e teme
Naquele ilhéu fez seu limite certo. Andaríamos todos, quão perdidos E que tanto fiou dum fraco pau, 79
De fomes, de tormentas quebrantados, Do que esperava já desesperado, Aqui de limos, cascas e de ostrinhos,
66 Por climas e por mares não sabidos, Foi da novidade alvoroçado. Nojosa criação das águas fundas,
Daqui fomos cortando muitos dias, E do esperar comprido tão cansados Alimpámos as naus, que dos caminhos
Entre tormentas tristes e bonanças, Quanto a desesperar já compelidos, 75 Longos do mar vêm sórdidas e imundas.
No largo mar fazendo novas vias, Por céus não naturais, de qualidade E foi que, estando já da costa perto, Dos hóspedes que tínhamos vizinhos,
Com mostras aprazíveis e jucundas, [214]84 Sirenas que co canto os adormeçam; Louvor alheio muito o esperta e incita.
Houvemos sempre o usado mantimento, Assi que deste porto nos partimos Dem-lhe mais navegar à vela e remos
Limpos de todo o falso pensamento. Com maior esperança e mor tristeza, Os Cícones e a terra onde se esqueçam 93
E pela costa abaixo o mar abrimos, Os companheiros, em gostando o loto; Não tinha em tanto os feitos gloriosos
[213]80 Buscando algum sinal de mais firmeza. Dem-lhe perder nas águas o piloto; De Aquiles, Alexandro, na peleja,
Mas não foi, da esperança grande e imensa Na dura Moçambique, enfim, surgimos, Quanto de quem o canta os numerosos
Que nesta terra houvemos, limpa e pura De cuja falsidade e má vileza 89 Versos: isso só louva, isso deseja.
A alegria; mas logo a recompensa Já serás sabedor, e dos enganos Ventos soltos lhe finjam e imaginem Os troféus de Milcíades, famosos,
A Ramnúsia com nova desventura. Dos povos de Mombaça, pouco humanos. Dos odres, e Calipsos namoradas; Temístocles despertam só de enveja;
Assi no Céu sereno se dispensa; Harpias que o manjar lhe contaminem; E diz que nada tanto o deleitava.
Co esta condição, pesada e dura, 85 Decer às sombras nuas já passadas: Como a voz que seus feitos celebrava.
Nacemos: o pesar terá firmeza, Até que aqui, no teu seguro porto, Que, por muito e por muito que se afinem
Mas o bem logo muda a natureza. Cuja brandura e doce tratamento Nestas fábulas vãs, tão bem sonhadas, 94
Dará saúde a um vivo e vida a um morto, A verdade que eu conto, nua e pura, Trabalha por mostrar Vasco da Gama
81 Nos trouxe a piedade do alto Assento. Vence toda grandiloca escritura!» Que essas navegações que o mundo canta
E foi que, de doença crua e feia, Aqui repouso, aqui doce conforto, Não merecem tamanha glória e fama
A mais que eu nunca vi, desempararam Nova quietação do pensamento, 90 Como a sua, que o Céu e a Terra espanta.
Muitos a vida, e em terra estranha e alheia Nos deste. E vês aqui, se atento ouviste, Da boca do fecundo Capitão Si; mas aquele Herói que estima e ama
Os ossos pera sempre sepultaram. Te contei tudo quanto me pediste. Pendendo estavam todos, embebidos, Com dões, mercês, favores e honra tanta
Quem haverá que, sem o ver, o creia, Quando deu fim à longa narração A lira Mantuana, faz que soe
Que tão disformemente ali lhe incharam 86 Dos altos feitos, grandes e subidos. Eneias, e a Romana glória voe.
As gingivas na boca, que crecia Julgas agora, Rei, se houve no mundo Louva o Rei o sublime coração
A carne e juntamente apodrecia? Gentes que tais caminhos cometessem? Dos Reis em tantas guerras conhecidos; 95
Crês tu que tanto Eneias e o facundo Da gente louva a antiga fortaleza, Dá a terra Lusitana Cipiões, Césares,
82 Ulisses pelo mundo se estendessem? A lealdade de ânimo e nobreza. Alexandros, e dá Augustos;
Apodrecia cum fétido e bruto Ousou algum a ver do mar profundo, Mas não lhe dá contudo aqueles dões
Cheiro, que o ar vizinho inficionava. Por mais versos que dele se escrevessem, 91 Cuja falta os faz duros e robustos.
Não tínhamos ali médico astuto, Do que eu vi, a poder de esforço e de arte, Vai recontando o povo, que se admira, Octávio, entre as maiores opressões,
Cirurgião sutil menos se achava; E do que inda hei-de ver, a oitava parte? O caso cada qual que mais notou; Compunha versos doutos e venustos
Mas qualquer, neste ofício pouco instruto, Nenhum deles da gente os olhos tira (Não dirá Fúlvia, certo, que é mentira,
Pela carne já podre assi cortava 87 Que tão longos caminhos rodeou. Quando a deixava António por Glafira).
Como se fora morta, e bem convinha, Esse que bebeu tanto da água Aónia, Mas já o mancebo Délio as rédeas vira
Pois que morto ficava quem a tinha. Sobre quem têm contenda peregrina, Que o irmão de Lampécia mal guiou, [217]96
Entre si, Rodes, Smyrna e Colofónia, Por vir a descansar nos Tethyos braços; Vai César sojugando toda França
83 Atenas, Ios, Argo e Salamina; E el-Rei se vai do mar aos nobres paços. E as armas não lhe impedem a ciência;
Enfim que nesta incógnita espessura Essoutro que esclarece toda Ausónia, Mas, na mão a pena e noutra a lança,
Deixámos pera sempre os companheiros A cuja voz, altíssona e divina, [216] 92 Igualava de Cícero a eloquência.
Que em tal caminho e em tanta desventura Ouvindo, o pátrio Míncio se adormece Quão doce é o louvor e a justa glória O que de Cipião se sabe e alcança
Foram sempre connosco aventureiros. Mas o Tibre co som se ensoberbece: Dos próprios feitos, quando são soados! É nas comédias grande experiência.
Quão fácil é ao corpo a sepultura! Qualquer nobre trabalha que em memória Lia Alexandro a Homero de maneira
Quaisquer ondas do mar, quaisquer outeiros [215]88 Vença ou iguale os grandes já passados. Que sempre se lhe sabe à cabeceira.
Estranhos, assi mesmo como aos nossos, «Cantem, louvem e escrevam sempre extremos As envejas da ilustre e alheia história
Receberão de todo o Ilustre os ossos. Desses seus Semideuses e encareçam, Fazem mil vezes feitos sublimados. 97
Fingindo magas Circes, Polifemos, Quem valerosas obras exercita, Enfim, não houve forte Capitão
Que não fosse também douto e ciente, Pesa-lhe que tão longe o apousentasse De escultura fermosa estão lavradas,
Da Lácia, Grega ou Bárbara nação, Das Europeias terras abundantes 6 Na qual do irado Baco a vista pace;
Senão da Portuguesa tão somente. A ventura, que não no fez vizinho As ondas navegavam do Oriente, E vê primeiro, em cores variadas,
Sem vergonha o não digo: que a razão Donde Hércules ao mar abriu o caminho. Já nos mares da Índia, e enxergavam Do velho Caos a tão confusa face;
De algum não ser por versos excelente Os tálamos do Sol, que nace ardente; Vêm-se os quatro Elementos trasladados,
É não se ver prezado o verso e rima, 2 Já quase seus desejos se acabavam; Em diversos ofícios ocupados.
Porque quem não sabe arte, não na estima. Com jogos, danças e outras alegrias, Mas o mau de Tioneu, que na alma sente
A segundo a polícia Melindana, As venturas que então se aparelhavam 11
98 Com usadas e ledas pescarias, À gente Lusitana, delas dina, Ali, sublime, o Fogo estava em cima,
Por isso, e não por falta de natura, Com que a Lageia António alegra e engana, Arde, morre, blasfema e desatina. Que em nenha matéria se sustinha;
Não há também Virgílios nem Homeros; Este famoso Rei, todos os dias Daqui as cousas vivas sempre anima,
Nem haverá, se este costume dura, Festeja a companhia Lusitana, [221]7 Despois que Prometeu furtado o tinha.
Pios Eneias nem Aquiles feros. Com banquetes, manjares desusados, Via estar todo o Céu determinado Logo após ele, leve se sublima
Mas o pior de tudo é que a ventura Com frutas, aves, carnes e pescados. De fazer de Lisboa nova Roma; O invisibil Ar, que mais asinha
Tão ásperos os fez e tão austeros, Não no pode estorvar, que destinado Tomou lugar e, nem por quente ou frio,
Tão rudos e de engenho tão remisso, 3 Está doutro Poder que tudo doma. Algum deixa no mundo estar vazio.
Que a muitos lhe dá pouco ou nada disso. Mas vendo o Capitão que se detinha Do Olimpo dece enfim, desesperado;
Já mais do que devia, e o fresco vento Novo remédio em terra busca e toma: [222]12
99 O convida que parta e tome asinha Entra no húmido reino e vai-se à corte Estava a Terra em montes, revestida
Às Musas agardeça o nosso Gama Os pilotos da terra e mantimento, Daquele a quem o mar caiu em sorte. De verdes ervas e árvores floridas,
O muito amor da pátria, que as obriga Não se quer mais deter, que ainda tinha Dando pasto diverso e dando vida
A dar aos seus, na lira, nome e fama Muito pera cortar do salso argento. 8 Às alimárias nela produzidas.
De toda a ilustre e bélica fadiga; Já do Pagão benigno se despede, No mais interno fundo das profundas A clara forma ali estava esculpida
Que ele, nem quem na estirpe seu se chama, Que a todos amizade longa pede. Cavernas altas, onde o mar se esconde, Das Águas, entre a terra desparzidas,
Calíope não tem por tão amiga Lá donde as ondas saem furibundas De pescados criando vários modos,
Nem as filhas do Tejo, que deixassem [220]4 Quando às iras do vento o mar responde, Com seu humor mantendo os corpos todos.
As telas d’ouro fino e que o cantassem. Pede-lhe mais que aquele porto seja Neptuno mora e moram as jocundas
Sempre com suas frotas visitado, Nereidas e outros Deuses do mar, onde 13
100 Que nenhum outro bem maior deseja As águas campo deixam às cidades Noutra parte, esculpida estava a guerra
Porque o amor fraterno e puro gosto Que dar a tais barões seu reino e estado; Que habitam estas húmidas Deidades. Que tiveram os Deuses cos Gigantes;
De dar a todo o Lusitano feito E que, enquanto seu corpo o sprito reja, Está Tifeu debaixo da alta serra
Seu louvor, é somente o prosuposto Estará de contino aparelhado 9 De Etna, que as flamas lança crepitantes.
Das Tágides gentis, e seu respeito. A pôr a vida e reino totalmente Descobre o fundo nunca descoberto Esculpido se vê, ferindo a Terra,
Porém não deixe, enfim, de ter disposto Por tão bom Rei, por tão sublime gente. As areias ali de prata fina; Neptuno, quando as gentes, ignorantes,
Ninguém a grandes obras sempre o peito: Torres altas se vêem, no campo aberto, Dele o cavalo houveram, e a primeira
Que, por esta ou por outra qualquer via, 5 Da transparente massa cristalina; De Minerva pacífica ouliveira.
Não perderá seu preço e sua valia. Outras palavras tais lhe respondia Quanto se chegam mais os olhos perto
O Capitão, e logo, as velas dando, Tanto menos a vista determina 14
[219] CANTO SEXTO Pera as terras da Aurora se partia, Se é cristal o que vê, se diamante, Pouca tardança faz Lieu irado
1 Que tanto tempo há já que vai buscando. Que assi se mostra claro e radiante. Na vista destas cousas, mas entrando
Não sabia em que modo festejasse No piloto que leva não havia Nos paços de Neptuno, que, avisado
O Rei Pagão os fortes navegantes, Falsidade, mas antes vai mostrando 10 Da vinda sua, o estava já aguardando,
Pera que as amizades alcançasse A navegação certa; e assi caminha As portas d’ouro fino, e marchetadas Às portas o recebe, acompanhado
Do Rei Cristão, das gentes tão possantes. Já mais seguro do que dantes vinha. Do rico aljôfar que nas conchas nace, Das Ninfas, que se estão maravilhando
De ver que, cometendo tal caminho, Na mão a grande concha retorcida Pela praia brincando vem, diante,
Entre no reino d’água o Rei do vinho Que trazia, com força já tocava; Com as lindas conchinhas, que o salgado [226]28
A voz grande, canora, foi ouvida Mar sempre cria; e às vezes pela areia «E vós, Deuses do Mar, que não sofreis
15 Por todo o mar, que longe retumbava. No colo o toma a bela Panopeia. Injúria alga em vosso reino grande,
«Ó Neptuno (lhe disse) não te espantes Já toda a companhia, apercebida, Que com castigo igual vos não vingueis
De Baco nos teus reinos receberes, Dos Deuses pera os paços caminhava [225]24 De quem quer que por ele corra e ande:
Porque também cos grandes e possantes Do Deus que fez os muros de Dardânia, E o Deus que foi num tempo corpo humano Que descuido foi este em que viveis?
Mostra a Fortuna injusta seus poderes. Destruídos despois da Grega insânia. E por virtude da erva poderosa, Quem pode ser que tanto vos abrande
Manda chamar os Deuses do mar, antes Foi convertido em pexe, e deste dano Os peitos, com razão endurecidos
Que fale mais, se ouvir-me o mais quiseres; [224]20 Lhe resultou Deidade gloriosa, Contra os humanos, fracos e atrevidos?
Verão da desventura grandes modos: Vinha o padre Oceano, acompanhado Inda vinha chorando o feio engano
Ouçam todos o mal que toca a todos.» Dos filhos e das filhas que gerara; Que Circes tinha usado co a fermosa 29
Vem Nereu, que com Dóris foi casado, Cila, que ele ama, desta sendo amado, «Vistes que, com grandíssima ousadia,
[223]16 Que todo o mar de Ninfas povoara. Que a mais obriga amor mal empregado. Foram já cometer o Céu supremo;
Julgando já Neptuno que seria O profeta Proteu, deixando o gado Vistes aquela insana fantasia
Estranho caso aquele, logo manda Marítimo pacer pela água amara, 25 De tentarem o mar com vela e remo;
Tritão, que chame os Deuses da água fria Ali veio também, mas já sabia Já finalmente todos assentados Vistes, e ainda vemos cada dia,
Que o mar habitam da e doutra banda. O que o padre Lieu no mar queria. Na grande sala, nobre e divinal, Soberbas e insolências tais, que temo
Tritão, que de ser filho se gloria As Deusas em riquíssimos estrados, Que do Mar e do Céu, em poucos anos,
Do Rei e de Salácia veneranda, 21 Os Deuses em cadeiras de cristal, Venham Deuses a ser, e nós, humanos.
Era mancebo grande, negro e feio, Vinha por outra parte a linda esposa Foram todos do Padre agasalhados,
Trombeta de seu pai e seu correio. De Neptuno, de Celo e Vesta filha, Que co Tebano tinha assento igual; 30
Grave e leda no gesto, e tão fermosa De fumos enche a casa a rica massa «Vedes agora a fraca geração
17 Que se amansava o mar, de maravilha. Que no mar nace e Arábia em cheiro passa. Que dum vassalo meu o nome toma,
Os cabelos da barba e os que decem Vestida üa camisa preciosa Com soberbo e altivo coração
Da cabeça nos ombros, todos eram Trazia, de delgada beatilha, 26 A vós e a mi e o mundo todo doma.
Uns limos prenhes d’água, e bem parecem Que o corpo cristalino deixa ver-se, Estando sossegado já o tumulto Vedes, o vosso mar cortando vão,
Que nunca brando pentem conheceram. Que tanto bem não é pera esconder-se. Dos Deuses e de seus recebimentos, Mais do que fez a gente alta de Roma;
Nas pontas pendurados não falecem Começa a descobrir do peito oculto Vedes, o vosso reino devassando,
Os negros mexilhões, que ali se geram. 22 A causa o Tioneu de seus tormentos; Os vossos estatutos vão quebrando.
Na cabeça, por gorra, tinha posta Anfitrite, fermosa como as flores, Um pouco carregando-se no vulto,
Ha mui grande casca de lagosta. Neste caso não quis que falecesse; Dando mostra de grandes sentimentos, 31
O delfim traz consigo que aos amores Só por dar aos de Luso triste morte «Eu vi que contra os Mínias, que primeiro
18 Do Rei lhe aconselhou que obedecesse. Co ferro alheio, fala desta sorte: No vosso reino este caminho abriram
O corpo nu, e os membros genitais, Cos olhos, que de tudo são senhores, Bóreas, injuriado, e o companheiro
Por não ter ao nadar impedimento, Qualquer parecerá que o Sol vencesse 27 Áquilo e os outros todos resistiram.
Mas porém de pequenos animais Ambas vêm pela mão, igual partido, «Príncipe, que de juro senhoreias, Pois se do ajuntamento aventureiro
Do mar todos cobertos, cento e cento: Pois ambas são esposas dum marido. Dum Pólo ao outro Pólo, o mar irado, Os ventos esta injúria assi sentiram,
Camarões e cangrejos e outros mais, Tu, que as gentes da Terra toda enfreias, Vós, a quem mais compete esta vingança,
Que recebem de Febe crecimento; 23 Que não passem o termo limitado; Que esperais? Porque a pondes em tardança?
Ostras e birbigões, do musco sujos, Aquela que, das fúrias de Atamante E tu, padre Oceano, que rodeias
Às costas co a casca os caramujos. Fugindo, veio a ter divino estado, O Mundo universal e o tens cercado, [227]32
Consigo traz o filho belo infante, E com justo decreto assi permites «E não consinto, Deuses, que cuideis
19 No número dos Deuses relatado; Que dentro vivam só de seus limites; Que por amor de vós do Céu deci,
Nem da mágoa da injúria que sofreis, Que Tétis, indinada, lhe bradou: «Não é (disse Veloso) cousa justa Lhe darão feia infâmia ou morte crua.
Mas da que se me faz também a mi; «Neptuno sabe bem o que mandou!» Tratar branduras em tanta aspereza, A feminil fraqueza, pouco usada,
Que aquelas grandes honras que sabeis Que o trabalho do mar, que tanto custa, Ou nunca, a opróbrios tais, vendo-se nua
Que no mundo ganhei, quando venci 37 Não sofre amores nem delicadeza; De forças naturais convenientes,
As terras Indianas do Oriente, Já lá o soberbo Hipótades soltava Antes de guerra, férvida e robusta Socorro pede a amigos e parentes.
Todas vejo abatidas desta gente. Do cárcere fechado os furiosos A nossa história seja, pois dureza
Ventos, que com palavras animava Nossa vida há-de ser, segundo entendo, 46
33 Contra os varões audaces e animosos. Que o trabalho por vir mo está dizendo.» «Mas, como fossem grandes e possantes
«Que o grão Senhor e Fados, que destinam, Súbito, o céu sereno se obumbrava, No reino os inimigos, não se atrevem
Como lhe bem parece, o baxo mundo, Que os ventos, mais que nunca impetuosos, 42 Nem parentes, nem férvidos amantes,
Famas, mores que nunca, determinam Começam novas forças a ir tomando, Consentem nisto todos, e encomendam A sustentar as damas, como devem.
De dar a estes barões no mar profundo. Torres, montes e casas derribando. A Veloso que conte isto que aprova. Com lágrimas fermosas, e bastantes
Aqui vereis, ó Deuses, como ensinam «Contarei (disse) sem que me aprendam A fazer que em socorro os Deuses levem
O mal também a Deuses; que, a segundo 38 De contar cousa fabulosa ou nova; De todo o Céu, por rostos de alabastro,
Se vê, ninguém já tem menos valia Enquanto este conselho se fazia E por que os que me ouvirem daqui Se vão todas ao Duque de Alencastro.
Que quem com mais razão valer devia. No fundo aquoso, a leda, lassa frota reprendam,
Com vento sossegado prosseguia, A fazer feitos grandes de alta prova, 47
34 Pelo tranquilo mar, a longa rota. Dos nacidos direi na nossa terra, «Era este Ingrês potente e militara
«E por isso do Olimpo já fugi, Era no tempo quando a luz do dia E estes sejam os Doze de Inglaterra. Cos Portugueses já contra Castela,
Buscando algum remédio a meus pesares, Do Eoo Hemisperio está remota; Onde as forças magnânimas provara
Por ver o preço que no Céu perdi, e por Os do quarto da prima se deitavam, 43 Dos companheiros, e benigna estrela.
dita acharei nos vossos mares.» Pera o segundo os outros despertavam. «No tempo que do Reino a rédea leve, Não menos nesta terra exprimentara
Mais quis dizer, e não passou daqui, João, filho de Pedro, moderava, Namorados afeitos, quando nela
Porque as lágrimas já, correndo a pares, 39 Despois que sossegado e livre o teve A filha viu, que tanto o peito doma
Lhe saltaram dos olhos, com que logo Vencidos vêm do sono e mal despertos; Do vizinho poder, que o molestava, Do forte Rei que por mulher a toma.
Se acendem as Deidades d’água em fogo. Bocijando, a miúdo se encostavam Lá na grande Inglaterra, que da neve
Pelas antenas, todos mal cobertos Boreal sempre abunda, semeava [231]48
35 Contra os agudos ares que assopravam; A fera Erínis dura e má cizânia, «Este, que socorrer-lhe não queria
A ira com que súbito alterado Os olhos contra seu querer abertos; Que lustre fosse a nossa Lusitânia. Por não causar discórdias intestinas,
O coração dos Deuses foi num ponto, Mas estregando, os membros estiravam. Lhe diz: - «Quando o direito pretendia
Não sofreu mais conselho bem cuidado Remédios contra o sono buscar querem, [230]44 Do Reino lá das terras Iberinas,
Nem dilação nem outro algum desconto: Histórias contam, casos mil referem. «Entre as damas gentis da corte Inglesa Nos Lusitanos vi tanta ousadia,
Ao grande Eolo mandam já recado, E nobres cortesãos, acaso um dia Tanto primor e partes tão divinas,
Da parte de Neptuno, que sem conto [229]40 Se levantou discórdia, em ira acesa Que eles sós poderiam, se não erro,
Solte as fúrias dos ventos repugnantes, «Com que milhor podemos (um dizia) (Ou foi opinião, ou foi porfia). Sustentar vossa parte a fogo e ferro;
Que não haja no mar mais navegantes! Este tempo passar, que é tão pesado, Os cortesãos, a quem tão pouco pesa
Senão com algum conto de alegria, Soltar palavras graves de ousadia, 49
[228]36 Com que nos deixe o sono carregado?» Dizem que provarão que honras e famas «E se, agravadas damas, sois servidas,
Bem quisera primeiro ali Proteu Responde Leonardo, que trazia Em tais damas não há pera ser damas; Por vós lhe mandarei embaixadores,
Dizer, neste negócio, o que sentia; Pensamentos de firme namorado: Que, por cartas discretas e polidas,
E, segundo o que a todos pareceu, «Que contos poderemos ter milhores, 45 De vosso agravo os façam sabedores;
Era alga profunda profecia. Pera passar o tempo, que de amores?» «E que se houver alguém, com lança e espada, Também, por vossa parte, encarecidas
Porém tanto o tumulto se moveu, Que queira sustentar a parte sua, Com palavras de afagos e de amores
Súbito, na divina companhia, 41 Que eles, em campo raso ou estacada, Lhe sejam vossas lágrimas, que eu creio
Que ali tereis socorro e forte esteio. » Há muito já de andar terras estranhas, O Mavorte feroz dos Portugueses; 63
Por ver mais águas que as do Douro e Tejo, Vestem-se elas de cores e de sedas, «A dama, como ouviu que este era aquele
50 Várias gentes e leis e várias manhas. De ouro e de jóias mil, ricas e ledas. Que vinha a defender seu nome e fama,
«Destarte as aconselha o Duque experto Agora que aparelho certo vejo, Se alegra e veste ali do animal de Hele,
E logo lhe nomeia doze fortes; (Pois que do mundo as cousas são tamanhos) 59 Que a gente bruta mais que virtude ama.
E por que cada dama um tenha certo, Quero, se me deixais, ir só por terra, «Mas aquela a quem fora em sorte dado Já dão sinal, e o som da tuba impele
Lhe manda que sobre eles lancem sortes, Porque eu serei convosco em Inglaterra. Magriço, que não vinha, com tristeza Os belicosos ânimos, que inflama;
Que elas só doze são; e descoberto Se veste, por não ter quem nomeado Picam de esporas, largam rédeas logo,
Qual a qual tem caído das consortes, 55 Seja seu cavaleiro nesta empresa; Abaxam lanças, fere a terra fogo;
Cada ha escreve ao seu, por vários modos, «E quando caso for que eu, impedido Bem que os onze apregoam que acabado
E todas a seu Rei, e o Duque a todos. Por Quem das cousas é última linha, Será o negócio assi na corte Inglesa, [235]64
Não for convosco ao prazo instituído, Que as damas vencedoras se conheçam, «Dos cavalos o estrépito parece
51 Pouca falta vos faz a falta minha: Posto que dous e três dos seus faleçam. Que faz que o chão debaixo todo treme;
«Já chega a Portugal o mensageiro, Todos por mi fareis o que é devido. O coração no peito que estremece
Toda a corte alvoroça a novidade; Mas, se a verdade o esprito me adivinha, [234]60 De quem os olha, se alvoroça e teme.
Quisera o Rei sublime ser primeiro, Rios, montes, Fortuna ou sua enveja «Já num sublime e púbrico teatro Qual do cavalo voa, que não dece;
Mas não lho sofre a régia Majestade. Não farão que eu convosco lá não seja.» Se assenta o Rei Inglês com toda a corte: Qual, co cavalo em terra dando, geme;
Qualquer dos cortesãos aventureiro Estavam três e três e quatro e quatro, Qual vermelhas as armas faz de brancas;
Deseja ser, com férvida vontade, [233]56 Bem como a cada qual coubera em sorte; Qual cos penachos do elmo açouta as ancas.
E só fica por bem-aventurado «Assi diz e, abraçados os amigos Não são vistos do Sol, do Tejo ao Batro,
Quem já vem pelo Duque nomeado. E tomada licença, enfim se parte. De força, esforço e de ânimo mais forte, 65
Passa Lião, Castela, vendo antigos Outros doze sair, como os Ingleses, «Algum dali tomou perpétuo sono
[232]52 Lugares que ganhara o pátrio Marte; No campo. contra os onze Portugueses. E fez da vida ao fim breve intervalo;
«Lá na leal cidade donde teve Navarra, cos altíssimos perigos Correndo, algum cavalo vai sem dono,
Origem (como é fama) o nome eterno Do Perineu, que Espanha e Gália parte. 61 E noutra parte o dono sem cavalo.
De Portugal, armar madeiro leve Vistas, enfim, de França as cousas grandes, «Mastigam os cavalos, escumando, Cai a soberba Inglesa de seu trono,
Manda o que tem o leme do governo. No grande empório foi parar de Frandes. Os áureos freios, com feroz sembrante; Que dous ou três já fora vão do valo.
Apercebem-se os doze, em tempo breve, Estava o Sol nas armas rutilando, Os que de espada vêm fazer batalha,
De armas e roupas de uso mais moderno, 57 Como em cristal ou rígido diamante; Mais acham já que arnês, escudo e malha.
De elmos, cimeiras, letras e primores, «Ali chegado, ou fosse caso ou manha, Mas enxerga-se, num e noutro bando,
Cavalos, e concertos de mil cores. Sem passar se deteve muitos dias. Partido desigual e dissonante 66
Mas dos onze a ilustríssima companha Dos onze contra os doze; quando a gente «Gastar palavras em contar extremos
53 Cortam do Mar do Norte as ondas frias; Começa a alvoroçar-se geralmente. De golpes feros, cruas estocadas,
«Já do seu Rei tomado têm licença, Chegados de Inglaterra à costa de estranha, É desses gastadores, que sabemos,
Pera partir do Douro celebrado, Pera de Londres já fazem todos vias; 62 Maus do tempo, com fábulas sonhadas.
Aqueles que escolhidos por sentença Do Duque são com festas agasalhados «Viram todos o rosto aonde havia Basta, por fim do caso, que entendemos
Foram do Duque Inglês exprimentado. E das damas servidos e amimados. A causa principal do reboliço: Que com finezas altas e afamadas,
Não há na companhia diferença Eis entra um cavaleiro, que trazia Cos nossos fica a palma da vitória
De cavaleiro, destro ou esforçado; 58 Armas, cavalo, ao bélico serviço; E as damas vencedoras e com glória.
Mas um só, que Magriço se dizia, «Chega-se o prazo e dia assinalado Ao Rei e às damas fala e logo se ia
Destarte fala à forte companhia: De entrar em campo já cos doze Ingleses, Pera os onze, que este era o grão Magriço; 67
Que pelo Rei já tinham segurado; Abraça os companheiros, como amigos , «Recolhe o Duque os doze vencedores
54 Armam-se de elmos, grevas e de arneses. A quem não falta, certo nos perigos. Nos seus paços, com festas e alegria;
«Fortíssimos consócios, eu desejo Já as damas têm por si, fulgente e armado, Cozinheiros ocupa e caçadores,
Das damas e fermosa companhia, Que o Mundo pareceu ser destruído! As ondas de Neptuno furibundo; Onde nenhum remédio lhe valia,
Que querem dar aos seus libertadores Agora a ver parece que deciam Chama aquele remédio santo e forte
Banquetes mil, cada hora e cada dia, [237]72 As íntimas entranhas do Profundo. Que o impossibil pode, desta sorte:
Enquanto se detêm em Inglaterra, O céu fere com gritos nisto a gente, Noto, Austro, Bóreas, Áquilo, queriam
Até tornar à doce e cara terra. Cum súbito temor e desacordo; Arruinar a máquina do Mundo; 81
Que, no romper da vela, a nau pendente A noite negra e feia se alumia «Divina Guarda, angélica, celeste,
[236]68 Toma grão suma d’água pelo bordo. Cos raios em que o Pólo todo ardia! Que os céus, o mar e terra senhoreias:
«Mas dizem que, contudo, o grão Magriço, «Alija (disse o mestre rijamente), Tu, que a todo Israel refúgio deste
Desejoso de ver as cousas grandes, Alija tudo ao mar, não falte acordo! 77 Por metade das águas Eritreias;
Lá se deixou ficar, onde um serviço Vão outros dar à bomba, não cessando; As Alcióneas aves triste canto Tu, que livraste Paulo e defendeste
Notável à Condessa fez de Frandes; À bomba, que nos imos alagando!» Junto da costa brava levantaram, Das Sirtes arenosas e ondas feias,
E, como quem não era já noviço Lembrando-se de seu passado pranto, E, guardaste, cos filhos, o segundo
Em todo trance onde tu, Marte, mandes, 73 Que as furiosas águas lhe causaram. Povoador do alagado e vácuo mundo:
Um Francês mata em campo, que o destino Correm logo os soldados animosos Os delfins namorados, entretanto,
Lá teve de Torcato e de Corvino. A dar à bomba; e, tanto que chegaram, Lá nas covas marítimas entraram, 82
Os balanços que os mares temerosos Fugindo à tempestade e ventos duros, «Se tenho novos medos perigosos
69 Deram à nau, num bordo os derribaram. Que nem no fundo os deixa estar seguros. Doutra Cila e Caríbdis já passados,
«Outro também dos doze em Alemanha Três marinheiros, duros e forçosos, Outras Sirtes e baxos arenosos,
Se lança e teve um fero desafio A menear o leme não bastaram; 78 Outros Acroceráunios infamados;
Cum Germano enganoso, que, com manha Talhas lhe punham, da e doutra parte, Nunca tão vivos raios fabricou No fim de tantos casos trabalhosos,
Não devida, o quis pôr no extremo fio.» Sem aproveitar dos homens força e arte. Contra a fera soberba dos Gigantes Porque somos de Ti desempatados,
Contando assi Veloso, já a companha O grão ferreiro sórdido que obrou Se este nosso trabalho não te ofende,
Lhe pede que não faça tal desvio 74 Do enteado as armas radiantes; Mas antes teu serviço só pretende?
Do caso de Magriço e vencimento, Os ventos eram tais que não puderam Nem tanto o grão Tonante arremessou
Nem deixe o de Alemanha em esquecimento. Mostrar mais força de impito cruel, Relâmpados ao mundo, fulminantes, 83
Se pera derribar então vieram fortíssima No grão dilúvio donde sós viveram «Oh ditosos aqueles que puderam
70 Torre de Babel, os altíssimos mares, que Os dous que em gente as pedras converteram. Entre as agudas lanças Africanas
Mas neste passo, assi prontos estando, creceram, Morrer, enquanto fortes sustiveram
Eis o mestre, que olhando os ares anda, A pequena grandura dum batel 79 A santa Fé nas terras Mauritanas;
O apito toca: acordam, despertando, Mostra a possante nau, que move espanto, Quantos montes, então, que derribaram De quem feitos ilustres se souberam,
Os marinheiros da e doutra banda. Vendo que se sustém nas ondas tanto. As ondas que batiam denodadas! De quem ficam memórias soberanas,
E, porque o vento vinha refrescando, Quantas árvores velhas arrancaram De quem se ganha a vida com perdê-la,
Os traquetes das gáveas tomar manda. 75 Do vento bravo as fúrias indinadas! Doce fazendo a morte as honras dela!»
«Alerta (disse) estai, que o vento crece A nau grande, em que vai Paulo da Gama, As forçosas raízes não cuidaram
Daquela nuvem negra que aparece!» Quebrado leva o masto pelo meio, Que nunca pera o céu fossem viradas [240]84
Quase toda alagada; a gente chama Nem as fundas areias que pudessem Assi dizendo, os ventos, que lutam
71 Aquele que a salvar o mundo veio. Tanto os mares que em cima as revolvessem. Como touros indómitos, bramando,
Não eram os traquetes bem tomados, Não menos gritos vãos ao ar derrama Mais e mais a tormenta acrecentavam,
Quando dá a grande e súbita procela. Toda a nau de Coelho, com receio, [239]80 Pela miúda enxárcia assoviando.
«Amaina (disse o mestre a grandes brados), Conquanto teve o mestre tanto tento Vendo Vasco da Gama que tão perto Relâmpados medonhos não cessavam,
Amaina (disse), amaina a grande vela!» Que primeiro amainou que desse o vento. Do fim de seu desejo se perdia, Feros trovões, que vêm representando
Não esperam os ventos indinados Vendo ora o mar até o Inferno aberto, Cair o Céu dos eixos sobre a Terra,
Que amainassem, mas, juntos dando nela, [238]76 Ora com nova fúria ao Céu subia, Consigo os Elementos terem guerra.
Em pedaços a fazem cum ruído Agora sobre as nuvens os subiam Confuso de temor, da vida incerto,
85 E não convém furor a firme amante. A mercê grande a Deus agardeceu. A parecer seguro, ledo, inteiro,
Mas já a amorosa Estrela cintilava Se já não pões a tanta insânia freio, Pera o pelouro ardente que assovia
Diante do Sol claro, no horizonte, Não esperes de mi, daqui em diante, 94 E leva a perna ou braço ao companheiro.
Mensageira do dia, e visitava Que possa mais amar-te, mas temer-te; As graças a Deus dava, e razão tinha, Destarte o peito um calo honroso cria,
A terra e o largo mar, com leda fronte. Que amor, contigo, em medo se converte.» Que não somente a terra lhe mostrava Desprezador das honras e dinheiro,
A Deusa que nos Céus a governava, Que, com tanto temor, buscando vinha, Das honras e dinheiro que a ventura
De quem foge o ensífero Orionte, 90 Por quem tanto trabalho exprimentava, Forjou, e não virtude justa e dura.
Tanto que o mar e a cara armada vira, Assi mesmo a fermosa Galateia Mas via-se livrado, tão asinha,
Tocada junto foi de medo e de ira. Dizia ao fero Noto, que bem sabe Da morte, que no mar lhe aparelhava 99
Que dias há que em vê-la se recreia, O vento duro, férvido e medonho, Destarte se esclarece o entendimento,
86 E bem crê que com ele tudo acabe. Como quem despertou de horrendo sonho. Que experiências fazem repousado,
«Estas obras de Baco são, por certo Não sabe o bravo tanto bem se o creia, E fica vendo, como de alto assento,
(Disse), mas não será que avante leve Que o coração no peito lhe não cabe; 95 O baxo trato humano embaraçado.
Tão danada tenção, que descoberto De contente de ver que a dama o manda, Por meio destes hórridos perigos, Este, onde tiver força o regimento
Me será sempre o mal a que se atreve.» Pouco cuida que faz, se logo abranda. Destes trabalhos graves e temores, Direito e não de afeitos ocupado,
Isto dizendo, dece ao mar aberto, Alcançam os que são de fama amigos Subirá (como deve) a ilustre mando,
No caminho gastando espaço breve, 91 As honras imortais e graus maiores; Contra vontade sua, e não rogando.
Enquanto manda as Ninfas amorosas Desta maneira as outras amansavam Não encostados sempre nos antigos
Grinaldas nas cabeças pôr de rosas. Subitamente os outros amadores; Troncos nobres de seus antecessores;
E logo à linda Vénus se entregavam, Não nos leitos dourados, entre os finos [245] CANTO SÉTIMO
87 Amansadas as iras e os furores. Animais de Moscóvia zibelinos; 1
Grinaldas manda pôr de várias cores Ela lhe prometeu, vendo que amavam, Já se viam chegados junto à terra
Sobre cabelos louros a porfia. Sempiterno favor em seus amores, [243]96 Que desejada já de tantos fora,
Quem não dirá que nacem roxas flores Nas belas mãos tomando-lhe homenagem Não cos manjares novos e esquisitos, Que entre as correntes Indicas se encerra
Sobre ouro natural, que Amor enfia? De lhe serem leais esta viagem. Não cos passeios moles e ouciosos, E o Ganges, que no Céu terreno mora.
Abrandar determina, por amores, Não cos vários deleites e infinitos, Ora sus, gente forte, que na guerra
Dos ventos a nojosa companhia, [242]92 Que afeminam os peitos generosos; Quereis levar a palma vencedora:
Mostrando-lhe as amadas Ninfas belas, Já a manhã clara dava nos outeiros Não cos nunca vencidos apetitos, Já sois chegados, já tendes diante
Que mais fermosas vinham que as estrelas. Por onde o Ganges murmurando soa, Que a Fortuna tem sempre tão mimosos, A terra de riquezas abundante!
Quando da celsa gávea os marinheiros Que não sofre a nenhum que o passo mude
[241]88 Enxergaram terra alta, pela proa. Pera alga obra heróica de virtude; 2
Assi foi; porque, tanto que chegaram Já fora de tormenta e dos primeiros A vós, ó geração de Luso, digo,
À vista delas, logo lhe falecem Mares, o temor vão do peito voa. 97 Que tão pequena parte sois no mundo,
As forças com que dantes pelejaram, Disse alegre o piloto Melindano: Mas com buscar, co seu forçoso braço, Não digo inda no mundo, mas no amigo
E já como rendidos lhe obedecem; «Terra é de Calecu, se não me engano. As honras que ele chame próprias suas; Curral de Quem governa o Céu rotundo;
Os pés e mãos parece que lhe ataram Vigiando e vestindo o forjado aço, Vós, a quem não somente algum perigo
Os cabelos que os raios escurecem. 93 Sofrendo tempestades e ondas cruas, Estorva conquistar o povo imundo,
A Bóreas, que do peito mais queria, «Esta é, por certo, a terra que buscais Vencendo os torpes frios no regaço Mas nem cobiça ou pouca obediência
Assi disse a belíssima Oritia: Da verdadeira Índia, que aparece; Do Sul, e regiões de abrigo nuas, Da Madre que nos Céus está em essência;
E se do mundo mais não desejais, Engolindo o corrupto mantimento
89 Vosso trabalho longo aqui fenece.» Temperado com um árduo sofrimento; 3
«Não creias, fero Bóreas, que te creio Sofrer aqui não pôde o Gama mais, Vós, Portugueses, poucos quanto fortes,
Que me tiveste nunca amor constante, De ledo em ver que a terra se conhece; 98 Que o fraco poder vosso não pesais;
Que brandura é de amor mais certo arreio Os giolhos no chão, as mãos ao Céu, E com forçar o rosto, que se enfia, Vós, que, à custa de vossas várias mortes,
A lei da vida eterna dilatais: Herdaste, e as causas não da justa guerra? De instrumentos mortais da artelharia Porque esta era a cidade, das milhores
Assi do Céu deitadas são as sortes Já devem de fazer as duras provas Do Malabar, milhor, onde vivia
Que vós, por muito poucos que sejais, [247]8 Nos muros de Bizâncio e de Turquia. O Rei que a terra toda possuía.
Muito façais na santa Cristandade. Pois que direi daqueles que em delícias, Fazei que torne lá às silvestres covas
Que tanto, ó Cristo, exaltas a humildade! Que o vil ócio no mundo traz consigo, Dos Cáspios montes e da Cítia fria 17
Gastam as vidas, logram as divícias, A Turca geração, que multiplica Além do Indo jaz e aquém do Gange
[246]4 Esquecidos do seu valor antigo? Na polícia da vossa Europa rica. Um terreno mui grande e assaz famoso
Vedelos Alemães, soberbo gado, Nascem da tirania inimicícias, Que pela parte Austral o mar abrange
Que por tão largos campos se apacenta; Que o povo forte tem, de si inimigo. 13 E pera o Norte o Emódio cavernoso.
Do sucessor de Pedro rebelado, Contigo, Itália, falo, já summersa Gregos, Traces, Arménios, Georgianos, Jugo de Reis diversos o constrange
Novo pastor e nova seita inventa; Em vícios mil, e de ti mesma adversa. Bradando vos estão que o povo bruto A várias leis: alguns o vicioso
Vedelo em feias guerras ocupado, Lhe obriga os caros filhos aos profanos Maoma, alguns os Ídolos adoram,
Que inda co cego error se não contenta, 9 Preceptos do Alcorão (duro tributo!). Alguns os animais que entre eles moram.
Não contra o superbíssimo Otomano, Ó míseros Cristãos, pola ventura Em castigar os feitos inumanos
Mas por sair do jugo soberano. Sois os dentes, de Cadmo desparzidos, Vos gloriai de peito forte e astuto, 18
Que uns aos outros se dão à morte dura, E não queirais louvores arrogantes Lá bem no grande monte que, cortando
5 Sendo todos de um ventre produzidos? De serdes contra os vossos mui possantes. Tão larga terra, toda Ásia discorre,
Vedelo duro Inglês, que se nomeia Não vedes a divina Sepultura Que nomes tão diversos vai tomando
Rei da velha e santíssima Cidade, Possuída de Cães, que, sempre unidos, 14 Segundo as regiões por onde corre,
Que o torpe Ismaelita senhoreia Vos vêm tomar a vossa antiga terra, Mas, entanto que cegos e sedentos As fontes saem donde vêm manando
(Quem viu honra tão longe da verdade?), Fazendo-se famosos pela guerra? Andais de vosso sangue, ó gente insana, Os rios cuja grão corrente morre
Entre as Boreais neves se recreia, Não faltarão Cristãos atrevimentos No mar Índico, e cercam todo o peso
Nova maneira faz de Cristandade: 10 Nesta pequena casa Lusitana: Do terreno, fazendo-o Quersoneso.
Pera os de Cristo tem a espada nua, Vedes que têm por uso e por decreto, De África tem marítimos assentos;
Não por tomar a terra que era sua. Do qual são tão inteiros observantes, É na Ásia mais que todas soberana; 19
Ajuntarem o exército inquieto Na quarta parte nova os campos ara; Entre um e o outro rio, em grande espaço
6 Contra os povos que são de Cristo amantes; E, se mais mundo houvera, lá chegara. Sai da larga terra üa longa ponta,
Guarda-lhe, por entanto, um falso Rei Entre vós nunca deixa a fera Aleto Quase piramidal, que, no regaço
A cidade Hierosólima terreste, De samear cizânias repugnantes. 15 Do mar, com Ceilão ínsula confronta;
Enquanto ele não guarda a santa Lei Olhai se estais seguros de perigos, E vejamos, entanto, que acontece E junto donde nasce o largo braço
Da cidade Hierosólima celeste. Que eles, e vós, sois vossos inimigos. Àqueles tão famosos navegantes, Gangético, o rumor antigo conta
Pois de ti, Galo indino, que direi? Despois que a branda Vénus enfraquece Que os vizinhos, da terra moradores,
Que o nome «Cristianíssimo» quiseste, 11 O furor vão dos ventos repugnantes; Do cheiro se mantêm das finas flores.
Não pera defendê-lo nem guardá-lo, Se cobiça de grandes senhorios Despois que a larga terra lhe aparece,
Mas pera ser contra ele e derribá-lo! Vos faz ir conquistar terras alheias, Fim de suas perfias tão constantes, [250]20
Não vedes que Pactolo e Hermo rios Onde vem samear de Cristo a lei Mas agora, de nomes e de usança
7 Ambos volvem auríferas areias? E dar novo costume e novo Rei. Novos e vários são os habitantes:
Achas que tens direito em senhorios Em Lídia, Assíria, lavram de ouro os fios; Os Deliis, os Patanes, que em possança
De Cristãos, sendo o teu tão largo e tanto, África esconde em si luzentes veias; [249]16 De terra e gente, são mais abundantes;
E não contra o Cinyphio e Nilo rios, Mova-vos já, sequer, riqueza tanta, Tanto que à nova terra se chegaram, Decanis, Oriás, que a esperança
Inimigos do antigo nome santo? Pois mover-vos não pode a Casa Santa. Leves embarcações de pescadores Têm de sua salvação nas ressonantes
Ali se hão-de provar da espada os fios Acharam, que o caminho lhe mostraram Águas do Gange; e a terra de Bengala,
Em quem quer reprovar da Igreja o canto. [248]12 De Calecu, onde eram moradores. Fértil de sorte que outra não lhe iguala;
De Carlos, de Luís, o nome e a terra Aquelas invenções, feras e novas, Pera lá logo as proas se inclinaram,
21 Tão longe da tua pátria Lusitana?» Tal a gente se ajunta a ouvir o Mouro. Mercadoria que ofereça, rica,
O Reino de Cambaia belicoso «Abrindo (lhe responde) o mar profundo Pera ir nelas a ser religioso
(Dizem que foi de Poro, Rei potente); Por onde nunca veio gente humana; 30 Onde o Profeta jaz que a Lei pubrica.
O Reino de Narsinga, poderoso Vimos buscar do Indo a grão corrente, Ele começa: «Ó gente, que a Natura Antes que parta, o Reino poderoso
Mais de ouro e pedras que de forte gente. Por onde a Lei divina se acrecente.» Vizinha fez de meu paterno ninho, Cos seus reparte, porque não lhe fica
Aqui se enxerga, lá do mar undoso, Que destino tão grande ou que ventura Herdeiro próprio; faz os mais aceitos
Um monte alto, que corre longamente, 26 Vos trouxe a cometerdes tal caminho? Ricos, de pobres; livres, de sujeitos.
Servindo ao Malabar de forte muro, Espantado ficou da grão viagem Não é sem causa, não, oculta e escura,
Com que do Canará vive seguro. O Mouro, que Monçaide se chamava, Vir do longinco Tejo e ignoto Minho, 35
Ouvindo as opressões que na passagem Por mares nunca doutro lenho arados, A um Cochim e a outro Cananor,
22 Do mar o Lusitano lhe contava. A Reinos tão remotos e apartados. A qual Chale, a qual a Ilha da Pimenta,
Da terra os naturais lhe chamam Gate, Mas vendo, enfim, que a força da mensagem A qual Coulão, a qual dá Cranganor,
Do pé do qual, pequena quantidade, Só pera o Rei da terra relevava, 31 E os mais, a quem o mais serve e contenta.
Se estende ha fralda estreita, que combate Lhe diz que estava fora da cidade, Deus, por certo, vos traz, porque pretende Um só moço, a quem tinha muito amor,
Do mar a natural ferocidade. Mas de caminho pouca quantidade; Algum serviço seu por vós obrado; Despois que tudo deu, se lhe apresenta:
Aqui de outras cidades, sem debate, Por isso só vos guia e vos defende Pera este Calecu somente fica,
Calecu tem a ilustre dignidade 27 Dos imigos, do mar, do vento irado. Cidade já por trato nobre e rica.
De cabeça de Império, rica e bela; E que, entanto que a nova lhe chegasse Sabei que estais na Índia, onde se estende
Samorim se intitula o senhor dela. De sua estranha vinda, se queria, Diverso povo, rico e prosperado [254]36
Na sua pobre casa repousasse De ouro luzente e fina pedraria Esta lhe dá, co título excelente
23 E do manjar da terra comeria; Cheiro suave, ardente especiaria. De Emperador, que sobre os outros mande.
Chegada a frota ao rico senhorio, E despois que se um pouco recreasse, Isto feito, se parte diligente
Um Português, mandado, logo parte Co ele pera a armada tornaria, [253]32 Pera onde em santa vida acabe e ande.
A fazer sabedor o Rei gentio Que alegria não pode ser tamanha Esta província, cujo porto agora E daqui fica o nome de potente
Da vinda sua a tão remota parte. Que achar gente vizinha em terra estranha. Tomado tendes, Malabar se chama; Samori, mais que todos dino e grande,
Entrando o mensageiro pelo rio Do culto antigo os Ídolos adora, Ao moço e descendentes, donde vem
Que ali nas ondas entra, a não vista arte, [252]28 Que cá por estas partes se derrama; Este que agora o Império manda e tem.
A cor, o gesto estranho, o trajo novo, O Português aceita de vontade De diversos Reis é, mas dum só fora
Fez concorrer a vê-lo todo o povo. O que o ledo Monçaide lhe oferece; Noutro tempo, segundo a antiga fama: 37
Como se longa fora já a amizade, Saramá Perimal foi derradeiro A Lei da gente toda, rica e pobre,
[251]24 Co ele come e bebe e lhe obedece. Rei que este Reino teve unido e inteiro. De fábulas composta se imagina.
Entre a gente que a vê-lo concorria, Ambos se tornam logo da cidade Andam nus e somente um pano cobre
Se chega um Maometa, que nascido Pera a frota, que o Mouro bem conhece. 33 As partes que a cobrir Natura ensina.
Fora na região da Berberia, Sobem à capitaina, e toda a gente Porém, como a esta terra então viessem Dous modos há de gente, porque a nobre
Lá onde fora Anteu obedecido. Monçaide recebeu benignamente. De lá do seio Arábico outras gentes Naires chamados são, e a menos dina
(Ou, pela vezinhança, já teria Que o culto Maomético trouxessem, Poleás tem por nome, a quem obriga
O Reino Lusitano conhecido, 29 No qual me instituíram meus parentes, A lei não mesturar a casta antiga;
Ou foi já assinalado de seu ferro; O Capitão o abraça, em cabo ledo, Sucedeu que, pregando, convertessem
Fortuna o trouxe a tão longo desterro). Ouvindo clara a língua de Castela; O Perimal; de sábios e eloquentes, 38
Junto de si o assenta e, pronto e quedo, Fazem-lhe a Lei tomar com fervor tanto Porque os que usaram sempre um mesmo
25 Pela terra pergunta e cousas dela. Que prosupôs de nela morrer santo. ofício,
Em vendo o mensageiro, com jucundo Qual se ajuntava em Ródope o arvoredo, De outro não podem receber consorte;
Rosto, como quem sabe a língua Hispana, Só por ouvir o amante da donzela 34 Nem os filhos terão outro exercício
Lhe disse: « Quem te trouxe a estoutro mundo, Eurídice, tocando a lira de ouro, Naus arma e nelas mete, curioso, Senão o de seus passados, até morte.
Pera os Naires é, certo, grande vício Vários de gestos, vários de pinturas, Que quem delas tiver notícia inteira,
Destes serem tocados; de tal sorte 43 A segundo o Demónio lhe fingia; Pela sombra conhece a verdadeira.
Que, quando algum se toca porventura, Mas ele, que do Rei já tem licença Vêm-se as abomináveis esculturas,
Com cerimónias mil se alimpa e apura. Pera desembarcar, acompanhado Qual a Quimera em membros se varia; [258]52
Dos nobres Portugueses, sem detença Os cristãos olhos, a ver Deus usados Estava um grande exército, que pisa
39 Parte, de ricos panos adornado Em forma humana, estão maravilhados. A terra Oriental que o Idaspe lava;
Desta sorte o Judaico povo antigo Das cores a fermosa diferença Rege-o um capitão de fronte lisa,
Não tocava na gente de Samária. A vista alegra ao povo alvoroçado; [257]48 Que com frondentes tirsos pelejava
Mais estranhezas inda das que digo O remo compassado fere frio Um, na cabeça cornos esculpidos, (Por ele edificada estava Nisa
Nesta terra vereis de usança vária. Agora o mar, despois o fresco rio. Qual Júpiter Amon em Líbia estava; Nas ribeiras do rio que manava),
Os Naires sós são dados ao perigo Outro, num corpo rostos tinha unidos, Tão próprio que, se ali estiver Semele,
Das armas; sós defendem da contrária [256]44 Bem como o antigo Jano se pintava; Dirá, por certo, que é seu filho aquele.
Banda o seu Rei, trazendo sempre usada Na prata um regedor do Reino estava Outro, com muitos braços divididos,
Na esquerda a adarga e na direita a espada. Que, na sua língua, «Catual» se chama, A Briareu parece que imitava; 53
Rodeado de Naires, que esperava Outro, fronte canina tem de fora, Mais avante, bebendo, seca o rio
[255]40 Com desusada festa o nobre Gama. Qual Anúbis Menfítico se adora. Mui grande multidão da Assíria gente,
Bramenes são os seus religiosos, Já na terra, nos braços o levava sujeita a feminino senhorio
Nome antigo e de grande preminência; E num portátil leito ha rica cama 49 De üa tão bela como incontinente.
Observam os preceitos tão famosos Lhe oferece em que vá (costume usado), Aqui feita do bárbaro Gentio Ali tem, junto ao lado nunca frio,
Dum que primeiro pôs nome à ciência; Que nos ombros dos homens é levado. A supersticiosa adoração, Esculpido o feroz ginete ardente
Não matam cousa viva e, temerosos, Direitos vão, sem outro algum desvio, Com quem teria o filho competência.
Das carnes têm grandíssima abstinência. 45 Pera onde estava o Rei do povo vão. Amor nefando, bruta incontinência!
Somente no Venéreo ajuntamento Destarte o Malabar, destarte o Luso, Engrossando-se vai da gente o fio
Têm mais licença e menos regimento. Caminham lá pera onde o Rei o espera; Cos que vêm ver o estranho Capitão. 54
Os outros Portugueses vão ao uso Estão pelos telhados e janelas Daqui mais apartadas, tremulavam
41 Que infantaria segue, esquadra fera. Velhos e moços, donas e donzelas. As bandeiras de Grécia gloriosas
Gerais são as mulheres, mas somente O povo que concorre vai confuso (Terceira Monarquia), e sojugavam
Pera os da geração de seus maridos De ver a gente estranha, e bem quisera 50 Até as águas Gangéticas undosas.
(Ditosa condição, ditosa gente, Perguntar; mas, no tempo já passado, Já chegam perto, e não [a/com] passos lentos, Dum capitão mancebo se guiavam,
Que não são de ciúmes ofendidos!) Na Torre de Babel lhe foi vedado. Dos jardins odoríferos fermosos, De palmas rodeado valerosas,
Estes e outros costumes variamente Que em si escondem os régios apousentos, Que já não de Filipo, mas, sem falta
São pelos Malabares admitidos. 46 Altos de torres não, mas sumptuosos; De progénie de Júpiter se exalta.
A terra é grossa em trato, em tudo aquilo O Gama e o Catual iam falando Edificam-se os nobres seus assentos
Que as ondas podem dar, da China ao Nilo.» Nas cousas que lhe o tempo oferecia; Por entre os arvoredos deleitosos: 55
Monçaide, entre eles, vai interpretando Assi vivem os Reis daquela gente, Os Portugueses vendo estas memórias,
42 As palavras que de ambos entendia. No campo e na cidade juntamente. Dizia o Catual ao Capitão:
Assi contava o Mouro; mas vagando Assi pela cidade caminhando, «Tempo cedo virá que outras vitórias
Andava a fama já pela cidade Onde üa rica fábrica se erguia 51 Estas que agora olhais abaterão;
Da vinda desta gente estranha, quando De um sumptuoso templo já chegavam, Pelos portais da cerca a sutileza Aqui se escreverão novas histórias
O Rei saber mandava da verdade. Pelas portas do qual juntos entravam. Se enxerga da Dedálea facultade, Por gentes estrangeiras que virão;
Já vinham pelas ruas caminhando, Em figuras mostrando, por nobreza, Que os nossos sábios magos o alcançaram
Rodeados de todo sexo e idade, 47 Da Índia a mais remota antiguidade. Quando o tempo futuro especularam.
Os principais que o Rei buscar mandara Ali estão das Deidades as figuras, Afiguradas vão com tal viveza
O Capitão da armada que chegara. Esculpidas em pau e em pedra fria, As histórias daquela antiga idade, [259]56
«E diz-lhe mais a mágica ciência Ouvindo do rumor que lá responde Da mãe, tal que por bafo está aprovado
Que, pera se evitar força tamanho, O eco, como em ti da Índia toda 65 Do Deus que tem do Mundo o regimento.
Não valerá dos homens resistência, O principado está e a majestade, E que, entanto, podia do trabalho O que entre meus antigos é vulgado
Que contra o Céu não val da gente manha; Vínculo quer contigo de amizade. Passado ir repousar; e em tempo breve Deles, é que o valor sanguinolento
Mas também diz que a bélica excelência, Daria a seu despacho um justo talho, Das armas no seu braço resplandece,
Nas armas e na paz, da gente estranha 61 Com que a seu Rei reposta alegre leve. O que em nossos passados se parece.
Será tal, que será no mundo ouvido «E por longos rodeios a ti manda Já nisto punha a noite o usado atalho
O vencedor por glória do vencido». Por te fazer saber que tudo aquilo Ás humanas canseiras, por que ceve 70
Que sobre o mar, que sobre as terras anda, De doce sono os membros trabalhados, Porque eles, com virtude sobre-humana,
57 De riquezas, de lá do Tejo ao Nilo, Os olhos ocupando, ao ócio dados. Os deitaram dos campos abundosos
Assi falando, entravam já na sala E desde a fria plaga de Gelanda Do rico Tejo e fresca Guadiana,
Onde aquele potente Emperador Até bem donde o Sol não muda o estilo 66 Com feitos memoráveis e famosos;
Na camilha jaz, que não se iguala Nos dias, sobre a gente de Etiópia, Agasalhados foram juntamente E não contentes inda, e na Africana
De outra alga no preço e no lavor. Tudo tem no seu Reino em grande cópia. O Gama e Portugueses no apousento Parte, cortando os mares procelosos,
No recostado gesto se assinala Do nobre Regedor da Indica gente, Nos não querem deixar viver seguros,
Um venerando e próspero senhor; 62 Com festas e geral contentamento. Tomando-nos cidades e altos muros.
Um pano de ouro cinge, e na cabeça E se queres, com pactos e lianças O Catual, no cargo diligente
De preciosas gemas se adereça. De paz e de amizade, sacra e nua, De seu Rei, tinha já por regimento 71
Comércio consentir das abondanças Saber da gente estranha donde vinha, Não menos têm mostrado esforço e manha
58 Das fazendas da terra sua e tua, Que costumes, que lei, que terra tinha. Em quaisquer outras guerras que aconteçam,
Bem junto dele, um velho reverente, Por que creçam as rendas e abastanças Ou das gentes belígeras de Espanha,
Cos giolhos no chão, de quando em quando (Por quem a gente mais trabalha e sua) 67 Ou lá dalguns que do Pirene deçam.
Lhe dava a verde folha da erva ardente, De vossos Reinos, será certamente Tanto que os ígneos carros do fermoso Assi que nunca, enfim, com lança estranha
Que a seu costume estava ruminando. De ti proveito, e dele glória ingente. Mancebo Délio viu, que a luz renova, Se tem que por vencidos se conheçam;
Um Bramene, pessoa preminente, Manda chamar Monçaide, desejoso Nem se sabe inda, não, te afirmo e asselo
Pera o Gama vem com passo brando, 63 De poder-se informar da gente nova. Pera estes Anibais nenhum Marcelo.
Pera que ao grande Príncipe o apresente, E sendo assi que o nó desta amizade Já lhe pergunta, pronto e curioso,
Que diante lhe acena que se assente. Entre vós firmemente permaneça, Se tem notícia inteira e certa prova [263]72
Estará pronto a toda adversidade Dos estranhos, quem são; que ouvido tinha E se esta informação não for inteira
59 Que por guerra a teu Reino se ofereça, Que é gente de sua pátria mui vizinha; Tanto quanto convém, deles pretende
Sentado o Gama junto ao rico leito, Com gente, armas e naus, de qualidade Informar-te, que é gente verdadeira,
Os seus mais afastados, pronto em vista Que por irmão te tenha e te conheça; [262]68 A quem mais falsidade enoja e ofende;
Estava o Samori no trajo e jeito E da vontade em ti sobre isto posta Que particularmente ali lhe desse Vai ver-lhe a frota, as armas e a maneira
Da gente, nunca de antes dele vista. Me dês a mi certíssima resposta.» Informação mui larga, pois fazia Do fundido metal que tudo rende
Lançando a grave voz do sábio peito, Nisso serviço ao Rei, por que soubesse E folgarás de veres a polícia
Que grande autoridade logo aquista [261]64 O que neste negócio se faria Portuguesa, na paz e na milícia.»
Na opinião do Rei e do povo todo, Tal embaxada dava o Capitão, Monçaide torna: «posto que eu quisesse
O Capitão lhe fala deste modo: A quem o Rei gentio respondia Dizer-te disto mais, não saberia; 73
Que, em ver embaxadores de nação Somente sei que é gente lá de Espanha, Já com desejos o Idolatra ardia
[260]60 Tão remota, grão glória recebia; Onde o meu ninho e o Sol no mar se banha. De ver isto que o Mouro lhe contava;
«Um grande Rei, de lá das partes onde Mas neste caso a última tenção Manda esquipar batéis, que ir ver queria
O Céu volubil, com perpétua roda, Com os de seu conselho tomaria, 69 Os lenhos em que o Gama navegava.
Da terra a luz solar co a Terra esconde, Informando-se certo de quem era Tem a lei dum Profeta que gerado Ambos partem da praia, a quem seguia
Tingindo, a que deixou, de escura noda, O Rei e a gente e terra que dissera; Foi sem fazer na carne detrimento A Naira geração, que o mar coalhava;
À capitaina sobem, forte e bela, Um ramo na mão tinha... Mas, ó cego, Que exemplos a futuros escritores,
Onde Paulo os recebe a bordo dela. Eu, que cometo, insano e temerário, Pera espertar engenhos curiosos, 87
Sem vós, Ninfas do Tejo e do Mondego, Pera porem as cousas em memória Aqueles sós direi que aventuraram
74 Por caminho tão árduo, longo e vário! Que merecerem ter eterna glória! Por seu Deus, por seu Rei, a amada vida,
Purpúreos são os toldos, e as bandeiras Vosso favor invoco, que navego Onde, perdendo-a, em fama a dilataram,
Do rico fio são que o bicho gera; Por alto mar, com vento tão contrário 83 Tão bem de suas obras merecida.
Nelas estão pintadas as guerreiras Que, se não me ajudais, hei grande medo Pois logo, em tantos males, é forçado Apolo e as Musas, que me acompanharam,
Obras que o forte braço já fizera; Que o meu fraco batel se alague cedo. Que só vosso favor me não faleça, Me dobrarão a fúria concedida,
Batalhas têm campais aventureiras, Principalmente aqui, que sou chegado Enquanto eu tomo alento, descansado,
Desafios cruéis, pintura fera, 79 Onde feitos diversos engrandeça: Por tornar ao trabalho, mais folgado.
Que, tanto que ao Gentio se apresenta, Olhai que há tanto tempo que, cantando Dai-mo vós sós, que eu tenho já jurado
A tento nela os olhos apacenta. O vosso Tejo e os vossos Lusitanos, Que não no empregue em quem o não mereça,
A Fortuna me traz peregrinando, Nem por lisonja louve algum subido, [267] CANTO OITAVO
75 Novos trabalhos vendo e novos danos: Sob pena de não ser agradecido. 1
Pelo que vê pergunta; mas o Gama Agora o mar, agora experimentando Na primeira figura se detinha
Lhe pedia primeiro que se assente Os perigos Mavórcios inumanos, [266]84 O Catual que vira estar pintada,
E que aquele deleite que tanto ama Qual Cânace, que à morte se condena, Nem creiais, Ninfas, não, que fama desse Que por divisa um ramo na mão tinha,
A seita Epicureia experimente. Na mão sempre a espada e noutra a pena; A quem ao bem comum e do seu Rei A barba branca, longa e penteada.
Dos espumantes vasos se derrama Antepuser seu próprio interesse, Quem era e por que causa lhe convinha
O licor que Noé mostrara à gente; [265]80 Imigo da divina e humana Lei. A divisa que tem na mão tomada?
Mas comer o Gentio não pretende, Agora, com pobreza avorrecida, Nenhum ambicioso que quisesse Paulo responde, cuja voz discreta
Que a seita que seguia lho defende. Por hospícios alheios degradado; Subir a grandes cargos, cantarei, O Mauritano sábio lhe interpreta:
Agora, da esperança já adquirida, Só por poder com torpes exercícios
[264]76 De novo mais que nunca derribado; Usar mais largamente de seus vícios; 2
A trombeta, que, em paz, no pensamento Agora às costas escapando a vida, Estas figuras todas que aparecem,
Imagem faz de guerra, rompe os ares; Que dum fio pendia tão delgado 85 Bravos em vista e feros nos aspeitos,
Co fogo o diabólico instrumento Que não menos milagre foi salvar-se Nenhum que use de seu poder bastante Mais bravos e mais feros se conhecem,
se faz ouvir no fundo lá dos mares. Que pera o Rei Judaico acrecentar-se. Pera servir a seu desejo feio, Pela fama, nas obras e nos feitos.
Tudo o Gentio nota; mas o intento E que, por comprazer ao vulgo errante, Antigos são, mas inda resplandecem
Mostrava sempre ter nos singulares 81 Se muda em mais figuras que Proteio. Co nome, entre os engenhos mais perfeitos.
Feitos dos homens que, em retrato breve E ainda, Ninfas minhas, não bastava Nem, Camenas, também cuideis que cante Este que vês, é Luso, donde a Fama
A muda poesia ali descreve. Que tamanhas misérias me cercassem, Quem, com hábito honesto e grave, veio, O nosso Reino Lusitânia chama.
Senão que aqueles que eu cantando andava Por contentar o Rei, no ofício novo,
77 Tal prémio de meus versos me tornassem: A despir e roubar o pobre povo! 3
Alça-se em pé, co ele o Gama junto, A troco dos descansos que esperava, Foi filho e companheiro do Tebano
Coelho de outra parte e o Mauritano; Das capelas de louro que me honrassem, 86 Que tão diversas partes conquistou;
Os olhos põe no bélico trasunto Trabalhos nunca usados me inventaram, Nem quem acha que é justo e que é direito Parece vindo ter ao ninho Hispano
De um velho branco, aspeito venerando, Com que em tão duro estado me deitaram. Guardar-se a lei do Rei severamente, Seguindo as armas, que contino usou.
Cujo nome não pode ser defunto E não acha que é justo e bom respeito Do Douro, Guadiana o campo ufano,
Enquanto houver no mundo trato humano: 82 Que se pague o suor da servil gente; Já dito EIísio, tanto o contentou
No trajo a Grega usança está perfeita; Vede, Ninfas, que engenhos de senhores Nem quem sempre, com pouco experto peito, Que ali quis dar aos já cansados ossos
Um ramo, por insígnia, na direita. O vosso Tejo cria valerosos, Razões aprende, e cuida que é prudente, Eterna sepultura, e nome aos nossos.
Que assi sabem prezar, com tais favores, Pera taxar, com mão rapace e escassa,
78 A quem os faz, cantando, gloriosos! Os trabalhos alheios que não passa. [268]4
O ramo que lhe vês, pera divisa, Gentes de nós souberam ser vencidas. Vê que os de seus vassalos são notáveis. E no mar resplandece juntamente,
O verde tirso foi, de Baco usado; Olha tão sutis artes e maneiras Co fogo que acendeu junto da serra
O qual à nossa idade amostra e avisa Pera adquirir os povos, tão fingidas: 13 De Ábila, nas galés da Maura gente.
Que foi seu companheiro e filho amado. A fatídica cerva que o avisa. Este que vês olhar, com gesto irado, Olha como, em tão justa e santa guerra,
Vês outro, que do Tejo a terra pisa, Ele é Sertório, e ela a sua divisa. Pera o rompido aluno mal sofrido, De acabar pelejando está contente.
Despois de ter tão longo mar arado, Dizendo-lhe que o exército espalhado Das mãos dos Mouros entra a felice alma,
Onde muros perpétuos edifica, 9 Recolha, e torne ao campo defendido; Triunfando, nos Céus, com justa palma.
E templo a Palas, que em memória fica? Olha estoutra bandeira, e vê pintado Torna o Moço, do velho acompanhado,
O grão progenitor dos Reis primeiros: Que vencedor o torna de vencido: 18
5 Nós Húngaro o fazemos, porém nado Egas Moniz se chama o forte velho, Não vês um ajuntamento, de estrangeiro
Ulisses é, o que faz a santa casa Crem ser em Lotaríngia os estrangeiros. Pera leais vassalos claro espelho. Trajo, sair da grande armada nova,
À Deusa que lhe dá língua facunda; Despois de ter, cos Mouros, superado Que ajuda a combater o Rei primeiro
Que se lá na Ásia Tróia insigne abrasa, Galegos e Lioneses cavaleiros, 14 Lisboa, de si dando santa prova?
Cá na Europa Lisboa ingente funda.» À Casa Santa passa o santo Henrique, Vê-lo cá vai cos filhos a entregar-se, Olha Henrique, famoso cavaleiro,
«Quem será estoutro cá, que o campo arrasa Por que o tronco dos Reis se santifique.» A corda ao colo, nu de seda e pano, A palma que lhe nasce junto à cova.
De mortos, com presença furibunda? Porque não quis o Moço sujeitar-se, Por eles mostra Deus milagre visto;
Grandes batalhas tem desbaratadas, 10 Como ele prometera, ao Castelhano. Germanos são os Mártires de Cristo.
Que as Águias nas bandeiras tem pintadas!» «Quem é, me dize, estoutro que me espanta Fez com siso e promessas levantar-se
(Pergunta o Malabar maravilhado), O cerco, que já estava soberano. 19
6 Que tantos esquadrões, que gente tanta, Os filhos e mulher obriga à pena: Um Sacerdote vê, brandindo a espada
Assi o Gentio diz. Responde o Gama: Com tão pouca, tem roto e destroçado? Pera que o senhor salve, a si condena. Contra Arronches, que toma, por vingança.
«Este que vês, pastor já foi de gado; Tantos muros aspérrimos quebranta, De Leiria, que de antes foi tomada
Viriato sabemos que se chama, Tantas batalhas dá, nunca cansado, 15 Por quem por Mafamede enresta a lança:
Destro na lança mais que no cajado; Tantas coroas tem, por tantas partes, Não fez o Cônsul tanto que cercado É Teotónio Prior. Mas vê cercada
Injuriada tem de Roma a fama, A seus pés derribadas, e estandartes?» Foi nas Forcas Caudinas, de ignorante, Santarém, e verás a segurança
Vencedor invencibil, afamado. Quando a passar por baxo foi forçado Da figura nos muros que, primeira
Não tem com ele, não, nem ter puderam, 11 Do Samnítico jugo triunfante. Subindo, ergueu das Quinas a bandeira.
O primor que com Pirro já tiveram. «Este é o primeiro Afonso (disse o Gama), Este, pelo seu povo injuriado,
Que todo Portugal aos Mouros toma; A si se entrega só, firme e constante; [272]20
7 Por quem no Estígio lago jura a Fama Estoutro a si e os filhos naturais Vê-lo cá, donde Sancho desbarata
«Com força, não; com manha vergonhosa De mais não celebrar nenhum de Roma. E a consorte sem culpa, que dói mais. Os Mouros de Vandália em fera guerra;
A vida lhe tiraram, que os espanta; Este é aquele zeloso a quem Deus ama, Os imigos rompendo, o alferes mata
Que o grande aperto, em gente inda que Com cujo braço o Mouro imigo doma, [271]16 E Hispálico pendão derriba em terra:
honrosa, Pera quem de seu Reino abaxa os muros, Vês este que, saindo da cilada, Mem Moniz é, que em si o valor retrata
As vezes leis magnânimas quebranta. Nada deixando já pera os futuros. Dá sobre o Rei que cerca a vila forte? Que o sepulcro do pai cos ossos corra.
Outro está aqui que, contra a pátria irosa, Já o Rei tem preso e a vila descercada; Dino destas bandeiras, pois sem falta
Degradado, connosco se alevanta; [270]12 Ilustre feito, dino de Mavorte! A contrária derriba e a sua exalta.
Escolheu bem com quem se alevantasse Se César, se Alexandre Rei, tiveram Vê-lo cá vai pintado nesta armada,
Pera que eternamente se ilustrasse. Tão pequeno poder, tão pouca gente, No mar também aos Mouros dando a morte, 21
Contra tantos imigos quantos eram Tomando-lhe as galés, levando a glória Olha aquele que dece pela lança,
[269]8 Os que desbaratava este excelente, Da primeira marítima vitória: Com as duas cabeças dos vigias,
Vês, connosco também vence as bandeiras Não creias que seus nomes se estenderam Ande a cilada esconde, com que alcança
Dessas aves de Júpiter validas; Com glórias imortais tão largamente; 17 A cidade, por manhas e ousadias.
Que já naquele tempo as mais guerreiras Mas deixa os feitos seus inexplicáveis, É Dom Fuas Roupinho, que na terra Ela por armas toma a semelhança
Do cavaleiro que as cabeças frias 26 Do Capitão devoto, que, apartado, Mas olha Rui Pereira, que co rosto
Na mão levava (feito nunca feito!): Vês, com bélica astúcia ao Mouro ganha Orando invoca a suma e trina Essência? Faz escudo às galés, diante posto.
Giraldo Sem Pavor é o forte peito. Silves, que ele ganhou com força ingente: Vê-lo com pressa já dos seus achado,
É Dom Paio Correia, cuja manha Que lhe dizem que falta resistência 35
22 E grande esforço faz enveja à gente. Contra poder tamanho, e que viesse Olha que dezessete Lusitanos,
Não vês um Castelhano, que, agravado Mas não passes os três que em França e Por que consigo esforço aos fracos desse. Neste outeiro subidos, se defendem
De Afonso nono, Rei, pelo ódio antigo Espanha Fortes, de quatrocentos Castelhanos,
Dos de Lara, cos Mouros é deitado, Se fazem conhecer perpetuamente 31 Que em derredor, pelos tomar, se estendem;
De Portugal fazendo-se inimigo? Em desafios, justas e torneos, Mas olha com que santa confiança, Porém logo sentiram, com seus danos,
Abrantes vila toma, acompanhado Nelas deixando públicos troféus. Que «inda não era tempo» respondia, Que não só se defendem, mas ofendem.
Dos duros Infiéis que traz consigo; Como quem tinha em Deus a segurança Dino feito de ser, no mundo, eterno,
Mas vê que um Português com pouca gente 27 Da vitória que logo lhe daria. Grande no tempo antigo e no moderno!
O desbarata e o prende ousadamente. Vê-los co nome vêm de aventureiros Assi Pompílio, ouvindo que a possança
A Castela, onde o preço sós levaram Dos immigos a terra lhe corria, [276]36
23 Dos jogos de Belona verdadeiros, A quem lhe a dura nova estava dando, Sabe-se antigamente que trezentos
Martim Lopes se chama o cavaleiro Que com dano de alguns se exercitaram. «Pois eu (responde) estou sacrificando.» Já contra mil Romanos pelejaram,
que destes levar pode a palma e o louro. Vê mortos os soberbos cavaleiros No tempo que os viris atrevimentos
Mas olha um Eclesiástico guerreiro, Que o principal dos três desafiaram, [275]32 De Viriato tanto se ilustraram,
Que em lança de aço torna o bago de ouro. Que Gonçalo Ribeiro se nomeia, Se quem com tanto esforço em Deus se atreve E deles alcançando vencimentos
Vê-lo, entre os duvidosos, tão inteiro Que pode não temer a lei Leteia. Ouvir quiseres como se nomeia, Memoráveis, de herança nos deixaram
Em não negar batalha ao bravo Mouro; «Português Cipião» chamar-se deve; Que os muitos, por ser poucos, não temamos;
Olha o sinal no Céu, que lhe aparece, [274]28 Mas mais de «Dom Nuno Álvares» se arreia. Que despois mil vezes amostramos.
Com que nos poucos seus o esforço crece Atenta num que a fama tanto estende Ditosa pátria que tal filho teve!
Que de nenhum passado se contenta; Mas antes, pai! que, enquanto o Sol rodeia 37
[273]24 Que a Pátria, que de um fraco fio pende, Este globo de Ceres e Neptuno, Olha cá dons Infantes, Pedro e Henrique,
Vês, vão os Reis de Córdova e Sevilha Sobre seus duros ombros a sustenta. Sempre suspirará por tal aluno. Progénie generosa de Joane;
Rotos, cos outros dous, e não de espaço; Não no vês tinto de ira, que reprende Aquele faz que fama ilustre fique
Rotos? Mas antes mortos: maravilha A vil desconfiança, inerte e lenta, 33 Dele em Germânia, com que a morte engane;
Feita de Deus, que não de humano braço. Do povo, e faz que tome o doce freio Na mesma guerra vê que presas ganha Este, que ela nos mares o pubrique
Vês? Já a vila de Alcácere se humilha, De Rei seu natural, e não de alheio? Estoutro Capitão de pouca gente; Por seu descobridor, e desengane
Sem lhe valer defesa ou muro de aço, Comendadores vence e o gado apanha De Ceita a Maura túmida vaidade,
A Dom Mateus, o Bispo de Lisboa, 29 Que levavam roubado ousadamente; Primeiro entrando as portas da cidade.
Que a coroa de palma ali coroa. Olha: por seu conselho e ousadia, Outra vez vê que a lança em sangue banha
De Deus guiada só e de santa estrela, Destes, só por livrar, co amor ardente, 38
25 Só, pode o que impossibil parecia: O preso amigo, preso por leal: Vês o Conde Dom Pedro, que sustenta
Olha um Mestre que dece de Castela, Vencer o povo ingente de Castela. Pero Rodrigues é do Landroal. Dous cercos contra toda a Barbaria.
Português de nação, como conquista Vês, por indústria, esforço e valentia, Vês, outro Conde está, que representa
A terra dos Algarves, e já nela Outro estrago e vitória, clara e bela, 34 Em terra Marte, em forças e ousadia;
Não acha que por armas lhe resista. Na gente, assi feroz como infinita, «Olha este desleal e como paga De poder defender se não contenta
Com manha, esforço e com benigna estrela, Que entre o Tarteso e Guadiana habita? O perjúrio que fez e vil engano; Alcácere, da ingente companhia;
Vilas, castelos, toma à escala vista. Gil Fernandes é de Elvas quem o estraga Mas do seu Rei defende a cara vida,
Vês Tavila tomada aos moradores, 30 E faz vir a passar o último dano: Pondo por muro a sua, ali perdida.
Em vingança dos sete caçadores? Mas não vês quase já desbaratado De Xerez rouba o campo e quase alaga
O poder Lusitano, pela ausência Co sangue de seus donos Castelhano. 39
Outros muitos verias, que os pintores Do singular artífice ali pinta. Que de seus ódios inda se não dece. Ali se dão, segundo o que entendiam;
Aqui também por certo pintariam; Os olhos tinha prontos e direitos Astutas traições, enganos vários,
Mas falta-lhe pincel, faltam-lhe cores: O Catual na história bem distinta; [279]48 Perfídias, inventavam e teciam;
Honra, prémio, favor, que as artes criam. Mil vezes perguntava e mil ouvia E diz-lhe assi: «Guardai-vos, gente minha, Mas, deixando conselhos temerários,
Culpa dos viciosos sucessores, As gostosas batalhas que ali via. Do mal que se aparelha pelo imigo Destruição da gente pretendiam,
Que degeneram, certo, e se desviam Que pelas águas húmidas caminha, Por manhas mais sutis e ardis milhores,
Do lustre e do valor dos seus passados, [278]44 Antes que esteis mais perto do perigo!» Com peitas adquirindo os regedores.
Em gostos e vaidades atolados. Mas já a luz se mostrava duvidosa, Isto dizendo, acorda o Mouro asinha,
Porque a alâmpada grande se escondia Espantado do sonho; mas consigo 53
[277]40 Debaxo do Horizonte e, luminosa, Cuida que não é mais que sonho usado; Com peitas, ouro e dádivas secretas
Aqueles pais ilustres que já deram Levava aos Antípodas o dia, Torna a dormir, quieto e sossegado. Conciliam da terra os principais;
Princípio à geração que deles pende, Quando o Gentio e a gente generosa E com razões notáveis e discretas
Pela virtude muito antão fizeram Dos Naires da nau forte se partia, 49 Mostram ser perdição dos naturais,
E por deixar a casa que descende. A buscar o repouso que descansa Torna Baco dizendo: «Não conheces Dizendo que são gentes inquietas,
Cegos, que, dos trabalhos que tiveram, Os lassos animais, na noite mansa. O grão legislador que a teus passados Que, os mares discorrendo Ocidentais,
Se alta fama e rumor deles se estende, Tem mostrado o preceito a que obedeces, Vivem só de piráticas rapinas,
Escuros deixam sempre seus menores, 45 Sem o qual fôreis muitos baptizados? Sem Rei, sem leis humanas ou divinas.
Com lhe deixar descansos corrutores! Entretanto, os arúspices famosos Eu por ti, rudo, velo, e tu adormeces?
Na falsa opinião, que em sacrifícios Pois saberás que aqueles que chegados 54
41 Antevem sempre os casos duvidosos De novo são, serão mui grande dano Oh, quanto deve o Rei que bem governa
Outros também há grandes e abastados, Por sinais diabólicos e indícios, Da Lei que eu dei ao néscio povo humano. De olhar que os conselheiros ou privados
Sem nenhum tronco ilustre donde venham: Mandados do Rei próprio, estudiosos, De consciência e de virtude interna
Culpa de Reis, que às vezes a privados Exercitavam a arte e seus ofícios, 50 E de sincero amor sejam dotados!
Dão mais que a mil que esforço e saber Sobre esta vinda desta gente estranha, «Enquanto é fraca a força desta gente, Porque, como estê posto na superna
tenham. Que às suas terras vem da ignota Espanha. ordena como em tudo se resista, Cadeira, pode mal dos apartados
Estes os seus não querem ver pintados, Porque, quando o Sol sai, facilmente Negócios ter notícia mais inteira
Crendo que cores vãs lhe não convenham, 46 Se pode nele pôr a aguda vista; Do que lhe der a língua conselheira.
E, como a seu contrairo natural, Sinal lhe mostra o Demo, verdadeiro, Porém, despois que sobe claro e ardente.
A pintura que fala querem mal. De como a nova gente lhe seria Se agudeza dos olhos o conquista, 55
Jugo perpétuo, eterno cativeiro, Tão cega fica, quanto ficareis Nem tão-pouco direi que tome tanto
42 Destruição de gente e de valia. Se raízes criar lhe não tolheis.» Em grosso a consciência limpa e certa,
Não nego que há, contudo, descendentes Vai-se espantado o atónito agoureiro Que se enleve num pobre e humilde manto,
Do generoso tronco e casa rica, Dizer ao Rei (segundo o que entendia) 51 Onde ambição acaso ande encoberta.
Que, com costumes altos e excelentes, Os sinais temerosos que alcançara Isto dito, ele e o sono se despede E, quando um bom em tudo é justo e santo,
Sustentam a nobreza que lhe fica; Nas entranhas das vítimas que oulhara. Tremendo fica o atónito Agareno; E em negócios do mundo pouco acerta;
E se a luz dos antigos seus parentes Salta da cama, lume aos servos pede, Que mal co eles poderá ter conta
Neles mais o valor não clarifica, 47 Lavrando nele o férvido veneno. A quieta inocência, em só Deus pronta.
Não falta, ao menos, nem se faz escura; A isto mais se ajunta que um devoto Tanto que a nova luz que ao Sol precede
Mas destes acha poucos a pintura.» Sacerdote da lei de Mafamede, Mostrara rosto angélico e sereno, [281]56
Dos ódios concebidos não remoto Convoca os principais da torpe Seita, Mas aqueles avaros Catuais
43 Contra a divina Fé, que tudo excede, Aos quais do que sonhou dá conta estreita. Que o Gentílico povo governavam,
Assi está declarando os grandes feitos Em forma do Profeta falso e noto Induzidos das gentes infernais,
O Gama, que ali mostra a vária tinta Que do filho da escrava Agar procede, [280]52 O Português despacho dilatavam.
Que a douta mão tão claros, tão perfeitos. Baco odioso em sonhos lhe aparece, Diversos pareceres e contrários Mas o Gama, que não pretende mais,
De tudo quanto os Mouros ordenavam, 61 Açoute tão cruel da Cristandade, Que creia dele tanta fortaleza
Que levar a seu Rei um sinal certo Eu sou bem informado que a embaxada Viera pôr perpétua inimicícia
Do mundo que deixava descoberto, Que de teu Rei me deste, que é fingida; Na geração de Adão, co a falsidade, 70
Porque nem tu tens Rei, nem pátria amada, Ó poderoso Rei, da torpe seita, Sabe que há muitos anos que os antigos
57 Mas vagabundo vás passando a vida. Não conceberas tu tão má suspeita. Reis nossos firmemente propuseram
Nisto trabalha só; que bem sabia Que quem da Hespéria última alongada, De vencer os trabalhos e perigos
Que despois, que levasse esta certeza, Rei ou senhor de insânia desmedida, 66 Que sempre às grandes cousas se opuseram;
Armas e naus e gentes mandaria Há-de vir cometer, com naus e frotas, Mas, porque nenhum grande bem se alcança E, descobrindo os mares inimigos
Manuel, que exercita a suma alteza, Tão incertas viagens e remotas? Sem grandes opressões, e em todo o feito Do quieto descanso, pretenderam
Com que a seu jugo e Lei someteria Segue o temor os passos da esperança, De saber que fim tinham e onde estavam
Das terras e do mar a redondeza; 62 Que em suor vive sempre de seu peito, As derradeiras praias que lavavam.
Que ele não era mais que um diligente E se de grandes Reinos poderosos Me mostras tu tão pouca confiança
Descobridor das terras do Oriente. O teu Rei tem a Régia majestade, Desta minha verdade, sem respeito 71
Que presentes me trazes valerosos, Das razões em contrário que acharias Conceito dino foi do ramo claro
58 Sinais de tua incógnita verdade? Se não cresses a quem não crer devias. Do venturoso Rei que arou primeiro
Falar ao Rei gentio determina, Com peças e dões altos, sumptuosos, O mar, por ir deitar do ninho caro
Por que com seu despacho se tornasse, Se lia dos Reis altos a amizade; 67 O morador de Abila derradeiro;
Que já sentia em tudo da malina Que sinal nem penhor não é bastante Porque, se eu de rapinas só vivesse, Este, por sua indústria e engenho raro,
Gente impedir-se quanto desejasse. As palavras dum vago navegante. Undívago ou da pátria desterrado, Num madeiro ajuntando outro madeiro,
O Rei, que da notícia falsa e indina Como crês que tão longe me viesse Descobrir pôde a parte que faz clara
São era de espantar se se espantasse, 63 Buscar assento incógnito e apartado? De Argos, da Hidra a luz, da Lebre e da Ara.
Que tão crédulo era em seus agouros, Se porventura vindes desterrados, Por que esperanças, ou por que interesse
E mais sendo afirmados pelos Mouros, Como já foram homens de alta sorte, Viria exprimentando o mar irado, [285]72
Em meu Reino sereis agasalhados, Os Antárcticos frios e os ardores Crescendo cos sucessos bons primeiros
59 Que toda a terra é pátria pera o forte; Que sofrem do Carneiro os moradores? No peito as ousadias, descobriram,
Este temor lhe esfria o baixo peito. Ou se piratas sois, ao mar usados, Pouco e pouco, caminhos estrangeiros,
Por outra parte, a força da cobiça, Dizei-mo sem temor de infâmia ou morte, [284]68 Que, uns sucedendo aos outros, prosseguiram.
A quem por natureza está sujeito, Que, por se sustentar, em toda idade Se com grandes presentes de alta estima De África os moradores derradeiros
Um desejo imortal lhe acende e atiça: Tudo faz a vital necessidade.» O crédito me pedes do que digo, Austrais, que nunca as Sete Flamas viram,
Que bem vê que grandíssimo proveito Eu não vim mais que a achar o estranho clima Foram vistos de nós, atrás deixando
Fará, se, com verdade e com justiça, [283]64 Onde a Natura pôs teu Reino antigo; Quantos estão os Trópicos queimando.
O contrato fizer, por longos anos, Isto assi dito, o Gama, que já tinha Mas, se a Fortuna tanto me sublima,
Que lhe comete o Rei dos Lusitanos. Suspeitas das insídias que ordenava Que eu torne à minha pátria e Reino amigo, 73
O Maomético ódio, donde vinha Então verás o dom soberbo e rico Assi, com firme peito e com tamanho
[282]60 Aquilo que tão mal o Rei cuidava, Com que minha tornada certifico. Propósito vencemos a Fortuna,
Sobre isto, nos conselhos que tomava, Ca alta confiança, que convinha, Até que nós no teu terreno estranho
Achava mui contrários pareceres; Com que seguro crédito alcançava, 69 Viemos pôr a última coluna.
Que naqueles com quem se aconselhava Que Vénus Acidália lhe influía, «Se te parece inopinado feito Rompendo a força do líquido estanho,
Executa o dinheiro seus poderes. Pais palavras do sábio peito abria: Que Rei da última Hespéria a ti me mande, Da tempestade horrífica e importuna,
O grande Capitão chamar mandava, O coração sublime, o régio peito, A ti chegámos, de quem só queremos
A quem chegado disse:- «Se quiseres 65 Nenhum caso possibil tem por grande. Sinal que ao nosso Rei de ti levemos.
Confessar-me a verdade limpa e nua, «Se os antigos delitos que a malícia Bem parece que o nobre e grão conceito
Perdão alcançarás da culpa tua. Humana cometeu na prisca idade Do Lusitano espírito demande 74
Não causaram que o vaso da nequícia, Maior crédito e fé de mais alteza, Esta é a verdade, Rei; que não faria
Por tão incerto bem, tão fraco prémio, Se parte o Capitão, pera onde peça 83 Vai ferir noutra parte, luminoso,
Qual, não sendo isto assi, esperar podia, Ao Catual que dele tinha cargo, Pouco obedece o Catual corruto E, sendo da ouciosa mão movido,
Tão longo, tão fingido e vão proémio; Embarcação, que a sua está de largo. A tais palavras; antes, revolvendo Pela casa, do moço curioso,
Mas antes descansar me deixaria Na fantasia algum sutil e astuto Anda pelas paredes e telhado
No nunca descansado e fero grémio 79 Engano diabólico e estupendo, Trémulo, aqui e ali, e dessossegado:
Da madre Tétis, qual pirata inico, Embarcação que o leve às naus lhe pede, Ou como banhar possa o ferro bruto
Dos trabalhos alheios feito rico. Mas o mau Regedor, que novos laços No sangue avorrecido, estava vendo, [289]88
Lhe maquinava, nada lhe concede, Ou como as naus em fogo lhe abrasasse, Tal o vago juízo fluctuava
75 Interpondo tardanças e embaraços. Por que nenha à pátria mais tornasse. Do Gama preso, quando lhe lembrara
Assi que, ó Rei, se minha grão verdade Co ele parte ao cais, por que o arrede Coelho, se por acaso o esperava
Tens por qual é, sincera e não dobrada, Longe quanto puder dos régios paços, [288]84 Na praia cos batéis, como ordenara.
Ajunta-me ao despacho brevidade, Onde, sem que seu Rei tenha notícia Que nenhum torne à pátria só pretende Logo secretamente lhe mandava
Não me impidas o gosto da tornada; Faça o que lhe ensinar sua malícia. O conselho infernal dos Maometanos, Que se tornasse à frota, que deixara,
E, se inda te parece falsidade, Por que não saiba nunca onde se estende Não fosse salteado dos enganos
Cuida bem na razão que está provada, [287]80 A terra Eoa o Rei dos Lusitanos. Que esperava dos feros Maometanos.
Que com claro juízo pode ver-se, Lá bem longe lhe diz que lhe daria Não parte o Gama, enfim, que lho defende
Que fácil é a verdade de entender-se.» Embarcação bastante em que partisse, O Regedor dos Bárbaros profanos; 89
Ou que pera a luz crástina do dia Nem sem licença sua ir-se podia, Tal há-de ser quem quer, co dom de Marte,
[286]76 Futuro, sua partida diferisse. Que as almadias todas lhe tolhia. Imitar os Ilustres e igualá-los:
A tento estava o Rei na segurança Já com tantas tardanças entendia Voar co pensamento a toda parte,
Com que provava o Gama o que dizia; O Gama que o Gentio consentisse 85 Adivinhar perigos e evitá-los,
Concebe dele certa confiança, Na má tenção dos Mouros, torpe e fera, Aos brados e razões do Capitão Com militar engenho e sutil arte,
Crédito firme, em quanto proferia; O que dele até li não entendera. Responde o Idolatra, que mandasse Entender os imigos e enganá-los,
Pondera das palavras a abastança, Chegar à terra as naus, que longe estão, Crer tudo, enfim; que nunca louvarei
Julga na autoridade grão valia, 81 Por que milhor dali fosse e tornasse. O capitão que diga: «Não cuidei.»
Começa de julgar por enganados Era este Catual um dos que estavam «Sinal é de inimigo e de ladrão
Os Catuais corrutos, mal julgados. Corrutos pela Maometana gente, Que lá tão longe a frota se alargasse, 90
O principal por quem se governavam (Lhe diz), porque do certo e fido amigo Insiste o Malabar em tê-lo preso
77 As cidades do Samorim potente. É não temer do seu nenhum perigo.» Se não manda chegar a terra a armada;
Juntamente, a cobiça do proveito Dele somente os Mouros esperavam Ele, constante e de ira nobre aceso,
Que espera do contrato Lusitano Efeito a seus enganos torpemente; 86 Os ameaços seus não teme nada;
O faz obedecer e ter respeito. Ele, que no concerto vil conspira, Nestas palavras o discreto Gama Que antes quer sobre si tomar o peso
Co Capitão, e não co Mauro engano. De suas esperanças não delira. Enxerga bem que as naus deseja perto De quanto mal a vil malícia ousada
Enfim ao Gama manda que direito O Catual, por que com ferro e flama Lhe andar armando, que pôr em ventura
As naus se vá e, seguro dalgum dano, 82 Lhas assalte, por ódio descoberto. A frota de seu Rei, que tem segura.
Possa a terra mandar qualquer fazenda O Gama com instância lhe requer Em vários pensamentos se derrama;
Que pela especiaria troque e venda. Que o mande pôr nas naus, e não lhe val; Fantasiando está remédio certo 91
E que assi lho mandara, lhe refere, Que desse a quanto mal se lhe ordenava; Aquela noite esteve ali detido
78 O nobre sucessor de Perimal. Tudo temia, tudo, enfim, cuidava. E parte do outro dia, quando ordena
Que mande da fazenda, enfim, lhe manda Por que razão lhe impede e lhe difere De se tornar ao Rei; mas impedido
Que nos Reinos Gangéticos faleça, A fazenda trazer de Portugal? 87 Foi da guarda que tinha, não pequena.
Se alga traz idónea lá da banda Pois aquilo que os Reis já têm mandado Qual o reflexo lume do polido Comete-lhe o Gentio outro partido,
Donde a terra se acaba e o mar começa. Não pode ser por outrem derrogado. Espelho de aço ou de cristal fermoso, Temendo de seu Rei castigo ou pena
Já da real presença veneranda Que, do raio solar sendo ferido, Se sabe esta malícia, a qual asinha
Saberá, se mais tempo ali o detinha. Até ver o que o tempo lhe descobre; Fazem que não lha comprem mercadores; E merecer por isso o Paraíso.
Que não se fia já do cobiçoso Que todo seu propósito e vontade
[290]92 Regedor, corrompido e pouco nobre. Era deter ali os descobridores 6
Diz-lhe que mande vir toda a fazenda Veja agora o juízo curioso Da Índia tanto tempo que viessem Este, de quem se os Mouros não guardavam
Vendibil que trazia, pera a terra, Quanto no rico, assi como no pobre, De Meca as naus, que as suas desfizessem. Por ser Mouro como eles (antes era
Pera que, devagar, se troque e venda; Pode o vil interesse e sede immiga Participante em quanto maquinavam),
Que, quem não quer comércio, busca guerra. Do dinheiro, que a tudo nos obriga. 2 A tenção lhe descobre torpe e fera.
Posto que os maus propósitos entenda Lá no seio Eritreu, onde fundada Muitas vezes as naus que longe estavam
O Gama, que o danado peito encerra, 97 Arsínoe foi do Egípcio Ptolomeu Visita, e com piedade considera
Consente, porque sabe por verdade A Polidoro mata o Rei Treício, (Do nome da irmã sua assi chamada, O dano sem razão que se lhe ordena
Que compra co a fazenda a liberdade. Só por ficar senhor do grão tesouro; Que despois em Suez se converteu), Pela maligna gente Sarracena.
Entra, pelo fortíssimo edifício, Não longe o porto jaz da nomeada
93 Com a filha de Acriso a chuva d’ouro; Cidade Meca, que se engrandeceu 7
Concertam-se que o Negro mande dar Pode tanto em Tarpeia avaro vício Com a superstição falsa e profana Informa o cauto Gama das armadas
Embarcações idóneas com que venha; Que, a troco do metal luzente e louro, Da religiosa água Maometana. Que de Arábica Meca vem cad’ano,
Que os seus batéis não quer aventurar Entrega aos inimigos a alta torre, Que agora são dos seus tão desejadas,
Onde lhos tome o imigo, ou lhos detenha. Do qual quase afogada em pago morre. 3 Pera ser instrumento deste dano;
Partem as almadias a buscar Gidá se chama o porto aonde o trato Diz-lhe que vêm de gente carregadas
Mercadoria Hispana que convenha; 98 De todo o Roxo Mar mais florecia, E dos trovões horrendos de Vulcano,
Escreve a seu irmão que lhe mandasse Este rende munidas fortalezas; De que tinha proveito grande e grato E que pode ser delas oprimido,
A fazenda com que se resgatasse. Faz tredoros e falsos os amigos; O Soldão que esse Reino possuía. Segundo estava mal apercebido.
Este a mais nobres faz fazer vilezas, Daqui aos Malabares, por contrato
94 E entrega Capitães aos inimigos; Dos Infiéis, fermosa companhia [295]8
Vem a fazenda a terra, aonde logo Este corrompe virginais purezas, De grandes naus, pelo Índico Oceano, O Gama, que também considerava
A agasalhou o infame Catual; Sem temer de honra ou fama alguns perigos; Especiaria vem buscar cada ano. O tempo que pera a partida o chama,
Co ela ficam Álvaro e Diogo, Este deprava às vezes as ciências, E que despacho já não esperava
Que a pudessem vender pelo que val. Os juízos cegando e as consciências. [294]4 Milhor do Rei, que os Maometanos ama,
Se mais que obrigação, que mando e rogo, Por estas naus os Mouros esperavam, Aos feitores que em terra estão, mandava
No peito vil o prémio pode e val, 99 Que, como fossem grandes e possantes, Que se tornem às naus; e, por que a fama
Bem o mostra o Gentio a quem o entenda, Este interpreta mais que sutilmente Aquelas que o comércio lhe tomavam, Desta súbita vinda os não impida,
Pois o Gama soltou pela fazenda. Os textos; este faz e desfaz leis; Com flamas abrasassem crepitantes. Lhe manda que a fizessem escondida.
Este causa os perjúrios entre a gente Neste socorro tanto confiavam
95 E mil vezes tiranos torna os Reis. Que já não querem mais dos navegantes 9
Por ela o solta, crendo que ali tinha Até os que só a Deus omnipotente Senão que tanto tempo ali tardassem Porém não tardou muito que, voando,
Penhor bastante, donde recebesse Se dedicam, mil vezes ouvireis Que da famosa Meca as naus chegassem. Um rumor não soasse, com verdade:
Interesse maior do que lhe vinha Que corrompe este encantador, e ilude; Que foram presos os feitores, quando
Se o Capitão mais tempo detivesse. Mas não sem cor, contudo, de virtude! 5 Foram sentidos vir-se da cidade.
Ele, vendo que já lhe não convinha Mas o Governador dos Céus e gentes, Esta fama as orelhas penetrando
Tornar a terra, por que não pudesse Que, pera quanto tem determinado, Do sábio Capitão, com brevidade
Ser mais retido, sendo às naus chegado [293] CANTO NONO De longe os meios dá convenientes Faz represaria nuns que às naus vieram
Nelas estar se deixa descansado. 1 Por onde vem a efeito o fim fadado, A vender pedraria que trouxeram.
Tiveram longamente na cidade, Influiu piadosos acidentes
[291]96 Sem vender-se, a fazenda os dous feitores, De afeição em Monçaide, que guardado 10
Nas naus estar se deixa, vagaroso, Que os Infiéis, por manha e falsidade, Estava pera dar ao Gama aviso Eram estes antigos mercadores
Ricos em Calecu e conhecidos; A noz e o negro cravo, que faz clara 19 Tomou de espaço, por sutil partido.
Da falta deles, logo entre os milhores A nova ilha Maluco, co a canela Despois de ter um pouco revolvido Seu filho vai buscar, porque só nele
Sentido foi que estão no mar retidos. Com que Ceilão é rica, ilustre e bela. Na mente o largo mar que navegaram, Tem todo seu poder, fero Cupido,
Mas já nas naus os bons trabalhadores Os trabalhos que pelo Deus nascido Que, assi como naquela empresa antiga
Volvem o cabrestante e, repartidos 15 Nas Anfiónias Tebas se causaram, A ajudou já, nestoutra a ajude e siga.
Pelo trabalho, uns puxam pela amarra, Isto tudo lhe houvera a diligência Já trazia de longe no sentido,
Outros quebram co peito duro a barra, De Monçaide fiel, que também leva, Pera prémio de quanto mal passaram, [299]24
Que, inspirado de Angélica influência, Buscar-lhe algum deleite, algum descanso, No carro ajunta as aves que na vida
11 Quer no livro de Cristo que se escreva. No Reino de cristal, líquido e manso; Vão da morte as exéquias celebrando,
Outros pendem da verga e já desatam Oh, ditoso Africano, que a clemência E aquelas em que já foi convertida
A vela, que com grita se soltava, Divina assi tirou de escura treva, [298]20 Perístera, as boninas apanhando;
Quando, com maior grita, ao Rei relatam E tão longe da pátria achou maneira Algum repouso, enfim, com que pudesse Em derredor da Deusa, já partida,
A pressa com que a armada se levava. Pera subir à pátria verdadeira! Refocilar a lassa humanidade No ar lascivos beijos se vão dando;
As mulheres e filhos, que se matam, Dos navegantes seus, como interesse Ela, por onde passa, o ar e o vento
Daqueles que vão presos, onde estava [297]16 Do trabalho que encurta a breve idade. Sereno faz. com brando movimento
O Samorim se aqueixam que perdidos Apartadas assi da ardente costa Parece-lhe razão que conta desse
Uns têm os pais, as outras os maridos. As venturosas naus, levando a proa A seu filho, por cuja potestade 25
Pera onde a Natureza tinha posta Os Deuses faz decer ao vil terreno Já sobre os Idálios montes pende,
[296]12 A meta Austrina da Esperança Boa, E os humanos subir ao Céu sereno. Onde o filho frecheiro estava então,
Manda logo os feitores Lusitanos Levando alegres novas e reposta Ajuntando outros muitos, que pretende
Com toda sua fazenda, livremente, Da parte Oriental pera Lisboa, 21 Fazer üa famosa expedição
Apesar dos immigos Maometanos, Outra vez cometendo os duros medos Isto bem revolvido, determina Contra o mundo revelde, por que emende
Por que lhe torne a sua presa gente. Do mar incerto, tímidos e ledos. De ter-lhe aparelhada, lá no meio Erros grandes que há dias nele estão,
Desculpas manda o Rei de seus enganos; Das águas, alga ínsula divina, Amando cousas que nos foram dadas,
Recebe o Capitão de melhormente 17 Ornada de esmaltado e verde arreio; Não pera ser amadas, mas usadas.
Os presos que as desculpas e, tornando O prazer de chegar à pátria cara, Que muitas tem no reino que confina
Alguns negros, se parte, as velas dando. A seus penates caros e parentes, Da primeira co terreno seio, 26
Pera contar a peregrina e rara Afora as que possui soberanas Via Actéon na caça tão austero,
13 Navegação, os vários céus e gentes; Pera dentro das portas Herculanas. De cego na alegria bruta, insana,
Parte-se costa abaxo, porque entende Vir a lograr o prémio que ganhara, Que, por seguir um feio animal fero,
Que em vão co Rei gentio trabalhava Por tão longos trabalhos e acidentes: 22 Foge da gente e bela forma humana;
Em querer dele paz, a qual pretende Cada um tem por gosto tão perfeito, Ali quer que as aquáticas donzelas E por castigo quer, doce e severo,
Por firmar o comércio que tratava; Que o coração para ele é vaso estreito. Esperem os fortíssimos barões Mostrar-lhe a fermosura de Diana.
Mas como aquela terra, que se estende (Todas as que têm título de belas, (E guarde-se não seja inda comido
Pela Aurora, sabida já deixava, 18 Glória dos olhos, dor dos corações) Desses cães que agora ama, e consumido).
Com estas novas torna à pátria cara, Porém a Deusa Cípria, que ordenada Com danças e coreias, porque nelas
Certos sinais levando do que achara. Era, pera favor dos Lusitanos, Influirá secretas afeições, 27
Do Padre Eterno, e por bom génio dada, Pera com mais vontade trabalharem E vê do mundo todo os principais
14 Que sempre os guia já de longos anos, De contentar a quem se afeiçoarem. Que nenhum no bem pubrico imagina;
Leva alguns Malabares, que tomou A glória por trabalhos alcançada, Vê neles que não têm amor a mais
Per força, dos que o Samorim mandara Satisfação de bem sofridos danos, 23 Que a si somente, e a quem Filáucia ensina;
Quando os presos feitores lhe tornou; Lhe andava já ordenando, e pretendia Tal manha buscou já pera que aquele Vê que esses que frequentam os reais
Leva pimenta ardente, que comprara; Dar-lhe nos mares tristes, alegria. Que de Anquises pariu, bem recebido Paços, por verdadeira e sã doutrina
A seca flor de Banda não ficou; Fosse no campo que a bovina pele Vendem adulação, que mal consente
Mondar-se o novo trigo florecente. Nos duros corações da plebe ruda; A recebê-la vem, ledo e contente; 41
Crebros suspiros pelo ar soavam Vêm todos os Cupidos servidores Ali, com mil refrescos e manjares,
[300]28 Dos que feridos vão da seta aguda. Beijar a mão à Deusa dos amores. Com vinhos odoríferos e rosas,
Vê que aqueles que devem à pobreza Fermosas Ninfas são as que curavam Em cristalinos paços singulares,
Amor divino, e ao povo caridade, As chagas recebidas, cuja ajuda 37 Fermosos leitos, e elas mais fermosas;
Amam somente mandos e riqueza, Não somente dá vida aos mal feridos, Ela, por que não gaste o tempo em vão Enfim, com mil deleites não vulgares,
Simulando justiça e integridade; Mas põe em vida os inda não nascidos. Nos braços tendo o filho, confiada Os esperem as Ninfas amorosas,
Da feia tirania e de aspereza Lhe diz: «Amado filho, em cuja mão De amor feridas, pera lhe entregarem
Fazem direito e vã severidade; 33 Toda minha potência está fundada; Quanto delas os olhos cobiçarem.
Leis em favor do Rei se estabelecem, Fermosas são algas e outras feias, Filho, em quem minhas forças sempre estão,
As em favor do povo só perecem. Segundo a qualidade for das chagas, Tu, que as armas Tifeias tens em nada, 42
Que o veneno espalhado pelas veias A socorrer-me a tua potestade Quero que haja no reino Neptunino,
29 Curam-no às vezes ásperas triagas. Me traz especial necessidade. Onde eu nasci, progénie forte e bela;
Vê, enfim, que ninguém ama o que deve, Alguns ficam ligados em cadeias E tome exemplo o mundo vil, malino,
Senão o que somente mal deseja. Por palavras sutis de sábias magas; 38 Que contra tua potência se rebela,
Não quer que tanto tempo se releve Isto acontece às vezes, quando as setas Bem vês as Lusitânicas fadigas, Por que entendam que muro Adamantino
O castigo que duro e justo seja. Acertam de levar ervas secretas. Que eu já de muito longe favoreço, Nem triste hipocrisia val contra ela;
Seus ministros ajunta, por que leve Porque das Parcas sei, minhas amigas, Mal haverá na terra quem se guarde
Exércitos conformes à peleja 34 Que me hão-de venerar e ter em preço. Se teu fogo imortal nas águas arde.»
Que espera ter co a mal regida gente Destes tiros assi desordenados, E porque tanto imitam as antigas
Que lhe não for agora obediente. Que estes moços mal destros vão tirando, Obras de meus Romanos, me ofereço 43
Nascem amores mil desconcertados A lhe dar tanta ajuda, em quanto posso, Assi Vénus propôs; e o filho inico,
30 Entre o povo ferido miserando; A quanto se estender o poder nosso. Pera lhe obedecer, já se apercebe:
Muitos destes mininos voadores E também nos heróis de altos estados Manda trazer o arco ebúrneo rico,
Estão em várias obras trabalhando: Exemplos mil se vêm de amor nefando. 39 Onde as setas de ponta de ouro embebe.
Uns amolando ferros passadores, Qual o das moças Bíbli e Cinireia, E porque das insídias do odioso Com gesto ledo a Cípria, e impudico,
Outros hástias de setas delgaçando. Um mancebo de Assíria, um de Judeia. Baco foram na Índia molestados, Dentro no carro o filho seu recebe;
Trabalhando, cantando estão de amores, E das injúrias sós do mar undoso A rédea larga às aves cujo canto
Vários casos em verso modulando; 35 Puderam mais ser mortos que cansados, A Faetonteia morte chorou tanto.
Melodia sonora e concertada, E vós, ó poderosos, por pastoras No mesmo mar, que sempre temeroso
Suave a letra, angélica a soada. Muitas vezes ferido o peito vedes; Lhe foi, quero que sejam repousados, [304]44
E por baixos e rudos, vós, senhoras, Tomando aquele prémio e doce glória Mas diz Cupido que era necessária
31 Também vos tomam nas Vulcâneas redes. Do trabalho que faz clara a memória. Ha famosa e célebre terceira,
Nas fráguas imortais onde forjavam Uns esperando andais nocturnas horas, Que, posto que mil vezes lhe é contrária,
Pera as setas as pontas penetrantes, Outros subis telhados e paredes; [303]40 Outras muitas a tem por companheira:
Por lenha corações ardendo estavam, Mas eu creio que deste amor indino E pera isso queria que, feridas A Deusa Giganteia, temerária,
Vivas entranhas inda palpitantes; É mais culpa a da mãe que a do minino. As filhas de Nereu no ponto fundo, Jactante, mentirosa e verdadeira,
As águas onde os ferros temperavam, De amor dos Lusitanos incendidas Que com cem olhos vê, e, por onde voa,
Lágrimas são de míseros amantes; [302]36 Que vêm de descobrir o novo mundo, O que vê, com mil bocas apregoa.
A viva flama, o nunca morto lume, Mas já no verde prado o carro leve Todas na ilha juntas e subidas,
Desejo é só que queima e não consume. Punham os brancos cisnes mansamente; (Ilha que nas entranhas do profundo 45
E Dione, que as rosas entre a neve Oceano terei aparelhada, Vão-na buscar e mandam-na diante,
[301]32 No rosto traz, decia diligente. De dões de Flora e Zéfiro adornada); Que celebrando vá com tuba clara
Alguns exercitando a mão andavam O frecheiro que contra o Céu se atreve Os louvores da gente navegante,
Mais do que nunca os de outrem celebrara. Faça quanto lhe Vénus amoesta. Erguidos com soberba graciosa, As amoras, que o nome têm de amores,
Já, murmurando, a Fama penetrante Que de gramíneo esmalte se adornavam, O pomo que da pátria Pérsia veio,
Pelas fundas cavernas se espalhara; 50 Na fermosa Ilha, alegre e deleitosa. Milhor tornado no terreno alheio;
Fala verdade, havida por verdade, Já todo o belo coro se aparelha Claras fontes e límpidas manavam
Que junto a Deusa traz Credulidade. Das Nereidas, e junto caminhava Do cume, que a verdura tem viçosa; 59
Em coreias gentis, usança velha, Por entre pedras alvas se deriva Abre a romã, mostrando a rubicunda
46 Pera a ilha a que Vénus as guiava. A sonorosa linfa fugitiva. Cor, com que tu, rubi, teu preço perdes,
O louvor grande, o rumor excelente, Ali a fermosa Deusa lhe aconselha Entre os braços do ulmeiro está a jucunda
No coração dos Deuses que indinados O que ela fez mil vezes, quando amava; 55 Vide, cs cachos roxos e outros verdes;
Foram por Baco contra a ilustre gente, Elas, que vão do doce amor vencidas, Num vale ameno, que os outeiros fende. E vós, se na vossa árvore fecunda,
Mudando, os fez um pouco afeiçoados. Estão a seu conselho oferecidas. Vinham as claras águas ajuntar-se, Peras piramidais, viver quiserdes,
O peito feminil, que levemente Onde üa mesa fazem, que se estende Entregai-vos ao dano que cos bicos
Muda quaisquer propósitos tomados, 51 Tão bela quanto pode imaginar-se. Em vós fazem os pássaros inicos.
Já julga por mau zelo e por crueza Cortando vão as naus a larga via Arvoredo gentil sobre ela pende,
Desejar mal a tanta fortaleza. Do mar ingente pera a pátria amada, Como que pronto está pera afeitar-se, [308]60
Desejando prover-se de água fria Vendo-se no cristal resplandecente, Pois a tapeçaria bela e fina
47 Pera a grande viagem prolongada, Que em si o está pintando propriamente. Com que se cobre o rústico terreno,
Despede nisto o fero moço as setas, Quando, juntas, com súbita alegria, Faz ser a de Aqueménia menos dina,
Ha após outra: geme o mar cos tiros; Houveram vista da Ilha namorada, [307]56 Mas o sombrio vale mais ameno.
Direitas pelas ondas inquietas Rompendo pelo céu a mãe fermosa Mil árvores estão ao céu subindo, Ali a cabeça a flor Cifísia inclina
Algas vão, e algas fazem giros; De Menónio, suave e deleitosa. Com pomos odoríferos e belos; Sobolo tanque lúcido e sereno;
Caem as Ninfas, lançam das secretas A laranjeira tem no fruito lindo Florece o filho e neto de Ciniras,
Entranhas ardentíssimos suspiros; [306]52 A cor que tinha Dafne nos cabelos. Por quem tu, Deusa Páfia, inda suspiras.
Cai qualquer, sem ver o vulto que ama, De longe a Ilha viram, fresca e bela, Encosta-se no chão, que está caindo,
Que tanto como a vista pode a fama. Que Vénus pelas ondas lha levava A cidreira cos pesos amarelos; 61
(Bem como o vento leva branca vela) Os fermosos limões ali cheirando, Pera julgar, difícil cousa fora,
[305]48 Pera onde a forte armada se enxergava; Estão virgíneas tetas imitando. No céu vendo e na terra as mesmas cores,
Os cornos ajuntou da ebúrnea la, Que, por que não passassem, sem que nela Se dava às flores cor a bela Aurora,
Com força, o moço indómito, excessiva, Tomassem porto, como desejava, 57 Ou se lha dão a ela as belas flores.
Que Tétis quer ferir mais que nenha, Pera onde as naus navegam a movia As árvores agrestes, que os outeiros Pintando estava ali Zéfiro e Flora
Porque mais que nenha lhe era esquiva. A Acidália, que tudo, enfim, podia. Têm com frondente coma enobrecidos, As violas da cor dos amadores,
Já não fica na aljava seta alga, Alemos são de Alcides, e os loureiros O lírio roxo, a fresca rosa bela,
Nem nos equóreos campos Ninfa viva; 53 Do louro Deus amados e queridos; Qual reluze nas faces da donzela;
E se, feridas, inda estão vivendo, Mas firme a fez e imobil, como viu Mirtos de Citereia, cos pinheiros
Será pera sentir que vão morrendo. Que era dos Nautas vista e demandada, De Cibele, por outro amor vencidos; 62
Qual ficou Delos, tanto que pariu Está apontando o agudo cipariso A cândida cecém, das matutinas
49 Latona Febo e a Deusa à caça usada. Pera onde é posto o etéreo Paraíso. Lágrimas rociada, e a manjerona;
Dai lugar, altas e cerúleas ondas, Pera lá logo a proa o mar abriu, Vêm-se as letras nas flores Hiacintinas,
Que, vedes, Vénus traz a medicina, Onde a costa fazia ha enseada 58 Tão queridas do filho de Latona.
Mostrando as brancas velas e redondas, Curva e quieta, cuja branca areia Os dões que dá Pomona ali Natura Bem se enxerga nos pomos e boninas
Que vêm por cima da água Neptunina. Pintou de ruivas conchas Citereia. Produze, diferentes nos sabores, Que competia Clóris com Pomona.
Pera que tu recíproco respondas, Sem ter necessidade de cultura, Pois, se as aves no ar cantando voam,
Ardente Amor, à flama feminina, 54 Que sem ela se dão muito milhores: Alegres animais o chão povoam.
É forçado que a pudicícia honesta Três fermosos outeiros se mostravam, As cereijas, purpúreas na pintura,
63 Determinadamente se lançavam; Que sobre ela, empecendo, também caia Quis aqui sua ventura que corria
Ao longo da água o níveo cisne canta; Outros, nas sombras, que de as altas sestas Quem a seguiu pela arenosa praia. Após Efire, exemplo de beleza,
Responde-lhe do ramo filomela; Defendem a verdura, passeavam Que mais caro que as outras dar queria
Da sombra de seus cornos não se espanta Ao longo da água, que, suave e queda, [311]72 O que deu, pera dar-se, a natureza.
Actéon n’água cristalina e bela. Por alvas pedras corre à praia leda. Outros, por outra parte, vão topar Já cansado, correndo, lhe dizia:
Aqui a fugace lebre se levanta Com as Deusas despidas, que se lavam; «Ó fermosura indina de aspereza,
Da espessa mata, ou tímida gazela; [310]68 Elas começam súbito a gritar, Pois desta vida te concedo a palma,
Ali no bico traz ao caro ninho Começam de enxergar subitamente, Como que assalto tal não esperavam; Espera um corpo de quem levas a alma!
O mantimento o leve passarinho. Por entre verdes ramos, várias cores, Has, fingindo menos estimar
Cores de quem a vista julga e sente A vergonha que a força, se lançavam 77
[309]64 Que não eram das rosas ou das flores, Nuas por entre o mato, aos olhos dando Todas de correr cansam, Ninfa pura.
Nesta frescura tal desembarcavam Mas da lã fina e seda diferente, O que às mãos cobiçosas vão negando; Rendendo-se à vontade do inimigo;
Já das naus os segundos Argonautas, Que mais incita a força dos amores, Tu só de mi só foges na espessura?
Onde pela floresta se deixavam De que se vestem as humanas rosas, 73 Quem te disse que eu era o que te sigo?
Andar as belas Deusas, como incautas. Fazendo-se por arte mais fermosas. Outra, como acudindo mais depressa Se to tem dito já aquela ventura
Algas, doces cítaras tocavam; À vergonha da Deusa caçadora, Que em toda a parte sempre anda comigo,
Algas, harpas e sonoras frautas; 69 Esconde o corpo n’água; outra se apressa Oh, não na creias, porque eu, quando a cria,
Outras, cos arcos de ouro, se fingiam Dá Veloso, espantado, um grande grito: Por tomar os vestidos que tem fora. Mil vezes cada hora me mentia.
Seguir os animais, que não seguiam. «Senhores, caça estranha (disse) é esta! Tal dos mancebos há que se arremessa,
Se inda dura o Gentio antigo rito, Vestido assi e calçado (que, co a mora 78
65 A Deusas é sagrada esta floresta. De se despir, há medo que inda tarde) Não canses, que me cansas! E se queres
Assi lho aconselhara a mestra experta: Mais descobrimos do que humano esprito A matar na água o fogo que nele arde. Fugir-me, por que não possa tocar-te,
Que andassem pelos campos espalhadas; Desejou nunca, e bem se manifesta Minha ventura é tal que, inda que esperes,
Que, vista dos barões a presa incerta, Que são grandes as cousas e excelentes 74 Ela fará que não possa alcançar-te.
Se fizessem primeiro desejadas. Que o mundo encobre aos homens Qual cão de caçador, sagaz e ardido, Espera; quero ver, se tu quiseres,
Algas, que na forma descoberta imprudentes. Usado a tomar na água a ave ferida, Que sutil modo busca de escapar-te;
Do belo corpo estavam confiadas, Vendo ò rosto o férreo cano erguido E notarás, no fim deste sucesso,
Posta a artificiosa fermosura, 70 Pera a garcenha ou pata conhecida, Tra la spica e la man qual muro he messo.
Nuas lavar se deixam na água pura. Sigamos estas Deusas e vejamos Antes que soe o estouro, mal sofrido Salta
Se fantásticas são, se verdadeiras.» n’água e da presa não duvida, 79
66 Isto dito, veloces mais que gamos, Nadando vai e latindo: assi o mancebo «Oh! Não me fujas! Assi nunca o breve
Mas os fortes mancebos, que na praia Se lançam a correr pelas ribeiras. Remete à que não era irmã de Febo. Tempo fuja de tua fermosura;
Punham os pés, de terra cobiçosos Fugindo as Ninfas vão por entre os ramos, Que, só com refrear o passo leve,
(Que não há nenhum deles que não saia), Mas, mais industriosas que ligeiras, 75 Vencerás da fortuna a força dura.
De acharem caça agreste desejosos, Pouco e pouco, sorrindo e gritos dando, Leonardo, soldado bem disposto, Que Emperador, que exército se atreve
Não cuidam que, sem laço ou redes, caia Se deixam ir dos galgos alcançando Manhoso, cavaleiro e namorado, A quebrantar a fúria da ventura
Caça naqueles montes deleitosos, A quem Amor não dera um só desgosto Que, em quanto desejei, me vai seguindo,
Tão suave, doméstica e benina, 71 Mas sempre fora dele mal tratado, O que tu só farás não me fugindo?
Qual ferida lha tinha já Ericina. De ha os cabelos de ouro o vento leva, E tinha já por firme prosuposto
Correndo, e da outra as fraldas delicadas; Ser com amores mal afortunado, [313]80
67 Acende-se o desejo, que se ceva Porém não que perdesse a esperança Pões-te da parte da desdita minha?
Alguns, que em espingardas e nas bestas Nas alves carnes, súbito mostradas. De inda poder seu fado ter mudança, Fraqueza é dar ajuda ao mais potente.
Pera ferir os cervos, se fiavam, Ha de indústria cai, e já releva, Levas-me um coração que livre tinha?
Pelos sombrios matos e florestas Com mostras mais macias que indinadas, [312]76 Solta-mo e correrás mais levemente.
Não te carrega essa alma tão mesquinha Outra cousa não é que as deleitosas Milhor é merecê-los sem os ter,
Que nesses fios de ouro reluzente 85 Honras que a vida fazem sublimada. Que possuí-los sem os merecer.
Atada levas? Ou, despois de presa, Ha delas, maior, a quem se humilha Aquelas preminencias gloriosas,
Lhe mudaste a ventura e menos pesa? Todo o coro das Ninfas e obedece, Os triunfos, a fronte coroada 94
Que dizem ser de Celo e Vesta Filha, De palma e louro, a glória e maravilha, Ou dai na paz as leis iguais, constantes,
81 O que no gesto belo se parece, Estes são os deleites desta Ilha. Que aos grandes não dêem o dos pequenos,
Nesta esperança só te vou seguindo: Enchendo a terra e o mar de maravilha, Ou vos vesti nas armas rutilantes,
Que ou tu não sofrerás o peso dela, O capitão ilustre, que o merece, 90 Contra a lei dos immigos Sarracenos:
Ou na virtude de teu gesto lindo Recebe ali com pompa honesta e régia, Que as imortalidades que fingia Fareis os Reinos grandes e possantes,
Lhe mudarás a triste e dura estrela. Mostrando-se senhora grande e egrégia. A antiguidade, que os Ilustres ama, E todos tereis mais e nenhum menos:
E se se lhe mudar, não vás fugindo, Lá no estelante Olimpo, a quem subia Possuireis riquezas merecidas,
Que Amor te ferirá, gentil donzela, 86 Sobre as asas ínclitas da Fama, Com as honras que ilustram tanto as vidas.
E tu me esperarás, se Amor te fere; Que, despois de lhe ter dito quem era, Por obras valorosas que fazia,
E se me esperas, não há mais que espere.» Cum alto exórdio, de alta graça ornado, Pelo trabalho imenso que se chama 95
Dando-lhe a entender que ali viera Caminho da virtude, alto e fragoso, E fareis claro o Rei que tanto amais,
82 Por alta influição do imobil fado, Mas, no fim, doce, alegre e deleitoso, Agora cos conselhos bem cuidados,
Já não fugia a bela Ninfa tanto, Pera lhe descobrir da unida esfera Agora co as espadas, que imortais
Por se dar cara ao triste que a seguia, Da terra imensa e mar não navegado 91 Vos farão, como os vossos já passados.
Como por ir ouvindo o doce canto, Os segredos, por alta profecia, Não eram senão prémios que reparte, Impossibilidades não façais,
As namoradas mágoas que dizia. O que esta sua nação só merecia, Por feitos imortais e soberanos, Que quem quis, sempre pôde; e numerados
Volvendo o rosto, já sereno e santo, O mundo cos varões que esforço e arte Sereis entre os Heróis esclarecidos
Toda banhada em riso e alegria, 87 Divinos os fizeram, sendo humanos. E nesta «Ilha de Vénus» recebidos.
Cair se deixa aos pés do vencedor, Tomando-o pela mão, o leva e guia Que Júpiter, Mercúrio, Febo e Marte,
Que todo se desfaz em puro amor. Pera o cume dum monte alto e divino, Eneias e Quirino e os dous Tebanos,
No qual ha rica fábrica se erguia, Ceres, Palas e Juno com Diana, [317] CANTO DÉCIMO
83 De cristal toda e de ouro puro e fino. Todos foram de fraca carne humana. 1
Oh, que famintos beijos na floresta, A maior parte aqui passam do dia, Mas já o claro amador da Larisseia
E que mimoso choro que soava! Em doces jogos e em prazer contino. [316]92 Adúltera inclinava os animais
Que afagos tão suaves! Que ira honesta, Ela nos paços logra seus amores, Mas a Fama, trombeta de obras tais, Lá pera o grande lago que rodeia
Que em risinhos alegres se tornava! As outras pelas sombras, entre as flores. Lhe deu no Mundo nomes tão estranhos Temistitão, nos fins Ocidentais;
O que mais passam na manhã e na sesta, De Deuses, Semideuses, Imortais, O grande ardor do Sol Favónio enfreia
Que Vénus com prazeres inflamava, [315]88 Indígetes, Heróicos e de Magnos. Co sopro que nos tanques naturais
Milhor é exprimentá-lo que julgá-lo; Assi a fermosa e a forte companhia Por isso, ó vós que as famas estimais, Encrespa a água serena e despertava
Mas julgue-o quem não pode exprimentá-lo. O dia quase todo estão passando Se quiserdes no mundo ser tamanhos, Os lírios e jasmins, que a calma agrava,
Na alma, doce, incógnita alegria, Despertai já do sono do ócio ignavo,
[314]84 Os trabalhos tão longos compensando. Que o ânimo, de livre, faz escravo. 2
Destarte, enfim, conformes já as fermosas Porque dos feitos grandes, da ousadia Quando as fermosas Ninfas, cos amantes
Ninfas cos seus amados navegantes, Forte e famosa, o mundo está guardando 93 Pela mão, já conformes e contentes,
Os ornam de capelas deleitosas O prémio lá no fim, bem merecido, E ponde na cobiça um freio duro, Subiam pera os paços radiantes
De louro e de ouro e flores abundantes. Com fama grande e nome alto e subido. E na ambição também, que indignamente E de metais ornados reluzentes,
As mãos alvas lhe davam como esposas; Tomais mil vezes, e no torpe e escuro Mandados da Rainha, que abundantes
Com palavras formais e estipulantes 89 Vício da tirania infame e urgente; Mesas de altos manjares excelentes
Se prometem eterna companhia, Que as Ninfas do Oceano, tão fermosas, Porque essas honras vãs, esse ouro puro, Lhe tinha aparelhados, que a fraqueza
Em vida e morte, de honra e alegria. Tétis e a Ilha angélica pintada, Verdadeiro valor não dão à gente: Restaurem da cansada natureza.
Cujas claras Ideias viu Proteu Ver destruir do Samorim potente, Já não defenderá somente os passos,
3 Num globo vão, diáfano, rotundo, Que tais ódios terá co a nova gente. Mas queimar-lhe-á lugares, templos, casas;
Ali, em cadeiras ricas, cristalinas, Que Júpiter em dom lho concedeu Aceso de ira, o Cão, não vendo lassos
Se assentam dous e dous, amante e dama; Em sonhos, e despois no Reino fundo, [320]12 Aqueles que as cidades fazem rasas,
Noutras, à cabeceira, d’ouro finas, Vaticinando, o disse, e na memória E canta como lá se embarcaria Fará que os seus, de vida pouco escassos,
Está co a bela Deusa o claro Gama. Recolheu logo a Ninfa a clara história. Em Belém o remédio deste dano, Cometam o Pacheco, que tem asas,
De iguarias suaves e divinas, Sem saber o que em si ao mar traria, Por dous passos num tempo; mas voando
A quem não chega a Egípcia antiga fama , [319]8 O grão Pacheco, Aquiles Lusitano. Dum noutro, tudo irá desbaratando.
Se acumulam os pratos de fulvo ouro, Matéria é de coturno, e não de soco, O peso sentirão, quando entraria,
Trazidos lá do Atlântico tesouro. A que a Ninfa aprendeu no imenso lago; O curvo lenho e o férvido Oceano, 17
Qual Iopas não soube, ou Demodoco, Quando mais na água os troncos que gemerem Virá ali o Samorim, por que em pessoa
[318]4 Entre os Feaces um, outro em Cartago. Contra sua natureza se meterem. Veja a batalha e os seus esforce e anime;
Os vinhos odoríferos, que acima Aqui, minha Calíope, te invoco Mas um tiro, que com zunido voa,
Estão não só do Itálico Falerno Neste trabalho extremo, por que em pago 13 De sangue o tingirá no andor sublime.
Mas da Ambrósia, que Jove tanto estima Me tornes do que escrevo, e em vão pretendo, Mas, já chegado aos fins Orientais Já não verá remédio ou manha boa
Com todo o ajuntamento sempiterno, O gosto de escrever, que vou perdendo. E deixado em ajuda do gentio Rei de Nem força que o Pacheco muito estime;
Nos vasos, onde em vão trabalha a lima, Cochim, com poucos naturais, Inventará traições e vãos venenos,
Crespas escumas erguem, que no interno 9 Nos braços do salgado e curvo rio Mas sempre (o Céu querendo) fará menos.
Coração movem súbita alegria, Vão os anos decendo, e já do Estio Desbaratará os Naires infernais
Saltando co a mistura d’água fria. Há pouco que passar até o Outono; No passo Cambalão, tornando frio 18
A Fortuna me faz o engenho frio, D’espanto o ardor imenso do Oriente, Que tornará a vez sétima (cantava)
5 Do qual já não me jacto nem me abono; Que verá tanto obrar tão pouca gente. Pelejar co invicto e forte Luso,
Mil práticas alegres se tocavam; Os desgostos me vão levando ao rio A quem nenhum trabalho pesa e agrava;
Risos doces, sutis e argutos ditos, Do negro esquecimento e eterno sono. 14 Mas, contudo, este só o fará confuso.
Que entre um e outro manjar se alevantavam, Mas tu me dá que cumpra, ó grão rainha Chamará o Samorim mais gente nova; Trará pera a batalha, horrenda e brava,
Despertando os alegres apetitos; Das Musas, co que quero à nação minha! Virão Reis [de] Bipur e de Tanor, Máquinas de madeiros fora de uso,
Músicos instrumentos não faltavam Das serras de Narsinga, que alta prova Pera lhe abalroar as caravelas,
(Quais, no profundo Reino, os nus espritos 10 Estarão prometendo a seu senhor; Que até li vão lhe fora cometê-las.
Fizeram descansar da eterna pena) Cantava a bela Deusa que viriam Fará que todo o Naire, enfim, se mova
Ca voz da angélica Sirena. Do Tejo, pelo mar que o Gama abrira, Que entre Calecu jaz e Cananor, 19
Armadas que as ribeiras venceriam De ambas as Leis immigas pera a guerra: Pela água levará serras de fogo
6 Por onde o Oceano Índico suspira; Mouros por mar, Gentios pola terra. Pera abrasar-lhe quanta armada tenha;
Cantava a bela Ninfa, e cos acentos, E que os Gentios Reis que não dariam Mas a militar arte e engenho logo
Que pelos altos paços vão soando, A cerviz sua ao jugo, o ferro e ira 15 Fará ser vã a braveza com que venha.
Em consonância igual, os instrumentos Provariam do braço duro e forte, E todos outra vez desbaratando, «Nenhum claro barão no Márcio jogo,
Suaves vêm a um tempo conformando. Até render-se a ele ou logo à morte. Por terra e mar, o grão Pacheco ousado, Que nas asas da Fama se sustenha,
Um súbito silêncio enfreia os ventos A grande multidão que irá matando Chega a este, que a palma a todos toma.
E faz ir docemente murmurando 11 A todo o Malabar terá admirado. E perdoe-me a ilustre Grécia ou Roma.
As águas, e nas casas naturais Cantava dum que tem nos Malabares Cometerá outra vez, não dilatando,
Adormecer os brutos animais. Do sumo sacerdócio a dignidade, O Gentio os combates, apressado, [322]20
Que, só por não quebrar cos singulares Injuriando os seus, fazendo votos Porque tantas batalhas, sustentadas
7 Barões os nós que dera de amizade, Em vão aos Deuses vãos, surdos e imotos. Com muito pouco mais de cem soldados,
Com doce voz está subindo ao Céu Sofrerá suas cidades e lugares, Com tantas manhas e artes inventadas,
Altos varões que estão por vir ao mundo, Com ferro, incêndios, ira e crueldade, [321]16 Tantos Cães não imbeles profligados,
Ou parecerão fábulas sonhadas, O porá onde esforço nem prudência Nas inimigas naus; senti-lo-á o Nilo,
Ou que os celestes Coros, invocados, 25 Poderá haver que a vida lhe reserve. Podê-lo-á o Indo ver e o Gange ouvi-lo.
Decerão a ajudá-lo e lhe darão Mas tu, de quem ficou tão mal pagado Em Chaul, onde em sangue e resistência
Esforço, força, ardil e coração. Um tal vassalo, ó Rei, só nisto inico, O mar todo com fogo e ferro ferve, 34
Se não és pera dar-lhe honroso estado, Lhe farão que com vida se não saia Qual o touro cioso, que se ensaia
21 É ele pera dar-te um Reino rico. As armadas de Egipto e de Cambaia. Pera a crua peleja, os cornos tenta
Aquele que nos campos Maratónios Enquanto for o mundo rodeado No tronco dum carvalho ou alta faia
O grão poder de Dário estrui e rende, Dos Apolíneos raios, eu te fico 30 E, o ar ferindo, as forças experimenta:
Ou quem, com quatro mil Lacedemónios, Que ele seja entre a gente ilustre e claro, Ali o poder de muitos inimigos Tal, antes que no seio de Cambaia
O passo de Termópilas defende, E tu nisto culpado por avaro. (Que o grande esforço só com força rende), Entre Francisco irado, na opulenta
Nem o mancebo Cocles dos Ausónios, Os ventos que faltaram, e os perigos Cidade de Dabul a espada afia,
Que com todo o poder Tusco contende 26 Do mar, que sobejaram, tudo o ofende. Abaxando-lhe a túmida ousadia.
Em defensa da ponte, ou Quinto Fábio, «Mas eis outro (cantava) intitulado Aqui ressurjam todos os Antigos,
Foi como este na guerra forte e sábio.» Vem com nome real e traz consigo A ver o nobre ardor que aqui se aprende: 35
O filho, que no mar será ilustrado, Outro Ceva verão, que, espedaçado, E logo, entrando fero na enseada
22 Tanto como qualquer Romano antigo. Não sabe ser rendido nem domado. De Dio, ilustre em cercos e batalhas,
Mas neste passo a Ninfa, o som canoro Ambos darão com braço forte, armado, Fará espalhar a fraca e grande armada
Abaxando, fez ronco e entristecido, A Quíloa fértil, áspero castigo, 31 De Calecu, que remos tem por malhas.
Cantando em baxa voz, envolta em choro, Fazendo nela Rei leal e humano, Com toda ha coxa fora, que em pedaços A de Melique Iaz, acautelada,
O grande esforço mal agardecido. Deitado fora o pérfido tirano. Lhe leva um cego tiro que passara, Cos pelouros que tu, Vulcano, espalhas,
«Ó Belisário (disse) que no coro Se serve inda dos animosos braços Fará ir ver o frio e fundo assento,
Das Musas serás sempre engrandecido, 27 E do grão coração que lhe ficara. Secreto leito do húmido elemento.
Se em ti viste abatido o bravo Marte, Também farão Mombaça, que se arreia Até que outro pelouro quebra os laços
Aqui tens com quem podes consolar-te! De casas sumptuosas e edifícios, Com que co alma o corpo se liara: [326]36
Co ferro e fogo seu queimada e feia, Ela, solta, voou da prisão fora Mas a de Mir Hocém, que, abalroando,
23 Em pago dos passados malefícios. Onde súbito se acha vencedora. A fúria esperará dos vingadores,
Aqui tens companheiro, assi nos feitos Despois, na costa da Índia, andando cheia Verá braços e pernas ir nadando
Como no galardão injusto e duro; De lenhos inimigos e artifícios [325]32 Sem corpos, pelo mar, de seus senhores.
Em ti e nele veremos altos peitos Contra os Lusos, com velas e com remos Vai-te, alma, em paz, da guerra turbulenta, Raios de fogo irão representando,
A baxo estado vir, humilde e escuro. O mancebo Lourenço fará extremos. Na qual tu mereceste paz serena! No cego ardor, os bravos domadores.
Morrer nos hospitais, em pobres leitos, Que o corpo, que em pedaços se apresenta, Quanto ali sentirão olhos e ouvidos
Os que ao Rei e à Lei servem de muro! [324]28 Quem o gerou, vingança já lhe ordena: É fumo, ferro, flamas e alaridos.
Isto fazem os Reis cuja vontade Das grandes naus do Samorim potente, Que eu ouço retumbar a grão tormenta,
Manda mais que a justiça e que a verdade. Que encherão todo o mar, co a férrea pela, Que vem já dar a dura e eterna pena, 37
Que sai com trovão do cobre ardente, De esperas, basiliscos e trabucos, Mas ah, que desta próspera vitória,
[323]24 Fará pedaços leme, masto, vela. A Cambaicos cruéis e Mamelucos. Com que despois virá ao pátrio Tejo,
Isto fazem os Reis quando embebidos Despois, lançando arpéus ousadamente Quase lhe roubará a famosa glória
Na aparência branda que os contenta Na capitaina immiga, dentro nela 33 Um sucesso, que triste e negro vejo!
Dão os prémios, de Aiace merecidos, Saltando o fará só com lança e espada Eis vem o pai, com ânimo estupendo, O Cabo Tormentório, que a memória
À língua vã de Ulisses, fraudulenta. De quatrocentos Mouros despejada. Trazendo fúria e mágoa por antolhos, Cos ossos guardará, não terá pejo
Mas vingo-me: que os bens mal repartidos Com que o paterno amor lhe está movendo De tirar deste mundo aquele esprito,
Por quem só doces sombras apresenta, 29 Fogo no coração, água nos olhos. Que não tiraram toda a Índia e Egipto.
Se não os dão a sábios cavaleiros, Mas de Deus a escondida providência A nobre ira lhe vinha prometendo
Dão-os logo a avarentos lisonjeiros. (Que ela só sabe o bem de que se serve) Que o sangue fará dar pelos giolhos 38
Ali, Cafres selvagens poderão Despois, obedecendo ao duro ensejo, Quanto agora soberba e soberana
O que destros immigos não puderam; A deixa, e ocasião espera boa 47 Pela cortiça cálida, cheirosa,
E rudos paus tostados sós farão Com que a torne a tomar, que esforço e arte Não será a culpa abominoso incesto Dela dará tributo à Lusitana
O que arcos e pelouros não fizeram. Vencerão a Fortuna e o próprio Marte. Nem violento estupro em virgem pura, Bandeira, quando, excelsa e gloriosa,
Ocultos os juízos de Deus são; Nem menos adultério desonesto, Vencendo se erguerá na torre erguida,
As gentes vãs, que não nos entenderam, 43 Mas ca escrava vil, lasciva e escura. Em Columbo, dos próprios tão temida.
Chamam-lhe fado mau, fortuna escura, Eis já sobre ela torna e vai rompendo Se o peito, ou de cioso, ou de modesto,
Sendo só providência de Deus pura. Por muros, fogo, lanças e pelouros, Ou de usado a crueza fera e dura, [330]52
Abrindo com a espada o espesso e horrendo Cos seus üa ira insana não refreia, Também Sequeira, as ondas Eritreias
39 Esquadrão de Gentios e de Mouros. Põe na fama alva noda negra e feia. Dividindo, abrirá novo caminho
Mas oh, que luz tamanha que abrir sinto Irão soldados ínclitos fazendo Pera ti, grande Império, que te arreias
(Dizia a Ninfa, e a voz alevantava) Mais que liões famélicos e touros, [329]48 De seres de Candace e Sabá ninho.
Lá no mar de Melinde, em sangue tinto Na luz que sempre celebrada e dina Viu Alexandre Apeles namorado Maçuá, com cisternas de água cheias
Das cidades de Lamo, de Oja e Brava, Será da Egípcia Santa Caterina. Da sua Campaspe, e deu-lha alegremente, Verá, e o porto Arquico, ali vizinho;
Pelo Cunha também, que nunca extinto Não sendo seu soldado exprimentado, E fará descobrir remotas Ilhas,
Será seu nome em todo o mar que lava [328]44 Nem vendo-se num cerco duro e urgente. Que dão ao mundo novas maravilhas.
As ilhas do Austro, e praias que se chamam Nem tu menos fugir poderás deste, Sentiu Ciro que andava já abrasado
De São Lourenço, e em todo o Sul se afamam! Posto que rica e posto que assentada Araspas, de Panteia, em fogo ardente, 53
Lá no grémio da Aurora, onde naceste, Que ele tomara em guarda, e prometia Virá despois Meneses, cujo ferro
[327]40 Opulenta Malaca nomeada. Que nenhum mau desejo o venceria; Mais na África, que cá, terá provado;
Esta luz é do fogo e das luzentes As setas venenosas que fizeste, Castigará de Ormuz soberba o erro,
Armas com que Albuquerque irá amansando Os crises com que já te vejo armada, 49 Com lhe fazer tributo dar dobrado.
De Ormuz os Párseos, por seu mal valentes, Malaios namorados, Jaus valentes, Mas, vendo o ilustre Persa que vencido Também tu, Gama, em pago do desterro
Que refusam o jugo honroso e brando. Todos farás ao Luso obedientes.» Fora de Amor, que, enfim, não tem defensa, Em que estás e serás inda tornado,
Ali verão as setas estridentes Levemente o perdoa, e foi servido Cos títulos de Conde e de honras nobres
Reciprocar-se, a ponta no ar virando 45 Dele num caso grande, em recompensa. Virás mandar a terra que descobres.
Contra quem as tirou; que Deus peleja Mais estanças cantara esta Sirena Per força, de Judita foi marido
Por quem estende a fé da Madre Igreja. Em louvor do ilustríssimo Albuquerque, O férreo Balduíno; mas dispensa 54
Mas alembrou-lhe ha ira que o condena, Carlos, pai dela, posto em causas grandes, Mas aquela fatal necessidade
41 Posto que a fama sua o mundo cerque. Que viva e povoador seja de Frandes. De quem ninguém se exime dos humanos,
Ali do sal os montes não defendem O grande Capitão, que o fado ordena Ilustrado co a Régia dignidade,
De corrupção os corpos no combate, Que com trabalhos glória eterna merque, 50 Te tirará do mundo e seus enganos.
Que mortos pela praia e mar se estendem Mais há-de ser um brando companheiro Mas, prosseguindo a Ninfa o longo canto, Outro Meneses logo, cuja idade
De Gerum, de Mascate e Calaiate; Pera os seus, que juiz cruel e inteiro. De Soares cantava, que as bandeiras É maior na prudência que nos anos,
Até que à força só de braço aprendem Faria tremular e pôr espanto Governará; e fará o ditoso Henrique
A abaxar a cerviz, onde se lhe ate 46 Pelas roxas Arábicas ribeiras: Que perpétua memória dele fique.
Obrigação de dar o reino inico Mas em tempo que fomes e asperezas, «Medina abominabil teme tanto,
Das perlas de Barém tributo rico. Doenças, frechas e trovões ardentes, Quanto Meca e Gidá, co as derradeiras 55
A sazão e o lugar, fazem cruezas Praias de Abássia; Barborá se teme Não vencerá somente os Malabares,
42 Nos soldados a tudo obedientes, Do mal de que o empório Zeila geme. Destruindo Panane com Coulete,
Que gloriosas palmas tecer vejo Parece de selváticas brutezas, Cometendo as bombardas, que, nos ares,
Com que Vitória a fronte lhe coroa, De peitos inumanos e insolentes, 51 Se vingam só do peito que as comete;
Quando, sem sombra vã de medo ou pejo, Dar extremo suplício pela culpa A nobre ilha também de Taprobana, Mas com virtudes, certo, singulares,
Toma a ilha ilustríssima de Goa! Que a fraca humanidade e Amor desculpa. Já pelo nome antigo tão famosa Vence os immigos d’alma todos sete;
De cobiça triunfa e incontinência, «E não menos de Dio a fera frota, Despois irá com peito esforçadíssimo
Que em tal idade é suma de excelência. Que Chaul temerá, de grande e ousada, A tolher que não passe o Rei gentio 69
Fará, co a vista só, perdida e rota, De Calecu, que assi com quantos veio Basiliscos medonhos e liões,
[331]56 Por Heitor da Silveira e destroçada; O fará retirar, de sangue cheio. Trabucos feros, minas encobertas,
«Mas, despois que as Estrelas o chamarem, Por Heitor Português, de quem se nota Sustenta Mascarenhas cos barões
Sucederás, ó forte Mascarenhas; Que na costa Cambaica, sempre armada, 65 Que tão ledos as mortes têm por certas;
E, se injustos o mando te tomarem, Será aos Guzarates tanto dano, Destruirá a cidade Repelim, Até que, nas maiores opressões,
Prometo-te que fama eterna tenhas. Quanto já foi aos Gregos o Troiano. Pondo o seu Rei, com muitos, em fugida; Castro libertador, fazendo ofertas
Pera teus inimigos confessarem E despois, junto ao Cabo Comorim, Das vidas de seus filhos, quer que fiquem
Teu valor alto, o fado quer que venhas 61 üa façanha faz esclarecida: Com fama eterna e a Deus se sacrifiquem.
A mandar, mais de palmas coroado, A Sampaio feroz sucederá A frota principal do Samorim,
Que de fortuna justa acompanhado. Cunha, que longo tempo tem o leme: Que destruir o mundo não duvida, 70
De Chale as torres altas erguerá, Vencerá co furor do ferro e fogo; Fernando, um deles, ramo da alta pranta,
57 Enquanto Dio ilustre dele treme; Em si verá Beadala o Márcio jogo. Onde o violento fogo, com ruído,
No reino de Bintão, que tantos danos O forte Baçaim se lhe dará, Em pedaços os muros no ar levanta,
Terá a Malaca muito tempo feitos, Não sem sangue, porém, que nele geme 66 Será ali arrebatado e ao Céu subido.
Num só dia as injúrias de mil anos Melique, porque à força só de espada Tendo assi limpa a Índia dos immigos, Álvaro, quando o Inverno o mundo espanta
Vingarás, co valor de ilustres peitos. A tranqueira soberba vê tomada. Virá despois com ceptro a governá-la E tem o caminho húmido impedido,
Trabalhos e perigos inumanos, Sem que ache resistência nem perigos, Abrindo-o, vence as ondas e os perigos,
Abrolhos férreos mil, passos estreitos, 62 Que todos tremem dele e nenhum fala. Os ventos e despois os inimigos.
Tranqueiras, baluartes, lanças, setas: Trás este vem Noronha, cujo auspício Só quis provar os ásperos castigos
Tudo fico que rompas e sometas. De Dio os Rumes feros afugenta; Baticalá, que vira já Beadala. 71
Dio, que o peito e bélico exercício De sangue e corpos mortos ficou cheia Eis vem despois o pai, que as ondas corta
58 De António da Silveira bem sustenta. E de fogo e trovões desfeita e feia. Co restante da gente Lusitana,
Mas na Índia, cobiça e ambição, Fará em Noronha a morte o usado ofício, E com força e saber, que mais importa,
Que claramente põem aberto o rosto Quando um teu ramo, ó Gama, se exprimenta 67 Batalha dá felice e soberana.
Contra Deus e Justiça, te farão No governo do Império, cujo zelo Este será Martinho, que de Marte Uns, paredes subindo, escusam porta;
Vitupério nenhum, mas só desgosto. Com medo o Roxo Mar fará amarelo. O nome tem co as obras derivado; Outros a abrem na fera esquadra insana.
Quem faz injúria vil e sem razão, Tanto em armas ilustre em toda parte, Feitos farão tão dinos de memória
Com forças e poder em que está posto, 63 Quanto, em conselho, sábio e bem cuidado. Que não caibam em verso ou larga história.
Não vence; que a vitória verdadeira Das mãos do teu Estêvão vem tomar Suceder-lhe-á ali Castro, que o estandarte
É saber ter justiça nua e inteira. As rédeas um, que já será ilustrado Português terá sempre levantado, [335]72
No Brasil, com vencer e castigar Conforme sucessor ao sucedido, Este, despois, em campo se apresenta,
59 O pirata Francês, ao mar usado. Que um ergue Dio, outro o defende erguido. Vencedor forte e intrépido, ao possante
Mas, contudo, não nego que Sampaio Despois, Capitão-mor do Índico mar, Rei de Cambaia e a vista lhe amedrenta
Será, no esforço, ilustre e assinalado, O muro de Damão, soberbo e armado, [334]68 Da fera multidão quadrupedante.
Mostrando-se no mar um fero raio, Escala e primeiro entra a porta aberta, Persas feroces, Abassis e Rumes, Não menos suas terras mal sustenta
Que de inimigos mil verá coalhado. Que fogo e frechas mil terão coberta. Que trazido de Roma o nome têm, O Hidalcão, do braço triunfante
Em Bacanor fará cruel ensaio Vários de gestos, vários de costumes Que castigando vai Dabul na costa;
No Malabar, pera que, amedrontado, [333]64 (Que mil nações ao cerco feras vêm), Nem lhe escapou Pondá, no sertão posta.
Despois a ser vencido dele venha A este o Rei Cambaico soberbíssimo Farão dos Céus ao mundo vãos queixumes
Cutiale, com quanta armada tenha. Fortaleza dará na rica Dio, Porque uns poucos a terra lhe detêm. 73
Por que contra o Mogor poderosíssimo Em sangue Português, juram, descridos, Estes e outros Barões, por várias partes,
[332]60 Lhe ajude a defender o senhorio. De banhar os bigodes retorcidos. Dinos todos de fama e maravilha,
Fazendo-se na terra bravos Martes, De modo que o seu centro está evidente, Aqui, só verdadeiros, gloriosos Debaxo deste leve, anda outro lento,
Virão lograr os gostos desta Ilha, Como a sua superfície, claramente. Divos estão, porque eu, Saturno e Jano, Tão lento e sojugado a duro freio,
Varrendo triunfantes estandartes Júpiter, Juno, fomos fabulosos, Que enquanto Febo, de luz nunca escasso,
Pelas ondas que corta a aguda quilha; 78 Fingidos de mortal e cego engano. Duzentos cursos faz, dá ele um passo.
E acharão estas Ninfas e estas mesas, Qual a matéria seja não se enxerga, Só pera fazer versos deleitosos
Que glórias e honras são de árduas empresas.» Mas enxerga-se bem que está composto Servimos; e, se mais o trato humano 87
De vários orbes, que a Divina verga Nos pode dar, é só que o nome nosso Olha estoutro debaxo, que esmaltado
74 Compôs, e um centro a todos só tem posto. Nestas estrelas pôs o engenho vosso. De corpos lisos anda e radiantes,
Assi cantava a Ninfa; e as outras todas, Volvendo, ora se abaxe, agora se erga, Que também nele tem curso ordenado
Com sonoroso aplauso, vozes davam, Nunca se ergue ou se abaxa, e um mesmo rosto 83 E nos seus axes correm cintilantes.
Com que festejam as alegres vodas Por toda a parte tem; e em toda a parte E também, porque a santa Providência, Bem vês como se veste e faz ornado
Que com tanto prazer se celebravam. Começa e acaba, enfim, por divina arte, Que em Júpiter aqui se representa, Co largo Cinto d, ouro, que estelantes
«Por mais que da Fortuna andem as rodas Por espíritos mil que têm prudência Animais doze traz afigurados,
(Na cônsona voz todas soavam), 79 Governa o Mundo todo que sustenta Apousentos de Febo limitados.
Não vos hão-de faltar, gente famosa, Uniforme, perfeito, em si sustido, (Ensina-lo a profética ciência,
Honra, valor e fama gloriosa.» Qual, enfim, o Arquetipo que o criou. Em muitos dos exemplos que apresenta); [339]88
Vendo o Gama este globo, comovido Os que são bons, guiando, favorecem, Olha por outras partes a pintura
75 De espanto e de desejo ali ficou. Os maus, em quanto podem, nos empecem; Que as Estrelas fulgentes vão fazendo:
Despois que a corporal necessidade Diz-lhe a Deusa: «O transunto, reduzido Olha a Carreta, atenta a Cinosura,
Se satisfez do mantimento nobre, Em pequeno volume, aqui te dou [338]84 Andrómeda e seu pai, e o Drago horrendo;
E na harmonia e doce suavidade Do Mundo aos olhos teus, pera que vejas Quer logo aqui a pintura que varia Vê de Cassiopeia a fermosura
Viram os altos feitos que descobre, Por onde vás e irás e o que desejas. Agora deleitando, ora ensinando, E do Orionte o gesto turbulento;
Tétis, de graça ornada e gravidade, Dar-lhe nomes que a antiga Poesia Olha o Cisne morrendo que suspira,
Pera que com mais alta glória dobre [337]80 A seus Deuses já dera, fabulando; A Lebre e os Cães, a Nau e a doce Lira.
As festas deste alegre e claro dia, Vês aqui a grande máquina do Mundo, Que os Anjos de celeste companhia
Pera o felice Gama assi dizia: Etérea e elemental, que fabricada Deuses o sacro verso está chamando, 89
Assi foi do Saber, alto e profundo, Nem nega que esse nome preminente Debaxo deste grande Firmamento,
[336]76 Que é sem princípio e meta limitada. Também aos maus se dá, mas falsamente. Vês o céu de Saturno, Deus antigo;
«Faz-te mercê, barão, a Sapiência Quem cerca em derredor este rotundo Júpiter logo faz o movimento,
Suprema de, cos olhos corporais, Globo e sua superfície tão limada, 85 E Marte abaxo, bélico inimigo;
Veres o que não pode a vã ciência É Deus: mas o que é Deus, ninguém o entende, Enfim que o Sumo Deus, que por segundas O claro Olho do céu, no quarto assento,
Dos errados e míseros mortais. Que a tanto o engenho humano não se estende. Causas obra no Mundo, tudo manda. E Vénus, que os amores traz consigo;
Sigue-me firme e forte, com prudência, E tornando a contar-te das profundas Mercúrio, de eloquência soberana;
Por este monte espesso, tu cos mais.» 81 Obras da Mão Divina veneranda, Com três rostos, debaxo vai Diana.
Assi lhe diz e o guia por um mato Este orbe que, primeiro, vai cercando Debaxo deste círculo onde as mundas
Árduo, difícil, duro a humano trato. Os outros mais pequenos que em si tem, Almas divinas gozam, que não anda, 90
Que está com luz tão clara radiando Outro corre, tão leve e tão ligeiro Em todos estes orbes, diferente
77 Que a vista cega e a mente vil também, Que não se enxerga: é o Móbile primeiro. Curso verás, nuns grave e noutros leve;
Não andam muito que no erguido cume Empíreo se nomeia, onde logrando Ora fogem do Centro longamente,
Se acharam, onde um campo se esmaltava Puras almas estão daquele Bem 86 Ora da Terra estão caminho breve,
De esmeraldas, rubis, tais que presume Tamanho, que ele só se entende e alcança, Com este rapto e grande movimento Bem como quis o Padre omnipotente,
A vista que divino chão pisava. De quem não há no mundo semelhança. Vão todos os que dentro tem no seio; Que o fogo fez e o ar, o vento e neve,
Aqui um globo vêm no ar, que o lume Por obra deste, o Sol, andando a tento, Os quais verás que jazem mais a dentro
Claríssimo por ele penetrava, 82 O dia e noite faz, com curso alheio. E tem co Mar a Terra por seu centro.
Vê-lo rega, gerando o crocodilo, Com a serra de Arzira, pedra viva, Aqui de Dom Filipe de Meneses
91 Os povos Abassis, de Crista amigos; Onde chuva dos céus se não deriva. Se mostrará a virtude, em armas clara,
Neste centro, pousada dos humanos, Olha como sem muros (novo estilo) Quando, com muito poucos Portugueses,
Que não somente, ousados, se contentam Se defendem milhor dos inimigos; [342]100 Os muitos Párseos vencerá de Lara.
De sofrerem da terra firme os danos, Vê Méroe, que ilha foi de antiga fama, Olha as Arábias três, que tanta terra Virão provar os golpes e reveses
Mas inda o mar instabil exprimentam, Que ora dos naturais Nobá se chama. Tomam, todas da gente vaga e baça, De Dom Pedro de Sousa, que provara
Verás as várias partes, que os insanos Donde vêm os cavalos pera a guerra, Já seu braço em Ampaza, que deixada
Mares dividem, onde se apousentam [341]96 Ligeiros e feroces, de alta raça; Terá por terra, à força só de espada.
Várias nações que mandam vários Reis, Nesta remota terra um filho teu Olha a costa que corre, até que cera
Vários costumes seus e várias leis. Nas armas contra os Turcos será claro; Outro Estreito de Pérsia, e faz a traça 105
Há-de ser Dom Cristóvão o nome seu; O Cabo que co nome se apelida Mas deixemos o Estreito e o conhecido
[340]92 Mas contra o fim fatal não há reparo. Da cidade Fartaque, ali sabida. Cabo de Jasque, dito já Carpela,
Vês Europa Cristã, mais alta e clara Vê cá a costa do mar, onde te deu Com todo o seu terreno mal querido
Que as outras em polícia e fortaleza. Melinde hospício gasalhoso e caro; 101 Da Natura e dos dões usados dela;
Vês África, dos bens do mundo avara, O Rapto rio nota, que o romance Olha Dófar, insigne porque manda Carmânia teve já por apelido.
Inculta e toda cheia de bruteza; Da terra chama Obi; entra em Quilmance. O mais cheiroso incenso pera as aras; Mas vês o fermoso Indo, que daquela
Co Cabo que até qui se vos negara, Mas atenta: já cá destoutra banda Altura nace, junto à qual, também
Que assentou pera o Austro a Natureza. 97 De Roçalgate, e praias sempre avaras, Doutra altura correndo o Gange vem?
Olha essa terra toda, que se habita O Cabo vê já Arómata chamado, Começa o reino Ormuz, que todo se anda
Dessa gente sem Lei, quase infinita. E agora Guardafu, dos moradores, Pelas ribeiras que inda serão claras 106
Onde começa a boca do afamado Quando as galés do Turco e fera armada Olha a terra de Ulcinde, fertilíssima,
93 Mar Roxo, que do fundo toma as cores; Virem de Castelbranco nua a espada. E de Jáquete a íntima enseada;
Vê do Benomotapa o grande império, Este como limite está lançado Do mar a enchente súbita, grandíssima,
De selvática gente, negra e nua, Que divide Ásia de África; e as milhores 102 E a vazante, que foge apressurada.
Onde Gonçalo morte e vitupério Povoações que a parte África tem Olha o Cabo Asaboro, que chamado A terra de Cambaia vê, riquíssima,
Padecerá, pola Fé santa sua. Maçuá são, Arquico e Suamquém. Agora é Moçandão, dos navegantes; Onde do mar o seio faz entrada;
Nace por este incógnito Hemisperio Por aqui entra o lago que é fechado Cidades outras mil, que vou passando,
O metal por que mais a gente sua. 98 De Arábia e Pérsias terras abundantes. A vós outros aqui se estão guardando.
Vê que do lago donde se derrama Vês o extremo Suez, que antigamente Atenta a ilha Barém, que o fundo ornado
O Nilo, também vindo está Cuama. Dizem que foi dos Héroas a cidade Tem das suas perlas ricas, e imitantes 107
(Outros dizem que Arsínoe), e ao presente A cor da Aurora; e vê na água salgada Vês corre a costa célebre Indiana
94 Tem das frotas do Egipto a potestade. Ter o Tigris e Eufrates ha entrada. Pera o Sul, até o Cabo Comori,
Olha as casas dos negros, como estão Olha as águas nas quais abriu patente Já chamado Cori, que Taprobana
Sem portas, confiados, em seus ninhos, Estrada o grão Mousés na antiga idade. 103 (Que ora é Ceilão) defronte tem de si.
Na justiça real e defensão Ásia começa aqui, que se apresenta Olha da grande Pérsia o império nobre, Por este mar a gente Lusitana,
E na fidelidade dos vizinhos; Em terras grande, em reinos opulenta. Sempre posto no campo e nos cavalos, Que com armas virá despois de ti,
Olha deles a bruta multidão, Que se injuria de usar fundido cobre Terá vitórias, terras e cidades,
Qual bando espesso e negro de estorninhos, 99 E de não ter das armas sempre os calos. Nas quais hão-de viver muitas idades.
Combaterá em Sofala a fortaleza, Olha o monte Sinai, que se enobrece Mas vê a ilha Gerum, como descobre
Que defenderá Nhaya com destreza. Co sepulcro de Santa Caterina; O que fazem do tempo os intervalos, [344]108
Olha Toro e Gidá, que lhe falece Que da cidade Armuza, que ali esteve, As províncias que entre um e o outro rio
95 Água das fontes, doce e cristalina; Ela o nome despois e a glória teve. Vês, com várias nações, são infinitas:
Olha lá as alagoas donde o Nilo Olha as portas do Estreito, que fenece Um reino Maometa, outro Gentio,
Nace, que não souberam os antigos; No reino da seca Adem, que confina [343]104 A quem tem o Demónio leis escritas.
Olha que de Narsinga o senhorio (Já Cristo neste tempo lhe ordenava De abundante. Mas olha que está posta
Tem as relíquias santas e benditas 113 Que, padecendo, fosse ao Céu subido); Pera o Austro, daqui virada, a costa.
Do corpo de Tomé, barão sagrado, «São estes sacerdotes dos Gentios A multidão das pedras que voava
Que a Jesu Cristo teve a mão no lado. Em quem mais penetrado tinha enveja; No Santo dá, já a tudo oferecido; 122
Buscam maneiras mil, buscam desvios, Um dos maus, por fartar-se mais depressa, Olha o reino Arracão; olha o assento
109 Com que Tomé não se ouça, ou morto seja. Com crua lança o peito lhe atravessa. De Pegu, que já monstros povoaram,
Aqui a cidade foi que se chamava O principal, que ao peito traz os fios, Monstros filhos do feio ajuntamento
Meliapor, fermosa, grande e rica; Um caso horrendo faz, que o mundo veja 118 Da mulher e um cão, que sós se acharam.
Os Ídolos antigos adorava Que inimiga não há, tão dura e fera, Choraram-te, Tomé, o Gange e o Indo; Aqui soante arame no instrumento
Como inda agora faz a gente inica. Como a virtude falsa, da sincera. Chorou-te toda a terra que pisaste; Da geração costumam, o que usaram
Longe do mar naquele tempo estava, Mais te choram as almas que vestindo Por manha da Rainha que, inventando
Quando a Fé, que no mundo se pubrica, 114 Se iam da santa Fé que lhe ensinaste. Tal uso, deitou fora o error nefando.
Tomé vinha pregando, e já passara Um filho próprio mata, e logo acusa Mas os Anjos do Céu, cantando e rindo,
Províncias mil do mundo, que ensinara. De homicídio Tomé, que era inocente; Te recebem na glória que ganhaste. 123
Dá falsas testemunhas, como se usa; Pedimos-te que a Deus ajuda peças Olha Tavai cidade, onde começa
110 Condenaram-no a morte brevemente. Com que os teus Lusitanos favoreças. De Sião largo o império tão comprido;
Chegado aqui, pregando e junto dando O Santo, que não vê milhor escusa Tenassari, Quedá, que é só cabeça
A doentes saúde, a mortos vida, Que apelar pera o Padre omnipotente, 119 Das que pimenta ali têm produzido.
Acaso traz um dia o mar, vagando, Quer, diante do Rei e dos senhores, E vós outros que os nomes usurpais Mais avante fareis que se conheça
Um lenho de grandeza desmedida. Que se faça um milagre dos maiores. De mandados de Deus, como Tomé, Malaca por empório enobrecido,
Deseja o Rei, que andava edificando, Dizei: se sois mandados, como estais Onde toda a província do mar grande
Fazer dele madeira; e não duvida 115 Sem irdes a pregar a santa Fé? Suas mercadorias ricas mande.
Poder tirá-lo a terra, com possantes O corpo morto manda ser trazido, Olhai que, se sois Sal e vos danais
Forças d’ homens, de engenhos, de alifantes. Que resucite e seja perguntado Na pátria, onde profeta ninguém é, [348]124
Quem foi seu matador, e será crido Com que se salgarão em nossos dias Dizem que desta terra co as possantes
111 Por testemunho, o seu, mais aprovado. (Infiéis deixo) tantas heresias? Ondas o mar, entrando, dividiu
Era tão grande o peso do madeiro Viram todos o moço vivo, erguido, A nobre ilha Samatra, que já de antes
Que, só pera abalar-se, nada abasta; Em nome de Jesu crucificado: [347]120 Juntas ambas a gente antiga viu.
Mas o núncio de Cristo verdadeiro Dá graças a Tomé, que lhe deu vida, Mas passo esta matéria perigosa Quersoneso foi dita; e das prestantes
Menos trabalho em tal negócio gasta: E descobre seu pai ser homicida. E tornemos à costa debuxada. Veias de ouro que a terra produziu,
Ata o cordão que traz, por derradeiro, Já com esta cidade tão famosa «Áurea», por epitheto lhe ajuntaram;
No tronco, e facilmente o leva e arrasta [346]116 Se faz curva a Gangética enseada; Alguns que fosse Ofir imaginaram.
Pera onde faça um sumptuoso templo Este milagre fez tamanho espanto Corre Narsinga, rica e poderosa;
Que ficasse aos futuros por exemplo. Que o Rei se banha logo na água santa, Corre Orixá, de roupas abastada; 125
E muitos após ele; um beija o manto, No fundo da enseada, o ilustre rio Mas, na ponta da terra, Cingapura
[345]112 Outro louvor do Deus de Tomé canta. Ganges vem ao salgado senhorio; Verás, onde o caminho às naus se estreita;
Sabia bem que se com fé formada Os Bramenes se encheram de ódio tanto, Daqui tornando a costa à Cinosura,
Mandar a um monte surdo que se mova, Com seu veneno os morde enveja tanta, 121 Se encurva e pera a Aurora se endireita.
Que obedecerá logo à voz sagrada, Que, persuadindo a isso o povo rudo, Ganges, no qual os seus habitadores Vês Pam, Patane, reinos, e a longura
Que assi lho ensinou Cristo, e ele o prova. Determinam matá-lo, em fim de tudo. Morrem banhados, tendo por certeza De Sião, que estes e outros mais sujeita;
A gente ficou disto alvoraçada; Que, inda que sejam grandes pecadores, Olha o rio Menão, que se derrama
Os Bramenes o têm por cousa nova; 117 Esta água santa os lava e dá pureza. Do grande lago que Chiamai se chama.
Vendo os milagres, vendo a santidade, Um dia que pregando ao povo estava, Vê Chatigão, cidade das milhores
Hão medo de perder autoridade. Fingiram entre a gente um arruído. De Bengala província, que se preza 126
Vês neste grão terreno os diferentes Estes, o Rei que têm, não foi nacido Que soberba a fará a luzente mina
Nomes de mil nações, nunca sabidas: Príncipe, nem dos pais aos filhos fica, 135 Do metal que a cor tem do louro Apolo.
Os Laos, em terra e número potentes; Mas elegem aquele que é famoso Vê naquela que o tempo tornou Ilha, Castela, vossa amiga, será dina
Avás, Bramás, por serras tão compridas; Por cavaleiro, sábio e virtuoso. Que também flamas trémulas vapora, De lançar-lhe o colar ao rudo colo.
Vê nos remotos montes outras gentes, A fonte que óleo mana, e a maravilha Varias províncias tem de várias gentes,
Que Guéus se chamam, de selvages vidas; 131 Do cheiroso licor que o tronco chora, Em ritos e costumes, diferentes.
Humana carne comem, mas a sua Inda outra muita terra se te esconde Cheiroso, mais que quanto estila a filha
Pintam com ferro ardente, usança crua. Até que venha o tempo de mostrar-se; De Cinyras na Arábia, onde ela mora; [352]140
Mas não deixes no mar as Ilhas onde E vê que, tendo quanto as outras têm, Mas cá onde mais se alarga, ali tereis
127 A Natureza quis mais afamar-se: Branda seda e fino ouro dá também. Parte também, co pau vermelho nota;
Vês, passa por Camboja Mecom rio, Esta, meia escondida, que responde De Santa Cruz o nome lhe poreis;
Que capitão das águas se interpreta; De longe à China, donde vem buscar-se, [351]136 Descobri-la-á a primeira vossa frota.
Tantas recebe d’ outro só no Estio, É Japão, onde nace a prata fina, Olha, em Ceilão, que o monte se alevanta Ao longo desta costa, que tereis,
Que alaga os campos largos e inquieta; Que ilustrada será co a Lei divina. Tanto que as nuvens passa ou a vista engana; Irá buscando a parte mais remota
Tem as enchentes quais o Nilo frio; Os naturais o têm por cousa santa, O Magalhães, no feito, com verdade,
A gente dele crê, como indiscreta, [350]132 Pola pedra onde está a pegada humana. Português, porém não na lealdade.
Que pena e glória têm, despois de morte, Olha cá pelos mares do Oriente Nas ilhas de Maldiva nace a pranta
Os brutos animais de toda sorte. Ás infinitas Ilhas espalhadas: No profundo das águas, soberana, 141
Vê Tidore e Ternate, co fervente Cujo pomo contra o veneno urgente Dês que passar a via mais que meia
[349]128 Cume, que lança as flamas ondeadas. É tido por antídoto excelente. Que ao Antártico Pólo vai da Linha,
Este receberá, plácido e brando, As árvores verás do cravo ardente, Da estatura quase giganteia
No seu regaço os Cantos que molhados Co sangue Português inda compradas. 137 Homens verá, da terra ali vizinha;
Vêm do naufrágio triste e miserando, Aqui há as áureas aves, que não decem Verás defronte estar do Roxo Estreito E mais avante o Estreito que se arreia
Dos procelosos baxos escapados, Nunca à terra e só mortas aparecem. Socotorá, co amaro aloé famosa; Co nome dele agora, o qual caminha
Das fomes, dos perigos grandes, quando Outras ilhas, no mar também sujeito Pera outro mar e terra que fica onde
Será o injusto mando executado 133 A vós, na costa de África arenosa, Com suas frias asas o Austro a esconde.
Naquele cuja Lira sonorosa Olha de Banda as Ilhas, que se esmaltam Onde sai do cheiro mais perfeito
Será mais afamada que ditosa. Da vária cor que pinta o roxo fruto; A massa, ao mundo oculta e preciosa. 142
Às aves variadas, que ali saltam, De São Lourenço vê a Ilha afamada, Até qui Portugueses concedido
129 Da verde noz tomando seu tributo. Que Madagáscar é dalguns chamada. Vos é saberdes os futuros feitos
Vês, corre a costa que Champá se chama, Olha também Bornéu, onde não faltam Que, pelo mar que já deixais sabido,
Cuja mata é do pau cheiroso ornada; Lágrimas no licor coalhado e enxuto 138 Virão fazer barões de fortes peitos.
Vês Cauchichina está, de escura fama, Das árvores, que cânfora é chamado, Eis aqui as novas partes do Oriente Agora, pois que tendes aprendido
E de Ainão vê a incógnita enseada; Com que da Ilha o nome é celebrado. Que vós outros agora ao mundo dais, Trabalhos que vos façam ser aceitos
Aqui o soberbo Império, que se afama Abrindo a porta ao vasto mar patente, As eternas esposas e fermosas,
Com terras e riqueza não cuidada, 134 Que com tão forte peito navegais. Que coroas vos tecem gloriosas,
Da China corre, e ocupa o senhorio Ali também Timor, que o lenho manda Mas é também razão que, no Ponente,
Desde o Trópico ardente ao Cinto frio. Sândalo, salutífero e cheiroso; Dum Lusitano um feito inda vejais, 143
Olha a Sunda, tão larga que üa banda Que, de seu Rei mostrando-se agravado, Podeis-vos embarcar, que tendes vento
130 Esconde pera o Sul dificultoso; Caminho há-de fazer nunca cuidado. E mar tranquilo, pera a pátria amada.»
Olha o muro e edifício nunca crido, A gente do Sertão, que as terras anda, Assi lhe disse; e logo movimento
Que entre um império e o outro se edifica, Um rio diz que tem miraculoso, 139 Fazem da Ilha alegre e namorada.
Certíssimo sinal, e conhecido, Que, por onde ele só, sem outro, vai, Vedes a grande terra que contina Levam refresco e nobre mantimento;
Da potência real, soberba e rica. Converte em pedra o pau que nele cai. Vai de Calisto ao seu contrário Pólo, Levam a companhia desejada
Das Ninfas, que hão-de ter eternamente, 147 Tenham Religiosos exercícios Não se aprende, Senhor, na fantasia,
Por mais tempo que o Sol o mundo aquente. Olhai que ledos vão, por várias vias, De rogarem, por vosso regimento, Sonhando, imaginando ou estudando,
Quais rompentes liões e bravos touros, Com jejuns, disciplina, pelos vícios Senão vendo, tratando e pelejando.
[353]144 Dando os corpos a fomes e vigias, Comuns; toda ambição terão por vento,
Assi foram cortando o mar sereno, A ferro, a fogo, a setas e pelouros, Que o bom Religioso verdadeiro 154
Com vento sempre manso e nunca irado, A quentes regiões, a plagas frias, Glória vã não pretende nem dinheiro. Mas eu que falo, humilde, baxo e rudo,
Até que houveram vista do terreno A golpes de Idolatras e de Mouros, De vós não conhecido nem sonhado?
Em que naceram, sempre desejado. A perigos incógnitos do mundo, 151 Da boca dos pequenos sei, contudo,
Entraram pela foz do Tejo ameno, A naufrágios, a pexes, ao profundo. Os Cavaleiros tende em muita estima, Que o louvor sai às vezes acabado.
E à sua pátria e Rei temido e amado Pois com seu sangue intrépido e fervente Tem me falta na vida honesto estudo,
O prémio e glória dão por que mandou, [354]148 Estendem não somente a Lei de cima, Com longa esperiência misturado,
E com títulos novos se ilustrou. Por vos servir, a tudo aparelhados; Mas inda vosso Império preminente. Nem engenho, que aqui vereis presente,
De vós tão longe, sempre obedientes; Pois aqueles que a tão remoto clima Cousas que juntas se acham raramente.
145 A quaisquer vossos ásperos mandados, Vos vão servir, com passo diligente,
No mais, Musa, nô mais, que a Lira tenho Sem dar reposta, prontos e contentes. Dous inimigos vencem: uns, os vivos, 155
Destemperada e a voz enrouquecida, Só com saber que são de vós olhados, E (o que é mais) os trabalhos excessivos. Pera servir-vos, braço às armas feito,
E não do canto, mas de ver que venho Demónios infernais, negros e ardentes, Pera cantar-vos, mente às Musas dada;
Cantar a gente surda e endurecida. Cometerão convosco, e não duvido [355]152 Só me falece ser a vós aceito,
O favor com que mais se acende o engenho Que vencedor vos façam, não vencido. Fazei, Senhor, que nunca os admirados De quem virtude deve ser prezada.
Não no dá a pátria, não, que está metida Alemães, Galos, Ítalos e Ingleses, Se me isto o Céu concede, e o vosso peito
No gosto da cobiça e na rudeza 149 Possam dizer que são pera mandados, Dina empresa tomar de ser cantada,
Da austera, apagada e vil tristeza. Favorecei-os logo, e alegrai-os Mais que pera mandar, os Portugueses. Como a pressaga mente vaticina
Com a presença e leda humanidade; Tomai conselho só de exprimentados Olhando a vossa inclinação divina,
146 De rigorosas leis desalivai-os, Que viram largos anos, largos meses,
E não sei por que influxo de Destino Que assi se abre o caminho à santidade. Que, posto que em cientes muito cabe. [356]156
Não tem um ledo orgulho e geral gosto, Os mais exprimentados levantai-os, Mais em particular o experto sabe. Ou fazendo que, mais que a de Medusa,
Que os ânimos levanta de contino Se, com a experiência, têm bondade A vista vossa tema o monte Atlante,
A ter pera trabalhos ledo o rosto. Pera vosso conselho, pois que sabem 153 Ou rompendo nos campos de Ampelusa
Por isso vós, ó Rei, que por divino O como, o quando, e onde as cousas cabem. De Formião, filósofo elegante, Os muros de Marrocos e Trudante,
Conselho estais no régio sólio posto, Vereis como Annibal escarnecia, A minha já estimada e leda Musa
Olhai que sois (e vede as outras gentes) 150 Quando das artes bélicas, diante Fico que em todo o mundo de vós cante,
Senhor só de vassalos excelentes. Todos favorecei em seus ofícios, Dele, com larga voz tratava e lia. De sorte que Alexandro em vós se veja,
Segundo têm das vidas o talento; A disciplina militar prestante Sem à dita de Aquiles ter enveja.
TEXTO 02 A 21 – SONETOS DE CAMÕES
4 6
2 A ti, Senhor, a quem as sacras Musas Ah! Fortuna cruel! Ah! duros Fados 8
A fermosura desta fresca serra Nutrem e cibam de poção divina Ai, imiga cruel! Que apartamento
E a sombra dos verdes castanheiros, (Não as da fonte délia cabalina, Quão asinha em meu dano vos mudastes! É este que fazeis da pátria terra?
O manso caminhar destes ribeiros, Que são Medeias, Circes e Medusas, Passou o tempo que me descansastes, Quem do paterno ninho vos desterra,
Donde toda a tristeza se desterra; Agora descansais com meus cuidados. Glória dos olhos, bem do pensamento?
Mas aquelas em cujo peito infusas
O rouco som do mar, a estranha terra, As leis estão, que a lei da Graça ensina, Deixastes-me sentir os bens passados, Is tentar da Fortuna o movimento
O esconder do sol pelos outeiros, Benignas no amor e na doutrina Para mor dor da dor que me ordenastes; E dos ventos cruéis a dura guerra?
O recolher dos gados derradeiros, E não soberbas, cegas e confusas), Então nũa hora juntos mos levastes, Ver brenhas de água e o mar feito em
Das nuvens pelo ar a branda guerra; Deixando em seu lugar males dobrados. serra,
Este pequeno parto, produzido Levantado de um vento e de outro vento?
Enfim, tudo o que a rara Natureza De meu saber e fraco entendimento, Ah! quanto milhor fora não vos ver,
Com tanta variedade nos ofrece, Uma vontade grande te oferece. Gostos, que assi passais tão de corrida, Mas, já que vós partis sem vos partirdes,
Me está, se não te vejo, magoando. Que fico duvidoso se vos vi: Parta convosco o Céu tanta ventura,
Se for de ti notado de atrevido, Que seja mor que aquela que esperardes.
Sem ti, tudo me enoja e me aborrece; Daqui peço perdão do atrevimento, Sem vós já me não fica que perder,
Sem ti, perpetuamente estou passando O qual esta vontade te merece. Se não se for esta cansada vida, E só nesta verdade ide segura:
Nas mores alegrias mor tristeza. Que por mor perda minha não perdi! Que ficam mais saudades com partirdes,
5 Do que breves desejos de chegardes.
3 A violeta mais bela que amanhece 7
A Morte, que da vida o nó desata, No vale, por esmalte da verdura, Ah! minha Dinamene! assi[m] deixaste 9
Os nós, que dá o Amor, cortar quisera Com seu pálido lustre e fermosura, Quem não deixara nunca de querer-te? Alegres campos, verdes arvoredos,
Na Ausência, que é contra ele espada fera, Por mais bela, Violante, te obedece. Ah! Ninfa minha! Já não posso ver-te, Claras e frescas águas de cristal,
E co Tempo, que tudo desbarata. Tão asinha esta vida desprezaste! Que em vós os debuxais ao natural,
Perguntas-me porquê? Porque aparece Discorrendo da altura dos rochedos;
Duas contrárias, que ũa a outra mata, Em ti seu nome e sua cor mais pura; Como já para sempre te apartaste
A Morte contra o Amor ajunta e altera: E estudar em teu rosto só procura De quem tão longe estava de perder-te? Silvestres montes, ásperos penedos,
Ũa é Razão contra a Fortuna austera, Tudo quanto em beldade mais flore[s]ce. Puderam estas ondas defender-te, Compostos em concerto desigual,
Outra, contra a Razão, Fortuna ingrata. Que não visses quem tanto magoaste? Sabei que, sem licença de meu mal,
Ó luminosa flor, ó Sol mais claro, Já não podeis fazer meus olhos ledos.
Mas mostre a sua imperial potência Único roubador de meu sentido, Nem falar-te somente a dura morte
A Morte em apartar dum corpo a alma, Não permitas que Amor me seja avaro! Me deixou, que tão cedo o negro manto E, pois me já não vedes como vistes,
Duas num corpo o Amor ajunte e una; Em teus olhos deitado consentiste! Não me alegrem verduras deleitosas,
Ó penetrante seta de Cupido, Nem águas que correndo alegres vêm.
Porque assi leve triunfante a palma, Que queres? Que te peça, por reparo, Ó mar, ó céu, ó minha escura sorte!
Amor da Morte, apesar da Ausência, Ser, neste vale, Enéias desta Dido? Que pena sentirei, que valha tanto, Semearei em vós lembranças tristes,
Do Tempo, da Razão e da Fortuna. Que inda tenho por pouco o viver triste? Regando-vos com lágrimas saudosas,
E na[s]cerão saudades de meu bem.
12 14 16
10 (Na obra é o soneto 21) Amor, co a esperança já perdida, Amor que o gesto humano na alma Apolo e as nove Musas, descantando
À romana Populónia perguntava Teu soberano templo visitei; escreve, Com a dourada lira, me influíam
Um certo curioso e não prudente Por sinal do naufrágio que passei, Vivas faíscas me mostrou um dia, Na suave harmonia que faziam,
Porque a alimária comummente Em lugar dos vestidos, pus a vida. Donde um puro cristal se derretia Quando tomei a pena, começando:
Em tempo certo do ano se juntava; Por entre vivas rosas e alva neve.
Que queres mais de mim, que destruída — Ditoso seja o dia e hora, quando
A qual, como discreta e que cuidava Me tens a glória toda que alcancei? A vista, que em si mesma não se atreve, Tão delicados olhos me feriam!
Em respostas ser suma e eminente, Não cuides de forçar me, que não sei Por se certificar do que ali via, Ditosos os sentidos que sentiam
Com uma só palavra, claramente, Tornar a entrar onde não há saída. Foi convertida em fonte, que fazia Estar-se em seu desejo traspassando! —
Respondeu, e mostrou com quem folgava: A dor ao sofrimento doce e leve.
Vês aqui alma, vida e esperança, Assi[m] cantava, quando Amor virou
«Bestas são.» Dá a entender que não Despojos doces de meu bem passado, Jura Amor que brandura de vontade A roda à esperança, que corria
entendem Enquanto quis aquela que eu adoro: Causa o primeiro efeito; o pensamento Tão ligeira, que quase era invisível.
Quão grande suavidade se encerra Endoudece, se cuida que é verdade.
Na cópula himeneia e ajuntamento. Nelas podes tomar de mim vingança; Converteu-se-me em noite o claro dia;
E se inda não estás de mim vingado, Olhai como Amor gera, num momento, E, se algũa esperança me ficou,
Mas mores bestas são os que pretendem Contenta-te com as lágrimas que choro. De lágrimas de honesta piedade, Será de maior mal, se for possível.
Buscar contentamento à carne e à terra, Lágrimas de imortal contentamento!
Deixando a alma prestes ao tormento. 13
Amor é fogo que arde sem se ver, 15 17
É ferida que dói, e não se sente; Apartava-se Nise de Montano, Aquela fera humana que enriquece
11 É um contentamento descontente, Em cuja alma, partindo-se, ficava; Sua presuntuosa tirania
Alma minha gentil, que te partiste É dor que desatina sem doer. Que o pastor na memória a debuxava, Destas minhas entranhas, onde cria
Tão cedo desta vida descontente, Por poder sustentar-se deste engano. Amor um mal que falta quando cre[s]ce;
Repousa lá no Céu eternamente, É um não querer mais que bem querer;
E viva eu cá na terra sempre triste. É um andar solitário entre a gente; Pelas praias do Indico Oceano Se nela o Céu mostrou (como parece)
É nunca contentar se de contente; Sobre o curvo cajado se encostava, Quanto mostrar ao mundo pretendia,
Se lá no assento etéreo, onde subiste, É um cuidar que ganha em se perder. E os olhos pelas águas alongava, Por que de minha vida se injuria?
Memória desta vida se consente, Que pouco se doíam de seu dano. Por que de minha morte se e[n]nobrece?
Não te esqueças daquele amor ardente É querer estar preso por vontade;
Que já nos olhos meus tão puro viste. É servir a quem vence, o vencedor; — Pois com tamanha mágoa e saüdade Ora, enfim, sublimai vossa vitória,
É ter com quem nos mata, lealdade. (Dizia) quis deixar-me a que eu adoro, Senhora, com vencer-me e cativar-me:
E se vires que pode merecer te Por testemunhas tomo céu e estrelas. Fazei disto no mundo larga história,
Algũa causa a dor que me ficou Mas como causar pode seu favor
Da mágoa, sem remédio, de perder te, Nos corações humanos amizade, Mas se em vós, ondas, mora piedade, Que, por mais que vos veja maltratar-me.
Se tão contrário a si é o mesmo Amor? Levai também as lágrimas que choro, Já me fico logrando desta glória
Roga a Deus, que teus anos encurtou, Pois assi[m] me levais a causa delas. De ver que tendes tanta de matar-me.
Que tão cedo de cá me leve a ver te,
Quão cedo de meus olhos te levou.
18 19 20 21 (Na obra é o soneto 1)
Aquela que, de pura castidade, Aquela triste e leda madrugada, Aqueles claros olhos que chorando A chaga que, Senhora, me fizestes
De si mesma tomou cruel vingança Cheia toda de mágoa e de piedade, Ficavam quando deles me partia, Não foi pera curar-se em um só dia;
Por ũa breve e súbita mudança, Enquanto houver no mundo saudade Agora que farão? Quem mo diria? Porque cre[s]cendo vai com tal porfia,
Contrária a sua honra e qualidade Quero que seja sempre celebrada. Se porventura estarão em mim cuidando? Que bem descobre o intento que tivestes.

Venceu à fermosura a honestidade, Ela só, quando amena e marchetada Se terão na memória, como ou quando De causar tanta dor vos não doestes?
Venceu no fim da vida a esperança Saía, dando ao mundo claridade, Deles me vim tão longe de alegria? Mas, a doer-vos, dor me não seria,
Porque ficasse viva tal lembrança, Viu apartar-se de ũa outra vontade, Ou se estarão aquele alegre dia Pois já com esperança me veria
Tal amor, tanta fé, tanta verdade. Que nunca poderá ver-se apartada. Que torne a vê-los, na alma figurando? Do que vós, que em mi[m] visse, não
quisestes.
De si, da gente e do mundo esquecida, Ela só viu as lágrimas em fio. Se contarão as horas e os momentos?
Feriu com duro ferro o brando peito, Que de uns e de outros olhos derivadas, Se acharão num momento muitos anos? Os olhos com que todo me roubastes
Banhando em sangue a força do tirano. Se acre[s]centaram em grande e largo rio. Se falarão co as aves e cos ventos? Foram causa do mal que vou passando;
E vós estais fingindo o não causastes.
Estranha ousadia ! estranho feito ! Ela [ou]viu as palavras magoadas Oh! bem-aventurados fingimentos,
Que, dando breve morte ao corpo humano, Que puderam tornar o fogo frio Que, nesta ausência, tão doces enganos Mas eu me vingarei. E sabeis quando?
Tenha sua memória larga vida! E dar descanso às almas condenadas. Sabeis fazer aos tristes pensamentos! Quando vos vir queixar porque deixastes
Ir-se a minha alma neles abrasando.

TEXTO 22 a 26 – Odes de Camões


22 - ODE 1
Que, aonde o braço irado Pois, logo, quem culpado O gesto bem talhado,
Aquele moço fero Dos Troianos passava arnês e escudo, Será, se, de pequeno, oferecido O airoso meneio e a postura,
Na peletrônia cova doutrinado Ali se viu passado Foi logo a seu cuidado, O rosto delicado,
Do Centauro severo, Daquele ferro agudo No berço instituído Que na vista afigura
Cujo peito esforçado Do Menino que em todos pode tudo. A não poder deixar de ser ferido? Que se ensina por arte a fermosura,
Com tutanos de tigres foi criado;
Ali se viu cativo Quem, logo fraco infante, Como pode deixar
Na água fatal, menino Da cativa gentil que serve e adora; De outro mais poderoso foi sujeito, De cativar quem tenha entendimento?
O lava a mãe, pressaga do futuro, Ali se viu que, vivo, Que pera cego amante Que, quem não penetrar
Pera que ferro fino Em vivo fogo mora, Foi de princípio feito, Um doce gesto, atento,
Não passe o peito duro Porque de seu senhor se vê senhora. Com lágrimas banhando o brando peito? Não lhe é nenhum louvor viver isento.
Que de si mesmo a si se tem por muro.
A carne lhe endurece, Já toma a branda lira Se agora foi ferido Que aqueles cujos peitos
Que ser não possa de armas ofendida. Na mão que a dura Pélias meneara; Da penetrante seta e força de erva, Ornou de altas ciências o destino.
Cega! que não conhece Ali canta e suspira E se Amor é servido Esses foram sujeitos
Que pode haver ferida Não como lhe ensinara Que sirva à linda serva, Ao cego e vão Menino,
Na alma, que menos dói perder a vida! O Velho, mas o Moço que o cegara. Pera que minha estrela me reserva? Arrebatados do furor divino.
Flagelo foi dos míseros Troianos, Verdes que, em vosso tempo, rebentou Nem por força de peso algum se oprime?
O Rei famoso hebreio, O fruto daquela Orta onde flore[s]cem
Que mais que todos soube, mais amo Não menos ensinado Plantas novas, que os doutos não A quem trarão na fralda [delicada]
Tanto, que a deus alheio Foi nas ervas e médica polícia conhecem. Rosas a roxa Clóris,
Falso sacrificou; Que destro e costumado Conchas a branda Dóris;
Se muito soube e teve, muito errou. No soberbo exercício da milícia: Olhai que, em vossos anos, Estas, flores do mar; da terra aquelas,
Assi[m] que as mãos que a tantos morte Ũa Orta produze várias ervas Argênteas, ruivas, brancas e amarelas,
E o grão Sábio que ensina, deram, Nos campos indianos, Com danças e coréias
Passeando, os segredos da Sofia Também a muitos vida dar puderam. As quais aquelas doutas e protervas De fermosas Nereidas e Napéias?
À ba[i]xa concubina Medéia e Circe nunca conheceram,
Do vil eunuco Hermia E não se desprezou, Posto que a lei da Mágica excederam. A quem farão os hinos, odes, cantos,
Aras ergueu que aos Deuses só devia. Aquele fero e indômito mancebo, Em Tebas Anfion,
Das artes que ensinou E vede carregado Em Lesbos Arion,
Aras ergue a quem ama Pera o lânguido corpo e intenso Febo; De anos, e trás a vária experiência, Senão a vós, por quem restituída
O Filósofo insigne namorado. Que, se o temido Heitor matar podia, Um velho que, ensinado Se vê da Poesia já perdida
Dói-se a perpétua fama Também chagas mortais curar sabia. Das gangéticas Musas na ciência A honra e glória igual,
E grita que culpado Podalíria su[b]til e arte silvestre, Senhor Dom Manuel de Portugal?
De lesa divindade é acusado. Tais artes aprendeu Vence o velho Quiron, de Aquiles mestre;
Do semiviro mestre e douto velho, Imitando os espritos já passados,
Já foge de onde habita; Onde tanto cre[s]ceu O qual está pedindo Gentis, altos, reais,
Já paga a culpa enorme com desterro. Em virtude, ciência e em conselho, Vosso favor e ajuda ao grão volume Honra beni[g]na dais
Mas, oh! grande desdita! Que Télefo, por ele vulnerado, Que, impresso à luz saindo, A meu tão ba[i]xo quão zeloso engenho.
Bem mostra tamanho erro Só dele pôde ser de[s]pois curado. Dará da Medicina um vivo lume, Por Mecenas a vós celebro e tenho;
Que doutos corações não são de ferro. E descobrir-nos-á segredos certos, E sacro o nome vosso
Pois vós, ó excelente A todos os Antigos encobertos. Farei, se algũa cousa em verso posso.
Antes na altiva mente, E ilustríssimo Conde, do Céu dado
No su[b]til sangue e engenho mais Pera fazer presente Assi[m] que não podeis O rudo canto meu, que ressu[s]cita
perfeito, De altos heróis o século passado; Negar, como vos pede, beni[g]na aura: As honras sepultadas,
Há mais conveniente Em quem bem trasladada está a memória Que, se muito valeis As palmas já passadas
E conforme sujeito De vossos ascendentes, honra e glória; Na sanguinosa guerra turca e maura, Dos belicosos nossos Lusitanos,
Onde se imprima o brando e doce afeito. Ajuda[i] quem ajuda contra a morte, Pera tesouro dos futuros anos,
Posto que o pensamento E sereis semelhante ao Grego forte. Convosco se defende
Ocupado tenhais na guerra infesta, Da lei letéia, à qual tudo se rende.
23 - ODE 2 Ou co sanguinolento 25 - ODE 3
Taprobano, ou Achém, que o mar molesta, Na vossa árvore, ornada de honra e glória.
Aquele único exemplo Ou co Cambaio, oculto imigo nosso, A quem darão de Pindo as moradoras, Achou tronco excelente
Que qualquer deles teme o nome vosso; Tão doutas como belas, A hera flore[s]cente
De fortaleza heróica e ousadia, Flore[s]centes capelas Pera a minha, até aqui, de ba[i]xa estima;
Que mereceu, no templo Favorecei a antiga De triunfante louro ou mirto verde, Na qual, pera trepar, se encosta e arrima;
Da Fama eterna, ter perpétuo dia, Ciência que já Aquiles estimou; Da gloriosa palma, que não perde E nela subireis
O grão filho de T[h]étis, que dez anos Olhai que vos obriga A presunção sublime, Tão alto, quanto aos ramos estendeis.
Rosto, por que endoudeço e desatino; E este que em mi[m] vejo
Sempre foram engenhos peregrinos Tu, que de fermosíssimas estrelas De que pantera, tigre, ou leopardo Engana coa esperança meu desejo.
Da Fortuna invejados; Coroas e rodeias As ásperas entranhas
Que, quanto levantados Teus cabelos de prata e faces belas, Não temeram o agudo e fero dardo, Oh! quanto melhor fora que dormissem
Por um braço nas asas são da Fama, E os campos fermoseias Quando pelas montanhas Um sono perenal
Tanto por outro a sorte, que os desama, Coas rosas que semeias, Mui remotas e estranhas Estes meus olhos tristes, e não vissem
Co peso e gravidade Coas boninas que gera Ligeira atravessavas, A causa de seu mal
Os oprime da vil necessidade. O teu celeste amor na Primavera: Tão fermosa que Amor de amor matavas? Fugir a tempo tal,
Mais que dantes proterva,
Mas altos corações, di[g]nos de império, Pois, Délia, dos teus céus, vendo estás Das castas virgens sempre os altos Mais cruel que ussa, mais fugaz que
Que vencem a Fortuna, quantos espritos, cerva!
Foram sempre coluna Furtos de puridades, Clara Lucina, ouviste,
Da ciência gentil: Octaviano, Suspiros, mágoas, ais, músicas, prantos, Renovando-lhe a força e os espritos Ai de mi[m], que me abraso em fogo vivo,
Cipião, Alexandre e Graciano, As conformes vontades Mas os daquele triste Com mil mortes ao lado,
Que vemos imortais; Ũas por saudades, Já nunca consentiste E, quando mouro mais, então mais vivo!
E vós, que nosso século dourais. Outras por crus indícios, Ouvi-los um momento, Porque assumi me há ordenado
Fazem das próprias vidas sacrifícios. Pera ser menos grave seu tormento. Meu infelice estado
Pois, logo, enquanto a cítara sonora Que, quando me convida
Se estimar pelo Mundo, Já veio Endimião por estes montes, Não fujas de mi[m], assi[m], nem assumi A morte, pera a morte tenha vida.
Com som douto e jucundo, O Céu, suspenso, olhando, te escondas Secreta Noite amiga, a que obedeço,
E enquanto produzir o Tejo e o Douro E teu nome, cos olhos feitos fontes, Dum tão fiel amante! Estas rosas (porquanto
Peitos de Marte e Febo crespo e louro. Em vão sempre chamando, Olha como suspiram estas ondas, Meus queixumes ouvistes) te ofereço,
Tereis glória imortal, Pedindo a suspirando, E como o velho Atlante [E] este fresco amaranto,
Senhor Dom Manuel de Portugal. Mercês à tua beldade, O seu colo arrogante Inda úmido do pranto
Que ache em ti fia hora piedade. Move piedosamente, E lágrimas da esposa
Ouvindo a minha voz fraca e doente. Do cioso Titão, branca e fermosa.”
26 - ODE 4 À LŨA Por ti feito pastor de branco gado
Detém um pouco, Musa, o largo pranto Nas selvas solitárias, Triste de mim, que me é pior queixar-me,
Que Amor te abre do peito; Só de seu pensamento acompanhado, Pois minhas queixas digo
E, vestida de rico e ledo manto, Conversa as alimárias, A quem já ergue a mão pera matar-me,
Demos honra e respeito De todo amor contrárias, Como a cruel imigo;
Àquela cujo objeito Mas não como ti duras, Mas eu meu Fado sigo,
Todo o Mundo alumia, Onde lamenta e chora desventuras. Que a isto me destina
Trocando a noute escura em claro dia. E só isto pretende e só me ensina.
Pera ti guarda o sítio fresco de Ílio
Ó Delia, que, apesar da névoa grossa, Suas sombras fermosas; Oh! quanto há já que o Céu me
Cos teus raios de prata Pera ti, no Erimanto, o lindo Epílio desengana!
A noite escura fazes que não possa As mais purpúreas rosas; E eu sempre porfio
Encontrar o que trata E as drogas cheirosas Cada vez mais na minha teima insana!
E o que na alma retrata Deste nosso Oriente Tendo livre alvedrio,
Amor, por teu divino Guarda a Felice Arábia mais contente. Não fugo o desvario;
TEXTO 27 a 28 – ELEGIAS DE CAMÕES
27 - Elegia 1 nem licença me dão para matar-me. Ó graves e insofríveis acidentes E o músico de Trácia, já seguro
As vezes cuido em mim se a novidade de Fortuna e de Amor que a penitência de perder sua Eurídice, tangendo
Aquela que de amor descomedido e estranheza das cousas, co a mudança tão grave dais aos peitos inocentes! me ajudará, ferindo o ar escuro.
pelo fermoso moço se perdeu se poderão mudar üa vontade. Não basta exprimentar-me a paciência, As namoradas sombras, revolvendo
que só por si de amores foi perdido, E com isto afiguro na lembrança com temores e falsas esperanças, memórias do passado, me ouvirão;
despois que a deusa em pedra a converteu a nova terra, o novo trato humano, sem que também me atente o mel de e com seu choro, o rio irá crescendo.
de seu humano gesto verdadeiro, a estrangeira gente e estranha usança. ausência? Em Salmoneu as penas faltarão,
a última vez só lhe concedeu. Subo-me ao monte que Hércules tebano Trazeis um brando animo em mudanças, e das filhas de Belo, juntamente,
assi meu mal do próprio ser primeiro do altíssimo Calpe dividiu, para que nunca possa ser mudado de lágrimas os vasos se encherão.
outra cousa nenha me consente dando caminho ao mar Mediterrano. de lágrimas, suspiros e lembranças. Que se o amor não se perde em vida
que este canto que escrevo derradeiro. Dali estou tenteando aonde viu E se estiver ao mal acostumado, ausente,
E se alga pouca vida, estando ausente, o pomar das Hespéridas, matando também no mal não consentis firmeza, menos se perderá por morte escura;
me deixa Amor, é porque o pensamento a serpe que a seu passo resistiu. para que nunca viva descansado. porque, enfim, a alma vive eternamente,
sinta a perda do bem de estar presente. Em outra parte estou afigurando Vivia eu sossegado na tristeza, e amor é afeito d’alma, e sempre dura.
Senhor, se vos espanta o sentimento o poderoso Anteu que, derrubado, e ali não me faltava um brando engano,
que tenho em tanto mal, para escrevê-lo mais força se lhe estava acrescentando; que tirasse os desejos da fraqueza. 28 - Elegia 2
furto este breve tempo a meu tormento. mas do hercúleo braço sojugado, E vendo-me enganado estar ufano,
Porque quem tem poder para sofrê-lo, no ar deixou a vida, não podendo deu à roda Fortuna, e deu comigo Aquele mover d’olhos excelente,
sem se acabar a vida co cuidado, da madre terra já ser ajudado. onde de novo choro o novo dano. aquele vivo espírito inflamado
também terá poder para dize-lo. Nem com isto, enfim, que estou dizendo, Já deve de bastar o que aqui digo do cristalino rosto transparente;
Nem eu escrevo mal tão costumado, nem com as armas tão continuadas, para dar a entender o mais que calo, aquele gesto imoto e repousado,
mas n’alma minha, triste e saudosa, de lembranças passadas me defendo. a quem já viu tão áspero perigo. que estando n’alma propriamente escrito,
a saudade escreve, e eu traslado. Todas as cousas vejo remudadas, E se nos bravos peitos faz abalo não pode ser em verso trasladado;
Ando gastando a vida trabalhosa, porque o tempo ligeiro não consente um peito magoado e descontente, aquele parecer que é infinito
espalhando a continua saudade que estejam de firmeza acompanhadas. que obriga a quem o ouve a consolá-lo; para se compreender de engenho humano,
ao longo de ua praia saudoso. Vi já que a Primavera, de contente, não quero mais senso que largamente, o qual ofendo em quanto tenho dito,
Vejo do mar a instabilidade, de mil cores alegres revestia Senhor, me mandeis novas dessa terra: me inflama o coração dum doce engano,
como com seu ruído impetuoso o monte, o rio, o campo alegremente. ao menos poderei viver contente. m’enleva e engrandece a fantasia,
retumba na maior concavidade. Vi já das altas aves a harmonia, Porque se o duro Fado me desterra, que não vi maior glória que meu dano.
E com sua branca escuma, furioso, que até aos montes duros convidava tanto tempo do bem que o fraco esprito Oh bem-aventurado seja o dia
na terra, a seu pesar, lhe está tomando a um modo suave de alegria. desampare a prisão onde se encerra, em que tomei tão doce pensamento,
lugar onde se estenda, cavernoso. Vi já que tudo, enfim, me contentava, ao som das negras águas de Cocito, que de todos os outros me desvia!
Ela, como mais fraca, lhe está dando e que, de muito cheio de firmeza, ao pé dos carregados arvoredos E bem-aventurado o sofrimento
as côncavas entranhas, onde esteja um mal por mil prazeres não trocava. cantarei o que na alma tenho escrito. que soube ser capaz de tanta pena,
suas salgadas ondas espalhando. Tal me tem a mudança e estranheza E, por entre esses hórridos penedos, vendo que o foi da causa o entendimento!
A todas estas cousas tenho enveja que, se vou pelos campos, a verdura, a quem negou Natura o claro dia, Faça-me, quem me mata, o mel que
tamanha, que não sei determinar-me, parece que se seca, de tristeza. entre tormentos ásperos e medos, ordena;
por mais determinado que me veja. Mas isto é já costume da ventura; com a trémula voz, cansada e fria, trate-me com enganos, desamores;
Se quero em tanto mal desesperar-me, que os olhos que vivem descontentes, celebrarei o gesto claro e puro que então me salva, quando me condena.
não posso, porque Amor e Saudade, descontente o prazer se lhe afigura. que nunca perderei da fantasia. E se de tão suaves disfavores
penando vive a alma consumida, E se em querer-lhe tanto ponho tacha, quanto eu sou menos para merecer-vos, Se meus baixos espritos de pequenos,
oh! que doce penar! que doces dores! mostrando refrear o pensamento, que quero eu mais que ter-vos por Senhora ainda não merecem seu tormento,
E se a condição endurecida oh! que doce fingir! que doce cacha! ? que quero eu mais, que o mais não seja
também me nega a morte por meu dano, Assi que ponho já no sofrimento Se procede este bem de conhecer-vos menos?
oh! que doce morrer! que doce vida! a parte principal de minha glória, e consiste o vencerem ser vencido, A causa, enfi, m’esforça o sofrimento,
E se me mostra um gesto brando e tomando por milhor todo o tormento. que quero eu mais, Senhora, que querer- porque, apesar do mal, que me resiste,
humano, Se sinto tanto bem só na memória vos? de todos os trabalhos me contento;
como que de meu mal culpada se acha, de vos ver, linda Dama, vencedora, Se em meu proveito faz qualquer partido, que a razão faz a pena alegre ou triste.
oh! que doce mentir! que doce engano! que quero eu mais que ser vossa a vitória? só; na vista duns olhos tão serenos,
Se tanto vossa vista mais namora que quero eu mais ganhar que ser perdido?

Diz logo o Mordomo, ou dono da casa Senhor! Mordomo Chichelo de Judeu, assi como foste
Se ela(4) fora outra peça de mais valia, tu pantufo, que te custava ser ũa bolsa com
Eis, Senhores, o Autor, por me honrar Mordomo botaras a consciência pela porta fora, pera um par de reales(6), que são bons pera
nesta festival noite, me quis representar ũa São já chegadas as figuras? a meteres em tua casa. escudeiro hipócrita, que são muito e valem
farsa; e diz que por se não encontrar com pouco?
outras já feitas, buscou uns novos Moço Moço
fundamentos para a quem tiver um juízo Chegadas são elas quási ao fim de sua Oh! se o ela fora, mais consciência seria Mordomo
assi arrazoado satisfazer. E diz que quem vida. torná-la a seu dono, quem a havia mister Moço, que estás fazendo, que não vás?
se dela não contentar, querendo outros pera si.
novos acontecimentos, que se vá aos Mordomo Moço
soalheiros dos Mordomos da Castanheira, Como assi? Mordomo Senhor, estou tardando, e porém estou
ou de Alhos Vedros e Barreiro, ou Ora vem cá. Vai a casa de Martim cuidando que, se agora fora aquele tempo
converse na Rua Nova em casa do Chinchorro, e dize-lhe que temos cá auto em que corriam as moedas dos
boticário, e não lhe faltará que conte. Moço
Porque foi a gente tanta, que não ficou com grande fogueira; que se venha Sua sambarcos(7), sempre deste tiraria pera
Porém diz o Autor que usou nesta obra da Mercê pera cá, e traga consigo o Senhor ũas palmilhas. Mas já que assi é, diga-me
maneira de Isopete(1). Ora quanto à obra, capa com frisa, nem talão de sapato, que
não saísse fora do couce. Ora vieram uns Romão d’Alvarenga; pera que sobre o V. M. que farei deste?
se não parecer bem a todos, o Autor diz cantochão botemos nosso contraponto de
que entende dela menos que todos os que embuçadetes, e quiseram entrar por força;
ei-lo arrancamento(2) na mão: deram ũa zombaria. Ouves, Lançarote? Ir-lhe-ás Mordomo
lha puderem emendar. Todavia, isto é pera abrir a porta do quintal, porque mudemos Oh! fideputa bargante! esperai, que
praguentos, aos quais diz que responde pedrada na cabeça ao Anjo, e rasgaram ũa
meia calça ao Ermitão; e agora diz o Anjo o vinte(5) aos que cuidam de entrar por est’outro vo-lo dirá.
com um dito de um filósofo, que diz: Vós força.
outros estudastes para praguejar, e eu que não há-de entrar, até lhe não darem ũa
pera desprezar praguentos. E contudo cabeça nova, nem o Ermitão até lhe não Faz que lhe atira com outro pantufo; vai-
porem ũa estopada(3) na calça. Este Indo-se o moço, diz se o Moço e diz o
quero saber da farsa, em que ponto vai.
Moço! Lançarote! pantufo se perdeu ali; mande-o V. M.
domingo apregoar nos púlpitos, que não Moço Mordomo
quero nada do alheio. Não há mais mau conselho, que ter um
Moço
vilão destes mimoso, porque logo passam Ora pois, Senhor, o auto que tal dizem que Parece-me, Senhor, que antes que clérigo, e os clérigos sempre chamam aos
o pé além da mão, zombam assi da é? Porque um auto enfadonho trás mais amanheça começarão. filhos sobrinhos; e daqui me ficou a mi ser
gravidade de seu amo. Mas, tornando ao sono consigo que ũa pregação comprida. filho de meu tio.
que importa: Vossas Mercês é necessário Ambrósio
que se cheguem uns pera os outros, pera Mordomo Oh! que salgado moço! Zombas de mi? Martim
darem lugar aos outros senhores que hão- Senhor, por bom mo venderam e eu o Vem cá. Donde és natural? Ora te digo que és gracioso. Senhor,
de vir; que de outra maneira, se todo o tomei à cala de sua boa fama. E se tal é, eu donde houvestes este?
corro(8) se há-de gastar em palanques, acho que, por outra parte, não há tal vida Moço
será bom mandar fazer outro Alvalade; e como ouvir um vilão que arranca a fala da Donde quer que me acho. Mordomo
mais, que me hão-de fazer mercê, que se garganta, mais sem sabor que um pera- Aqui me veio às mãos sem piós(16) nem
hão-de desembuçar, porque eu não sei pão(12), e ũa donzela que vem mais podre nada; e eu por gracioso o tomei; e mais
quem me quer bem, nem quem me quer Ambrósio
de amor, falando como apóstolo(13), mais Pergunto-te onde nasceste. tem outra cousa, que ũa trova fá-la tão
mal. Este só desgosto tem um auto, que é piedosa que ũa lamentação. bem como vós, ou como eu, ou como o
como ofício de alcaide: ou haveis deixar Chiado(17).
entrar a todos, ou vos hão-de ter por vilão Moço
Martim Nas mãos das parteiras.
ruim. Pera estes tais é grande peça rapaz Ambrósio
travesso com molho de junco, por que não Não! Quant’a disso, nós havemos-lhe de
Entra Martim Chinchorro, falando com o andem mais ao coscorrão(14), mais roucos Ambrósia
Em que terra? ver fazer algũa cousa, enquanto se vestem
escudeiro Ambrósio, e diz que ũa cigarra, trasendo de si as figuras. Ainda que, pera que é mais
enfadamento. auto que vermos a este?
Martim Moço
Entre V. M. Moço Toda a terra é ũa; e mais, eu nasci em casa
assobradada, varrida daquela hora, que Mordomo
Olá, Senhoras! Pedem as figuras alfinetes Vem cá, moço: dize aquela trova que
Ambrósio pera toucarem um escudeiro. Ora sus: há i não havia palmo de terra nela.
fizeste à moça Briolanja, por amor de mi.
Dias há, Senhor, que ando de quebras com quem dê mais? que ainda vos veja todas a
cortesias; e por isso vou diante. Beijo as mim às rebatinhas. Ora sus! venham de Martim
Bem varrido de vergonha que me tu Moço
mãos a V. M. A verdade é esta: passear mano em mano, ou de mana em mana(15). Senhor, si, dírei; mas aquela trova não é
em casa juncada(9), fogueira com pareces. Dize: cujo filho és? É pera ver
com que desbarate respondes. senão pera quem a entender.
castanhas, mesa posta com alcatifa e Mordomo
cartas; além disso, auto pera esgaravatar Moço, fala bem ensinado!
os dentes(10). Esta é a vida de que se há- Moço Martim
de fazer consciência(11). A falar verdade, parece-me a mim que eu Como! Tão escura(18) é ela?
Moço
Senhor, não faz ao caso; que os erros por sou filho de um meu tio.
Mordomo Moço
amores têm privilégio de moedeiro. Senhor, assi a sei eu escrever e a fiz na
Senhor, o descanso dizem lá que se há-de Martim
ter enquanto homem puder, porque os Vem cá. De teu tio?! E isso como? memória, porque eu não sei escrever
Ambrósio senão com carvão; e porém diz assi:
trabalhos, sem os chamarem, de seu se Ó rapaz, não me entendes? Pergunto-te se
vêm por seu pé, que seu nome é. tardarão muito por entrar. Moço
Como? Isto, Senhor, é adevinhação que Per amor de vós, Briolanja,
Martim Vossas Mercês não entendem. Meu pai era Ando eu morto,
Moço Pesar de meu avô torto.
Martim toda a outra mais cabedela, não se podem vem mais amarlotado(25) dos encontros, covão(29), cantando: Quem os amores tem
Oh! como é galante! Que descuido(19) tão comer senão com cominhos; e mais, que um capuz roxo de piloto que sai em em Sintra; e despois de cantarem farão ũa
gracioso! Mas vem cá: que culpa te tem Senhores, minha dama era tendeira; e este terra e o tira de arca de cedro. dança de espadas, cousa muito pera ver.
teu avô nos desfavores que te tua dama é o verdadeiro entendimento. Entra mais El-Rei D. Sancho, bailando os
dá? Martim machatins(30), e entra logo Caterina
Martim Senhor, ele parece que aprende a Real(31) com uns poucos de parvos nũa
Moço E aquela regra que diz: Meu bem anda cirurgião. joeira; e semeá-los-á pela casa, de que
Pois, Senhor, se eu houve de pesar de sem focinhos, me dá tu a entender, que ela nascerá muito mantimento ao riso. E nisto
alguém(20), não pesarei eu antes dos meus não dá nada de si. Ambrósio fenecerá o auto, com música de chocalho
parentes, que dos alheios? Mais parece ourinol capado, que anda de e buzinas, que Cupido vem dar a ũa
Moço amores com a menina dos olhos alfèoleira a quem quer bem; e ir-se-ão
Mordomo Nunca Vossas Mercês ouviram dizer: Meu verdes(26). Vossas Mercês cada um pera suas
Pois ouçam Vossas Mercês a volta(21), bem e meu mal/ lutaram um dia;/ meu pousadas, ou consoarão(32) cá connosco
que é mais cheia de gavetas, que trombeta bem era tal,/ que meu mal o vencia? Pois disso que aí houver. Ora pois ficareis in
Mordomo vanum laboraverunt(33), porque atégora
de Sereníssimo de La Valla. desta luta foi tamanha a queda, que meu Enfim, parece figura de auto, em verdade.
bem deu entre ũas pedras, que quebrou os zombei de vós, por me forrar do erro(34)
focinhos; e por ficarem tão esfarrapados, da representação como quem diz; digo-te,
Moço Entra o representador. antes que mo digas.
A volta, Senhores, é muito funda(22); e porque lhe não podiam botar pedaço, por
parece-me, Senhores, que nem de conselho dos físicos lhos cortaram por lhe
neles não saltarem herpes, e daqui ficou: Representadór Ambrósio
mergulho a entenderão. E por isso
mandem assoar os engenhos, e metam Meu bem anda sem focinhos, como diz o Ora vos digo, Senhores, que se as figuras
mais ũa sardinha no entendimento; e pode texto. É lei de direito, assaz verdadeira, são todas tais, que acertariam em errar os
ser que com esta servilha(23) lhe calçará Julgar por si mesmos aquilo que vêem; ditos; ainda que me parece que este o não
melhor; e todavia palra assi: Ambrósio fez, senão a ser mais galante. Mas se assi
Tu fazes já melhores argumentos, que Pelo que, se cuidam que zombo de é, ela é a milhor invenção que eu vi;
moços do estudo por dia de S. alguém, porque já agora representações, todas é
Vossos olhos tão daninhos Eu cuido que zombam da mesma maneira. darem por praguentos; e são tão certas,
Me tratam de feição, Nicolau(24).
que é milhor errá-las que acertá-las(35).
Que não há em meu coração
Em que atem dous réis de cominhos. Martim E assi a qualquer parece que está mais
Senhor, aquilo tudo é bom engenho: este dobrado(27), sem nenhum conhecer seu Mordomo
Meu bem anda sem focinhos moço é natural pera lógico. próprio engano, por grande que seja. Ora, Parece-me que entram as figuras de
Por vós morto, Senhores, a mi me esquece o dito todo de siso(36). Vejamos se são tão galantes na
Pesar de meu avô torto. ponto em claro(28); mas não sou de prática como nos vestidos.
Moço culpar, porque não há mais que três dias
Quê, senhor? Natural pera lógea?! Si, mas que mo deram. Mas em breves palavras
Martim não tão fria como Vossas Mercês. Entra El-Rei Seleuco, com a Rainha
direi a Vossas Mercês a suma da obra: ela Estratónica.
Ora bem: que têm de ver os cominhos é toda de rir, do cabo até a ponta. Entrarão
com o teu coração? Mordomo logo primeiramente quinze donzelas que
Parece-me, Senhor, que entra a primeira Rei
vão fugidas de casa de seus pais, e vão Senhora, dês que a ventura
Moço figura. Moço, mete-te aqui por baixo desta com cabazes apanhar azeitona; e trás elas
Pois, Senhores, coração, bofes, baço e mesa, e ouçamos este representador, que Me quis dar-vos por mulher;
vêm logo oito mundanos, metidos em um
Me sinto emmeninecer, Novidades lhe chamais?! Leocádio, se és avisado Que se haja de sentir,
Porque em vossa fermosura Folgo, Senhora, que achais E não te falta saber, E sem dizer nem ouvir.
Perde a velhice seu ser. Na velhice novidades. Saber-me-ás dar a entender: Bem-aventurada a pena
Um homem velho, cansado, Quem ama desesperado, Que se pode descobrir!
Não tem força nem vigor, Rainha Que fim espera de haver?
Pera em si sentir amor, Senhor, dias há que sento Oh! caso grande e medonho!
Se não é que estou mudado Em o príncipe Antioco Pajem Oh! duro tormento fero!
Com ser vosso, noutra cor. Certo descontentamento: Senhor, não. Verdade é isto que eu quero?
Dera algũa cousa a troco Mas porém por que rezão Não é verdade, mas sonho
Muito grande dita tem Por saber seu sentimento(36). Lhe avém sabê-lo, ou de quê? De que acordar não espero.
A mulher que é fermosa. Quero-me chegar a El-Rei
Vejo-lhe amarelo o rosto, Príncipe Meu pai, que já me está vendo.
Rainha Ou de triste ou de doente; Pergunto-te a conclusão; Mas onde vou? Não me entendo.
Senhor, grande; mas, porém, Ou ele anda mal disposto, Não me perguntes porquê. Com que olhos olharei
Se a tal é virtuosa, Ou lá tem certo desgosto Um pai a quem tanto ofendo?
Quer-lhe a Ventura mor bem. Que o não deixa ser contente, Porque é minha pena tal,
Mande, Senhor, Vossa Alteza E de tão estranho ser, Que novo modo de antolhos!
Rei A chamá-lo por alguém; Que me hei-de deixar morrer; Porque neste atrevimento
Si, mas porém nunca vemos Saberemos que mal tem. E por não cuidar no mal, Devera meu sentimento
A Natureza esmerar Se é doença de tristeza, O não ouso de dizer. Pera ele não ter olhos,
Adonde haja que taxar, De que nasce, ou de que vem. Que maneira de tormento Nem pera ela pensamento(39).
Que quando ela faz extremos, Tão estranho e evidente,
Em tudo quer-se extremar. Rei Que nem cuidar se consente! Chega aonde está El-Rei.
Certo que eu me maravilho. Porque mesmo pensamento
Eu falo como quem sente Do que vos ouço dizer. Há medo do mal que sente. Rei
Em vós esta calidade, Que mal pode nele haver? Filho, como andais assi?
Pelo que vejo presente; Ide dizer a meu filho Pajem Que tanto desgosto tomo
E se me esta mostra mente, Que me venha logo ver. Não entendo a Vossa Alteza. De vos ver como vos vi!
Mente-me a mesma Verdade.
Ũa só tristeza sento Rainha Príncipe Príncipe
Que não tem a meninice, Se curar não se procura Assi importa à minha dor. Não sei eu tanto de mi,
Que no mor contentamento Ũa cousa destas tais, Que possa saber o como.
O trabalho da velhice Vem despois a crecer mais. Pajem
Me embaraça o sentimento. Quando já se não acha cura, E por que rezão, Senhor? Dias há já, Senhor, que ando
Toda a cura é por demais(38). Mal disposto, sem saber
Rainha Príncipe Este mal que possa ser;
Senhor, novidades tais Entra o Príncipe Antíoco, com seu pajem Pera que seja a tristeza Que se nele estou cuidando,
Far-me-ão crer, de verdade... por nome Leocádio. Castigo do meu temor. Quase me vejo morrer.
Porque ordena
Rei Príncipe O Amor, que me condena, Rei
Pois, filho, será rezão Porque de meros dulçores Pois sou vosso há tantos anos, Moça
Que meus físicos nos vejam. Adoecem. Mana, tirai os antolhos, Falais de arte; eu vos prometo
Então logo lhe parecem E vereis meus tristes danos. Que a reposta vem à vela(48).
Príncipe Aos outros que são mamados;
Os físicos, Senhor, não; E os que são mais privados, Moça Porteiro
Que os males que em mi estão, Sobre eles estremecem. Não tenhais esses enganos. Isso é olho de panela(49).
São curas que me sobejam(40).
Certo (e assi Deus me ajude!) Porteiro Moça
Rainha Que são muito graciosos, Nem vós tenhais esses olhos; Quanto há já que sois discreto?
Deite-se; que, na verdade, Porque de meros viçosos, Que de vossos olhos vem
Um corpo, deitado e manso, Não podem com a saúde. Esta minha pena fera. Porteiro
Descansa à sua vontade. Mas deixá-los, Quanto há já que vós sois bela?
Porque eles darão nos valos(43), Moça
Príncipe Donde mais não se erguerão, De meus olhos?!
Inda que lhe dêm a mão Moça
Senhora, esta enfermidade Dais-me logo a entender
Não se cura com descanso. Os seus privados vassalos.
Porteiro Que eu sou feia, a meu ver.
Assi era.
Rainha Entra um porteiro da cana(44), e bate Moça que tais olhos tem,
primeiro e diz Porteiro
Todavia, bom será Nenhuns olhos ver devera. E isso porque o entendeis?
Que lhe façam ũa cama.
Porteiro Moça
Trás, trás, trás! Moça
Príncipe E porquê? Porquê? Porque me dizeis
Um coxim abastará, Que só de meu parecer
(Que assi não descansará Moça Porteiro Vos procede o que sabeis.
O repouso de quem ama). Jesu! Quem está aí? Porque cegais
A quantos olhos olhais, Porteiro
Rei Porteiro Posto que por vós padecem. É verdade.
Vamos, filho, pera dentro, Já vós, mana, éreis mamada(45); Olhos que tão bem parecem,
Enquanto a cama se faz. Pera vos levar furtada Porque não nos castigais?
Nunca tal ensejo vi. Moça
Repousai como capaz; Pois bem sento
Que a mi me dá cá no centro E vós estais descuidada! Moço Que o vosso saber é vento,
A pena que assi vos traz(41). Deus dê siso, pois de vós Fica a cousa declarada,
Moça Tirou o que aos outros deu. Meu parecer não ser nada.
Vão-se, e vem ũa moça a fazer a cama, e E meus descuidos que fazem?
diz Porteiro Porteiro
Porteiro Desatai-me lá esses nós(46). Olhai aquele argumento!
Moça Vossos descuidos, cadela? Que mais siso quero eu, Além de bela, avisada!
Mimos de grandes Senhores Ah! minha alma! Sois tão bela, Que não ter siso(47) por vós? Oh! nem tanto, nem tão pouco!
E suas extremidades Que esses descuidos me trazem Vede vós o que falais.
Me hão-de matar de amores(42), Dous mil cuidados à vela.
Moça Porteiro Moça Assi se deita, como que repousa, e fala
Cego no saber andais. Não, Senhora? Faço extremos. I-vos asinha, que vem dizendo assi:
O Príncipe a se deitar.
Porteiro Moça Príncipe
No siso, mas não tão louco Passeai ora, veremos Porteiro Senhora, qual desatino
Como vós, mana, cuidais. Se tendes tão bons passeios. Nunca ũa pessoa tem Me trouxe a tanta tristura?
Ũa hora pera falar! Foi, Senhora, por ventura,
Ora dizei, duna(50) má: Porteiro A força do meu destino,
Que não amais quem vos ama? Tudo, Senhora, faremos. Entra o Príncipe com o seu pajem Como vossa fermosura.
Leocádio, e diz Bem conheço que não posso
Moça Moça Ter tão alto pensamento;
Ouvistes vós cantar já Virai ora a essoutra mão. Príncipe Mas disto só me contento,
Velho malo, em minha cama? Seja a morte apercebida, Que se paga com ser vosso
Já me entendereis. Porque já o Amor ordena O mor mal de meu tormento.
Porteiro
Esta disposição, vede-a, A dar a meu mal saída,
Porteiro Que tenho gentil feição. Porque o fim da minha vida Entram os músicos, e diz Alexandre da
Ah, Ah... O seja da minha pena. Fonseca, um deles:
Senhora, estais enganada, Moça
Que com ũa capa e espada, Tendes vós mui boa rédea. Não tarde, pera tomar Alexandre
E com este capuz fora... Sofreis ancas? Vingança de meu querer, Senhor, de que se acha mal
Pois não se pode dizer O Príncipe, ou que mal sente?
Moça Porteiro Que não tem já que esperar,
Ora bem: tirai-o ora, Isso não. Nem com que satisfazer. Pajem
E fazei ũa levada(51). Os físicos vêm e vão, Senhor, sei que está doente;
Sem saberem minhas mágoas; Mas sua doença é tal,
Moça Nem o pulso me acharão; Que entender se não consente.
Porteiro Por certo que tendes graça
Não: se me eu hoje alvoroço, E se o querem ver nas águas(52), Os físicos vêm e vão,
Em tudo quanto fizerdes; As dos olhos lho dirão. Uns e outros a meúde,
Achar-me-eis de outra feição. Fazei mais o que souberdes. Sem o poderem dar são.
Se com sangrias também Quanto mais cura lhe dão,
Aqui tira o capuz e diz Porteiro Então tem menos saúde.
Procuram ver-me curado,
Não sei cousa que não faça, O temor de meu cuidado
Porteiro Senhora, por me quererdes. O mais do sangue me tem O Pai anda em sacrifícios
Tenho má disposição? Nas veias todo coalhado. Aos deuses, que lhe dêm
Estas obras são de moço, Moça Quero-me aqui encostar, A saúde que convém,
Se as mostras de velho são. Tendes vós muito bom ar. Que já o esprito me cai. Dizendo que por seus vícios
Leocádio, vai-me chamar O mal a seu filho vem.
Moça Porteiro Os músicos de meu Pai; Eu suspeito que isto são
Tendes mui gentis meneios. Mais que isto faz quem quer bem. Folgarei de ouvir cantar. Alguns novos amorinhos,
Que terá no coração.
Alexandre Pajem Que lhe cortou o baraço. Príncipe
Amores! com quem serão, Hemo-nos, Senhores, de ir, Tá, não vá mais por diante
Que lha não dêm de focinhos? Porque nos está esperando. Alexandre A zombaria, que é má.
Não me parece essa boa. Cantai qualquer delas já,
Porteiro Porteiro Que esse porteiro é galante,
Senhores, que lhe parece Pois eu também hei-de ir Porteiro Ninguém o contentará(56).
Da doença de Antioco...? Que não me posso espedir Haja eu perdão...
Donde vejo estar cantando. Aqui cantam, e em acabando, diz o
Alexandre [Alexandre]
Diga-lha quem lha conhece. Príncipe Porque não na entenderão. Pajem
Cantai, por amor de mi, Parece que adormeceu.
Pajem Algũa cantiga triste; [Porteiro]
Que toma morrer a troco Que todo meu mal consiste Entender! Bofá, que é boa! Porteiro
De calar o que padece. Na tristeza em que me vi. Não lhe caís na feição?(54) Pois será bom que nos vamos.

Porteiro Porteiro Alexandre Alexandre


Isso é estar emperrado Mande-lhe cantar um chiste. Dizei ora outra milhor, Senhor, quer que nos vejamos?
Na doença, que é pior. Com que nos atarraqueis.
Têm-no os físicos curado? Alexandre Porteiro
Chiste não, que é desonesto, Porteiro Senhor, vir-me-á do Céu
Alexandre E não tem esses extremos Ora esperai e ouvireis. Releva-me que o façamos.
Oh! que de mal del amor Outro canto mais modesto; Se a esta não dais louvor,
No há, Señor, sanador. Porém não sei que diremos. Quero que me degoleis. Entra a Rainha com ũa sua criada por
nome Frolalta, e diz
Porteiro Pajem Cantiga
Falais como exprimentado, Gonleão(53) o dirá presto. Com vossos olhos gonçalves, Rainha
Que eu cuido que esta fadiga, Senhora, cativo tendes Frolalta, como ficava
Que o faz que desespere; Porteiro Este meu coração Mendes. Antioco em te tu vindo?
Y por más tormento quiere Dá licença Vossa Alteza
Que se sienta, y no se diga. Que diga minha tenção? Alexandre Frolalta
Essa parece mui taibo(55), Ficava-se despedindo
Alexandre Príncipe Porque mostra bom indício. Da vida que então levava,
Pois, Senhor meu, isso assele, Dizei: seja em cantochão! E assi seus dias comprindo.
Porque a pena que sabeis, Porteiro
Que eu cuido que está nele, Porteiro Vós cuidareis que eu que raivo. Rainha
Dar-lhe-á penas cruéis, Pois crede que é sutileza, Oh! grave caso de amor!
Pues no hay quien las consuele. Que os Anjos a comerão. Desesperada afeição!
Alexandre
Digam esta: Todavia tem mau saibo. Oh! amor sem redenção,
Porteiro Enforquei minha esperança, Ora mal lhe corre o ofício. Que ali te fazes maior
Folgo, porque me entendeis. E o amor foi tão madraço,
Onde tens menos rezão! Não consente o coração. Está no contentamento. Llamar quiero este asnejón;
No mais alto e fundo pego Não sei se o vá ver agora, Mas aun debe de dormir,
Ali tens maior porfia. Rainha Se será tempo conforme, Según que es dormilón.
Rezão de ti não se fia. Frolalta, pois que és discreta, Ou se imos a desora. Ó Sancho! ó Sancho!
Quem a ti te chamou cego, Nada te posso encobrir;
Mui bem soube o que dizia. Porque, se queres sentir, Frolalta Sancho
Por ventura ia chorando? A ũa mulher discreta Despois iremos, Senhora, Ah, Señor!
Tudo se há-de descobrir. Que agora dizem que dorme.
Frolalta O dia que entrei aqui, Físico
Chorando ia e chamando Que a Seleuco recebi, Entra o Físico a tomar-lhe o pulso, e, Ea, aun estás dormiendo?
Ao Amor «Amor cruel»; Logo nesse mesmo dia tomando-o, diz
E em, Senhora, se deitando, No Príncipe, filho, vi Sancho
Lhe caiu este papel. Os olhos com que me via. Físico Estoyme, Señor, vestiendo.
Su madrasta oyó nombrar,
Rainha Este princípio sofri-lho, Y ele pulso se le alteró. Físico
Que papel? Pera ver se se mudava; Esto no entiendo yo, Pues, vellaco y sin sabor,
Antes mais se acrecentava. Porque para le alterar No me respondes dormiendo?
Frolalta Eu amava-o como filho, El corazón le obligó. Vestios presto, ladrón!
Este, Senhora. E ele de outr’arte me amava. Pues que el corazón se altere, Oh que mozo, y que ventura!
Agora vejo-o no fim Es porque en un momento
Rainha Por se me não declarar. Algun nuevo vencimiento
E pois que já a isso vim, Sancho
Amostra, que quero lê-lo. De afición terrible le hiere, (Mas que amo y que cabrón!)
Agora acabo de crê-lo; A morte que o levar, Que causa tal movimiento.
Me leve também a mim. Embíeme acá ropón,
Que ao que mostra por fora Que no hallo mi vestidura.
Aqui lhe lançou o selo(57). Pues que afición cabe así
Porque já que minha sorte Con madrasta? Digo yo,
Foi tão crua e desabrida, Físico
Aqui lê o papel, e diz Dos razones hay aqui: Que embie el ropón acá?!
Que me não quer dar saída, La una dice que sí,
Sejamos juntos na morte, Parece que os desmandais.
Rainha La otra dice que no.
Pois o não somos na vida. Empero yo determino
Oh! estranha pena fera! Oh! quem me mandou casar, Sancho
Desditosa vida cara! De exprimentar la verdad
Pera ver tal crueldade! Y hacer una habilidad, Que vaya, Señor? Ah, ah!
Oh! quem nunca cá viera, Ninguém venda a liberdade,
E com seu Pai não casara, Que declare es agua o vino
Pois não pode resgatar Esta su enfermedad. Entra o Moço embrulhado em ũa manta
Ou, em casando, morrera! Onde não tem a vontade.
Porque toda esta mañana Que buenos dias hayais.
Frolalta Que não há mor desvario,
Ainda que eu peca sam, Tengo estudiado su mal,
Que o forçado casamento Sin ver causa efectual Físico
Senhora, tudo bem vejo. Por alcançar alto assento;
Atente, que, na eleição, De su dolencia inhumana, Dí como vienes assí
Que, enfim, todo o senhorio Ni otra de su metal(58). Con la manta, y para qué?
O que lhe pede o desejo
Sancho Para que le dé consejo, Empero, Señor, haré Ou este sonho me engana?
Yo, Señor, se lo diré: Cuando doliente estuviere, La peor cara que pudiere.
Por venir presto vestí Digo: coma, si pudiere, Pois como, sonho, também
Lo que más presto me hallé. Y beba buen vino anejo. Físico Me queres vir magoar?
Ea, bovo, vé corriendo, E pera me atormentar
Porque viendo que él me llama, Porque este es el licor Y ensilla la mula ayna. Mostras-me a sombra do bem
Dormiendo yo sin afán, Que dá fuerza y es sabroso; Pera assi mais me enganar?
Salté presto de la cama, Que segun dicen, Señor, Sancho Assi que, com quanto canso,
Que parezco un gavilán, Vinum laetificat cor Véngala ensillar mejor. Já não posso achar atalho,
Hermoso como una dama. Hominis(59), y le es provechoso. Pois que o sono quieto e manso,
Físico Que os outros têm por descanso,
Físico Físico Oh vellaco y sin sabor! Me vem a mi por trabalho.
Mas és tu bovedad tanta, Ya sabes la medicina,
Que vienes desa fación? Que Avicena(60) nos refiere. Sancho Pois há i tantos enganos
Yo por cierto no lo entiendo. Que condenam minha sorte,
Sancho Sancho Pero una melecina Não o tenho já por forte,
De mí vestido se espanta? Pues, Señor, porque es divina. Le hé de pedir, Dios queriendo, Se à volta de tantos danos
De noche sirve de manta, Pero El-Rey que le quiere, (Porque ando atribulado Viesse também a morte.
Y de dia de ropón. Que manda, o que determina? Y no sé parte de mi
Con este nuevo cuidado) Aqui entra el-Rei com o Físico, e diz
Físico Físico Para un sayo esfarrapado,
Embióme El-Rey á llamar El Príncipe está doliente. Que me dicen hay allí. Rei
Otra vez, Andai e vede se achais
Sancho Físico O rasto deste segredo,
Sancho Oh! mesquiño! Y que mal ha? Ora ensilla; y nunca viva, Que me dizem que alcançais;
Y a mi? Pues sufro tus desatinos. Ainda que tenho medo
Físico Que lhe seja por demais.
Físico Y a tí, necio, que te vá? Sancho
Y a tí?! Señor, pasión no reciva: Físico
Sancho Ya cavalga Calaynos Plega à Dios que aquesta sea
Sancho Oh Señor, que es mi pariente! A la sombra de una oliva(61). Para salud y remedio
Y él qué presta allá sin mí? Desta dolencia tan fea.
Aqui sai bulindo com a almofada, e Yo buscaré todo el medio,
Físico Que presto sano se vea.
Físico Gracioso el bovo está. acorda o Príncipe, e diz
Qué puedes tu aprovechar? Y pues díme, por tu fé:
Llorarás si se muriere? Príncipe Aqui lhe toma o Físico o pulso
Sancho Oh! bela vista e humana,
Yo se lo diré de aqui; Sancho Por quem tanto mal sustento! Afloxen, Señor, sus ais.
Si por la ventura quiere [No, Señor], no lloraré; Oh! Princesa soberana! Como se halla en su penar?
Como? nos braços vos tenho,
Príncipe Rainha Físico Rei
Como me acho, perguntais? Não deve desesperar, Forçado será que muera, Que me dizeis?
Como se pode achar Que enfim, se bem atentar, Porque no muera mi honor.
Quem sempre se perde mais? Pera tudo o tempo dá Físico
Tempo pera se curar. Rei La verdad.
Físico Pois como! A um só herdeiro
(La respuesta abre el camiño). Príncipe Deste reino não dareis Rei
Imagina de contino? Que cura poderá ter Vossa mulher, pois podeis, Sem dúvida, tal sentiste?
Quem tem a cura, Senhora, Que tudo faz o dinheiro?!
Príncipe No impossível haver? Pois este não o enjeiteis; Físico
Não tenho outro mantimento, Dai-lha, porque eu espero Sin duda, sin falsedad.
Nem outro contentamento, Rainha De vos dar dinheiro e honra, Pues, Señor, ahora tomad
Senão o em que imagino. Ficai-vos, Senhor, embora, Quanto eu pera ele quero. Los consejos que me distes.
Que vos não sei responder.
Aqui entra a Rainha, e diz Físico Rei
Vai-se a Rainha, e diz No tira el mucho dinero Certamente, que eu o via
Rainha La mancha de la deshonra. Em tudo quanto falava.
Como se sente, Senhor? Rei Como o vistes? Por que via?
Tem a febre mais pequena? Neste mal, que não compreendo, Rei
Que meio dais de conselho? Ora bem pouco defeito Físico
Príncipe É pequice conhecida, Nel pulso, que se alterava,
Responda-lhe minha pena. Físico Quando deixa de ser feito, Si la via, o si la oía.
Señor, nada entiendo dello; Porque com ele dais vida
Y supuesto que lo entiendo, A quem vos dará proveito.
Físico Rei
(Conocido es su dolor... Yo quisiera no entendello. Que maneira há-de haver?
Ora sea en hora buena! Físico Que eu certo me maravilho,
Rei Cuán facilmente aporfia Possa mais o amor de filho,
Porquê? Quién en tal nunca se vió! Do que pode o da mulher!
Tomada está lá tristeza Del consejo que me dió,
Á las manos, que sentió. Vuestra Alteza que haria
Usaré de sutileza). Físico Si agora fuese yo? Finalmente hei-lha de dar,
Porque tengo entendido Que a ambos conheço o centro.
Diz contra el-Rei Lo más malo de entender, Quero-o ir alevantar,
Para lo que puede ser, Rei E iremos pera dentro
Porque anda, Señor, perdido A mulher que eu tivesse Neste caso praticar.
Cúmple-me que solo yo Dar-lha ia. Oxalá
Platique con Vuestra Alteza. De amores por mi muger.
Que ele a Rainha quisesse!
Diz contra o Príncipe
Rei Rei
Santo Deus! Quê! Tal amor Físico
Cheguemo-nos pera cá. Pues déla, si le parece, Levantai-vos, filho, di,
Lhe dá doença tão fera?! O melhor que vós puderdes,
Que remédio achais milhor? Que por ella muerto está.
E vinde-vos pera aqui; Porteiro Hajam festas de prazer, como as fábulas de Esopo, como ficção de
Porque, enfim, o que quiserdes Se o casa por querer bem As que melhor possam ser, intuito moralizador.
Tudo havereis de mi. Com a moça, a quem ele ama, Porque em tão grandes extremos, 2 — Ei-los arrancamento na mão; significa ei-
los de mão em arrancada, ei-los à unha.
Direi eu que a mi se inflama Extremos se hão-de fazer.
3 — Estopada = remendo.
Pajem O amor mais que a ninguém. 4 — Ela em vez de ele (pantufo) por atracção
Ah! Senhores, houlá! hou! Hajam cantos pera ouvir, sintática exercida pela palavra peça.
Pajem Jogos, prazeres sem fundo; 5 — Vinte é, no jogo da bola, o pau que dá
Porteiro Pois pedi-lhe a vossa dama. Porque, se quereis sentir, vinte pontos ao jogador que o derruba.
Deste modo entrou no mundo, Mudemos o vinte significa, talvez, mudemos o
Viestes em conjunção
E assi há-de sair ponto de maior atracção ou afluência.
A milhor que pode ser. Porteiro 6 — Os reales, que circularam desde D.
Haveis aqui de fazer Por São Gil, que ei-los cá vêm, Sebastião, são comparados aqui ao escudeiro
A trosquia a um rifão(62). Ele pela mão com ela. Aqui vêm os músicos e cantam, e despois hipócrita, porque, tais como ele, sendo de
de cantarem, saem-se todas as figuras, e pouco valor intrínseco, tinham-no de
Pajem Entra El-Rei e Antioco com a Rainha pela diz convenção (fiduciário). Note-se, porém, que,
Deixai-me, Senhor, dizer; mão, e diz na ed. de 1644-1645, a lição é: que são muito e
valem pouco. E não será antes: que soam muito
Haveis isto de acabar: Martim Chinchorro e valem pouco?
Coração, i bugiar, Rei Ora, Senhor, tomemos também nosso 7 — Sambarco é o mesmo que chinelo ou
No esteis preso en cadenas, Que mais há i que esperar? pandeiro e vamos festejar os noivos; ou sapato. Moedas dos sambarcos eram as
Que pois o amor vos deu penas, Olhai que estranheza vai vamos consoar com as figuras, porque me cunhadas em sola.
Que vos lanceis a voar. O muito amor ordenar; parece que esta é a mor festa que pode ser. 8 — Corro é o mesmo que pátio. Era no pátio
Ir-se o filho namorar Mas espere V. M.: ouviremos cantar e na que, antes da construção de edifícios próprios,
volta das figuras nos acolheremos. Moço, se efectuavam as representações, de onde Pátio
Porteiro De ũa mulher de seu Pai!
acende esse molho de cavacos, porque faz das Comédias, designação usada na Península,
Por certo que bem coprou(63). e em Portugal Pátio das Arcas, Pátio das
Querer bem foi sua dor, escuro, não vamos dar connosco em
Fangas, Pátio da Betesga.
Pajem Negar-lha será crueldade; algum atoleiro, aonde nos fique o ruço e 9 — Casa juncada ou seja em festa, coberta de
Ora sabeis o que vai? Assi que já foi bondade as canastras. juncos.
Antioco que casou Usar eu de tal amor, 10 — É o mesmo que dizer: auto a que se
Com a mulher de seu Pai, E de tal humanidade. Estácio da Fonseca assiste, a seguir à refeição, quando era hábito,
Não, senhor, mas o meu Pilarte(64) irá ainda não de todo posto de parte, esgaravatar
E o mesmo Pai o ordenou Ela deixou de reinar os dentes.
Como fazia primeiro com eles com um par de tições na mão; e
11 — Como fazer consciência com alguém é
Porteiro Por se com ele casar; perdoem o mau gasalhado. Mas daqui em indemnizá-lo do que se lhe deve, a frase aqui
Isso como? E por amor verdadeiro diante sirvam-se desta pousada; e não significa que quem passa vida de tal
Tudo se pode deixar. tenham isto por palavras, porque essas e voluptuosidade, terá de por ela dar
plumas, o vento as leva. compensações a Deus.
Pajem 12 — Pera-pão. Em outras edições ocorre uma
Eu que nela tinha posto
NOTAS pera-pão. Talvez que o A. queira comparar a
Não o sei; Todo o bem de meu cuidado, fala da personagem com a lamúria do mendigo
Porque dizem que a amava, Deixei mais que ela há deixado; pedindo pera-pão (para pão).
Que mais se deixa no gosto, 1 — Isopete é diminutivo do nome de Esopo, o 13 — A enfática declamação do tempo é
E que só por ela andava conhecido fabulista grego. Da maneira ou à
Pera morrer; e El-Rei Que no poderoso estado. denunciada neste comentário faceto. Como
Mas já que tudo isto vemos, maneira de Isopete significa ser o auto feito Shakespeare, Camões faz em seu teatro a
Deu-a a quem a desejava,
crítica ao teatro contemporâneo. Fala qualquer ou pego, e esta leva à metáfora de mergulho. 29 — Covão é cesto de vime para pescar. 36 — Figuras de siso, é designação por
actor como apóstolo ou seja como padre 23 — Servilha ou servilheta, como se usa dizer 30 — Os machatins (Mattacini, matassins) era oposição a figuras cómicas — os graciosos,
jesuíta, pois os sacerdotes da Companhia eram no Alentejo, é o mesmo que alpercata. A graça dança guerreira, que representava um ataque como se lhes chamava. Também aqui pode
assim chamados. Em tom choroso e enfático. do Moço está no imprevisto e na variedade e com espadas e escudos que ritmicamente se significar as figuras do verdadeiro auto.
14 — Coscorrão é, segundo Domingos Vieira, número das metáforas que emprega. Nesta entrechocavam. Era de origem romana, 37 — A forma correcta seria dera... por saber
pancada que dói e não fere — e abona-se com última fala surgem quatro: — a do mergulho na dançando-a os sacerdotes de Marte — informa ou dera... a troco de saber. É o que se chama
este passo camoniano. Ora a palavra também profundidade da volta; a de desobstruir o Câmara Cascudo, in - O Folk-Lor nos autos uma contaminação sintática.
significa filhó feita de farinha de trigo engenho, assoando-o; a de abastecer o Camonianos. 38 — A Rainha faz trocadilho com o duplo
amassada em ovos. Seria com tal doce que entendimento com mais uma sardinha; a de lhe 31 — Via o Prof. José Maria Rodrigues neste sentido da palavra cura — remédio e cuidado.
regalariam os actores que se exibiam em casas facilitar a marcha calçando-lhe esta servilha passo uma alusão à rainha D. Catarina, mulher 39 — As eds. posteriores à de 1645 trazem no
particulares? O passo, nesse caso, significaria ocorre aqui, ou seja o pantufo a que se refere de D. João III. É bem duvidoso que o Poeta 1.º verso ela em vez de ele. Mas onde parece
que a tais actores cumpriria corrê-los a molho na pág. 90, agora aproveitado para o trocadilho não soubesse de modo mais discreto fazer tal estar o erro da 1.ª ed. é no verso seguinte, em
de junco, aplicado por moço travesso, para que implícito na palavra pé, que também significa alusão e metesse a pessoa da rainha no falso que, na de 1645, ocorre ele em vez de ela. Nos
não andassem ao coscorrão. volta. Adivinhamos, pelo modo como fala o anúncio de uma cena burlesca, representado o versos anteriores o Príncipe diz não saber com
15 — De mano em mano é forma arcaica, Moço, o modo imaginoso como o Poeta auto, para mais, em casa de alto funcionário que olhos verá o pai. É prosseguindo nesta
significando o mesmo que de mão em mão. O escreveria, se não actuasse sobre a exuberância palatino, que antecipadamente o devia ideia que agora desejaria não ter para ele olhos,
moço aproveita-a para o jogo verbal com de da sua verve, a moderadora disciplina da sua conhecer, porque nele tomava parte. como não ter para ela (a Rainha) pensamento
mana em mana, o que quer dizer: de amiga em formação clássica. Provavelmente o nome tem tanto com a (ou seja, na linguagem do tempo, inclinação
amiga, que tal era no tempo, e ainda hoje em 24 — S. Nicolau, porque, segundo a lenda, realidade contemporânea, como com a amorosa). Mas não seria sem sentido o desejo
falares provinciais, o tratamento de ressuscitara uns estudantes, é o padroeiro da realidade histórica tem o de D. Sancho. de não ter olhos para ver a formosura dela; e,
familiaridade. mocidade académica, e por isso no seu dia se 32 — Consoar (cum-sub-unare) é tomar com uma vez que o não pode evitar, não ter a
16 — Piós são correias que prendem as aves de lhe consagravam actos públicos, como outras pessoas ou a refeição da noite de Natal, preocupação (= pensamento) do pai.
caça de altanaria, e também armadilha. controvérsias. Os estudantes em Lisboa e Porto ou pequena refeição em noite de jejum, de 40 — Novo jogo com a palavra cura. Entende-
17 — Refere-se ao poeta António Ribeiro celebravam-no assando castanhas em grande onde resulta que a representação deste auto, a o filho no sentido de cuidado e o pai a deseja
Chiado (? - 1591), autor de autos ao modo de fogueira e cantavam: Quem dá lenha / Quem contra o que pensava T. Braga, é incerto que como recuperação da saúde.
Gil Vicente. dá pau / Para a fogueira / De S. Nicolau? tenha ocorrido em noite de Natal. 41 — Repousai como vos for possível, como
18 — A trova é escura, porque ele só sabe Assim informa T. Braga. 33 — A tradução é: trabalharam em vão, o fordes capaz de o fazer. No íntimo (centro), o
escrever com carvão — diz o Moço, 25 — Amarlotado = amarrotado. A marlota, que, no passo, significa que foi sem intenção, Rei duvida de que o filho possa repousar como
significando que não sabe escrever. Faz de onde amarlotado, era trajo árabe que cingia como brincadeira, o argumento exposto. seria necessário.
trocadilho com a palavra escura, pois o pode e apertava o corpo, cheio de pregas, de onde a 34 — Forrar do erro (da representação) = 42 — Talvez o verso seja, como lembra Storck
ser pela dificuldade do sentido e pela cor da metáfora. prevenir-se contra o erro, desculpar-se Me hão-de matar, de verdade, segundo se
letra. 26 — É D. Isabel Tavares que se identifica antecipadamente. depreende da estrutura da estrofe; extremidade
19 — 1. 4 — Descuido por desenfado, com a menina dos olhos verdes, a quem o autor 35 — A conjunção que é integrante e repete a ocorreria no singular.
entretenimento? consagra versos. Bem parece que, sem da linha anterior, como é usual nas intaxe do 43 — Darão nos valos = cairão em males mais
20 — Pesar de alguém, por jurar por alguém. melhores provas, deveremos pôr de reserva a tempo. Os ditos são os papéis distribuídos aos fundos, ou graves.
21 — Volta ou glosa. Gavetas, como coisas interpretação. actores. O sentido da fala de Ambrósio, 44 — Porteiro da cana era a designação de
fechadas que é preciso abrir, e às vezes com 27 — Assim na 1.ª ed. Mas não será antes — suscitada pela do Moço, é que, se as figuras da porteiro do paço, assim chamado para o
segredo, serão as dificuldades da volta? E que estou mais dobrado, no sentido de complicado, peça têm o mesmo espírito, terá a distinguir pela insígnia que trazia (cana =
é a trombeta do Sereníssimo de la Valla? E em dobiez ou duplicidade? Relacionar-se-ia a representação mais chiste, errando todos os bastão), do porteiro de maça, que é outro
este de la Valla será, como aventa M. B., o obscura frase com o próprio teor do auto; o papéis. Substituiriam a sensaboria normal nas instrumento de agressão.
crítico Lourenço de la Valla? Storck confessa Representador ilude os espectadores, comédias do tempo, que tanto provocavam as 45 — Mamada = perdida.
não saber quem seja de la Valla, nem as suas prometendo-lhes auto muito diferente do que críticas dos praguentos, pelas próprias 46 — Como quem diz: Que quereis dizer com
trombetas, nem mesmo o sentido da palavra será representado. facécias, assim hilariantes. O serem tão certas essa embrulhada? Na métrica do tempo, lá
gavetas. Nós preferimos a confissão de Storck 28 — O dito que de ponto em claro (= por (as representações) significará que supriam à podia contrair-se numa única sílaba com a
à hipótese de M. B. completo) esquece, é o próprio papel que lhe falta de graça derivada de sua conformidade primeira da palavra seguinte, se começasse por
22 — A palavra funda sugere a ideia de poço cabe na representação. com as regras. vogal.
47 — Trocadilho com a palavra siso, aqui no De si, cuidando mal que tomaria
sentido de inclinação amorosa. Tão ilícito amor tal ousadia,
48 — Na verdade, o Porteiro fala com arte, Tal modo nunca visto de tormento.
pois salpica de equívocos as suas frases, onde Mas os olhos pintaram tão a tento
nem falta uma antítese petrarquista. Mas a Outros que visto têm na fantasia,
resposta tem-na a Moça pronta - vem à vela. Que a rezão, temerosa do que via,
49 — Julgou o Prof. Vieira de Almeida, e Fugiu, deixando o campo ao pensamento.
também nos parece, que este verso é dito pelo
Porteiro, que assim classifica como coisa Ó Hipólito casto, que de jeito
excelente (olha de panela?) a resposta pronta De Fedra, tua madrasta, foste amado,
que a Moça lhe promete. Na 1ª ed. os versos 6 Que não sabia ter nenhum respeito,
a 9 são todos fala da Moça. Em mim vingou o amor teu casto peito;
50 — Duna, deformação faceta de dona.
51 — Esgrimi. Levada, segundo Morais, que Mas está desse agravo tão vingado,
se abona com este verso, é um ataque, no jogo Que se arrepende já do que tem feito.
da espada. O soneto teria sido concebido pelo Poeta para
52 — Se o querem ver nas águas. Entenda-se: esta peça e nele a Rainha leria a declaração
Se o querem ver nas águas [que verto] - (era apaixonada.
prática médica observar as urinas) o meu mal 58 — Metal = espécie. A seguir a este verso,
ou o «meu querer» que mo causa, as minhas propõe Storck, para que a estrofe se complete,
lágrimas o mostrarão. Apesar das aparências, a intercalação do verso — Mas pues luego
o (na expressão o querem) não se refere a heme de ir, e a seguir ao verso 28 — Desta
pulso. Num auto de Jerónimo Ribeiro, o irmão casa en un rincon.
do Chiado, há um pescador de Alfama que vai 59 — Tradução: O vinho alegra o coração do
mostrar ao médico as águas da mulher. homem.
53 — Quem é Gonleão? M. B. aponta este 60 — Célebre médico árabe (980-1037).
passo de Gil Vicente, em D. Duardos: Julião 61 — Versos do romance popular espanhol —
lo dirá presto. Trata-se da frase-feita O Mouro de Calaynos.
espanhola, provàvelmente. 62 — Trosquia ou tosquia dum rifão é a sua
54 — Não lhe caís na feição? significa: Não explicação.
lhes dais com o sentido? 63 — Na 1ª ed. comprou, mas deve ser coprou
55 — Taibo é palavra de que se não conhece o (fez copla = copulou) no sentido de versejou,
significado. Storck traduz: Nein, da fehlt’s an rimou.
Ton und Takt, ou seja: Não, aí falta ritmo e 64 — Pilarte = porteiro. O termo vem do
graça, e por isso põe o 2.º verso na boca do grego Pylartes, que tem o mesmo significado.
Porteiro, traduzindo-o livremente: Wort und Nota. Estácio da Fonseca foi reposteiro de D.
Weise sind gehoben, ou seja: Palavra e tom João III, que o nomeou para os cargos de
são elevados. almoxarife dos Paços de Alcáçova, recebedor
56 — Assim na 1.ª ed. Mas não será dos dinheiros das aposentadorias da Corte,
contestará? cavaleiro fidalgo e tesoureiro das moradias da
57 - O selo = a confirmação. Storck insere Corte. Foi, segundo as aparências, em sua casa
aqui, na sua tradução deste auto, um soneto de que se representou este auto.
Camões que se lhe adapta e nele encontra a
explicação do seu estranho tema — a alusão à
Hernâni Cidade, Luís de Camões - O
paixão incestuosa de Fedra por Hípólito.
Fiou-se o coração de muito isento
Teatro e as Cartas, Artis, Lisboa, 1962
TEXTO 30 – TEATRO DE CAMÕES - AUTO DE FILODEMO

Feito por Luís de Camões, em que entram foi pera a cidade, onde, por músico e Filodemo Por demais é trabalhar,
as figuras seguintes: discreto, valeu muito em casa de D. Moço Vilardo! Que este sono se me ausente.
Lusidardo, irmão de seu pai, a quem
Filodemo; Vilardo, seu moço; Dionisa; muitos anos serviu sem saber o parentesco Vilardo Filodemo
Solina, sua moça; Venadoro e o monteiro; que entre ambos havia. E como de seu pai Ei-lo vai. Porquê?
Duriano, amigo de Filodemo; um Bobo, não tivesse herdado mais que os altos
filho do pastor; Florimena, pastora, Dom espritos, namorou-se de Dionisa, filha de Filodemo Vilardo
Lusidardo, pai de Venadoro; Doloroso, seu senhor e tio, que, encitada ao que por Falai, eramá(1), falai, Porque há-de assentar
amigo de Vilardo; três pastores bailando. suas obras e boas partes merecia, ou E saí cá pera a sala. Que, se não for com pão quente,
porque elas nada enjeitam, lhe não queria O vilão como se cala! Não há-de desaferrar.
Argumento do Auto mal. Aconteceu mais que Venadoro, filho
de D. Lusidardo, mancebo fragueiro e
muito dado ao exercício da caça, andando Vilardo Filodemo
Um fidalgo português que acaso andava um dia no campo após um cervo, se Pois, Senhor, saio a meu pai, Ora i p’lo que vos mando,
nos Reinos de Dinamarca, como, por perdeu dos seus; e indo dar em ũa fonte, Que quando dorme não fala. Vilão feito de formento!(2)
largos amores e maiores serviços, tivesse onde estava Florimena, irmã de Filodemo [Sai Vilardo]
alcançado o amor de ũa filha de El-Rei, (que assim lhe puseram o nome, enchendo Filodemo Triste do que vive amando,
foi-lhe necessário fugir com ela em ũa ũa talha de água, se perdeu de amores por Trazei cá ũa cadeira. Sem ter outro mantimento,
galé, por quanto havia dias que a tinha ela, que se não soube dar a conselho, nem Ouvis, vilão? Com que estê fantesiando!
prenhe. E de feito, sendo chegados à costa partir-se donde ela estava, até que seu pai Só ũa cousa me desculpa
de Espanha, onde ele era senhor de grande o não foi buscar. O qual, informado pelo Vilardo Deste cuidado que sigo:
património, armou-se-lhe grande pastor que a criara (que era homem sábio Senhor, sim. Ser de tamanho perigo,
tromenta, que sem nenhum remédio dando na arte mágica) [de como a achara] e (Se me ela não traz a mi, Que cuido que a mesma culpa
a galé à costa, se perderam todos como a criara, não teve por mal de casar a Vejo-lhe eu ruim maneira). Me fica sendo castigo.
miseravelmente, senão a princesa, que em Filodemo com Dionisa, sua filha e prima
ũa tábua foi à praia. A qual, como de Filodemo, e a Venadoro, seu filho, com Vem o moço, e assenta-se na cadeira
chegasse o tempo de seu parto, junto de ũa Filodemo
Florimena, sua sobrinha, irmã de Acabai, vilão ruim! Filodemo, e diz avante:
fonte pariu duas crianças, macho e fêmea; Filodemo, pastor; e também pela muita
e não tardou muito que um pastor renda que tinha, que de seu pai ficara, de Ora quero praticar
castelhano, que naquelas partes morava, Que moço pera servir
que eles eram verdadeiros herdeiros. E das Só comigo um pouco aqui;
ouvindo os tenros gritos dos mininos, lhe Quem tem as tristezas minhas!
mais particularidades da comédia, fará Que, despois que me perdi,
acudiu a tempo que a mãe já tinha Quem pudesse assi dormir!
menção o auto, que é o seguinte: Desejo de me tomar
espirado. Crecidas, enfim, as crianças Estreita conta de mi.
debaixo da humanidade e criação daquele Vilardo Vai pera fora, Vilardo...
pastor, o macho, que Filodemo se chamou, Entra logo Filodemo e um seu moço —
Senhor, nestas manhãzinhas Torna cá. Vai-me saber
à vontade de quem os bautizara, levado da Vilardo
Não há i senão cair. Se se quer já lá erguer
natural inclinação, deixando o campo, se
O senhor Dom Lusidardo, Tem por ventura ordenado Filodemo Se comeis de ouvir cantar,
E vem-me logo dizer. Que mereça o meu cuidado, Ora i polo que vos mando! De falar bem, de trovar,
Só por ter cuidado nele? Não gracejeis. Em boa hora casareis.
Vai-se o Moço: Porém se vós comeis pão,
Vem o moço, e diz Vilardo Tende, Senhora, resguardo;
Ora bem, minha ousadia, Eis-me vou. Que eis aqui está Vilardo,
Sem asas, pouco segura, Vilardo Pois, pesar de São Fernando! Que é um camaleão(3);
Quem vos deu tanta valia, O Senhor Dom Lusidardo Por ventura sou eu grou? Por isso, vós fazei fardo.
Que subais a fantesia Dorme com todo contento; Sempre hei-de estar vegiando?
Onde não sobe Ventura? E ele com o pensamento E se vós sois das gamenhas(4),
Por ventura eu não nasci Quer estar fazendo alardo Vai-se o moço, e diz E houverdes de atentar
No mato, sem mais valer De castelinhos de vento! Por mais que por manducar,
Que o gado ao pasto trazer? Filodemo Mi cama son duras peñas,
Pois donde me veio a mi Pois tão cedo se vestiu, Ah! Senhora, que podeis Mi dormir siempre velar...(5)
Saber-me tão bem perder? Com seu dano se conforme, Ser remédio do que peno, A viola, Senhor, vem
Pesar de quem me pariu, Quão mal ora cuidareis Sem primas nem derradeiras.
Eu, nascido entre pastores Que ainda o Sol não saiu. Que viveis e que cabeis Mas sabe que lhe convém?
Fui trazido dos currais, Se vem à mão, também dorme. Num coração tão pequeno! Se quer, Senhor, tanger bem,
E dantre meus naturais Ele quer-se levantar Se vos fosse apresentado Há-de haver mister terceiras(6).
Pera casa dos senhores, Assi pela menhãzinha! Este tormento em que vivo,
Donde vim a valer mais. Pois quero-o desenganar: Creríeis que foi ousado E se estas cantigas vossas
Agora, logo tão cedo, Nem por muito madrugar Em este vosso criado Não forem pera escutar,
Quis mostrar a condição Amanhece mais asinha. Tornar-se vosso cativo? E quiserdes expirar,
De rústico e de vilão! Há mister cordas mais grossas(7),
Dando-me ventura o dedo, Filodemo Vem o moço e traz a viola Porque não possam quebrar.
Lhe quero tomar a mão! Traze-me a viola cá.
Vilardo Filodemo
Mas oh! que isto não é assi, Vilardo Ora eu creio, se é verdade Vai pera fora!
Nem são vilãos meus cuidados, (Voto a tal que me vou rindo.) Que estou de todo acordado,
Como eu deles entendi; Senhor, também dormirá. Que meu amo é namorado; Vilardo
Mas antes, de sublimados, E a mi dá-me na vontade Já venho.
Os não posso crer de mi. Filodemo Que anda um pouco abalado.
Porque, como hei eu de crer Traze-a, moço! E se tal é, eu daria, Filodemo
Que me faça minha estrela Por conhecer a donzela, Que eu só desta fantesia
Tão alta pena sofrer, A ração de hoje este dia; Me sustenho e me mantenho.
Que somente pola ter Vilardo
Si, virá, Porque a desenganaria,
Mereço a glória dela; Somente por ter dó dela. Vilardo
Se não estiver dormindo.
Camanha vista que tenho,
Senão se Amor, de atentado, Havia-lhe de perguntar: Que vejo a estrela do dia!(8)
Porque me não queixe dele, Senhora, de que comeis?
Vai-se Vilardo e canta Solina Solina Se eu neste amor quero fim,
Oh! Senhor, e quão bem que soa Pois bem me defendeu ela Sem fim me atormente Amor.
Filodemo O tanger de quando em quando! Que vos não dissesse nada.
Adó sube el pensamiento, Bem sei eu ũa pessoa, Mas com glória fengida
Seria una glória inmensa Que há bem ũa hora e boa, Filodemo Pretendeis de me enganar,
Si allá fuese quien lo piensa. Que vos está escutando. Se pena de tantos anos Por assi mal me tratar;
Merecer algum favor, Assi que me dais a vida
Fala Filodemo Pera curar de meus danos, Somente por me matar.
Qual espírito devino Por vida vossa zombais? Fartai-me desses enganos,
Me fará a mi sabedor, Quem é? quereis-mo dizer? Que não quero mais do Amor. Solina
Pois tão alto imagino, Eu vos digo a verdade.
Deste meu mal, se é amor, Solina Solina
Se por dita é desatino? Não no haveis vós de saber, Agora quero eu falar Filodemo
Se é amor, diga-me qual Bofé, se me não peitais. Neste caso com mais tento; Da verdade fujo eu,
Pode ser seu fundamento, Quero agora perguntar: Porque só Amor me deu
Ou qual é seu natural, Filodemo E de siso is vós tomar Pena de tal calidade,
Ou porque empregou tão mal Dar-vos-ei quanto tever, Um tão alto pensamento?! Que assaz me custa do meu.
Um tão alto pensamento. Pera tais tempos como estes.
Quem tevera ũa voz dos Céus, Certo é muita maravilha, Solina
Se é doudice, como em tudo Pois escutar me quisestes! Se vós isto não sentis Folgo muito de saber
A vida me abrasa e queima, Bem. Vós como não caís Que sois amante tão fino.
Oh! quem viu num peito rudo Solina Que Dionisa que é filha
Desatino tão sesudo, Assi pareça eu a Deus, Do Senhor a quem servis? Filodemo
Que toma tão doce teima! Como lhe vós parecestes! Como? Vós não atentais Pois mais vos quero dizer,
Ah! senhora Dionisa, Nos grandes, de que é pedida? Que às vezes no que imagino
Onde a natureza humana Filodemo Peço-vos que me digais Não ouzo de me estender.
Se mostrou tão soberana, A senhora Dionisa Qual é o fim que esperais Na hora que imaginei
Que o que vós valeis me avisa, Quer-se já alevantar? Neste caso, em vossa vida? Na causa de meu tormento,
E o que eu peno me engana! Tamanha glória levei,
Solina Que rezão boa, ou que cor Que por onças desejei(9)
Vem Solina moça, e diz Assi me veja eu casar, Podeis dar a esta afeição? De lograr o pensamento.
Como despida em camisa Dizei-me vossa tenção.
Solina Se ergueu por vos escutar. Solina
Tomado estais vós agora, Filodemo Se me vós a mi jurardes
Senhor, co o furto nas mãos. Filodemo Onde vistes vós amor De me terdes em segredo
Em camisa levantada! Que se guie por rezão? Ũa cousa... Mas hei medo
Filodemo Tão ditosa é minha estrela, E quereis saber de mi De logo tudo contardes...
Solina, minha Senhora, Ou mo dizeis, refalsada? Que fim ou de que teor
Quantos pensamentos vãos O pretendo em minha dor, Filodemo
Me ouviries lançar fora! A quem?
Solina A senhora Dionisa Agora em boca de gentes Inda que sou seu amigo,
Àquele enxovedo(10). Crede que mal vos não quer: A quem se ele vai gabar. Sabei que vosso sou mais.
Não vos posso mais dizer.
Filodemo Isto tende por baliza Filodemo Solina
Qual? Com que vos saibais reger, Senhora, mal conheceis E já que vos confessei
Que em mulheres, se atentais, O que vos quer Duriano. Aquestas fraquezas minhas
Solina O querer está vesíbil; Sabei, se o não sabeis, Que há tanto que de mi sei,
Aquele mau pesar E se bem vos governais, Que em sua alma sente o dano Fazei vós nas cousas minhas
Que ontem convosco ia. Não desespereis do mais, Do pouco que lhe quereis, O que eu nas vossas farei.
Quem se fosse em vós fiar! Porque, enfim, tudo é possíbil. E que outra cousa não quer,
O que vos disse o outro dia, Que ter-vos sempre servida. Filodemo
Tudo lhe fostes contar. Filodemo Vós enxergareis, Senhora,
Senhora, pode isso ser? Solina O que eu por vós sei fazer.
Filodemo Pola sua negra vida,
Que lhe contei? Solina Isso havia eu bem mester. Solina
Si, que tudo o mundo tem. Como me deixo esquecer!
Solina Olhai não no saiba alguém. Filodemo Aqui estivera agora
Já lhe esquece? Vós sois desagradecida! Falando té anoutecer.
Filodemo Vou-me; e olhai quanto vale
Filodemo E que maneira hei-de ter Solina O que passou entre nós.
Por certo que estou remoto. Pera em mim ter tanto bem? Si, que tudo são enganos
Em tudo quanto falais. Filodemo
Solina Solina E porque vos ides vós?
I, que sois um cesto roto. Vós, Senhor, o sabereis; Filodemo
E já que vos descobri Não quero que me creais: Solina
Tamanho segredo aqui, Crede o tempo, que há dous anos Porque parece já mal
Filodemo Ũa mercê me fareis
Esse homem tudo merece. Que vos serve, e inda mais. Estar aqui ambos sós.
Em que me vai muito a mi.

Solina Solina E mais vou vestir agora


Filodemo Senhor, bem sei que me engano; A quem vos dá tão má vida.
Vós sois muito seu devoto. Senhora, a tudo me obrigo Mas a vós, como a irmão, Ficai-vos, Senhor, embora(11).
Quanto for em minha mão. Descubro este coração:
Filodemo Sabei que a Duriano
Senhora, não hajais medo: Filodemo
Solina Tenho sobeja afeição. Nessa ide vós, Senhora,
Contai-me isso, e far-me-ei mudo. Pois dizei a vosso amigo Que já vos tenho entendida.
Que não gaste tempo em vão, Olhai que lhe não digais
Solina Nem queira amores comigo. Isto que vos aqui digo.
Senhor, o homem sesudo, Vai-se Solina, e diz
Porque eu tenho parentes,
Se em tais cousas tem segredo, Que me podem bem casar;
Saiba que alcançará tudo. Filodemo
E mais que não quero andar Senhora, mal me tratais:
Filodemo Que se levantou da cama Venadoro Mas há se de exprimentar,
Ora, se pode isto ser Por ouvi-lo! Está tomada; Aprovada antiguamente Pera se poder julgar
Do que esta moça me avisa, Assi a tome má trama. Foi, e muito de louvar, As manhas que pode ter.
Que a senhora Dionisa, A ocupação do caçar,
Por me ouvir, se fosse erguer E mais crede que quem canta, E da mais antígua gente Monteiro
Da sua cama em camisa! Ainda descantará; Havida por singular. Pode assentar que este cão,
E quem do leito, onde está, É o mais contrário ofício Que tem das manhas a chave,
E diz que mal me não quer. Por ouvi-lo se levanta, Que tem a ociosidade, Bem feito, em admiração;
Não queria maior glória! Mor desatino fará. Mãe de todo o bruto vício: Pois em ligeiro, ũa ave;
Mas o que mais posso crer, Quem havia de cuidar, Por este limpo exercício Em cometer, um leão;
Que nem pera lhe esquecer(12) Que dama fermosa e bela Se reserva a castidade. Com porcos, maravilhoso;
Lhe passo pela memória. Saltasse o demónio nela, Com veados, extremado.
Mas ter Solina também Pera a fazer namorar Este dos grandes senhores Sobeja-lhe o ser manhoso.
Em Duriano o intento, De quem não é igual dela! Foi sempre muito estimado;
É levar-me a lenha o vento(13); E é grande parte do estado Venadoro
Porque se ela lhe quer bem, Que me dizeis a Solina? Ter monteiros, caçadores, Pois eu ando desejoso
Pera bem vai meu tormento. Como se faz Celestina(14), Como ofício que é prezado. De irmos matar um veado.
Que, por não lhe haver enveja, Pois logo por que rezão
Mas foi-se este homem perder Também pera si deseja A meu pai há-de pesar Monteiro
Neste tempo, de maneira, O que o desejo lhe ensina! De me ver ir a caçar? Pois, Senhor, como não vai?
Por ũa mulher solteira, Crede que, se me alvoroço, E tão boa ocupação
Que não me atrevo a fazer Que a hei-de tomar por dama; Que mal me pode causar?
Venadoro
Que um pequeno bem lhe queira. E não será grão destroço, Vamos, e vós, mui ligeiro,
Porém far-lhe-ei um partido, Pois o amo quer a ama, Vem o Monteiro, e diz O necessário ordenai,
Porque ela não se querele: Que a moça queira o moço. Que eu quero chegar primeiro,
Que se mostre seu perdido, Monteiro Pedir licença a meu pai.
Inda que seja fengido, Vou-me; que vejo lá vir Senhor, venho alvoroçado,
Como lhe outrem faz a ele. Venadoro, apercebido E mais com muita rezão. Vão-se e vem Duriano, e diz
Pera a caça se partir;
E já que me satisfaz, E voto a tal, que é partido Venadoro
E tanto nisto se alcança, Pera ver e pera ouvir. Duriano
Como assi? Pois não creio eu em S. Pisco do Pau, se
Dê-lhe fingida esperança: Que é rezão justa e rasa
Do mal que lhe outrem faz, Que seu folgar se desconte hei-de pôr pé em ramo verde, té lhe dar
Monteiro trezentos açoutes. Despois te ter gastado
Tomará nela vingança. Em quem arde como brasa; Que me é chegado
Que se vai caçar ao monte, perto de trezentos cruzados com ela,
O mais extremado cão, porque logo lhe não mandei o cetim pera
Vai-se Filodemo e vem Fique outrem caçando em casa. Que nunca caçou veado. as mangas, fez de mim mangas ao demo.
Vejamos que me há-de dar. Não desejo eu de saber, senão qual é o
Vilardo Vai-se Vilardo e entra galante que me sucedeu; que, se vo-lo eu
Ora boa está a cilada Venadoro colho a barlavento(15), eu lhe farei botar
De meu amo com sua ama, Dar-vos-ei quanto tever; ao mar quantas esperanças lhe a Fortuna
tem cortado à minha custa. Ora tenho polos troncos das árvores do Vale conta da pouca que tenho com toda a outra esta é a verdade. Mas contudo, vá V. M.
assentado que amor destas anda co Chiusa(23), nem por quantas Madamas cousa que não é servir a Senhora Dionisa; co a história por diante.
dinheiro, como a maré co a lũa: bolsa Lauras vós idolatrais. e posto que a desigualdade dos estados o
cheia, amor em águas vivas; mas se vaza, não consinta, eu não pretendo dela mais Filodemo
vereis espraiar este engano, e deixar em Filodemo que o não pretender dela nada, porque o Vou, porque vos confesso que neste caso
seco quantos gostos andavam como o Tá tá! não vades avante, que vos perdeis. que lhe quero, consigo mesmo se paga; há muita dúvida entre os Doutores. Assi
peixe na água. que este meu amor é como a ave que vos conto que, estando esta noite com
Duriano Fénix(24), que de si só nasce, e não de a vida na mão, bem trinta ou quarenta
Entra Filodemo e diz Aposto que adivinho o que quereis dizer. outro nenhum interesse. léguas pelo sertão dentro de um
pensamento, senão quando me tomou à
Filodemo Filodemo Duriano treição Solina; e entre muitas palavras que
Hou lá! cá sois vós?! Pois agora ia eu Quê? Bem praticado está isso; mas dias há que tivemos, me descobriu que a Senhora
bater essas moutas, para ver se me saíeis eu não creio em sonhos. Dionisa se levantara da cama por me
de algũa, porque quem vos quiser achar, é ouvir, e que estivera pela greta da porta
Duriano espreitando quase hora e meia.
necessário que vos tire como ũa alma(16) . Que se me não acudíeis com batel, que me Filodemo
ia meus passos contados a herege de amor. Porquê?
Duriano Duriano
Oh! maravilhosa pessoa! Vós é certo que Duriano Cobras e tostões, sinal de terra. Pois ainda
Filodemo vos eu não fazia tanto avante.
vos prezais de mais certo em casa, que Oh! que certeza tamanha, o muito pecador Eu vo-lo direi: porque todos vós outros os
pinheiro em porta de taverna; e trazeis, se não se conhecer por esse! que amais pela passiva, dizeis que o amor
vem à mão, os pensamentos com os fino como melão não há-de querer mais de Filodemo
focinhos quebrados, de caírem onde vós sua dama que amá-la; e virá logo o vosso Finalmente, veio-me a descobrir que me
sabeis. Pois sabeis, senhor Filodemo, Duriano Petrarca e o vosso Petro Bembo(25), não queria mal, que foi para mi o maior
quais são os que me matam? Uns muito Mas oh! que certeza maior de muito atoado a trezentos Platões, mais safado bem do mundo; que eu estava já
bem almofaçados(17), que com dois ceitis enganado esperar em sua openião! Mas que as luvas de um pajem de arte, concertado com minha pena a sofrer por
fendem a anca pelo meio(18) e se prezam tornando a nosso propósito: que é o pera mostrando razões verisímeis e aparentes, sua causa, e não tenho agora sujeito pera
de brandos na conversação, e de falarem que me buscais? que, se é causa de vossa pera não quererdes mais de vossa dama tamanho bem.
pouco e sempre consigo, dizendo que não saúde, tudo farei. que vê-la; e ao mais até falar com ela.
darão meia hora de triste pelo tesouro de Duriano
Veneza; e gabam mais Garcilaso que Filodemo Pois inda achareis outros escodrinhadores Grande parte da saúde é pera o doente
Boscão(19), e ambos lhe saem das mãos Como templará el destemplado? Quem de amor mais especulativos, que trabalhar por ser são. Se vos leixardes
virgens; e tudo isto por vos meterem em poderá dar o que não tem, Senhor defenderão a justa por não emprenhar o manquecer na estrebaria com essas finezas
consciência que se não achou pera mais o Duriano? Eu quero-vos deixar comer tudo: desejo; e eu faço-vos voto solene, se a de namorado, nunca chegareis onde
Grão Capitão Gonçalo Fernandes(20). Ora não pode ser que a natureza não faça em qual quer destes lhe entregassem sua dama chegou Rui de Sande(26). Por isso boas
pois desengano-vos, que a mor vós o que a rezão não pode. O caso é este: tosada e aparelhada entre dous pratos, eu esperanças ao leme! que eu vos faço bom
rapazia(21) do mundo foram altos (Dir-vo-lo-ei; porém é necessário que fico que não ficasse pedra sobre pedra. E que às duas enxadadas acheis água. E que
espritos; e eu não trocarei duas pescoçadas primeiro a alimpeis como marmelo, e que eu já de mi vos sei confessar que os meus mais passastes?
da minha, etc., despois de ter feito a ajunteis para um canto da casa todos esses amores hão-de ser pela activa, e que ela
trosquia(22) a um frasco, e falar-me por tu maus pensamentos; porque, segundo há-de ser a paciente e eu agente, porque
andais mal avinhado, danareis tudo aquilo Filodemo
e fingir-se-me bêbada, porque o não A maior graça do mundo: veio-me
pareça, por quantos sonetos estão escritos que agora lançarem em vós). Já vos dei
descobrir que era perdida por vós; e assi sais mais esperdiçado de amor que um Solina Solina
me quis dar a entender que faria por mi Brás Quadrado(30). Eu o disse? E vós, mana, fazeis fero?
tudo o que lhe vós mereceis. Ao diante vos espero,
Duriano Dionisa Se adiante o caso vai.
Duriano Ora vamos, que agora estou de vez, e Eu não o ouvi?
Santa Maria! Quantos dias há que nos cuido de hoje fazer mil maravilhas, com Como mo quereis negar? Dionisa
olhos lhe vejo marejar esse amor! Porque que vosso feito venha à luz. O madraço! quem no vir
o fechar de janelas que essa mulher me Solina Falar de siso co ela...
faz, e outros enojos que dizer poderia, no Vão-se e entra Dionisa e Salina, e diz, E pois isso que releva? Então vós, gentil donzela,
son sino corredores del amor, e a cilada Que se perde nisso agora? Folgais muito de o ouvir?
em que ela quer que eu caia. Dionisa
Solina, mana! Dionisa Solina
Filodemo Que se perde?! Assi, Senhora, Si, porque me fala nela(32);
Nem eu não quero que lhe queirais, mas Solina Folgareis vós que se atreva
que lhe façais crer que lho quereis. Senhora! A contá-lo lá por fora? E eu como ouço falar
Que se lhe meta em cabeça Nela, como quem não sente,
Duriano Dionisa Algũa párvoa tenção? Folgo de o escutar,
Não... quant’a dessa maneira, me ofereço Trazei-me cá a almofada, Que faça, se vem à mão, Só pera lhe vir contar
a romper meia dúzia de serviços Que a casa está despejada, Algũa cousa que pareça?(31) O que dela diz a gente;
alinhavados às panderetas(27), que bastem E esta varanda cá fora Que eu não quero nada dele.
assentar-me em soldo pelo mais fiel Está milhor assombrada. Solina E mais, porque está falando?
amante que nunca calçou esporas; e se isto Trazei a vossa também Senhora, não tem rezão. Não me esteve ela rogando
não bastar, salgan las palabras mas Pera estarmos cá lavrando. Que fosse falar com ele?
sangrientas del corazón, entoadas de Enquanto meu pai não vem, Dionisa
feição, que digam que sou um Estaremos praticando, Eu sei mui bem atentar Dionisa
Mancias(28), e pior ainda. Sem nos estorvar ninguém. Do que se há-de ter receio, Disse-vo-lo assi zombando.
E do que é pera estimar.
Filodemo Solina Vós logo tomais em grosso
Ora dais-me a vida. Vamos ver se por Este é o mesmo lugar Solina Tudo quanto me escutais.
ventura aparece, porque Venadoro, irmão Onde estava o bem logrado, Não é o demo tão feio Parvo! que vê-lo não posso.
da senhora Dionisa, é fora à caça; e sem Tal que, de muito enlevado, Como alguém o quer pintar;
ele fica a casa despejada; e o senhor Dom Se esquecia do cantar, E não se espera isso dele, Solina
Lusidardo anda no pomar todo o dia; que Por se enlevar no cuidado. Que não é ora tão moço. Ela ali, e o cão co osso!
todo o seu passatempo é enxertar e dispor, E Vossa Mercê assele Inda isto há-de vir a mais.
e outros exercícios de agricultura, naturais Que qualquer segredo nele Pois que tal ódio lhe tem,
a velhos. E pois o tempo nos vem à Dionisa
É como ũa pedra em poço. Falemos, Senhora, em al;
medida do desejo, vamo-nos lá; e se lhe Mas eu digo que ninguém
puderdes falar, fazei de vós mil Vós, mana, sois mui ruim!
Logo lhe fostes contar Dionisa Merece por querer bem
manjares(29), porque lhe façais crer que Que a quem lho quer, queira mal.
Que me ergui polo escutar. E eu que segredo quero
Co um criado de meu pai?
Dionisa Ouvir-lhe-eis à derradeira ela que a dê à Senhora Dionisia, que me Entra Solina com a almofada e vai-se
Deixai-o vós doudejer. A Ventura maldizer, vai nisso muito. Filodemo, e diz
Se meu pai ou meu irmão, Porque a foi fazer mulher.
O vierem a aventar(33), Então diz que quer ser freira, Duriano Solina
Não há ele de folgar. E não se sabe entender. Por mulher de tão bom engenho a tendes? Aqui anda passeando
Então gaba-o de discreto, Duriano, e só consigo
Solina De músico e bem disposto, Filodemo Pensamentos praticando.
Deus meterá nisso a mão. De bom corpo e de bom rosto. E porque me perguntais isso? Daqui posso estar notando
Quant’a então, eu vos prometo, Com quem sonha, se é comigo.
Dionisa Que não tem dele desgosto.
Duriano
Ora i polas almofadas, Porque ainda ontem entrou pelo A, B, C, e Duriano
Que quero um pouco lavrar, Despois, se vem atentar, já quereis que leia carta mandadeira. Fá- Ah! quão longe estará agora,
Por ter em que me ocupar; Diz que é muito mal feito la-eis cedo escrever matéria junta. Minha Senhora Solina,
Que em cousas tão mal olhadas Amar homem deste jeito; De saber que estou bem fora
Não se há o tempo de gastar. E que não pode alcançar De ter outra por senhora,
Pôr seu desejo em efeito. Filodemo
Não lhe digais que vos disse nada, porque Segundo o amor determina!
Vai Solina dizendo Logo se faz tão senhora,
Logo lhe ameaça a vida, cuidará que por isso lhe falais; mas fingi
que de puro amor a andais buscando a Porém se determinasse
Logo se mostra nessa hora Minha bem-aventurança
Que cousas somos, mulheres! Muito segura de fora, tempos que façam à vossa tenção.
Como somos perigosas! Que de meu mal lhe pesasse,
E de dentro está sentida. Até que nela tomasse,
E mais estas tão viçosas Duriano
Que estão à boca(34), que queres? Deixai-me vós a mi com o caso, que eu sei Do que lhe quero, vingança!...
E adoecem de mimosas! Bofé, segundo vou vendo,
Se esta postema vier, milhor as pancadas a estes vintes que vós;
Se eu não caminho agora e eu vo-la farei hoje vir a nós sem Solina
A seu desejo e vontade, Como eu suspeito, a crecer, (Comigo sonha por certo.
Muito há que dela entendo gafas(36); e vós entretanto acolhei-vos a
Como faz esta senhora, sagrado, porque ei-la lá vem. Ora quero-me mostrar,
Fazem-se logo nessa hora Ao fim que pode vir ter. Assim como por acerto:
Na volta da honestidade(35). Filodemo Chegar-me-ei mais ao perto,
Vai-se Solina e entra Duriano e Filodemo, Por ver se me quer falar.)
e diz Olhai lá: fazei que a não vedes, e fingi que
Quem a vira o outro dia falais convosco, que faz a nosso caso.
Um poucochinho agastada, Sempre esta casa há-de estar
Dar no chão com a almofada, Duriano Acompanhada de gente,
Ora deixai-a ir, que à vinda lhe falaremos; Duriano
E enlevar a fantesia, Dizeis bem. (Yo sigo tristeza, remédio de Que não possa homem passar!
Toda noutra transformada! entretanto cuidarei o como hei-de fazer;
que não há mor trabalho pera ũa pessoa tristes: la terrible pena mia/ no la espero
Outro dia lhe ouvirão remediar. Pois não devia assi de ser, polos Duriano
Lançar suspiros a molhos, que fingir-se. À treição vindes tomar
santos Evangelhos! mas muitos dias há
E com a imaginação que eu sei que o amor e os cangrejos Quem já feridas não sente?
Cair-lhe a agulha da mão, Filodemo andam às vessas. Ora, enfim, las tristezas
E as lágrimas dos olhos. Dar-lhe-eis esta carta; e fazei muito com no me espanten, porque suelen aflojar
cuando mas duelen).
Solina Duriano Duriano Solina
Logo me a mi parecia Mas fê-lo o demo; que Deus Vir-me-á de vós, porque creio Está isso muito bem
Que era ele o que passeava. Não faz mal tanto em extremo. Que vós falais dentro em mi, Bem! E vós, Senhor, não vedes
Como esprito em corpo alheio. Que poderá vir alguém?
Duriano Solina E assi que em estas piós
E eu mal adivinhava Bem. Vós, Senhor Duriano, A cair, Senhora, vim; Duriano
Que me viesse este dia, Porque zombareis de mi? Bem parecerá entre nós, Que vos custam dous abraços?
Que há tantos que desejava. Pois vós andais dentro em mim,
Duriano Que ande eu também dentro em vós. Solina
Se uns olhos por vos servir, Eu zombo?! Não quero tantos despejos.
Com o amor que vos conquista, Solina
Se atreveram a subir Solina É bem... Que falar é esse? Duriano
Os muros de vossa vista, Eu não me engano. Pois que farão meus desejos,
Que culpa tem quem vos vir? Duriano Que querem ter-vos nos braços,
E se esta minha afeição, Duriano Dentro na vossa alma, digo, E dar-vos trezentos beijos?
Que vos serve de giolhos, Se eu zombo, inda em meu dano Lá andasse, e lá morresse!
Não fez erro na tenção, Vejais vós mui cedo a fim. E se isto mal vos parece, Solina
Tomai vingança nos olhos, Dai-me a morte por castigo. Olhai que pouca vergonha!
E deixai o coração. I-vos de i, boca de praga!
Mas vós, senhora Solina,
Porque me quereis mal? Solina
Solina Ah mau! Como sois malvado! Duriano
Ora agora me vem riso. Eu não sei certo a que ponha
Assi que vós sois, Senhor, Solina
Sou mofina. Duriano Mostrardes-me a teriaga,
De siso(37), meu servidor?! Mas vós como sois malvada, E virdes-me a dar peçonha.
Que de um pouco mais de nada
Duriano Duriano Fazeis um homem armado,
Oh! real! Solina
De siso não, porque o siso Como quem ‘stá sempre armada! Ora ide rir à feira,
Me tem tirado o amor. Assi que minha mofina
É minha imiga mortal. E não sejais dessa laia.
Porque o amor, se atentais, Dizei-me, Solina, mana...
Num tão verdadeiro amante Dias há que eu imagino:
Não deixa siso bastante, Que em vos amar e servir, Duriano
Não há amador mais fino; Solina Se vedes minha canseira,
Se não se siso chamais Que é isso? Tirai lá a mão!
A doudice tão galante. Mas sinto que, de mofino, Porque lhe não dais maneira?
Me fino sem no sentir. Oh! vós sois mau cortesão.

Solina Solina
Solina Duriano Que maneira?(40)
Como Deus está nos Céus, O que vos quero me engana,
Que, se é verdade o que temo, Bem derivais(38): quant’a assi,
À popa o dito vos veio(39). Mas o que desejo não. Duriano
Que fez isto Filodemo. Aqui não há senão paredes, A da saia.
As quais não falam nem vêem.
Solina Solina Duriano Duriano
Por minha alma, [hei]-de vos dar Dizei que tome outra dama, Não disse, por S. Fernando! Essas mãos beijo, Senhora,
Meia dúzia de porradas. E dê os amores ao demo. Enquanto não posso a boca.
Solina
Duriano Duriano Ora ide-vos. Vai-se Duriano e fala Solina com Dionisa,
Oh! que gostosas pancadas! Não andemos pola rama. que lhe traz a almofada. E diz
Mui bem vos podeis vingar, Senhora (aqui para nós): Duriano
Que em mi são bem empregadas. Que sentis dela com ele? Que me vá?! Solina
E mandais que torne? Quando? Já Vossa Mercê dirá
Solina Solina Que estive muito tardando.
Ó diabo que o eu dou! Grandes alforges sois vós! Solina
Como me doeu a mão! Pois i-lhe dizer que apele. Quando eu cá vir lugar, Dionisa
Vo-lo mandarei dizer. Bem vos detivestes lá.
Duriano Duriano Bofé, que estava cuidando
Mostrai cá, minha afeição, Falai, que aqui estamos sós. Duriano Em não sei quê...
Que essa dor me magoou Se o quiserdes buscar,
Dentro no meu coração Solina Não vos deve de faltar, Solina
Qualquer honesta se abala, Se não faltar o querer. Que será?
Solina Como sabe que é querida. Aqui somos. (Quant’a agora,
Ora i-vos embora asinha! Ela é por ele perdida: Solina Está ela trasportada.)
Nunca noutra cousa fala. Não falta.
Duriano Dionisa
Por amor de mi, Senhora, Duriano Duriano Que rosnais vós lá, Senhora?
Não fareis ũa cousinha? Ora vou-lhe dar a vida. Dai-me um abraço
Em sinal do que quereis. Solina
Solina Solina
Digo que vades embora. E eu não lhe disse já Solina Digo que tardei lá fora
Que cousa? Quanta afeição lhe ela tem? Tá! que o não levareis. Em buscar esta almofada.

Duriano Duriano Duriano Que estava ela agora só


Esta cartinha. Não se fia de ninguém, De quantos serviços faço Consigo fantesiando?
Nem crê que para ele há Nenhum pagar me quereis?!
Solina No mundo tamanho bem. Dionisa
Que carta? Solina Bofé, que estava cuidando
Solina Pagar-vos-ão algũa hora, Que é muito pera haver dó
Duriano Dir-vos-ia de mi lá Que isso a mi também me toca; Da mulher que vive amando.
De Filodemo O que lhe eu disse, zombando? Mas agora, i-vos embora. Que um homem pode passar
A Dionisa, vossa ama. A vida mais ocupado:
Com passear, com caçar,
Com correr, com cavalgar, Dionisa Dionisa Que bem vos entendo já.
Forra parte do cuidado. Algum pano de lavores? Si, sabeis! Cuja é?

Mas a coitada Solina Solina Solina


Da mulher sempre encerrada, Inda ela não deu no fito? Não sei, bofé! E eu que sei?
Que não tem contentamento, Cartinha sem sobrescrito,
Não tem desenfadamento, Que parece ser de amores. Dionisa Dionisa
Mais que agulha e almofada! Ora a carta mo dirá. Pois quem o sabe?
Então isto vem parir Dionisa
Os grandes erros da gente, Essa é a boa ventura? Solina Solina
Em que já antigamente Pois leia Vossa Mercê. O demo.
Foram mil vezes cair Solina
Princesas de alta semente. Bofé, que mo pareceu. Abre Dionisa a carta, e lê-a. Dionisa
Certo que é de quem temo;
Lembra-me que ouvi contar Dionisa Que os ditos que nela achei,
De tantas afeiçoadas «Se pera merecer minha pena me não falta
E essa donde naceu? mais que viver contente dela, já logo ma São todos de Filodemo.
Em baixo e pobre lugar,
Que as que agora vão errar, podeis consentir; pois que de nenhũa outra
Podem ficar desculpadas. Solina cousa vivo triste, senão por não ser pera Este homem, que atrevimento
No meu cesto de costura: tão doce tristeza. Se tendes por ofensa É este que foi tomar?
Não sei quem ma ali meteu. cometer tamanha ousadia, por maior a Qual será seu fundamento,
Solina devíeis ter, se a não cometesse; que amor Que mil vezes me faz dar
Senhora, a muita afeição acostumado é fazer os extremos às Mil voltas ao pensamento?
Nas princesas de alto estado Dionisa
Mostrai-me; não hajais medo, medidas das afeições, e as afeições à Não entendo dele nada.
Não é muita admiração; medida da causa delas. Pois logo, nem o Mas inda que isto é assi,
Que no sangue delicado Mana. Eu que vos descobri...
meu amor pode ser pouco, nem fazer Disso que dele entendi
Faz o amor mais impressão. menos: se este [não] bastar pera Me sinto tão alterada,
Solina
E se ela vem para mi? consentirdes em meu pensamento, baste Que me arreceio de mi.
Mas deixando isto à parte, pera me dardes o que pelo ter mereço; e
Se me ela quiser peitar, Logo quer ver meu segredo?
Não a veja: vá-se di. senão, muitas graças ao Amor, que me Eu inda agora não creio
Prometo de lhe mostrar soube dar um cuidado, que, com tê-lo, se Que é verdade este amor;
Ũa cousa muito de arte, paga o trabalho de sofrê-lo». Mas praza a Deus, se assi for,
Que lá dentro fui achar. Ei-la aí.
Que inda este meu receio
Dionisa Solina Se não converta em temor.
Dionisa Quanta parvoíce diz!
Que cousa? Cuja será?
Solina
Solina Dionisa Já vós, já vedes,
Solina Ora muito boa está! Peixes nas redes(42).
Cousa de esprito. Não sei certo cuja é.
Como vós, mana, sois má!
Não sejais vós tão biliz(41), Senhora, quem mais confia,
Mais asinha a cair vem.
Natural é querer bem; Solina Monteiro Bobo
Que o amor na alma se cria, E já veio do pomar? Perdeu-se por esta brenha No vayais adó os llamó,
Sem o sentir quem o tem. Venadoro, meu Senhor, Padre, sin saber quien es.
Dionisa Sem que novas dele tenha:
Filodemo, no que ouvi, Oh! quem pudera escusar Queira Deus que inda não venha Pastor
Tem-lhe sobeja afeição; De comer, nem de ver gente! Desta perda outra maior. Porque?
E posto que o creia assi, Contra esta parte daqui
Ou eu sonhei ou ouvi, Nenhũa cor de verdade Despós um cervo correu; Bobo
Que era de alta geração. Tenho do que me ele manda. Logo desapareceu. Porque este es — sé yo —
Logo na filosomia, Como da vista o perdi, Aquele ladrón que hurtó
Nas manhas, artes e jeito, O gosto se me perdeu. El asno del Portuguez.
Vilardo
Mostra mui grande respeito; Se ela sem vontade anda,
Nem tão alta fantesia Eu lhe emprestarei vontade, Eu e os mais caçadores Y se vais adó están,
Não se põe em baixo peito(43). Empreste-me ela a vianda. Corremos montes e covas; Os juro al cuerpo sagrado
Falámos com lavradores De San Pisco y San Juán,
Dionisa Deste vale, e com pastores, Que también os hurtarán,
Solina Sem acharmos dele novas.
Tudo isso cuido e vi Vá, Senhora, por não dar Que sois asno más honrado.
Mil vezes miudamente; Quero ver nestes casais
Mais em que cuidar à gente Que cobre aquele arvoredo,
Mas estas mostras assi Pastor
São desculpas para mi, Se acharei pastores mais,
Dionisa Que me dêm alguns sinais Déjame ir, que me llamó.
E não pera toda a gente.
Irei, mas não por jantar, Que me possam tornar ledo.
Que quem vive descontente Bobo
Solina Mantém-se de imaginar. No, por vida de mi madre;
O seu moço vejo vir Chama pelos pastores do casal e
responde-lhe um Pastor. Que si allá vais, muerto so,
A nós, seu passo contado. Y desta vez quedo yo,
Este é muito pera ouvir, Vilardo
Pois também cá minhas dores Sin asno, triste! y sin padre.
Que diz que me quer servir, Hou dos casais! Hou de lá!
De amores esperdiçado(44). Me não deixam comer pão, Ah! Pastores, não falais?
Nem come minha afeição Monteiro
Senão sopadas de amores Vinde, que vo-lo encomendo,
Entra Vilardo, e diz E mil postas de paixão. Pastor E em vossas mãos me ponho.
Das lágrimas caldo faço, Quién sois, ó lô! Que buscais?
Vilardo Do coração escudela; Bobo
Senhora, o Senhor seu pai, Esses olhos são panela Monteiro No vas, que dijo en comiendo:
Mesmo(45) de Vossa Mercê, Que coze bofes e baço, Ouvis? Chegai pera cá. Encomiendoos al demonio!
Já lá pera casa vai. Com toda a mais cabedela.
Por isso, Senhora, andai Pastor
Que ele me mandou num pé; Ao monteiro
Vão-se todos e entra Monteiro em busca Dicid vos lo que mandais.
E diz que fosse jantar de Venadoro, que se perdeu na caça. E diz
Vossa Mercê mesmamente. Y eso es lo que andais haciendo?
Fala o Bobo, seu filho do Pastor
Pastor Bobo Que unas choças de vaqueros Florimena
Déjame ir adó está, Ya me callo: ahora un poco Portuguezes allí están, Por este fermoso prado,
Que no es cosa que me espante. He de ser lo que yo quisiere. Y aí muchas veces van Tudo quanto a vista alcança
Cazadores cavalleros: Tão alegre está tornado,
Bobo Pastor Puede ser que lo sabrán. Que a qualquer desesperado
No quereis sino ir allá? Señor, diga lo que quiere, Pode dar certa esperança.
Pues echadle pan delante, Porque este muchacho es loco, Monteiro O monte e sua aspereza,
Puede ser que amansará. Y muero porque no muere. Quero-me ir lá saber. De flores se veste, ledo;
Ficai-vos a Deus, pastor. Reverdece o arvoredo.
Pastor Monteiro Somente em minha tristeza
Dios os guarde! Qué cosa es Digo que se por ventura(46) Pastor Está sempre o tempo quedo.
Esa porque voceais? Sabeis o que ando buscando; Dios os livre de dolor.
Um fidalgo que caçando, Junto desta fonte pura,
Monteiro Se perdeu nesta espessura, Bobo Segundo a muitos ouvi,
Dar-me-eis novas ou sinais Após um cervo andando. Y a nos dé siempre comer, De altos parentes nasci.
De um fidalgo português, Tenho esta parte corrida, Pan y sopas, que es mejor. Foi como quis a Ventura,
Se passou por onde andais? Sem dele poder saber: Mas não como eu mereci.
Trago a alegria perdida; O dia que fui nascida,
Mirad lo que os notifico: Minha mãe do parto forte
Bobo E se de todo a perder, En aquele valle, acullá,
Perca-se também a vida(47). Foi sem cura falecida;
Yo sóy hidalgo portuguez: Anda paciendo un burrico, E o dia que me deu a vida
Que manda su Señoria? Hidalgo, manso y bonico; Lhe dei eu a ela a morte.
Porque só polo buscar Puede ser que ese será.
Pastor Tenho trabalhos assaz.
Do mesmo parto nasceu
Pastor Meu irmão, que entre os cabritos
Cállate! Oh! que nescio es! Bobo Calla, y acaba de andar.
(Yo no puedo callar más. Comigo também viveu;
Mas, assi como creceu,
Bobo Bobo Creceram nele os espritos.
Padre, no me dejarés Pastor Ya ando Foi-se buscar a cidade;
Ser lo que quisiere un dia? Como no puedes callar? Teve juízo e saber;
Quítate allá para trás!) Pastor Eu fiquei, como mulher,
Cuanto por aquesta tierra, Quieres callar? E não tive faculdade
Ah! Santo Dios verdadero! No siento nueva ninguna.
No seré lo que otros son? Bobo, que tan poco sabe! Pera poder mais valer.
Digo ahora que no quiero
Ser Alonsico, el vaquero. Monteiro Bobo A um pastor obedeço
Oh! trabalhosa fortuna! No decis que ande y acabe? Por pai, que doutro não sei;
Pastor Ando, y no quiero acabar. E pola mãe que matei,
Cállate ya, bobarrón! Pastor A ũa cabra conheço,
Mas detrás daquesta sierra Vão-se todos e entra Florimena, pastora, De cujo leite mamei.
Hallaréis, por dicha, alguna; com um pote, que vai à fonte, e diz Mas, porém, já que este monte
Me obriga, e meu nascimento,
Quero, pois quer meu tormento, Oh! que formosa serrana Florimena Venadoro
Encher a talha na fonte, À vista se me oferece! Porque não? Senhora, eu não vos pedia
Que cos olhos acrecento. Deusa dos montes parece; Não suprirá natureza Que ninguém me encaminhasse;
E se é certo que é humana, Onde falta criação? Que o caminho que eu queria,
Enquanto finge que enche a talha, entra O monte não a merece. Se o eu agora achasse,
Venadoro, e diz Pastora tão delicada, Venadoro Mais perdido me acharia.
De gesto tão singular,
Venadoro Parece-me que em lugar Já logo nisso, Senhora, Não quero passar daqui;
Pois que me vim alongar De perguntar pola estrada, Dizeis, se não sinto mal, E não vos pareça espanto,
Dos caminhos e da gente, Por mim lhe hei-de perguntar. Que do vosso natural, Que em vos vendo me rendi,
Fortuna, que o consente, Não era serdes pastora. Porque, quando me perdi,
Se devia contentar Atéqui sempre zombei Não cuidei de ganhar tanto.
De me ter tão descontente. De qualquer outra pessoa Florimena
Porém, segundo adivinho, Que afeiçoada topei; Não era serdes pastora. Florimena
Por tão espesso arvoredo, Mas agora zombarei Digo, mas pouco me vale. Senhor, quem na serra mora
Por tão áspero rochedo, De quem se não afeiçoa. Também entende a verdade
Quanto mais busco o caminho, Serrana, cuja pintura Dos enganos da cidade.
Tanto alma me moveu, Venadoro
Tanto mais dele me arredo. Pois quem vos pôde trazer Vá-se embora, ou fique embora,
Dizei-me: Por qual ventura Qual for mais sua vontade.
Andareis nesta espessura, À conversação do monte?(49)
O cavalo, como amigo,
Já cansado me trazia, Merecendo estar no Céu? Venadoro
Florimena
Mas deixou-me, todavia; Perguntai-o a essa fonte; Oh! lindíssima donzela,
Que mal pudera comigo Florimena A quem a Ventura ordena
Tamanho inconveniente Que as cousas duras de crer,
Quem consigo não podia. Um as faça, outro as conte. Que me guie como estrela!
Quero-me aqui assentar Andar na serra parece?! Quereis-me deixar a pena,
À sombra, nesta ervinha, Pois a ventura da gente E levar-me a causa dela?
Porque canso já de andar; Sempre é mui diferente Venadoro E já que vos conjurastes
Nas inda a fortuna minha Da que, ao parecer, merece. Esta fonte, que está aqui, Vós e Amor pera matar-me,
Não cansa de me cansar. Que sabe do que dizeis? Oh! não deixeis de escutar-me!
Venadoro Pois a vida me tirastes,
Junto desta fonte pura Tal reposta é manifesto Florimena Não me tireis o queixar-me!
Não sei quem cuido que está; Não se aprender entre as cabras(48); Senhor, mais não pergunteis,
Mas no coração me dá Pois não vos parece honesto Porque outra cousa de mi Que eu, em sangue e em nobreza
Que aqui me guarda a ventura Saberdes matar co gesto Sabei que não sabereis. O claro Céu me extremou,
Algũa ventura má. Senão inda com palavras? E a Fortuna me dotou
Ou ganhado ou bem perdido, De vós agora sabei De grandes bens e riqueza,
Faça, enfim, o que quiser, No mato tudo é rudeza. O que não tendes sabido: Que sempre a muitos negou.
Que eu o fim disto hei-de ver, Há tal gesto e discrição? Se quereis água, bebei; Andando caçando aqui,
Que já venho apercebido Não no creio. Se andais por dita perdido, Após um cervo ferido,
A tudo quanto vier. Eu vos encaminharei. Permitiu meu Fado assi,
Que andando dos meus perdido, Porque eu vou-me pera o monte, Monteiro Que morte que quis matar-vos,
Me venha perder a mi. Porque há já muito que vim. Digo lhe, que me entristece; Quero que me mate a mi.
Que eu corri por esses montes,
E porque inda mais passasse Vai-se Florimena, e diz Bem quinze léguas ou mais, Onde fostes fenecido
Do que tinha por passar, E busquei polos casais, Seja também vosso pai;
Buscando quem me ensinasse Venadoro Por serras, montes e fontes, Ser-me-á acontecido,
Por que via me tornasse, Ó linda minha inimiga, Sem ver novas nem sinais. Como a virote que vai(52)
Acho quem me faz ficar. Gentil pastora, esperai! Buscar outro que é perdido.
Que vingança permitiu Pois a tanto amor me obriga, Toda a gente que levou, Vós só haveis de ficar,
A Fortuna num perdido! Consenti-me que vos siga: Buscando-o muito cansada, Filodemo, encarregado
Oh! que tirano partido, Vá o corpo onde alma vai. Pelo mato anda espalhada; Pera esta casa guardar;
Que quem o cervo feriu, Mas ainda ninguém tornou, Que de vosso bom cuidado
Vá como cervo ferido! E pois por vós me perdi, Que soubesse dele nada. Tudo se pode fiar.
E neste estado Amor me pôs,
Ambos feridos num monte, Os olhos com que vos vi, D. Lusidardo Ide-vos a fazer prestes,
Eu a ele, outrem a mi. Pois os deixastes sem mi, Oh! fortuna nunca igual! Mandai cavalos selar;
Ũa diferença há aqui: Oh! não os deixeis sem vós! Quem me fará sabedor Pois achá-lo não pudestes,
Que ele vai sarar à fonte, Porque a Fortuna me disse De meu filho e meu amor? Ir-me-eis mostrar o lugar
E eu nela me feri. Que nas serras onde andais, Que se é muito grande o mal, Onde da vista o perdestes.
E pois que tão transformado Em estes extremos tais, Muito mor é o temor.
Me tem vossa fermosura, Não era bom que vos visse Vão-se e entra o Bobo com o vestido de
Um de nós troque o estado: Pera não ver de vós mais. Quem tolhe que não achasse Venadoro, que lhe tomou Venadoro o seu,
Ou vós pera o povoado, Algum leão temeroso(51) por se vestir de pastor, e diz, cantando.
Ou eu pera a espessura. E pois Amor se quis ver Nalgum monte cavernoso,
Da livre vida vingado, Que sua fome fartasse Bobo
Florimena Em que eu soía viver, Em seu corpo tão fermoso? Los muchachos del Obispo
Dos arminhos é certeza, Faça em mi o que quiser, Quem há que saiba, ou que visse, No comen cosa mimosa,
Se lhe a cova alguém sujar, Que aqui vou ao jugo atado. Que das montanhas erguidas Ni zanca d’araña, ni cosa mimosa.
Morar fora antes de entrar(50); Algum monstro não saísse,
De estimar muito a limpeza, Vai-se Venadoro após de Florimena, e E com seu sangue tingisse Fala
Pola vida a vai trocar. entra Dom Lusidardo, seu pai, que quer ir As ervas nelas nascidas?
Também quem na serra mora em sua busca, e o Monteiro e Filodemo, e
Tanto estima a honestidade, De su sayo colorado
diz Oh filho! vais-me a lembrar Tan lozano me vestió,
Que antes toma ser pastora, Quantas vezes vos mandava
Que perder a castidade, Que yo ya no soy yo,
D. Lusidardo Que leixásseis o caçar! Ya por otro estoy trocado,
A troco de ser senhora. Não cuidei de adivinhar
Oh! Santo Deus verdadeiro, Que este sayo me trocó.
A quem o Mundo obedece! O que Fortuna ordenava. Oh! que asno portuguez,
Se mais quereis, esta fonte Meu filho não aparece, Eu irei, filho, buscar-vos Que loco por Florimena,
Vos descubra o mais de mim: Ou que me dizeis, monteiro? Por esses montes, por i, Deseó samarra ajena,
O que ela viu, ela o conte; Ou perder-me, ou cobrar-vos;
Y dame por enterés Y aquellos que no me quieren, Mancebo de casta buena, Pastor
Una zamarra tan buena! Ahora me rogarán. Que amores de Florimena Véte dahi!
Le traen loco y penado.
Como yo vi la bovilla Sabéis porque no querré? Dice que quiere casar Bobo
Andar con él en questiones, Porque estoy ahidalgado; Con ella, que su tormiento Héme aqui,
Y parársele amarilla, Y cuando fuere rogado, No le deja reposar;
Díjele: — Florimenilla, Cantando responderé, Y que venga festejar Pastor
Andáis en dongolondrones? Que ya estoy otro tornado. Tan dichoso casamiento. Vé donde te dixe.
Él me dijo: — Matalote,
No tengáis dello desmayo. Canta e baila Bobo Bobo
Y en esto, como un rayo, Decid, padre, tambien vos, Ya vengo.
Tomóme mi capirote(53), Soropicote, picote, mozas, No quereis casar comigo? Oh! que padrasto que tengo,
Y dióme su capisayo. Ahora quiero amores con vosotras. Casemos ambos adós. Que asi me manda por ahi,
Sendo camino tan luengo!
Capirote, en buena fé, Entra o Pastor e diz Pastor
Si vós, cuando en mi entrastes, Vé, y haz lo que te digo. Vão-se, e entram Dionisa e Solina.
Capisayo vos tornastes,
Que yo por eso cantaré, Pastor
Hijo Alonsillo! Bobo Dionisa
Pues ansí me mejorastes. Responde, padre, por Dios. Oh! Solina, minha amiga,
Bobo Que todo este coração
Canta Pastor Tenho posto em vossa mão,
Hijo Alonsillo!
Amor me manda que diga,
Lyrio, lyrio, lyrio loco, Vé luego, y vuelve apresado. Vergonha me diz que não.
Con qué? Con capirotada. Pastor
No me quieres escuchar! Anda. No quieres andar? Que farei?
Como me descobrirei?
Por hablar con la golosa Bobo Porque a tamanho tormento
De amores, mirad la cosa! Bobo Mais remédio lhe não sei,
Pues déjame suspirar. Pues que me habeis empujado,
Zamarilla tan hermosa, Juro á mi de desandar Que entregá-lo ao sofrimento.
Que me han dado tan honrada, Todo quanto tengo andado.
Con quê? Con capirotada. Pastor Meu pai muito entristecido
Escúchame ahora, asnillo, Se vai pela serra erguida,
Lo que te quiero mandar. Pastor
Fala Trabajoso es este insano! Já da vida aborrecido,
Vete al Valle de las Rosas, Buscando o filho perdido,
Y di á Anton del Lugar Nunca hace lo que quereis.
Yo entonces respondí: Tendo a filha cá perdida!
Que si puede acá llegar, Sem cuidar,
Señor, dame pan y queso; Porque tengo muchas cosas Bobo
Mas despues que lo entendí, Ora no os apasioneis, Foi a casa encomendar
Que importan para le hablar. A quem destruir-lha quer:
Dixe a ella: Dale un beso, Mi padrecico lozano,
Que él me dió zamarra a mí. Que burlaba, y no lo veis?! Olhai que gentil saber,
Ahora me mirarán Porque es aqui llegado Que vai comigo leixar
Cuantos a la eglesia fueren; Á este valle un hombre honrado, Quem me não leixa viver.
Solina Como pera lhe rogar E mais pera namorado Solina
Senhora, em tanto desgosto Que um anel que lá me tem Não são ora tão madraço. Ora, pois me quereis bem,
Não posso meter a mão; Que mo mande consertar. Dizei-me ũa.
Mas, como diz o rifão, Solina
Mais vale vergonha no rosto, Dionisa Sois muito desmazelado! Vilardo
Que mágoa no coração. Dizeis mui bem. Ei-la aqui,
E, bofé! se eu tanto amasse, Vilardo E veja o saibo que tem;
E visse tempo e sezão, Solina Mas antes, de delicado Porque esta trovinha assi,
Sem seu pai, sem seu irmão, Vou-me lá Caio pedaço a pedaço. Saiba que é trova do assém(59).
Que a nuvem triste tirasse(54) Chamar o seu moço à sala; E mais eu sofrer não posso
De cima do coração!... E se este parvo vem cá, Que me façais tanto fero(56), Diz o Moço a trova:
Com ele um pouco rirá, Que estou já posto no osso,
Dionisa Que sempre amores me fala. Porque sou vosso e revosso, Passarinho, que voais
Ah mana! que tenho medo, Vilardo, moço! Por vida de quanto quero. Nesta manhã tão serena,
Que se eu em tal consentisse Sabei que só minha pena
Que logo o mundo o sentisse, Vilardo Solina Pode encher mil cabeçais(60).
Porque nunca houve segredo, Quem chama? Feros? Está cheia a rua(57).
Que, enfim, se não descobrisse. Ora estou bem aviada! Solina
Solina O refão está salgado.
Solina Vem cá, moço; eu te chamo. Vilardo Essa pena te dou eu?!
Se eu tantas dobras tivesse Que é de teu amo? Cupido, por vida tua,
Como quantas houve erradas, Que a não faças tão crua,
Sem que o mundo o soubesse, Vilardo
Vilardo Pois que te não faço nada! Vós e Amor, que, de malvado
À fé que eu enriquecesse, Amor, Amor, más te pido,
E fosse das mais honradas. Ah que dama! Me tem milhor empenado,
Perguntais-me por meu amo, Que quando se for deitar, Que nenhum virote seu.
E não por um que vos ama? Que le digas al oido:(58) Pois se me ouvíreis cantar!
Dionisa – Devíeis-vos de lembrar
Sabeis que tenho em vontade? Neste tempo dum perdido.
Solina Solina
E quem é esse amador, E tu és também cantor?
Solina Que quer ter comigo passo?(55) Solina
Que podeis, Senhora, ter? Será ele algum madraço? E tu fazes já cóprinhas? (Vilardo)
Ainda tu trovarás? Canto milhor que um açor
Dionisa Vilardo Quereis que vos venha dar
Falar-lhe, só pera ver Eu sou o mesmo, que o amor Vilardo Musiqueta de primor?
Se é por ventura verdade Me quebra pelo espinhaço. Quem? eu?! por estas barbinhas,
O que dizeis que me quer. E mais vós sabei de mi, Que se vós virdes as minhas, E que vos mande tanger
Se eu a dizê-lo me atrevo, Que digais que não são más. Muito milhor que ninguém?
Solina Que desque esses olhos vi,
Bofé, mana, dizeis bem, Que yo ni como, ni bebo,
E eu o mandarei chamar, Ni hago vida sin ti.
Solina Vilardo Que em mi pegando estão, Vales, campos pastoris,
Já isso quisera ver. Não estarei aqui mais? De ũa parte a Rezão, Porque vos não revestis
E doutra parte o Amor. De novas flores e rosas,
Vilardo Solina Também vejo que perdê-la Se minha glória sentis?
Querer-me-eis, se o eu fizer, Não. Ainda aí estais? Será minha perdição; Porque não secais, abrolhos?
Algum pedaço de bem? Vós haveis mester esporas. Que bem me diz a afeição, E vós, água, que, regando
Que pouco faço por ela, Os olhos is alegrando,
Solina Vilardo Pois não desfaço em quem sam. Correi, que também meus olhos
Querer-te-eis trinta pedaços. De alegres estão manando.
Irei, porque mo mandais. Pastor
Vilardo Dígoos, si por bajeza Ah! pastora, em quem espero
E esse querer dará fruito, Decis que no os conviene, Poder viver descansado!
Vai-se Vilardo e Solina, e entra o pastor e Daros hé una certeza: Contigo guardarei gado,
Que me tire destes laços? Venadoro com ele, feito pastor, e diz o Que en sangre y en nobleza, Que já eu sem ti não quero
Tanto como vos la tiene. Nenhũa alteza de estado.
Solina Pastor Diga o que quiser a gente,
E que fruito? Más de un mes es ya pasado Tudo terei nũa palha,
Venadoro
Que en esta sierra andais; Pastor, digo que daqui Porque está craro e evidente,
Vilardo Y es caso mal mirado Farei tudo o que quiserdes; Que não há honra(61) que valha
Dous abraços. Que andeis guardando ganado E se mais quereis de mi, Contra a vida descontente.
Por una que tanto amais. Digo que vos dou o si
Solina Y si os determinais Pera tudo o que fizerdes. Entram três pastores bailando e cantando
Esse fruito custa muito. En querer casar con ella, de terreiro, diante do pastor que traz
Juro a mí que nada erráis; Florimena, e diz o
Y si eso es para habella, Pastor
Vilardo Dios os dé su bendición;
Esse é o amor que em vós há? En vano cabras guardais.
Y pues que casais con ella, Pastor
Pesar de minha mãe torta! Yo os afirmo en conclusión, Pues el amor os obliga
Ya me distes vuestra fé Que aun de vos y mas della A que hagáis tan buena liga,
Solina (Sábenlo estas sierras todas): Verná gran generación. Tomando a Dios por testigo,
Ora i, chamai logo lá Yo con ella me engañé, Yo me voy por ella, hijo, Daquí os la entrego, amigo,
Vosso amo, que venha cá Que luego mandar llamé Tomadla ansí mal compuesta; Por mujer y por amiga.
Logo, que é cousa que importa. Quien festejasse las bodas. Verná quien haga la fiesta;
Y ahora decis con pena, Que en placer y regocijo
Que es dura cosa casar: Venadoro
Vilardo Nos festeje esta floresta. Consentis nisto, Senhora?
Pues volveos nora buena,
Logo? Que no habeis de engañar
Con palavras Florimena. Vai-se o pastor e fica Venadoro falando Florimena
Solina só, e diz Senhor, em tudo consento.
Logo nessas horas. Venadoro
Quem há-de ter coração Venadoro Venadoro
Pera tamanho temor? Ó ribeiras tão fermosas, Oh! grande contentamento!
Florimena Se Venadoro não é, Voto a tal no llevaréis: (Y desto cierto me arreo)
Saiba que nunca tègora Nem eu o monteiro sam. Por más y por más que andéis Y a la madre sepulté;
Lhe houve enveja ao tormento. No hareis tal travessura. Y despues un gran deseo
Pastor De saber esto tomé.
Pastor Quién veo allá asomar, Venadoro
Ansí lo decis, bobilla? Que se viene a nuestras bodas? Esta fermosa donzela Como yo fuese enseñado
Oh! mala dolor os duela! Em mi teve tal poder, De chico a la mágica arte
Pero no es maravilla Bobo Que folguei de me perder; Por mi padre, que es finado,
Quien consiente ansí la silla, No los dejemos llegar, Pois, enfim, vim achar nela Muy conoscido y nombrado
Consienta también la espuela. Que nos vernán a robar, O que não cuidei de ser. Soy por tal en toda parte.
Juro a mi, las migas todas. Tanto em mi pôde este amor, Yo con yervas de la sierra,
Tornam a bailar e cantar, e acabado, Que a tenho recebida; Animales y otras cosas
entra D. Lusidardo e o Monteiro, que Lusidardo E se o erro grave for, Haré, si el arte no se yerra,
andam em busca de Venadoro. E diz Oh! Venadoro, meu filho! Aqui quero ser pastor: Que desciendan a la tierra
És tu este? Deixe-me ter esta vida. Las estrellas luminosas.
Lusidardo
Três dias há já que ando Venadoro Lusidardo Soy, en fin, certificado
Por esta larga espessura Tal estou, É certo tal casamento?! Que la madre de los dos
A Venadoro buscando; Que cuido que este não sou. Fué princeza de alto estado,
E o que dele vou achando Venadoro Y por un caso nombrado
É que mo esconde a Ventura. Tenha-o por cousa segura. La traxo a esta tierra Dios.
Lusidardo El macho, como creció,
Certo que me maravilho Deseoso de otro bien,
Monteiro De quem tanto te mudou! Lusidardo
Senhor, cuido que lá vejo Oh! grande acontecimento! Á la Corte se partió:
Como estás assi mudado La hembra es esta por quien
Uns lavradores cantar. No rosto e no vestido? Dest’arte sabe a Ventura
Aguar um contentamento! Vuestro hijo se perdió.
Lusidardo Venadoro
I diante perguntar. Pastor Y si más quiere, Señor,
Ando já noutro trocado, De mi arte, prestamente
Tanto, que fiquei pasmado Óigame, Señor, a mí,
Como hombre sabio, discreto, Dello te haré sabedor;
Monteiro De como fui conhecido. Mas ha de ser de tenor
Comprido é seu desejo, Porque acaeció ansí,
Y lo que supo hasta aqui Que no lo sepa la gente.
Se a vista não me enganar. E se Vossa Mercê vem
Para me levar daqui, Lo puede tener por cierto.
Lusidardo
Lusidardo Mais há-de levar que a mi; Mas vamo-nos, se quereis,
Como assi?! E há-de ser quem me tem Muchos años son corridos
Que en esta fuente abierta, Que não sofro dilação,
Todo transformado em si. A minha casa; e então
Monteiro En estos valles floridos,
Hallé dos niños nascidos, Lá disso me informareis,
Ele não vê Bobo Que caso é de admiração.
Aquele pastor loução Eso porque lo entendéis? Ya a su madre casi muerta.
Com ũa moça pola mão? Por las migas por ventura? Los niños chicos crié,
E vós, filho, não cuideis Dionisa Que faço em me perder, Como isto venha a bom fim.
Que a glória de vos achar Nesse deserto apartado Algum bem vos merecer, Lá poderão ajustar
Não é tanto de estimar, De toda a conversação, Fique em vossa consciência Entre ambos o parecer,
Que em qualquer ‘stado que esteis, Merecíeis degradado O que me podeis dever. Que eu não me hei nisso de achar,
Não folgue de vos levar. Por justiça, com pregão Que dizeis a isto, Senhora? Que não quero temperar
Que dissesse: Por ousado. O que outrem há-de comer.
Vão-se todos e, vendo vir a Filodemo, diz E eu também merecia Dionisa
Metida a grave tormento, Eu que vos posso dizer? Dionisa
Solina Pois que, como não devia, Já não tenho em mi poder, Vós vedes a torvação,
Eis Filodemo lá vem: Vim a dar consentimento Segundo me sinto agora, Que lá nessa casa vai?
Asinha acudiu ao leme. A tão sobeja ousadia. Pera poder responder.
Respondei-lhe vós, Solina, Solina
Dionisa Filodemo Pois a vós me entreguei. Dá-me cá no coração
Isso é de quem quer bem; Senhora, se me atrevi, Que é vindo o Senhor seu pai
Mas não sei se o viu alguém, Fiz tudo o que Amor ordena; Solina Com o Senhor seu irmão.
Porque quem espera teme. E se pouco mereci, Bofé, não responderei:
Agora me quisera eu Tudo o que perco por mi, Veja ela o que determina. Dionisa
Daqui cem mil léguas ver. Mereço por minha pena. Filodemo, i-vos embora;
E se Amor pôde vencer, Dionisa Falai despois com Solina.
Levando de mi a palma, Não no vejo, nem no sei.
Filodemo Eu não lho pude tolher;
Folgara eu assi de ser, Que os homens não têm poder Solina
Porque este cuidado meu Sobre os afeitos da alma. Solina Vamos-nos também, Senhora,
Fora mais de agradecer; Pois eu também não sei nada. Receber seu pai lá fora,
Que quando por acidente Não venha sentir a mina(63).
Da fortuna desastrado E ainda que pudera
Resistir contra o mal meu, Dionisa
Fosse apartado da gente Porquê? Vão-se todos e entra Vilardo e Doloroso,
Num deserto, onde sòmente Saiba que o não fezera;
Que pouco valera eu, que vêm dar ũa música a Solina com os
Das feras fosse guardado; Solina músicos. E diz logo
Se contra vós me valera.
Não deve logo ter culpa Do que eu fezer,
Eu por ferro, fogo e água Quem se venceu de armas tais. Se despois se arrepender, Vilardo
Buscar minha morte iria; Assi que, nisto e no mais, Dirá que eu fui a culpada. Assi que te contava, Doloroso, destas em
A voz rouca, a língua fria, Tomo por minha desculpa que sempre andam rogindo as sedas.
Tamanho mal, tanta mágoa Vós mesma que me culpais. Dionisa
Às montanhas contaria. Eu só quero a culpa ter. Doloroso
Lá, mui contente e ufano Avante, que bem sei que o não dizeis
De mostrar amor tão puro, E se este atrevimento
Com tudo for de culpar, Solina polas sedas de Veneza.
Poderia ser que o dano,
Que não move um peito humano, Acabai de me matar, Senhora, por não errar,
Que movesse um monte duro Que aqui tenho um sofrimento Não quero que fique em mim(62). Vilardo
Que tudo pode passar. Esta noite no jardim Já sabeis que esta nossa Solina é tão
E se esta penitência, Ambos podem praticar celestina, que não há quem a traga a nós?
Doloroso vem-me isto à popa, porque daqui iremos pudesse ver de palanque com carta de que ali perdia. Eu, coitado de mi, que meta
Logo parece moça brigosa, que por dá cá à porta da minha padeirinha, porque ando alforria ao pescoço, porque não pudessem os dentes nos cabeçais, se desejar ave de
aquelas palhas, dará e tomará quatro com ela num certo requerimento. entender nele meirinhos, almotacéis da pena.
espaldeiradas; e ao outro dia quem há-de limpeza, trabalhos, esperanças, temores,
cuidar que ũa mulher de sua arte há-de Vilardo com toda a outra cabedela de Aqui entra Duriano, e diz, como cantando,
querer bem a um parvo como ti? Porque Vossas Mercês vem ao próprio: boa seja a enfadamentos! Ora notai bem de quantas
estas tais são como homens sesudos: se de vinda. As guitarras vêm temperadas? cores teceu a Fortuna esta manta de Duriano
noite se acham em algum arruído, onde Alentejo: perdeu-se Venadoro na caça: eis Ti ri ri, ti ri rão.
possam fugir sem serem conhecidos, Os dois músicos a casa toda envolta como rio: o pai
facilmente o fazem; e ao outro dia quem enfadado, a irmã triste, a gente desgostosa,
há-de cuidar que um homem tão honrado tudo, enfim, fora do couce; e o galante Monteiro
havia de fugir? Outros dizem: Bem pode Tudo vem como cumpre. Mandai vegiar a aposentado nos matos com trajos mudados Que é isso, Senhor Duriano? Que
ser, porque noite escura é capa de judeus e justiça entretanto. como camaleão decepado dos pés e das descuidos são esses? Onde é cá a ida
de envergonhados. mãos, por ũa serranica de Alentejo! E veio agora?
Vilardo o caso a sair de maneira fora da madre,
Vilardo Ora sus: fazei como se temperásseis que a recebesse por mulher; e rapa ólio e Duriano
Mui gentil comparação é esta. Mas assi cabeça de pescada com seu fígado e crisma de quem é(67), e renega as Vou assi como parvo, porque o milhor é
que te dezia, o outro dia, assi zombando bucho, e canada e meia, que nunca meu alembranças de seu pai, pois tanto tomou não saber homem nada de si.
lhe pormeti de lhe dar ũa música, e já pai fez tamanho gasto na sua missa nova. ao pé da letra o que Deus disse — Por
chamei outros dous meus amigos, que esta deixarás teu pai e mãe. E atentai isto, Monteiro
logo hão-de vir aqui ter connosco. Neste passo se dá a música com todos por me fazer mercê: cuidareis que este Que dizeis a vosso amigo Filodemo, que
quatro. Um tange guitarra, outro caso era solus peregrinus(68). Sabei que assi se soube aproveitar do tempo que
Doloroso pentem(66), outro telhinha, outro canta os não dá a fortuna senão aos pares, como ficou só em casa?
Que tal é a música que determinas de lhe cantigas muito velhas, e no milhor diz quedas. Dionisa, mais mimosa e mais
dar? Não seja de siso; porque será a maior guardada de seu pai que bicho de seda, Duriano
parvoíce do mundo, porque não concerta Vilardo moça sem fel como pombinha, que nos Eu que hei-de dizer? Digo que descreio
com a parvoíce que tu finges. Estai assi quedos, que eu sinto quem quer anos não tinha feito inda o enequim(69), desta minha capa, se não é isto caso pera
que é. mais fermosa que ũa menhã de S. João, sair com ele a desafio.
mais mansa que o rio Tejo, mais branda
Vilardo que um soneto de Garcilaso, mais delicada
A música não é senão das nossas; mas Doloroso Monteiro
que um pucarinho de Natal; enfim, que
faço-te queixume, que nem com um cão Justiça, polo corpo de tal! Ora sus, aqui Porquê?
por meia hora de sua conversação se
de busca pude achar ũas nêsporas(64) por não há outro valhacouto que nos valha,
poderá sofrer ũa pipa com cobra e galo e
toda esta terra. que pôr os pés ao caminho e mostrar-lhe Duriano
dóninha, como a parricida, com tanto que
as ferraduras. Porque não basta que lhe dê a Fortuna
dissesse o pregão o porquê. Porque vos
Doloroso não fieis em castanhas (não sei se o diga, gostos tão medidos sobre o funil, que lhe
Nem nas acharás senão alugadas; mas eu Vão-se todos e entra o Monteiro, e diz se o cale, que de magoado me trava pola põe nos braços Dionisa, a mais fermosa
não sou de opinião que teus amores te manga a fala da garganta; mas, contudo, dama que nunca espalhou cabelos ao
custem dinheiro. Ora já lá aparecem os Monteiro não há quem se tenha): seu pai a achou vento, senão ainda, pera o assegurar em
outros companheiros, e eu também Como é gracioso este mundo, e como é esta noite no jardim com Filodemo, mais sua boa ventura, lhe vem a descobrir que é
ajudarei de telhinha(65) ou de assovio; e galante! E quão gracioso seria quem o arrependida do tempo que perdera, que do filho de não sei quem, nem quem não.
Monteiro quem parece que a Fortuna guardava, pera Monteiro Dêm-se graças ao Senhor,
Esses são outros quinhentos(70). Cujo dar o descanso que a seu pai e mãe negara. Dai-me a entender como se creu tão de Cujo segredo é profundo,
filho dizem que é, que eu ouvi já sobre Saiu finalmente a moça na praia, tal qual o ligeiro o senhor Dom Lusidardo de quem Pois que vemos que quis pôr
isso não sei que fábulas? temeroso naufrágio deixaria ũa princesa isso contou. A Ventura e o Amor
mais delicada que um arminho; e indo assi Por prazeres deste mundo.
Duriano a pobre mulher pola terra estranha e Duriano
Dir-vo-lo-ei; pasmareis, que não é menos despovoada, e sem quem a encaminhasse No caso não há dúvida, porque o pastor Vão-se todos e fenece a presente obra.
que príncipe, e pior ainda: Nunca ouvistes por donde, despois de ter perdido tanto a que lá achastes lhe certificou todo o caso;
dizer de um irmão do senhor Dom esperança de ter algum remédio, deram- e fez ao pastor muitas mercês, e manda Finis. Laus Deo
Lusidardo, que agravado de El-Rei, se foi lhe as dores de parto junto de ũa fonte, fazer muitas festas solenes. Venadoro,
pera os Reinos de Dinamarca? aonde em breve espaço lançou duas casado com sua mulher e prima, e
crianças, macho e fêmea, como Filodemo, que o mesmo parentesco tem NOTAS
Monteiro visagras(73). E como a fraca compreição com a Senhora Dionisa, estão fora de crer
Tudo isso ouvi já. da delicada mulher não pudesse sustentar tamanho contentamento: cuida que 1 — Eramá é interjeição arcaica, de
tantos e tão desacostumados trabalhos, zombam deles. indignação. É contracção de em hora má,
facilmente deu a vida, que tanto havia que opondo-se a em boa hora, que se encontra na
Duriano desejava de dar, deixando vivos aqueles forma corrente embora, então com sentido não
Pois esse galante, em satisfação de muitas Monteiro meramente conjuncional. Vá embora
dous retratos dela e de seu pai, que por Ora deixa-me ir a ver o rosto a esse
mercês que El-Rei de Dinamarca lhe significava vá com Deus; Falai, eramá... o
causa de seus nascimentos a vida lhe velhaco de Filodemo, pois de meu mesmo que Falai, com mil diabos...
fizera, meteu se de amores com ũa sua tiraram, como acontece a víboras. E como matalote se me tornou senhor. Creio que 2 — Dizemos hoje fermento. Feito de
filha, a mais moça; e como era bom as crianças fossem destinadas ao que vem o senhor Dom Lusidardo. fermento, significa azedo, como a massa de
justador, manso, discreto, galante, partes vedes, não faltou um pastor que as criasse, farinha fermentada.
que a qualquer mulher abalam, desejou ela Dessimulemos.
que ali veio ter, dando a mãe a alma a 3 — Dizia-se do camaleão que, além de tomar
de ver geração dele; senão quando — Deus. De maneira que, por não gastar a cor da coisa sobre que pousava, se nutria de
livre-nos Deus! — se lhe começou de mais palavras, o macho é vosso amigo Entra Dom Lusidardo com Venadoro, que vento. Assim o Moço apresenta-se como
encurtar o vestido, que estas cidras não se Filodemo, e a fêmea é a serrana traz Florimena pela mão, e Filodemo traz exemplo de pessoa que, apesar de adaptável e
desistem em nove dias(71), senão em nove a Dionisa e diz de pouco alimento, bem podia em seu aspecto
Florimena, mulher que é já de Venadoro. fazer adivinhar a miséria a que Filodemo
meses; foi-lhe a ele então necessário
acolher-se com ela, porque não colhessem sujeitaria Dionisa. Por isso lhe aconselhava
Monteiro Lusidardo que fizesse fardo, ou seja: se fornecesse para
a ela com ele: Acolheu-se em ũa galé; e Quem não ficará pasmado
Estranhas cousas me contais! Assi que suprir às necessidades a que no lar que
vede-la princesa em ũa galera nueva, / De ver que por tal caminho formassem, ele não poderia prover.
con el marinero / a ser marinera(72). logo de seu pai herdou Filodemo namorar
a filha do senhor que serve; não haverá Tem a Ventura ordenado 4 — O mesmo que sécias, elegantes.
Finalmente, vindo navegando todo esse Filodemo, meu criado, 5 — São dois versos de romance castelhano —
Oceano Germânico, Bancos de Frandes, logo por mal o senhor Dom Lusidardo
Vir ser meu genro e sobrinho! La Constancia.
Mar de Inglaterra, e trazidos à costa de tomar por genro e nora, quem acha por 6 — A palavra primas ( = primeiras), que são
Espanha, não nos quis a Ventura deixar sobrinhos. as cordas mais finas da guitarra, sugeriu por
Quem não pasmará agora jogo verbal a palavra derradeiras e também a
gozar do repouso que nela buscavam: deu- De ver a Ventura minha,
lhe sùbitamente tamanha tormenta, que Duriano palavra terceiras, final da estrofe, em
Sabei que chora de prazer com eles, que já Que tem tornado nũa hora trocadilho por intermediárias.
sem remédio deu a galé à costa, onde, Florimena, ũa pastora, 7 — Continua a corda (da viola) a imprimir
feita pedaços, morreram todos diz que acha que Filodemo se parece
Ser minha nora e sobrinha! rumo ao discorrer. Agora, sugere a ideia do
desastradamente, sem escapar mais que a natural com seu irmão e Florimena com suicídio por enforcamento.
princesa com o que trazia na barriga, a sua mãe.
8 — Vilardo troça de Filodemo. Às suas 20 — É Gonçalo Fernandez de Córdova, panderetas os animais, ou seja, deixando 42 — Versos alheios, citados por Gil Vicente,
fantasias, concebendo o impossível, só é (1453-1515) conhecido pelo Gran Capitán e manchas de cabelo menos rente. na Barca do Inferno:
comparável o tentar, no céu cheio de sol, celebrado em toda a literatura espanhola como 28 — Mancias ou Macias, chamado por Vós me veniredes a la mano
descobrir estrelas. Na ed. do P. e Tomás de o popular conquistador dos reinos de Granada antonomásia o Enamorado, é o trovador galego A la mano me veniredes
Aquino ocorre estrela no dia. Será: Que vejo e Nápoles. dos começos do século XV, célebre pela lenda Y vos veredes
estrelas no dia? 21 — Rapazia é o mesmo que rapaziada. da sua paixão e pela sua morte trágica no Peixes nas redes.
9 — Por onças se significa parcamente. Sentiu Duriano opõe aos falsos petrarquistas com seus castelo de Arjonilla. 43 — Nem... não... é construção arcaica,
Filodemo tal glória no seu doloroso convencionalismos duas pescoçadas ou, como 29 — Fazei de vás mil manjares o mesmo é semelhante à francesa.
pensamento de amor, que o queria gozar pouco diríamos hoje, cabeçadas da sua própria que dizei-lhe mil coisas galantes, fazei-lhe mil 44 — Esperdiçado de amores (ver linha 13 da
a pouco. amada, com suas liberdades de boémia. promessas sedutoras. p. 163) é o mesmo que amorudo, com amor em
10 — Enxovedo = tolo. 22 — O mesmo que tosquia. Depois de ter 30 — Brás Quadrado é o protagonista de um excesso.
11 — Entenda-se: nessa boa hora, em que emborcado uma garrafa minha, etc. talvez auto espanhol, do mesmo nome, atribuído no 45 — Camões, nos Autos, salpica de um ou
Solina deseja a Filodemo que fique. Como se pudesse escrever-se minha Etcétera, tomando título a Vicente Alvares, que, afinal, é apenas o outro modismo popular as falas das
vê, na palavra embora era ainda sensível o esta palavra como designação da namorada ou seu editor. personagens do povo. Aqui a palavra mesmo, e
sentido da expressão nela contraída. amante. 31 — Cousa que dê nas vistas, que provoque mais adiante, na mesma estrofe, o advérbio
12 — Subentenda-se. É que nem para lhe 23 — Vale Chiusa ou Valchiusa designação escândalo. mesmamente.
esquecer, etc. No Ms. de Luís Franco a forma italiana de Vaucluse, perto de Avinhão, lugar 32 — Nela, neste passo como em outros — e 46 — O mesmo que — Pergunto se
difere, se bem seja o mesmo o pensamento: celebrado por Petrarca como teatro dos seus na estrofe seguinte ocorre mais de um — porventura... Na sintaxe do tempo a
Mas isto bem pode ser amores com Madona Loura, ou melhor, dos refere-se à pessoa de Dionisa, à sua mercê condicional se, no início de oração integrante,
[Que] nem pera me querer seus métricos suspiros por ela. dela. O tratamento na terceira pessoa tem aqui não dispensava o emprego da integrante que.
Lhe virei pola memória. 24 — É sabido que esta fabulosa ave, que a a sua explicação — já está dito. 47 — Na Égloga IV terminam sempre por
13 — É o máximo de sorte que o próprio vento poesia quinhentista herdou da literatura 33 — O mesmo que descobrir, como pelo verso semelhante a este as falas do pastor
leve a lenha ao que está a preparar lume. clássica, era única no mundo, e, como não vento o cão descobre a caça. Frondoso.
14 — Celestina é a célebre alcaiota da comédia podia reproduzir-se, renascia das próprias 34 — É expressão para significar a satisfação 48 — É esta a lição do Ms. de Luís Franco,
do mesmo nome de Fernando Rojas, escritor cinzas. de todos os caprichos. As mimosas que estão à melhor do que a da 1.ª ed.: Não se parecer
espanhol do século XV. Por sua voga tornou-se 25 — Pietro Bembo é poeta petrarquista «boca, que queres?» são as de quem se co’as cabras.
este nome de próprio em comum, para designar italiano do século XVI, muito imitado pelos adivinham as intenções para as satisfazer. 49 — Conversação o mesmo é que
toda a intermediária em amores ilícitos. petrarquistas seus contemporâneos. Atoado é 35 — Entenda-se: logo voltam a dar-se ares de convivência.
15 — A barlavento — em lugar apropriado, metáfora tirada da vida marítima, onde grave honestidade, quando lhe não satisfazem 50 — Assim se julgava deste animal, por isso
onde o vento seja de feição. É como se significava levado à toa (como o barco ligado desejo e vontade. A expressão é metafórica e é aproveitado pela Heráldica, segundo o exprime
dissesse, à maneira do nosso tempo: onde lhe por um cabo, ou toa, ao que o rebocava), sugerida pela frase fazer-se na volta do mar, o a empresa: Prius mori quam foedari = antes
possa ser bom. Platão, com sua teoria do amor, era, como é que quer dizer, mudar de rumo, distanciando-se morrer do que ficar manchado.
16 — Com a dificuldade com que se tira uma sabido, o filósofo a cada passo aproveitado da costa. 51 — Leões na Península, só em prisão, em
alma do Purgatório. pelos petrarquistas. Vid. na Lírica, págs. 105– 36 — Sem gafas = sem ganchos; portanto sem jaulas, ou em liberdade... poética.
17 — Almofaçados é o mesmo que 106, redondilhas Sôbolos rios que vão, e necessidade de a prender a gancho, de 52 — Pessoa que se manda a recado. A
delambidos, bem tratados, como os cavalos respectiva nota na pág. 587. praticar violência. metáfora em virote (seta) deriva da rapidez
limpos a almofaça. 26 — Era um poeta palaciano do Cancioneiro 37 — A sério. com que lhe cumpre desempenhar-se da
18 — Fender a anca pelo meio é metáfora de Resende, avô do amigo do Poeta, Lopes 38 — Bem derivais, fazendo derivar «me fino» missão.
tirada dos cavalos que muito engordam. Leitão. Tornara-o célebre o seu temperamento de «mofino». 53 — Capirote é uma pequena samarra.
19 — Lembrados pelo A. na Lírica, pág. 317. amoroso, e fazia parte de certo grupo chamado 39 — Vid. a mesma expressão na linha 1 da 54 — Subentenda-se: juro que...
(Vid. a respectiva nota na pág. 592) Garcilaso e dos fiéis de amor. D. Carolina Michaëlis pág. 225. A cabeça às vezes se metaforiza em 55 — Ter passo ou passejar é o mesmo que ter
Boscan são dois poetas contemporâneos e escreve sobre ele em Zeitschrift für popas e assim ir à popa significará ir à cabeça. galantarias.
amigos, ambos petrarquizantes, o primeiro Romanische Philologie, VII, p. 429. 40 — Maneira também significa abertura 56 — Fero é adjectivo substantivado, e
considerado por Camões como doce e brando, 27 — Quer dizer: prestar serviços executados lateral da saia. Mais um trocadilho. significa neste passo aspecto severo.
o segundo como conhecedor de todos os sem perfeição, como se tosquiam às 41 — Beliz ou biliz = esperto, agudo. É 57 — Entenda-se: De feros (ou fanfarrões)
segredos da alma enamorada. palavra de origem árabe. está... — quer Solina dizer, jogando com a
palavra fero que Vilardo acaba de empregar, 73 — Visagras é o mesmo que dobradiças, e a
com sentido diferente. A 1.ª ed. pontua: Feros, comparação resultou das palavras macho e
está a rua... fêmea, que são designações das duas peças que
58 — Vid. Gil Vicente. Na tragicomédia de D. constituem este objecto.
Duardos é assim um dos solilóquios do herói:
Amor, amor, ya bien despierta Hernâni Cidade, Luís de Camões - O
Que cuando la verás, Teatro e as Cartas, Artis, Lisboa,
Que le digas al oído:
Señora, la vuestra huerta 1962
Y no mas.
59 — Assém é o lombo da vaca ou boi, o que
há de melhor nesta carne; de onde ser do assém
é metáfora de ser excelente. Diz-se hoje no
mesmo sentido: É carne da perna.
60 — Cabeçais são almofadas para a cabeça.
61 — Honra tem aqui o sentido de distinção
social, glória.
62 — Entenda-se: Não quero, pelo receio de
errar, ficar em mim, ou seja, sem uma
resolução.
63 — Mina é metáfora por verdade que se
esconde e que há-de explodir com espanto.
64 — Nêsporas — campainhas sem badalos.
65 — Telhinha é uma espécie de castanholas
feitas de dois pedaços de louça ou telha.
66 — Pentem era instrumento músico muito
grosseiro, de som produzido pela passagem
dum pau pelos dentes de um outro.
67 — Isto é: Tira os sinais da própria
personalidade.
68 — Solus peregrinus — único e estranho.
69 — Enequim = sinais de puberdade.
70 — Frase feita, usada em Portugal como em
Espanha, significando: Isso é outra
enormidade. Lembra a expressão moderna de
sentido parecido: Isso foi um trinta e um. Esses
em vez de isso (que me contas) por atracção da
palavra quinhentos.
71 — No Ms. de L. Franco e na ed. de
Juromenha vem a palavra cidras substituída
por sirgos. A metáfora tem o mesmo
significado. Aquela fruta ou este verme não se
desenvolvem em menos tempo do que é
necessário à gestação dum ser humano.
72 — Vid. as redondilhas camonianas, Irme
quiero, madre... na Lírica, págs. 13-14.
TEXTO 30 a 43 – POÉTICA DE RODRIGUES LOBO

Se o pé lhe acerta de pôr, caís sobre os penedos, descuidadas, a vista dera em preço, se vos vira,
Francisco Rodrigues Lobo (1580-1622) Ficam de inveja sem cor aonde, em branca escuma levantadas, que inda por perder-vos a sentira,
E de vergonha com graça; ofendidas mostrais mais fermosura; a perda de não ver-vos não se entende.
Natural de Leiria, formou-se em Direito; Qualquer pegada que faça
mas, como seus bens o permitiam, não Faz florescer a verdura: se achais essa dureza tão segura, A graça dessa luz não na comprende
exerceu a profissão, vivendo sempre em Vai fermosa, e não segura. para que porfiais, águas cansadas? quem, qual ao sol, a vós seus olhos vira,
contacto íntimo com a natureza. Há tantos anos já desenganadas, que o cego Amor, que cego deles tira,
A sua biografia é sempre acompanhada de Não na ver o Sol lhe vai e esta rocha mais áspera e mais dura! com vossos próprios raios a defende.
lendas, com respeito a amores infelizes. Por não ter novo inimigo,
De sua vasta obra, toda ela do gênero Mas ela corre perigo Voltais atrás por entre os arvoredos, Não pode a vista humana conhecer
bucólico, destacam-se: «Corte na Aldeia», Se na fronte se vê tal; aonde caminhareis com liberdade, qual seja a vossa cor, que a luz forçosa
em forma dialogada: «Condestabre», Descuidada deste mal até chegar ao fim tão desejado. não consente mostrar tanta beleza.
poema épico em oitava rima e vinte Se vai ver na fonte pura:
cantos, que tem por herói D. Nuno Vai fermosa, e não segura. Mas, ai, que são de Amor estes segredos! Se eu, que em vendo-a ceguei, pude inda
Álvares Pereira; «Primavera», «Éclogas». Que vos não valerá própria vontade, ver,
Salientou-se, principalmente, pela pureza LOBO, Francisco Rodrigues. Poesias. como a mim não valeu no meu cuidado. uma cor vi, porém, cor tão fermosa
da linguagem. Morreu em 1622, afogado, Lisboa: Francisco Franco, s. d. 145p. que me não pareceu da natureza.
no Tejo. 33 - [77] VIII
31 - [75] VI Altivos pensamentos que tomastes 35 - [79] X
30 - CANTIGA Fermoso rio Lis, que entre arvoredos lugar nesta alma, a males tão sujeita, Fermoso Tejo meu, quão diferente
Descalça vai para a fonte ides detendo as águas vagarosas, já vou dar à ventura a conta estreita te vejo e vi, me vês agora e viste!
Leonor pela verdura; até que ũas sobre outras, de invejosas, daqueles grandes bens que imaginastes. Turvo te vejo a ti, tu a mim triste,
ficam cobrindo o vão destes penedos; claro te vi eu já, tu a mim contente.
A talha leva pedrada, Vós, como dela isentos, vos livrastes,
Pucarinho de feição, verdes lapas, que ao pé de altos rochedos e eu, a quem a razão nada aproveita, A ti foi-te trocando a grossa enchente
Saia de cor de limão, sois moradas das Ninfas mais fermosas, até deixar a sua ira satisfeita, a quem teu largo. campo não resiste;
Beatilha de madrugada fontes, árvores, ervas, lírios, rosas, a pena irei sentir do que alcançastes. a mim trocou-me a vista em que consiste
Pisa as flores na verdura: em quem esconde Amor tantos segredos: o meu viver contente ou descontente.
Vai fermosa, e não segura. Mas, pois a causa fostes d’e perder-me
Se vós, livres de humano sentimento, não me desempareis só, neste estado, Já que somos no mal participantes,
Leva na mão a rodilha em quem não cabe escolha nem vontade, entre tão vário modo de tormentos; sejamo-lo no bem. Oh, quem me dera
Feita da sua toalha, também às leis de Amor guardais respeito, que fôramos em tudo semelhantes!
Com uma sustenta a talha, que, na pena maior de meu cuidado,
Ergue com outra a fraldilha; como se há-de livrar meu pensamento bem sei que outrem ninguém pode valer- Mas lá virá a fresca primavera!
Mostra os pés por maravilha, de render alma, vida e liberdade, me Tu tornarás a ser quem eras de antes,
Que a neve deixam escura: se conhece a razão de estar sujeito? senão meus animosos pensamentos. eu não sei se serei quem de antes era!
Vai fermosa, e não segura.
32 - [76] VIII 34 - [78] IX 36 - [80] XII
As flores por onde passa, Águas que penduradas desta altura Fermosos olhos, quem ver-vos pretende Se algũa hora o desejo de atrevido,
lisonjeando ao gosto, me assegura LOBO, Francisco Rodrigues. Poesias. E ouvireis as tristezas de meu canto, Forçado dos poderes da ventura,
ũa esperança vã, pouco segura, Lisboa: Sá da Costa, 1940. 191p.1 Contra quem seu poder foi tão pequeno.
que como sombra enleva a meu sentido, Enquanto Apolo com seus raios de ouro
38 - [8] ADEUS DE LERENO AO LIS Enxugando estará com nova inveja A Deus o monte, o prado, a espessura,
qual piloto das ondas perseguido, Fermoso rio Lis, que de contente Vosso brando cabelo crespo e louro. A Deus o rio, a fonte cristalina,
que dar com a nau à costa se aventura, Estais detendo as águas vagarosas, A Deus as plantas, flores e a verdura.
assim me vou trás dele e da ventura, Por não passar daqui vossa corrente, Antes que o descontente esprito seja
que pouco arrisca já quem vai perdido. Apartado da doce companhia, Já no vale, no monte e na campina
[9] Entre essas ondas claras, duvidosas, Consenti, ninfas belas, que vos veja. Os pastores tanger não me ouvirão
Porém, caindo em mãos do desengano, Levai ao largo mar, com turva vela, A minha desejada sanfonina.
como pedra que ao centro se avizinha, Tristes queixumes, lágrimas queixosas. Não vos verei porém como vos via,
me ofende com mor força o sentimento. Ora fugindo às feras na montanha, [12] Já nas ardentes sestas do verão
Enquanto descansais na branca areia, Ora prendendo os peixes na água fria. As ovelhas à sombra do arvoredo
Se me aparece o bem para mor dano, Ouvi um pastor triste e magoado O pasto por me ouvir não deixarão.
não quero melhor sorte do que é a minha: Que vai perder a vida em terra alheia. Chorando vos verei, pois dor tamanha
De males vivo, e deles me contento. Não há como deixar a própria terra Já debaixo do vão deste penedo,
Sua ventura o manda desterrado; Por ir buscar a morte em terra estranha. Olhando os cordeirinhos que pastavam,
37 - [81] XII Não se pode saber que culpas teve, Não cantarei de amor contente e ledo.
Que amor sigo? Que busco? Que desejo? Que amor, que foi juiz, era o culpado. Penedos, que pendeis desta alta serra,
Que enleo é este vão da fantasia? De verde erva e de musgo revestidos, E as pastoras que a ouvir-me se
Que tive? Que perdi? Quem me queria? Se a tanta sem-razão mágoa se deve, A que os ventos em vão moverão guerra: ajuntavam,
Quem me faz guerra? Contra quem Ouvi a voz de cisne derradeira Já me não tecerão verdes capelas
pelejo? Que inda que é grande a dor, há de ser Vós declives outeiros repartidos Com que por vencedor me coroavam.
breve. Com longes amorosos, ledos pertos,
Foi por encantamento o meu desejo, Só pela saudade conhecidos; Já nem na noite à vista das estrelas.
e por sombra passou minha alegria; Vós ninfas que morais nesta ribeira, Nem quando o belo Sol claro aparece
mostrou-me Amor, dormindo, o que não Nessas lapas cobertas e escondidas [11] Vales, que de mil árvores cobertos Louvores me ouvirão das ninfas belas.
via, Do mirto, faias, freixos e aveleira, Abris caminho às cristalinas fontes
e eu ceguei do que vi, pois já não vejo. Que os alvos seixos deixam descobertos; Já o vento que. ouvindo-te, emudece,
Se já de amor sentistes as feridas, Entre os ecos da doce Filomena
Fez à sua medida o pensamento E quanto crista um triste apartamento Vós, ladeiras incultas, e altos montes Não levará meus ais donde os ofreço.
aquela estranha e nova fermosura Que, para dar mil mortes, dá mil vidas, Que coroados sois de altos pinheiros
e aquele parecer quase divino. E a cor tomando estais aos horizontes; [13] Tornai o curso atrás, águas do Lena,
Agora que se cala o surdo vento Apesar dessa rocha que ameaça
Ou imaginação, sombra ou figura, E o rio enternecido com meu pranto Pastos, cabanas, gados, pegureiros, Vossa clara corrente tão serena.
é certo e verdadeiro meu tormento: Detém seu vagaroso movimento, Pastores deste vale verde, ameno,
Eu morro do que vi, do que imagino. Doces amigos, doces companheiros Que não vos tirará de vossa graça
[10] Vinde a gozar da terra o verde manto, A sombra desse outeiro tão temido,
Vereis da natureza o mor tesouro Aparta-se de vós, triste, Lereno, Como me tira a vida a sorte escassa.
1
Cf., quanto a Francisco Rodrigues Lobo e o bucolismo seiscentista, cf. SIMÕES, João Gaspar. História da Poesia Portuguesa. Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, 1955-1959. v. 1, p.
471-492.
40 - [72] Vou a falar, e Amor não mo
De vós, serenas águas, me despido, consente, Ardei agora, ó falsas mensageiras FERREIRA, Maria Ema Tarracha
De vós não perderei nunca a lembrança, Mas sai do peito a voz com força tanta, Do bem que pôs por terra uma mudança, (org.). Textos literários: séculos XVII e
Fazendo desmentir nesta mudança Que inda detida, e presa na garganta, Nesta conjuração de Amor tirano. XVIII. Lisboa: Aster, 1966. 869p.
“Quien dixo que la ausencia causa olvido” Se me entende nos olhos claramente.
[...] Do morto Rei arrastam-se as bandeiras: 43 -[112] Inimiga, cruel, despiedosa
Ah! que cifra de amor tão diferente Reinou, porém morreu minha esperança, Injusta, cega, vã, néscia, atrevida,
39 - [31] Se emudece no mal o Para mostrar um mal que a terra espanta, Ardei, que vive e reina o desengano! Falsa, vil, lisonjeira e fementida,
sentimento Que ele mesmo o declara, e me alevanta Intratável, soberba e rigorosa.
A que memórias tristes me obrigais! Por culpa o que eu pequei como inocente! 42 - [82] SONETO
A dor, que é como a causa, pode mais Mil anos há que busco a minha estrela Pródiga, avara, pobre, cobiçosa,
Do que me val contra ela o sofrimento. Se dos suspiros meus tanto se ofende E os Fados dizem que ma têm guardada; Rica, inconstante, firme e repartida,
Quem é a causa deles, ¿que esperança Levantei-me de noite e madrugada, Arrogante, cobarde e destimida,
Se noite imagino em meu tormento Terei de a merecer com meus cuidados? Por mais que madruguei, não pude vê-la. Acanhada, insolente e invejosa.
E vos contemplo na alma, onde morais,
Tão viva cá na ideia me ficais Sirvo a um surdo que o falar defende, Já não espero haver alcance dela Ventura, ou sem-razão, que à natureza
Que inda temo de um sonho o Mas nem de quem, se cala tem lembrança, Senão depois da vida rematada, Tiras o ser, o preço, a honra e glória,
pensamento. Nem do que grita a lágrimas e brados! Que deve estar nos céus tão remontada Que queres a esta vida, se inda dura?
Que só lá poderei gozá-la e tê-la.
Vede o mal, que da fé Amor me ordena 41 - [75] Penhores que já fostes algum dia, Ou me mata, ou me deixa, ou me
Que de dia nos olhos ponho estudo, Línguas de Amor e extremos da vontade, Pensamentos, desejos, esperança, despreza,
E de noite, velando, a língua guarda. Fiadores do tempo sem verdade, Não vos canseis em vão, não movais Perde-me já da vista ou da memória,
Que por vós me falava e me mentia. guerra, Mas ai que o que te eu peço era ventura.
Grande mal, novo amor, estranha pena: Façamos entre os mais uma mudança: (O Pastor Peregrino, Livro Primeiro,
Que, por não contentar-me de ser mudo, Fogo amoroso em que meu peito ardia Jornada Nona)
Até no imaginar fiquei cobarde! Consumindo, inquieta a liberdade, Para me procurar vida segura
Amor, que pode e quis, me persuade Deixemos tudo aquilo que há na terra,
Pagar tão mal tão doce companhia. Vamos para onde temos a ventura.

TEXTO 44 – POESIA DE BOCAGE


44 - II - ODES De momentâneos amorosos furtos; Tu, que em meus pensamentos Onde o Erro elevou montes e montes
Assaz temos cantado, assaz carpido Longe a amarga lembrança No arbítrio meu despótico imperavas, Para estorvar ao homem
Ó lira, ó doce lira, De vis perjúrios, de cruéis enganos, Tirano, impõe teu jugo, Sagaz instinto, que à Verdade o guia,
Os bens e os males do comum tirano, De traições estudadas; teu férreo jugo na cerviz daqueles Vejo, saúdo os lares,
Que nas almas derrama Longe as memórias da infiel Marília. Que a sisuda Experiência lares augustos do terrível nume,
dor, e o riso, o néctar, e o veneno. Feitiços perigosos, Por entre pavorosos precipícios Atento à voz do aflito
Longe a brilhante ideia Verdugos da alterosa Liberdade; Inda ao templo remoto
De olhos fagueiros, de aneladas tranças, Tu, dom da formosura, Não guiou do profícuo Desengano. Que ingénuas preces lhe dirige às aras,
De angélicos sorrisos, fatal aos corações, suave aos olhos; Vencida a longa estrada, Surdo a rogos falazes
Do cego escravo, que idolatra os ferros, E se a razão não basta, Não; já me iluminaste a mente cega, Aleivosa Mania, horror e afronta
Liberdade implorando... Vença a vaidade o que a razão não vence. Reconheço-te, ó deusa, Té do tropel de ingratas,
Que solidão, que plácida tristeza, Envergonha-te ao menos És a prole dos Céus, és a Virtude, De astutas, de infiéis, que o mundo
Que profundo silêncio De seres só feliz quando o permite Que no benigno seio infamam,
Reina em torno do alcáçar venerando! O teu rival soberbo, Acolhes os meus ais, os meus remorsos, O escravo de teus olhos,
Oh sacro domicílio Que enjoando os afagos importunos Indulgente à demora A vítima infeliz de teus enganos
Da Verdade imortal!... Quê! Tu num Da perjura, que adoras, Que tive em demandar teu santo asilo. Já tem rotos os ferros,
ermo! Às vezes com desprezo em ócio os deixa, Esses monstros, voando Solta a vontade, o coração tranqüilo
Os teus átrios desertos, E se a ti se dirigem, Ante o celeste resplendor, que espraias, Como o Sol, quando vibra
Sem culto, sem ministro os teus altares, Não vêm do coração, vêm do costume. São pungentes saudades, Na cristalina esfera os raios de ouro,
Enquanto à vã grandeza Eia, mísero escravo, Feias traições, frenéticos ciúmes, Gasta, desfaz, consome
Servil caterva prostitui incensos, Sacode o jugo, despedaça os ferros, Que invisíveis té agora Vapores, que exalou do seio a Terra;
E a curvada Lisonja A vaidade te anime: As cálidas entranhas me ralavam. Também, falaz Marilia,
Os crimes doura, os vícios abrilhanta! Quase tudo o que é raro, estranho, ilustre, Graças, ó divindade, As luzes, que a verdade em mim dardeja,
Ah! Eu te vingo, oh deusa! Da vaidade procede, Que do sábio varão manténs o esforço Absorvem, desvanecem
Eu entro o franco pórtico espaçoso Móvel primeiro das acções pasmosas. Quando a volúvel sorte, A funesta ilusão, que na minh’alma
E às aras... Mas que sinto! Tente-se a grande empresa, Inimiga do mérito, o sepulta Te assemelhava aos deuses.
Que gelo, que tremor, que sobressalto Forcem.se os fados... Ai de mim! Nas solitárias sombras Ingrata, consumiram-se os incensos,
Me prende a voz, e a planta, Palpitas? De profunda masmorra aferrolhada
Me abate as forças, me arrepia as carnes! E em frequentes arrancos Onde por mãos infames Retractaram-se os votos,
Coração, que te assombra? Como que exprimes o pavor da morte! De aspérrimas correntes o carrega: Foram-se as oblações, e os sacrifícios,
Que temes, coração? Perder Marília? Coração, não desmaies, Caiu o altar, e o númen!
Marilia acaso é tua? Alenta~te, infeliz... Porém que escuto! Munido da inocência
Não maculou traidora os puros votos, Que ruído! que assombro! Contigo ri o herói no cadafalso; De porto mal seguro a turvo pego
Os ternos juramentos? Que resplendor me cerca, e me deslumbra! Contigo alegre observa Sai mesquinho baixei com raras velas,
Não viste a desleal sem dor, sem pejo, Torvos dragões, batendo Vai crespas ondas pávido talhando
Cevar-se nos teus males, Asas de negra cor com duro estrondo Do carrancudo algoz na mão terrível À discrição dos ventos:
Cos lindos olhos de Fileno absortos? O amolado cutelo
Que importa que em seus lábios, Se encontram, se atropelam, Executor da bárbara sentença; Nauta inexperto lhe dirige o leme,
Seu ledo rosto, seu virgíneo seio, E quais nocturnas aves, que amedronta E contigo, ó deidade, Chusma bisonha lhe maneia o pano;
Os Amores, e as Graças O clarão matutino, Ó alta benfeitora, encaro as portas De um lado fervem Sirtes, de outro lado
Pressintam mil imagens deleitosas, Espavoridos pelos ares fogem Do formidável templo. Navífragos penedos:
Onde os sentidos pascem, Ao fulgor cintilante Teu sagrado fervor de veia em veia
Que importa, se a traição surgiu do De rubro facho, que na dextra empunha Me agita, me transporta, Sussurrante chuveiro os ares cerna,
Averno Venerável matrona, Eu te sigo, eu te sigo... Oh céus! Oh Luz sulfúreo clarão de quando em quando,
A corromper-lhe o peito? Librada sobre os Zéfiros plumosos! deuses! D’iminente pnocela os negros vultos
Que vale sem virtude a formosura? Ah! Quem és? Vens do Olimpo, Já sou meu, já sou livre. Feno estrago ameaçam:
Cede ao tempo, à desgraça; Portentosa visão? Vens socorrer-me? Ídolo falso, que de altar profano
Do espirito a beleza é sempre nova. Ou és aéreo fruto Davas leis à minh’alma, Já bravos escarcéus, que se amontoam,
Coração, triunfemos, Da enferma, delirante fantasia Recebias meus votos, meus incensos, Por cima do convés soberbos saltam:
Triunfemos da pérfida Marília, Que entre ilusões vagueia?... Tributos da fraqueza; Prossegue na derrota o débil pinho,
Das vagas quase absorto. Altos encómios de razão despidos; Do teu pudico amor às prendas belas A
O sábio director, que todo ufano A verdade celeste glória sem limites, que merecem...
Depois de longamente haver corrido Da recente vitória inda folgava, Com seu cândido manto os orna, e veste. Não me engano, em vós chove O fragrante
A estrada desigual com céus adversos, A repetido assalto opõe debalde licor, que liba Jove.
Em lugar de colhê-lo, o pano aumenta, Arte, vigor, constância. A ti, dignos de ti, Marília, voam; Vós sois... Porém não mais, oh Musa
Desafia o naufrágio: A ti, bela heroína, inerte! Basta, cesse o teu canto;
Tremendo aos furacões impetuosos Cujas mil graças mil virtudes c’roam; As vozes de prazer em ais converte,
Imaginária terra se lhe antolha, Lá descorçoa enfim, lá desalenta; A ti, que enches de glória a fértil China, Nadem teus olhos outra vez em pranto;
De mil, e mil venturas semeada: Coa máquina infeliz, que já não rege, Enquanto a que te adora Que as almas compassivas
Anelas por surgir no porto amigo, Misérrimo soçobra: Mísera pátria, tua ausência chora. Atendem mais às lágrimas que aos vivas.
Cobiçosa Esperança:
Oh ente racional! Oh ente frágil! As deidades, criando-te, exauniram Com suspiros, 6 triste, implora, implora
Para cevar o horror mais campo havendo, Escravo das paixões, que te arrebatam! O seu cofre divino; De Marília a piedade;
A torva tempestade então mais zune, Olhos sisudos neste quadro emprega: A teus encantos para sempre uniram Ela é justa, ela sente, ela deplora Os erros
Em raios, em tufões todo o ar converte, Eis o quadro da vida. Em áureo laço o mais feliz destino; da infeliz humanidade;
Todo o pélago em serras: E eis os dons com que brilhas Contra o fado inimigo
Musa, não gemas; ergue, ó desgraçada Reproduzidos nas mimosas filhas. Na sua compaixão procura abrigo.
O mísero baixel desmantelado o rosto macilento;
Aos duros encontrões do mar, do vento, Da vista a frouxa luz, quase apagada Esses tenros, lindíssimos pedaços Roga, roga-lhe enfim, que te destrua As
Sobe às estrelas, aos abismos desce Nas lágrimas que vertes; Musa, alento! Da tua alma preciosa, ânsias, os temores;
Entre o pavor, e a morte: Move a trémula planta, O ledo par gentil, que nos teus braços Que à pátria, ao próprio lar te restitua:
Pisa os receios, e a Manilha canta. Das doces, maternais carícias goza, Ah já te diz que sim: - não mais clamores;
Súbito acode próvido piloto, Teus dias felicita, Musa, Musa descansa,
Que oprimido até’li jazera em ferros Canta da ilustre dama a gentileza, E nas amáveis perfeições te imita: Cantemos o triunfo, oh Esperança!
Num vil cárcere escuro, onde rebeldes A prole esclarecida,
O tinham sopeado: Os dons da sorte, os dons da natureza, Com meiga voz, com eficaz exemplo, Olha como a tirana, a má Desgraça As
As prendas com que a vês enriquecida; Com saudáveis doutrinas cobras arrepela,
Estende a mão forçosa, aferra o leme, E depois de a louvares Ao que habita a Virtude eterno templo E as sanguinosas vestes despedaça!...
O lenho desafronta, o rumo escolhe, Torna os teus choros, torna os teus O caminho estelífero lhe ensinas; Zombemos, coração, zombemos dela:
Com saber eficaz, com alta indústria pesares. A mim, mor tal profano, Monstro, já não me espantas,
Vai sustendo a tormenta. A mim tão árduo, para ti tão plano. Lá cai, lá treme de Marília às plantas.
Ah! Que já sinto, milagroso objecto,
Já volumosas nuvens se adelgaçam, Quanto pode o teu rosto! Já do etéreo vestíbulo te acena Almo 45 - III - CANÇÕES
O vento se amacia, o mar se aplana: Da malfadada Musa o torvo aspecto esquadrão radioso: Agora, que ninguém vos interrompe,
Do benigno Santelmo o ténue lume Jí cora, já se vai do meu desgosto Já na celeste região serena Lágrimas tristes, inundai-me o rosto,
Reluz no aéreo tope. Sumindo a névoa densa, Génios sem mancha em hino harmonioso Mais do que nunca; assim o quer meu
Que desfaz, como o Sol, tua presença. Te nomeiam... Lá brada fado:
Reina um pouco a suave, azul bonança; De ilesas virgens multidão sagrada. Enquanto o gume de mortal desgosto
Mas eis se tolda o céu de novas sombras; Inclina pois, magnânima senhora, Me não retalha os amargosos dias,
Mais negra, mais feroz, mais horrorosa Os dementes ouvidos Não ouves, 6 Marília, as vozes delas? Debaixo destas árvores sombrias
Ressurge a tempestade. A voz, que não profere aduladora Repara como of’recem Grite meu coração desesperado,
Meu coração cativo, No néctar... ah! que eu morro, É ver, que de outrem sofres a ternura: Inda mais, se é possível,
Que só tem nos seus ais seu lenitivo. Se em vós, furtivos êxtases, discorro! E ver, que dás calor, que dás alento O venenoso fel, que em mim derramas;
A seus mimos, e amores Doces enganos da minh’alma arreda,
Alterosas, frutíferas palmeiras, Amor! Amor! Teus júbilos excedem Cum riso, precursor de mil favores. Deixa-lhe a dor intensa, a dor terrível
Vós, que na glória equivaleis aos louros, Da loira abelha os engenhosos favos, Dos ígneos zelos, das tartáreas chamas,
Vós, que sois dos heróis mais cobiçadas Mais gratos são que as flores teus sorrisos: Tu não foges de mim, tu não te esquivas Deixa-lhe as ânsias, a peçonha, as iras,
Gostei todos os bens, que aos teus Destes olhos, que em ti cativos andam; E a desesperação, que tu respiras.
Que áureos diademas, que reais tesouros, escravos Delícias, onde pasma o pensamento,
Escutai meus tormentos, meus queixumes, Fazem tãô leve a rígida cadeia, Doces instantes meu ciúme abrandam: Farte-se Anarda, o variável peito,
Meus venenosos, infernais ciámes; Tão doce a chama, que no peito ondeia: Mas ah! Não é só minha esta ventura, Cujas graças me encantam,
Ouvi mil penas, por Amor forjadas, Mas oh! Cruéis teus dons, cruéis teus Meu vaidoso rival a tem segura. Cujas traições no coração me ferem,
Mil suspiros, mais tristes risos, Que indigna variedade! Em um momento E por quem gemo, em lágrimas desfeito:
Que todos esses, que até’qui me ouvistes. Princípio do tormento, Teus olhos inconstantes Que já mil bens dulcíssimos não cantam
Que já me tem delido o sofrimento. Acarinham sem pejo a dois amantes. Os ternos lábios meus, antes proferem
Aqueles campos, aprazíveis campos, Lamentos contra Amor, contra a Ventura,
Que além verdejam, de meu mal souberam Miserável de mim! Qual o piloto, Honra, Virtude, Agravo, e Desengano Conheça a desleal, saiba a perjura.
A desgraçada, mas suave origem: Que lera nos azuis, filtrados ares Me gritam n’alma, que sacuda os laços,
Ali de uns olhos os meus ais nasceram; Indícios de uma sólida bonança, Que tanto sofrimento é já vileza; Sim, traidora, que o júbilo em torrentes
Ali de um meigo, encantador sorriso, E eis que vê de repente inchar os mares, Ouço-os, protesto desdenhar teus braços, Viste alagar meu rosto,
Que arremeda o sereno paraíso, Vestir-se o céu de nuvens, donde chove Protesto, ingrata, converter meus cultos Quando em teus braços possuí mil glórias,
Brotaram mil infernos, que me afligem, O fogo vingador, que vibra Jove; Em mil desprezos, irrisões, e insultos: Hoje morro de angústias, e o consentes,
Que as entranhas me abrasam, Tal eu, quando supus mais segurança Mas ah! Protestos vãos, baldada Podendome, cruel, matar de gosto?
Que meus olhos de lágrimas arrasam: No meu contentamento, empresa! Oh êxtase! Oh delícias transitórias!
O vi fugir nas asas de um momento. Sou a amar-te obrigado; Oh vão prazer dos crédulos amantes,
Ali de uns lábios, onde as Graças brincam, Não é loucura o meu amor, é fado. Mais fugaz que os alígeros instantes!
Ouvi suspiros, granjeei favores, Anarda, Anarda pérfida, teus olhos,
Ali me disse Anarda o que eu não digo; Onde Amor traz escrita a minha sorte, Canção, vai suspirar de Anarda aos lares; Cansaste, Anarda: a sólida firmeza
Ali, volvendo os ninhos dos Amores, Teus mimos por mim só não são gozados! Mas se não lhe firmares Vezes mil protestada,
Cravou nest’alma, para sempre acesa, Oh desesperação, pior que a morte! O instável coração, deixa a perjura, Votos de eterna fé, que me fizeste,
As perigosas frechas da beleza; Oh danados espíritos funestos, E iremos sossegar na sepultura. Manter não pôde feminil fraqueza,
Ali do próprio mal me fez amigo, De hórridos vultos, de terríveis gestos, A quem somente a novidade agrada:
Ali banhou meu rosto Moderai vossa queixa, e vossos brados, I nda não bastam, minha voz cansada, Já lugar na tu’alma a outro deste,
Parte do coração, desfeita em gosto. Que as penas do profundo Tantos ais, que tens dado; E o mais ardente amor, o amor mais puro
Também, também se encontram cá no É necessário renovar queixumes, Não satisfaz teu coração perjuro.
Novas campinas testemunhas foram mundo! Queixumes, de que o fero Amor se agrada,
De nova glória, de maior ventura, De que zombando está meu duro fado: Se me fugisses, se de todo as chamas,
Tal, que julguei, logrando-a, que sonhava: Ver outro disputar-me o caro objecto, Gritemos, pois, frenéticos ciúmes, Que por mim te abrasavam,
Entre as doces prisões da formosura, Em cujas lindas mãos pus alma, e vida, Gritemos outra vez; que dos aflitos A nova inclinação te amortecera,
Entre os cândidos braços deleitosos, Não me arranca suspiros: o tormento, São triste refrigério os ais, e os gritos. Desculpara esse ardor, em que te inflamas;
Meus crestados desejos amorosos Que no peito me faz mortal ferida, Porém quanto, infiel, quanto me agravam
No alvo rosto, que o pejo afogueava, O maior dos tormentos, ó perjura, Carrancuda Agonia, azeda, azeda Os sorrisos de amor, com que assevera
Teu gesto encantador, teu meigo rosto, Tão cruel tolerância O seu, e o nosso bem se nos esconde; No que faz, no que diz, porque não pensa,
Que inda propende a saciar meu gosto! Quem não sente o poder da formosura; Na terra oculto jaz mais um tesouro Nest’alma, de aflição, de amor perdida,
Porém minh’alma, nos teus olhos presa, Por decreto da Sorte: Loucuras proferiu. Não há quem vença
Presumes, que se paga uma alma nobre, Inda chega a temer, que esta constância Daquela tenra vida o fio de ouro O monstro, que executa a lei da Sorte:
Um coração brioso Prova não seja de exemplar ternura: Quão cedo rebentou nas mãos da Morte!... E um contrato a vida,
De um sórdido prazer, torpe, e corrupto E saibam, se com isto um crime faço, Ah Morte inexorável, que te nutres Que fez o justo Céu co mundo ingrato,
Qual esse, que me ofertas, se descobre? Que o crime adoro, que a vileza abraço. Em ruínas, em ais, em sangue, em pranto! E tu deste contrato
Assim só pode o vil ser venturoso, Mais negra que os Infernos, mais faminta
Essa fortuna por baldão reputo: Sobre as asas dos ventos Que os famintos abutres! És fatal condição, terrível morte,
Em amor antes só ser desgraçado, Canção chorosa, e rouca, Ó tu, da humanidade horror, e espanto, Que restituis a matéria ao nada.
Que de outrem na ventura acompanhado. Vai narrar pelo mundo os meus tormentos: Levaste - lhe o melhor, levaste Olinta; O rei, que os povos como filhos ama,
De almas estóicas a dureza louca Rirá dos Olinta, em cujas faces delicadas E que de benfeitor, de pio a fama
Vai, fementida, que a paixão perfeita teus lamentos; Corações atraíam Preza mais do que a púrpura sagrada,
Os seus dons não reparte; Mas nos servos de Amor terás abrigo: Castigando com lástima o delito,
Vai gemer noutro peito, e noutros braços: Quando te ouvirem, chorarão contigo. As rosas sobre neve desfolhadas, Reinando em corações, qual novo Tiro;
Pérfidos mimos desse infame aceita, Que de virgíneo pejo se acendiam Aqueles, que entre bando lisonjeiro,
Enquanto juro aos Céus de abominar-te, 46 - EPICÉDIO Ao brando assalto da menor fineza; Servil, e dependente,
Enquanto arranco meus indignos laços, A OLINTA Olinta, em cujos olhos, que encantavam, Se presumem do raio omnipotente
Enquanto... ah! Que falei! Meu bem, Ufana se revia a Natureza! Livres, seguros, coa Fortuna ao lado,
detém-te, Co/ei di gioia trasmutossi, e rise, Olhos! Flama celeste, a que voavam E de mais pura massa
Abafa a minha voz, dize que mente! E in atto di morir /ieto, e vzvace Açorados, terníssimos desejos, Que o frágil barro do varão primeiro:
Dir parea: s’apre ii cie/o, io vado in pace’. E onde, quais borboletas, se crestavam, Aqueles, que com ar divinizado,
Eu deixar-te (ai de mim!) primeiro a Terra Tasso, Jerusa/. Libert., canto XII Dando suspiros, dando-vos mil beijos, Insensíveis aos gritos da Desgraça,
Mostre as fundas entranhas Olhos! Olhos! Oh dor! E estais fechados! Envolvidos em lúcido brocado,
Por larga boca horrível, que me trague: ( ‘COLEI DI GIOIA TRASMLJTOSSI ... Estais de opacas névoas eclipsados! E tendo a mansidão por um desdouro,
Primeiro o mar, e o Céu me façam guerra, lO VADO fN PACE. Ela de gáudio Olhos suaves, olhos milagrosos, Para vós olham, míseros, e pobres
Despenhem-se primeiro estas montanhas, transmutou-se, e riu,! E no semblante de Com vossos deleitosos (Ricos talvez de espíritos mais nobres)
E a meu corpo infeliz seu peso esmague: morte ledo e vivaz! Parecia dizer: abre-se E froixos movimentos Qual para o mundo o Sol do carro de ouro,
Primeiro se confunda a Natureza, o céu, vou-me em paz. ) Dáveis flores aos prados, Todos hão-de sulcar (oh Morte! Oh Fado!)
Que eu cesse de adorar tua beleza. Alento aos corações desesperados, Esse horrendo Oceano
O linta jaz na terra, Enfreáveis os ventos, Da nunca fatigada eternidade:
Vejam meus olhos esses teus pasmados Contigo, ó Noite, para sempre mora, Removíeis das rochas a dureza, Lá verão, que no mundo a voz do Engano
De um rival no semblante; E Amor grita, Amor chora, Transgredíeis as leis da Natureza, Traz o filho da terra alucinado,
Ouça-te os ais, que com seus ais misturas, Chora o fagueiro Amor, que lhe brincava E não podeis sair desse letargo!... Que no mundo não há felicidade;
E os agrados, que opões aos seus agrados: Nos melindrosos braços, Oh doidas ilusões! Oh desvarios! Todos, todos hão-de ir, por lei superna,
A tudo está sujeito um cego amante, Movendo aos corações sanguínea guerra; Oh desengano amargo! Inviolável, eterna,
Que não pode quebrar prisões tão duras; Ei-lo já delirante; a ebúrnea aljava, Olhos tristes, sem luz, olhos já frios, Dormir nas trevas como Olinta dorme...
A tudo estou submisso, estou disposto, Arco, venda, farpões eis em pedaços A Morte não se rende à Formosura: Mas ah! Filha cruel de Érebo enorme,
Quero tudo sofrer, porque é teu gosto. Sobre o frio, o medonho Não, jamais torna a si, jamais desperta Mudo espectro horroroso,
Lugar sagrado, aonde Quem dorme, como vós, na sepultura. Verdugo universal! Não te enganaste
Terá por crime, suporá vileza Com ar inda risonho A desesperação, que nunca acerta Ao menos, quando a fouce preparaste
Contra o peito mimoso, De um bem, que áspera lei de nós Não, não é... que portento! Lá prende, orando, o braço justiçoso
Cujos tesouros, que o purpúreo pejo desterra, Humanos, atenção: - “Na corte imensa Daquele, mais que os séculos anoso,
À sombra do véu cândido zelava A falta, a perda qual de vós não sente? Do rei, que vibra os raios vingadores... Que, farto de sofrer nossos delitos
Do espiador, solícito desejo, Mundo, suspiros, lágrimas, oh gente! Prostrada.., aos pés divinos... Quase, quase infinitos,
Olinta foi-se, Olinta jaz na terra. Olinta... goza já... da recompensa... Me faz crer a Razão, que já queria
Meu pensamento audaz apenas via, Gritemos.., sempre em vão, tristeza, e luto Das palmas... da virtude.., os seus Mostrar-nos, ó mortais, quanto podia,
E inda eu vê-los assim não merecia! Nos volva em noite o dia, louvores... Lançando-nos às testas criminosas
Nem sequer desviaste a mão ferina Gritemos.., sempre em vão... Porém que Sobre... as asas... dos hinos... Irresistível, pavoroso estrago:
Uma vez, parecendo-te divina, escuto! A bárbara invasão, que oprimiu Roma,
E exempta das pensões da Natureza Céus! Estrelas! Que súbita harmonia, Como... soam no Céu.., na Terra soem...
Aquela rara, e cândida beleza; Que nunca ouvido tom, que etéreo canto Consolai-vos... humanos,., Hórrida fúria, que arrasou Cartago,
O mágico volver dos olhos puros, Me faz balbuciar no meu lamento, Mais suspiros... não voem; Ou chuva ardente, que inundou Sodoma.
Que viam seus escravos quantos viam; Me faz a meu pesar conter o pranto! Vosso néscio queixume... a Deus insulta, Cenas terríveis, cenas lutuosas,
Os olhos, ante quem se derretiam Desencrespou-se o mar!... Nem bole o Longe... de olhos profanos... Olinta é quem de nós vos afugenta,
Os penedos, os mármores mais duros; vento!... Que não merecem... ve-la, aqui... se Olinta a mão sustém, que nos sustenta...
A longa trança, a face transparente, Soava aquele arroio.., ei-lo calado, encerra... Ah! Gratidão, saudade! A nossa amada
Tão meiga para nós, como inocente; E como que se ri de gosto o prado! Aqui... das virgens.., entre o coro exulta.., Seja, seja cantada;
A rubra, intacta boca, as mãos nevadas, Oh pasmo! Oh maravilha! Consolai -vos.., humanos,., Versos em vez de lágrimas lhe demos,
A flor da gentileza, a flor dos anos, Este canto... este som... nào é terreno... Olinta... está.,, no Céu.., não jaz na terra.” Do cedro vivedouro
As patéticas vozes, já truncadas, Vem do Céu, vem do Céu, que tão sereno, Ah! Que o verso adorável emudece, Com seu nome adorado o tronco
Que não feriram só peitos humanos, Olhos meus, nunca vistes; E a luz celestial desaparece! honremos;
Que essas montanhas estalar fizeram, Néctar consolador minh’alma rega... Deus! Oh Deus! Será sonho? De beijos, e de rosas
Ao menos não puderam, Porém que nova luz nos ares brilha! Será sonho, ó mortais, o que escutamos? Cubra-se o cofre, cubra-se o tesouro
Hórrido monstro, monstro famulento, Que resplendor me cega! Não, não é, que inda o prado está risonho, Daquelas sacras cinzas preciosas;
Teu golpe demorar por um momento! À vista dele o Sol despe a beleza, Que o límpido regato inda não anda, E depois que do peito amortecido
Monstro, monstro voraz, se nos tragaste Como à vista do dia a tocha acesa! Nem Zéfiro bafeja os arvoredos, A nossa frágil vida transitória
Todo o bem, todo o gosto Que é isto, coração! Lágrimas tristes, Nem bate o mar nos íngremes penedos. Voar nas asas do final gemido,
Naquele singular, benigno rosto, Recuastes, fugistes! Ah! Bendito o Senhor, que nos abranda Vereis quão terna Olinta nos recebe
Para que nos deixaste Que doçura! Que encanto! Esta saudade, que mortal julgamos. Lá nessas fontes de inefável glória,
Cá nesta solidão? Mortais, choremos, Este som faz que em êxtase me sinta!... Prazer, oh mundo, cânticos, oh gente! Onde mais quer beber quanto mais bebe.
A ver se à força de chorar morremos: É verdade, é verdade: os anjos ouço... Olinta está nos Céus, e lá piedosa Longe da nossa ideia, oh bens mundanos!
Por Olinta querida Mas é digno um mortal de ouvir-lhe o Desde os áureos degraus do trono eterno Sim, desde agora vos armamos guerra.
Em lágrimas de amor se esgote a vida! canto? Do nume omnipotente Orai a Olinta, não choreis, humanos:
Fervam suspiros, fervam pelos ares, Humanos, escutais? Oh céus! Olinta! Nos chama para o bem, de que ela goza. Olinta está no Céu, não jaz na terra.
E criem nossos olhos novos mares. Olinta! É ilusão do pensamento... Lá faz estremecer o horrendo Inferno,
TEXTO 47 a 56 – OUTRO POEMAS DE BOCAGE
47 - ELEGIAS Século enorme, século nefando, Para estragar nos corações corruptos
À TRÁGICA MORTE DA RAINHA Século horrendo aos séculos vindouros, Em que das fauces do espantoso Averno O dom da humanidade, amável, terno.
DE FRANÇA, MARIA ANTONIETA Que ias inútilmente acumulando Dragões sobre dragões vêm rebentando:
Guilhotinada aos 16 de Outubro de 1793 Das artes, das ciências dos tesouros: Que fatais produções, que azedos frutos
Marcado foste pela mão do Eterno Dás aos campos da Gália abominados,
Nunca de sangue, ou lágrimas enxutos! Espírito, que em vós está fervendo, Que da excelsa virtude os lauros goza. Ouve-me os ais, e as queixas de outro
A novos parricídios corre, ousado?... amante.
Que horrores, pelas Fúrias propagados, Na mente vos observo: ei-lo a teu lado Que ao teu no ardente extremo é
Mais e mais esses ares enevoam JUSTOS CÉUS ! QUE ESPETÁCULO Implorando ao Senhor, que os maus semelhante.
Da glória longo tempo iluminados! TREMENDO ! magens de terror; que flagela,
horrível cena Perdão para o seu povo alucinado. “Céus! (assim começou, e eu escondido
Crimes soltos do Inferno a Terra atroam, Que imagens de terror ; que horrível cena Entre as copadas árvores o ouvia)
E em torno aos cadafalsos lutuosos Vou na assombrada ideia revolvendo! Despido o véu corpóreo, ó alma bela, Por vós em duras mágoas convertido
Da sedenta vingança os gritos soam. No seio de imortal felicidade, Vejo enfim todo o bem, que possuía:
Que vítima gentil, muda, e serena Só sentes não voar mais cedo a ela. À cândida Filena estar unido
Turba feroz de monstros pavorosos Brilha entre espesso, detestável bando, Julgastes que um pastor não merecia:
O ferro de ímpias leis, bramindo, encrava Nas sombras da calúnia, que a condena! Enquanto aos monstros de hórrida A mais doce prisão de Amor partistes.
Em mil, que a seu sabor faz criminosos. maldade Ajuda, triste lira, os versos tristes.
Orna a paz da inocência o gesto brando, Murmura a seu pesar no peito iroso
E os olhos, cujas graças encantaram, A voz da vingadora Eternidade. Mal haja a lei dos fados inclemente!
A brilhante nação, que blasonava Se volvem para o Céu de quando em O seu poder, o seu rigor praguejo:
D’exemplo das nações, o trono abate, quando: Desfruta suma glória, ó par ditoso, Morte! Geral verdugo! Estás contente?
E de um senado atroz se torna escrava. Logra em perpétua paz júbilo imenso, Já saciaste o sôfrego desejo?...
As mãos, aquelas mãos, que semearam Que o mundo consternado, e respeitoso, Mas Filena inda é viva, inda me sente
Por mais que o sangue em ondas se desate Dádivas, prêmios, e na mole infância Suspirar nos seus braços: inda a beijo!...
Nada, nada lhe acorda o sentimento, Com os ceptros auríferos brincaram. Te apronta as aras, te dispõe o incenso. Ah meus olhos, morreu: sem alma a
Que as insanas paixões prende, ou rebate; vistes.
Ludíbrio do furor, e da arrogância 48 - IDÍLIOS Ajuda, triste lira, os versos tristes.
Vai grassando o furor sanguinolento, Sofrem prisões servis, que apenas sente FILENA, OU A SAUDADE
Lavra de peito em peito, e de alma em O assombro da beleza, e da constância. (Pastoril) Em ti, cara Filena, a sepultura
alma, Que terna, que saudosa cantilena Tem de Amor, tem das Graças o tesouro;
Qual rubra labareda exposta ao vento: Oh justiça dos Céus! Oh mundo! Oh Ao som da lira Melibeu soltava, Ali te arranca a morte acerba, e dura
gente! O pastor Melibeu, que por Filena, Da mimosa cabeça as tranças de ouro:
Não cede, não repousa, não se acalma, Vinde, acudi, correi, salvai da morte Pela branca Filena em vão chorava! Eis terra, eis cinza, eis nada a formosura...
E a funesta, insolente liberdade A malfadada vítima inocente!... Inda me fere o peito aguda pena, Ah! Que não pude perceber o agouro
Ergue no punho audaz sanguínea palma. Quando recordo os ais, que o triste dava, Com que esta perda, oh fados, me
Mas ai! Não há piedade, que reporte O pranto que vertia, amargo, e justo advertistes!
Bárbaro tempo! Abominosa idade, A raiva dos terríveis assassinos; À sombra, que ali faz aquele arbusto. Ajuda, triste lira, os versos tristes.
Às outras eras pelos Fados presa Soou da tirania o duro corte.
Para labéu, e horror da humanidade! Tu, maviosa a choros, e a clamores, Um dia, há tempos, Lénia, a feiticeira,
Já cerrados estais, olhos divinos; Tu, Vénus (Vénus só na formosura) Me disse: ‘Grande mal te está guardado!’
Flagelos da virtude, e da grandeza, Já voando cumpriste, alma formosa, Luz de meus olhos, únicos amores Não mo quis declarar, e ave agoureira
Réus do infame e sacrílego atentado A férrea lei de aspérrimos destinos. Desta alma, e seu prazer, sua ventura; De noite me piou sobre o telhado:
De que treme a Razão, e a Natureza! Que reclinada, amarrotando as flores, Cuidei que perderia a sementeira,
Do Rei dos reis na corte luminosa Descansas em meu peito a face pura, O rebanho, o rafeiro... ah desgraçado!
Não bastava esse crime?... Inda o danado Revês o pio herói, por nós chorado, Perdeste mais, e a tanto inda resistes!
Ajuda, triste lira, os versos tristes. Jazem penas cruéis, quais as do Inferno: Sentia sobre si descarregada; Vens tão choroso, tão aflito agora!
Ora me sinto arder, outr’hora esfrio, Que, longe da paterna choça amada, Ah! Conta-me a paixão que te devora,
A tua meiga voz, o teu carinho Desfaz-me em ânsias um veneno interno: Dependente vivia em lar, estranho Das ânsias tuas o motivo explica:
Maior falta me faz, minha Filena, Talvez meus pés, oh víboras, feristes! Sendo os desgostos seus o seu rebanho. Comunicado o mal, mais brando fica.
Que lá no bosque ao rouxinol sôzinho Ajuda, triste lira, os versos tristes. Honrados maiorais o ser lhe deram
Da presa amiga a doce cantilena: Lá junto ao Sado ameno, e lhe fizeram ELMANO
O teu branco, amoroso cordeirinho, Nos troncos, e nos mármores gravemos Das artes cortesãs prezar o estudo:
Mal que se viu sem ti, morreu de pena: Memórias de Filena idolatrada, As Musas o encantaram mais que tudo, Ai de mim! Venho louco, estou perdido.
Balar saudoso, á montes, vós o ouvistes. Tão digna de suspiros, e de extremos, Ateando-lhe n’alma o fogo santo, Oh peito ingrato! Coração fingido!
Ajuda, triste lira, os versos tristes. De tantos corações tão cobiçada: Que estúpidos mortais desdenham tanto.
Amor! Amor! Seu nome eternizemos... Inflamado com ele, ao som da lira Oh desumana, oh bárbara pastora!
O meu rebanho definhou de sorte, Ai, que me falta a voz! Socorro, amada; Quebrava dos tufões a força, a ira, Fementida mulher enganadora!...
Depois que te perdi, que anda caindo; Conforta-me dos Céus, aonde assistes! E tiveste valor para a mais feia
Seca estes campos o hálito da Morte Não mais, á triste lira, ó versos tristes.” E o venerando Tejo sossegado, Traição, que pode conceber a ideia?
Desde que ela sumiu teu gesto lindo: A cuja fresca praia o trouxe o Fado, É possível! É certo! Oh céus! Socorro!...
Rogo-lhe vezes mil, que me transporte 49 - QUEIXUMES DO PASTOR Mil vezes, para ouvir-lhe as ternas Eu pasmo, eu desespero, eu ardo, eu
Lá onde, como estrela, estás luzindo, ELMANO mágoas, morro.
Lá onde alegre para sempre existes. CONTRA A FALSIDADE DA A limosa cabeça ergueu das águas.
Ajuda, triste lira, os versos tristes. PASTORA Cego, convulso, pálido, e sem tino FRANCINO
Entrava na cabana de Francino
A roseira também, que tu plantaste, URSELINA O desditoso Elmano. Entre os pastores Amigo, torna em ti, recobra alento,
Teu prazer, e prazer da Natureza, Geral estimação, gerais louvores Declara-me o teu íntimo tormento.
Murchou-se logo assim que te murchaste, Metido tenho a mão na consciência. Francino com justiça desfrutava: Do cego frenesi, que te domina,
Oh flor na duração, flor na beleza! E não falo senão verdades puras. Alto saber o espírito lhe ornava, Quem é causa, pastor? É Urselina?
A pequenina rola, que apanhaste, Que me ensinou a viva experiência. Na vasta capital fora criado,
Não comeu mais, finou-se de fraqueza: Camões, Soneto LXXXVII E por expertos mestres cultivado. ELMANO
Porque blasfémia, ó deuses, me punistes? Doce nó de amizade os dois unia,
Ajuda, triste lira, os versos tristes. Seu manto desdobrava a noite escura, Concorrendo a razão, e a simpatia Quem, senão ela (oh céus!) me obrigaria
E a rã no charco, o lobo na espessura Para tão bela, e plácida aliança. A tão pasmoso extremo? A Sorte impia
Já pelas selvas, ao raiar da aurora, Vociferando, os ares atroavam; Notando, pois, a fúnebre mudança, Com todo o seu poder nunca tem feito
Caçando, as tenras aves não persigo; Do trabalho diurno já cessavam Que no aspecto do amigo aparecia, Desmaiar a constância de meu peito;
Tudo me anseia, me enfastia agora, Os rudes, vigorosos camponeses: Assim Francino a causa lhe inquiria: Quem me abate é Amor, não o Destino.
Nem sofro os que por dó vêm ter comigo: O vaqueiro, cantando atrás das teses, Eu te conto o meu mal, eu vou, Francino,
Figura-me a saudade a toda a hora Após as cabras o pastor cantando, FRANCINO Retratar-te a mais negra, a mais horrível
Ternas delícias, que logrei contigo. Iam para as malhadas caminhando; De todas as traições. Não é possível
Ah! Quão depressa, gostos meus, fugistes! Tudo jazia em paz, menos o triste, Que tens, Elmano? Que fatal desgosto Nos ermos encontrar da Líbia ardente
Ajuda, triste lira, os versos tristes. O desgraçado Elmano, a quem feriste, Banha de tristes lágrimas teu rosto? Monstro, seja leão, seja serpente,
Ó pernicioso Amor, cruel deidade, Tu, que ainda há brevíssimos instantes, Que possa comparar-se à fera humana,
Como as formigas pelo chão, no Estio, Flagelo da infeliz humanidade: Te aclamavas feliz entre os amantes,
Ou como as folhas pelo chão, de Inverno, Tudo enfim descansava, excepto Elmano, Logrando mil carinhos, mil favores Que com tanto rigor me desengana.
No aflito coração, que em ais te envio, Que a mão do Fado, universal tirano, De Urselina gentil, dos teus amores, Quantas vezes notaste, honrado amigo,
Finezas, que a traidora obrou comigo! E da terna pergunta não fez caso, Ah génio desleal, falaz perverso! De seu duro desprezo inesperado;
Quantas vezes daqui presenciaste Nem o rosto voltou, e olhando acaso Ai! Não me alucinava o meu ciúme, Que o feminil capricho extravagante
Seus gestos, seus afagos, e julgaste, A próxima cabana de Nigela, Era mais do que justo o meu queixume, Não te deslustra o mérito brilhante.
Que o mais ardente amor, a fé mais pura Vi encostado Inálio à porta dela Quando (triste de mim!) quando julgava Nenhum, nenhum pastor n’aldeia ignora,
Pagavam minha cândida ternura! Olhar para Urselina, adeus dizer-lhe, Que Inálio, inda que simples, te agradava! Que essa, que te deixou, foi até’gora
Ouve, e conhecerás (ai de mim triste!) E sem pejo a cruel corresponder-lhe Acusei-te mil vezes de fingida, Carinhosa contigo, e fez patente
Que foi sonho, ilusão tudo o que viste. Cum doce riso, um gesto namorado, De que a ele querias ver-te unida Sua correspondência a toda a gente:
Já sabes, que no dia em que ligado De amantes expressões acompanhado. Em laços de Himeneu; mas tu negaste Demonstrações em público te dava
A Márcio Jónio foi pelo sagrado, Fervendo no peito o amor, e a ira, Sempre o que hoje sem pejo declaraste. De amorosa paixão, mas não te amava:
Indissolúvel nó, cantei louvores Logo, logo em pedaços fiz a lira, Traidora! Eu não dizia, eu não jurava, Baixo costume, natural fraqueza
A tão ditosos, tão fiéis amores, E em mil imprecaçôes, em mil queixumes Que o meu sossego ao teu sacrificava! É que a fez parecer de amor acesa;
E o número aumentei dos convidados; O furor exalei dos meus ciúmes, Ah! Porque me não deste o desengano, Aquela alma não arde, não se inflama,
Já sabes as meiguices, e os agrados, Ameaçando a infiel, que eu me vingava Que eu te pedia, coração tirano? A todos corresponde, a ninguém ama.
Com que a minha infiel me fez ditoso; No odioso rival, que me afrontava, Se Inálio, porque tem campos, e gados, Bem se viu com Bersálio, e com Laurénio
Ali traçando um baile harmonioso, Se uma satisfação, que Inálio visse, Numerosos casais, amplos montados, Seu inconstante, seu volúvel génio:
Por parceiro me quis; ali sentada Logo o meu pundonor não ressarcisse. Atrai esse teu génio interesseiro’ Té no mais desprezível dos pastores
Junto a mim, vezes mil a refalsada Prometeu-me que sim, mas de repente E eu, posto que leal, que verdadeiro, -
Protestou, que em sua alma eu só vivia, A meus olhos se esconde, e vai contente De clara geração, de sangue honrado, É capaz de empregar seus vis amores:
Que eu era dos seus olhos a alegria, O lerdo, o baixo amante encher de glória, Caducos, frágeis bens não devo ao fado, Nunca soube escolher, tudo lhe agrada,
Dando-me a bela mão furtivamente, Que não cabia em si pela vitória, E por isso não posso no teu peito E inda que astutamente infatuada
Que, ardendo de paixão, beijei contente. Que a pior das traições lhe tinha dado. Produzir da ternura o doce efeito; Faça crer aos amantes o contrário,
Pediu-me a desleal, que ali tornasse, Fiquei louco, fiquei desesperado, Que razão te obrigou a acarinhar-me, É sabido seu carácter vário.
Que tão doce prazer lhe não roubasse: Contemplando este assombro nunca visto E de um fingido amor capacitar-me? Isto em teu coração gravado fique,
Guiado por Amor, fui inda agora Nem na imaginação. Não pára nisto Coração em perfídias atolado, E não queiras, pastor, maior despique:
Seu desejo cumprir, que antes não fora, Daquela ingrata a pérfida baixeza: Impia, se o não tivesse inda criado Se até’gora calei quanto te digo,
Porque não sentiria este martírio, De novas fúrias cruelmente acesa, A vingadora mão de Jove eterno, Foi por não te afligir, prezado amigo.
Este ardor, esta raiva, este delírio. Procura Aónio, inerte pegureiro, Devia para ti criar o Inferno! Pouco importa perder quem nada vale.
Jónio, que estava à porta da cabana, Que é o riso da gente no terreiro Contente-te, que toda a aldeia fale
Me veio receber.., ah! Quanto engana Quando sai a bailar, e a cada passo FRANCINO Contra a sua imprudente aleivosia;
Uma aparencia alegre, e carinhosa! Que, se pensasse bem no que fazia,
Entrei, pus logo os olhos n’aleivosa, Se esquece da harmonia, e do compasso, Consola-te, pastor; essa perjura Jamais o falso monstro, que te deixa,
Que, em vez de me tratar com meigo Sendo falto de prendas, e de siso Não deve motivar tua amargura; Fechara a tudo os olhos como fecha.
agrado, Como o louco Magálio, o rude Anfriso. Castiga-lhe a traição, e o fingimento Deveria lembrar-se a fementida
Tinha nas faces o desdém pintado. Urselina lhe diz, que me incitasse, Lançando-a num profundo esquecimento. De que a sua afeição foi conhecida,
A que a choça de Jónio abandonasse, Que mais satisfação, que mais vingança De que inda em tuas mãos tens os
Pasmado da mudança repentina, Persuadindo-me, enfim, que não devia Queres da vil, da súbita mudança, penhores
Lhe disse: “Amado bem, cara Urselina, Presenciar a afronta, que sofria. Que ver exposta a pérfida pastora De seus furtivos, tácitos favores,
Tu comigo tão áspera? Eu ignoro Acreditei o indigno conselheiro Ao ludíbrio geral? Uma traidora, Para não te obrigar com tal injúria
Em que pude agravar quem tanto adoro.” E saí da cabana, onde primeiro Uma fera, uma ingrata, inda que bela, A que dos zelos a violenta fúria
Isto dizendo, avizinhei-me a ela, Tinha logrado os mimos da perjura, Não merece a paixão, que tens por ela. Despedaçasse um véu misterioso,
Que estava ao pé da rústica janela, Que assim desenganou minha ternura. Pondera, que não foste injuriado Um véu tão necessário como honroso.
Mas verás se mais hora menos hora E busque-se vingança igual ao crime. Os melindrosos, cândidos penhores Não dorme a fantasia, Amor não dorme:
Não é punida a infiel pastora: Ritália bela, encanto dos pastores, Do tálamo furtivo Ou gratas ilusões, ou negros sonhos
Douradas esperanças lisonjeiras Merece meus suspiros, meus amores: Os filhinhos gentis, imagens dela, Assomando na ideia espertam, rompem
Nutrem-lhe ideias vãs, e interesseiras; Com ela fui mil vezes desatento, No regaço da mãe serenos gozam O silêncio da morte.
Mas Inálio é como ela ambicioso, Negando-lhe o devido acatamento O sono da inocência. Ah! Que fausta visão de Inês se apossa!
E só deseja um himeneu lucroso, Coro subtil de alígeros Favónios Que cena, que espectáculo assombroso
Que lhe farte a cobiça, os bens lhe Por cumprir o preceito rigoroso Que os ares embrandece, A paixão lhe afigura aos olhos d’alma!
aumente: De Urselina infiel, que no enganoso, Ora enlevado afaga Em marmóreo salão de altas colunas,
Ele próprio mo disse, ele não mente, No detestável peito encerra, e nutre Com as plumas azuis o par mimoso, A sólio majestoso, e rutilante
Que a sua natural simplicidade Da venenosa inveja o feio abutre, Ora solto, inquieto Junto ao régio amador se crê subida:
Não pode mascarar a sã verdade. Porque a meiga Ritália é mais do que ela Em leda travessura, em doce brinco, Graças de neve a púrpura lhe envolve,
Eia, pois, cesse o pranto, enxuga o rosto, Branda, risonha, delicada, e bela, Pela amante saudosa, Pende augusto dossel do tecto de ouro;
Adora a Providência em teu desgosto; Quanto é mais agradável, mais formosa Pelos tenros meninos se reparte, Rico diadema de radioso esmalte
Não delires, pastor, não desesperes, Que as outras flores a punícea rosa. E com ténue murmúrio vai prender-se Lhe cobre as tranças, mais formosas que
Que és feliz em saber quem são mulheres. Ritália desde agora o lindo objecto Das áureas tranças nos anéis brilhantes. ele;
Será do meu fiel, constante afecto: Primavera louçã, quadra macia Nos luzentes degraus do trono excelso
ELMANO Arrebatado em êxtases de gosto, Da ternura, e das flores, Pomposos cortesãos o orgulho acurvam;
Louvores de seus olhos, de seu rosto Que à bela Natureza o seio esmaltas, A lisonja sagaz lhe adoça os lábios,
Sim, meu amado, meu leal Francino, Farei voar nas asas da ternura, Que no prazer de Amor ao mundo apuras O monstro da política se aterra,
Eu dou mil graças ao poder divino E assim me vingarei duma perjura. Prazer da existência, E se Inês perseguia, Inês adora.
Por me livrar do engano em que vivia: Ela, por timbre meu, o escute, o saiba, Tu de Inês lacrimosa Ela escuta os extremos,
Eu lutarei coa terna simpatia, E o coração no peito lhe não caiba As mágoas não distrais com teus encantos. Os vivas populares; vê o amante
Que me fez adorar uma inconstante, De inveja, de furor: eu, entretanto, Debalde o rouxinol, cantor de amores,
Aos falsos crocodilos semelhante. Troque em plácido riso o triste pranto, Nos versos naturais os sons varia; Nos olhos estudar-lhe as leis que dita;
Embora logre Inálio os seus agrados E a fria indif’rença, com que intento O límpido Mondego em vão serpeia O prazer a transporta, amor a encanta:
Fingidos, mentirosos, estudados. Recompensar-lhe o torpe fingimento, Prémios, dádivas mil ao justo, ao sábio
O sórdido interesse é quem a inspira: Até tão alto grau nesta alma cresça Cum benigno sussurro, entre boninas Magnânima confere,
Se da fortuna o meu rival sentira Que eu veja a desleal, e a não conheça. De lustroso matiz, alvo perfume; Rainha esquece o que sofreu vassala:
A triste, perniciosa variedade; Em vão se doura o Sol de luz mais viva, De sublimes acções orna a grandeza,
Se a violência de horrível tempestade Os céus de mais pureza em vão se Felicita os mortais, do ceptro é digna,
Lhe derribasse as férteis oliveiras, 50 - CANTATA adornam Impera em corações... Mas, céus!... Que
Se o fogo lhe engolisse as sementeiras, À MORTE DE INÊS DE CASTRO Por divertir-te, oh Castro! estrondo
Se a cheia lhe afogasse os nédios gados, Objectos de alegria Amor enjoam O sonho encantador lhe desvanece!
Verias os desdéns, e em desagrados As filhas do Mondego a morte escura Se Amor é desgraçado. Inês sobressaltada
Mudar-se logo o amor, que finge a astuta, Longo tempo, chorando, memoraram. A meiga voz dos Zéfiros, do rio, Desperta e de repente aos olhos turvos
Que de negra cobiça a voz escuta: Camões, Lusíadas Não te convida o sono: Da vistosa ilusão lhe foge o quadro.
Tu a verias outra vez comigo Só de já fatigada Ministros do Furor, três vis algozes,
As chamas assoprar do afecto antigo, Longe do caro esposo Inês formosa Na luta de amargosos pensamentos De buídos punhais a dextra armada,
Mendigando razões para aplacar-me, Na margem do Mondego Cerras, mísera, os olhos; Contra a bela infeliz bramindo avançam.
Para me convencer, para enganar-me. As amorosas faces aljofrava Mas não há para ti, para os amantes Ela grita, ela treme, ela descora,
Mas ah paixão! Teu ímpeto reprime, De mavioso pranto. Sono plácido, e mudo: Os frutos da ternura ao seio aperta,
Invocando a piedade, os Céus, o amante; Eis, atentas no horror do caso infando, Aqui piaram, Escreveu do Fado a mão
Mas de mármore aos ais, de bronze ao Terríveis maldições dos lábios vibram Lobos uivaram,
pranto, Aos monstros infernais, que vão fugindo. O chão tremeu. Cresci, cresceram comigo
À suave atracção da formosura, Já c’roam de cipreste a malfadada, Meus danos, e num transporte
Vós, brutos assassinos, E, arrepelando as nítidas madeixas, Toldam-se os ares, Curva maga a ler-me a sorte
No peito lhe enterrais os ímpios ferros. Lhe urdem saudosas, lúgubres endeichas. Murcham-se as flores; Com roucas preces obrigo:
Cai nas sombras da morte Tu, Eco, as decoraste; Morrei, Amores, Eis que toma um livro antigo,
A vítima de Amor lavada em sangue: E cortadas dos ais, assim ressoam Que Inês morreu. Abre, vê, folheia, estuda,
As rosas, os jasmins da face amena Nos côncavos penedos, que magoam: Té que me diz carrancuda:
Para sempre desbotam; Toldam-se os ares, “Nos caracteres que olhei
Dos olhos se lhe some o doce lume, “Toldam-se os ares, Murcham-se as flores; Fim ao teu mal não achei;
E no fatal momento Murcham-se as flores; Morrei, Amores, Lei do Fado não se muda”
Balbucia arquejando: - “Esposo! Esposo’ Morrei, Amores, Que Inês morreu.”
Os tristes inocentes Que Inês morreu. Absorto, convulso, e frio,
À triste mãe se abraçam, 51 - GLOSAS Deixo de erriçada grenha
E soltam de agonia inútil choro. Mísero esposo, Que eu fosse enfim desgraçado A Fúria em côncava penha,
Ao suspiro exalado, Desata o pranto, Escreveu do Fado a mão; Seu lar medonho, e sombrio:
Final suspiro da formosa extinta, Que o teu encanto Lei do Fado não se muda; Debalde luto, e porfio
Os Amores acodem. Já não é teu. Triste do meu coração ! Contra a Sorte desde então;
Céus! Não achar compaixão!
Mostra a prole de Inês, e tua, ó Vénus, Sua alma pura 52 - GLOSA Céus! Amar sem ser amado!
Igual consternação, e igual beleza: Nos Céus se encerra; Três vezes sobre meus lares Bárbara lei do meu fado!
Uns dos outros os cândidos meninos Triste da Terra, Vozeou, quando eu nascia, Triste do meu coração !
Só nas asas diferem Porque a perdeu. Ave, que aborrece o dia,
(Que jazem pelo campo em mil pedaços Que prevê cruéis azares: 53 - A minha Lília morreu.
Carcases de marfim, virotes de ouro) Contra a cruenta Amor dividira os ares GLOSA
Súbito voam dois do coro alado; Raiva ferina De seus tormentos cercado; Assim como as flores vivem
Este, raivoso, a demandar vingança Face divina À funda estância do Fado A minha Lília viveu;
No tribunal de Jove, Não lhe valeu. O voo havia abatido, Assim como as flores morrem
Aquele a conduzir o infausto anúncio E ambos tinham resolvido A minha Lilia morreu.
Ao descuidado amante. Tem roto o seio, Que eu fosse enfim desgraçado.
Nas cem tubas da Fama o grão desastre Irá Tesouro oculto, Assomando o negro dia,
pelo universo: Bárbaro insulto - Esse, que os primeiros ais Ave sinistra gemeu;
Hão-de chorar-te, Inês, na Hircânia os Se lhe atreveu. Vai soltar triste, e choroso, Cumpriu-se o funesto agouro:
tigres, Seja à Fortuna odioso, A minha Lilia morreu
No torrado sertão da Líbia fera De dor e espanto Seja pesado aos mortais:
As serpes, os leões hão-de chorar-te. No carro de ouro Dos mimos de Amor jamais Desfalece, ó Natureza,
Do Mondego, que atónito recua, O númen louro Desfrute a consolação; Acelera o fado teu;
Do sentido Mondego as alvas filhas Desfaleceu. Ame, porém ame em vão, Esta voz te guie ao nada:
Em tropel doloroso Ferva-lhe n’alma o ciúme A minha Lilia morreu.
Das urnas de cristal eis vêm surgindo; Aves sinistras -Isto no horrendo volume
Fadou-me o caso medonho Que o puro Olimpo correu: Eu na cama, e tu no chão. “Não se assuste (diz o Galeno)
Vate, que nos astros leu; Aquela é a alma de Lília, Que inda desta se não vai.
Os vates são como os numes: A minha Lilia morreu. Poderás dizer-me a isto
A minha Lilia morreu. Que nunca te conheci; “Ah senhor! (torna o coitado,
54 - APÔLOGO Mas para ver que não minto Como quem seu fado espreita)
Que é do Sol? Que é do Universo? Basta-me olhar para ti.” Da moléstia não me assusto,
Tudo desapareceu; OS DOIS GATOS Assusto-me da receita.”
Foi-se toda a Natureza: “Ui! (responde-lhe o gatorro,
A minha Lilia morreu. D ois bichanos se encontraram Mostrando um ar de estranheza) Um escrivão fez um roubo;
Sobre uma trapeira um dia: És mais que eu? Que distinção Diz-lhe o juiz: “Que razão
A minha ventura, e Lília (Creio que não foi no tempo Pôs em nós a Natureza? Teve para fazer isto?”
Num só laço Amor prendeu: Da amorosa gritaria). Responde: - “Ser escrivão.”
Morreu a minha ventura, Tens mais valor? Eis aqui
A minha Lilia morreu. De um deles todo o conchego A ocasião de o provar.” Rechonchudo franciscano
Era dormir no borralho; “Nada (acode o cavalheiro) Desenrolava um sermão;
Em parte da minha essência O outro em leito de senhora Eu não costumo brigar.” E defronte por acaso
Minha essência pereceu; Tinha mimoso agasalho. Lhe ficara um beberrão.
Não vivo senão metade: “Então (torna-lhe enfadado
A minha Lilia morreu. Ao primeiro o dono humilde O nosso vilão ruim) Tratava dos bens celestes,
Espinhas apenas dava; Se tu não és mais valente, Proferindo: “Ouvintes meus,
Oh quanto ganhava o mundo! Com esquisitos manjares Em que és sup’rior a mim? Que ditas, que imensa glória
Oh quanto o mundo perdeu! O segundo se engordava. Para os justos guarda um Deus!
Doce lucro, e triste perda! Tu não mias?” - “Mio. - E sentes
A minha Lilia morreu. Miou, e lambeu-o aquele Gosto em pilhar algum rato?” Falsos, momentâneos gostos
Por o ver da sua casta; “Sim.” - “E o comes?” - “Oh! Se o como ! Há neste mundo mesquinho:
Para exultar o Universo Eis que o brutinho orgulhoso “ Mas no Céu há bens sem conto...
A minha Lília nasceu; De si com desdém o afasta. “Logo não passas de um gato. Pergunta o bêbado: - “E vinho?”
Para os numes exultarem
A minha Lilia morreu. Aguda unha vibrando Abate, pois, esse orgulho, Uma terra dizem que há,
Lhe diz: “Gato vil e pobre, Intratável criatura: Onde a fome acerba e dura,
Meu coração desgraçado, Tens semelhante ousadia Não tens mais nobreza que eu; Cabo dos médicos dá:
Desgraçado porque és meu, Comigo, opulento, e nobre? O que tens é mais ventura. “ Porque é isto? É porque lá
Evapora-te em suspiros: Pagam sômente a quem cura.
A minha Lilia morreu. Cuidas que sou como tu? 55 - EPIGRAMAS
Asneirão, quanto te enganas! Para curar febres podres Homem de génio impaciente,
As estrelas se apagaram, Entendes que me sustento Um doutor se foi chamar, Tendo uma dor infernal,
A Natureza tremeu, De espinhas, ou barbatanas? Que, feitas as cerimónias, Pedia para matar-se
Os promontórios gemeram, Começou a receitar. Um veneno, ou um punhal.
A minha Lilia morreu. Logro tudo o que desejo,
Dão-me de comer na mão; A cada penada sua “Não há (lhe disse um vizinho
Disse, ao ver sereno eflúvio, Tu lazeras, e dormimos O enfermo arrancava um ai. Velho, que pensava bem)
Não há punhal, nem veneno; De Elmano eis sobre o mármore sagrado
Mas o médico ai vem. A lira, em que chorava, ou ria Amores;
Ser deles, ser das Musas foi seu fado:
56 - EPITÁFIO Honrem-lhe a lira vates, e amadores.

BOCAGE, Manuel Maria Barbosa du. Sonetos. Lisboa: Europa-América, s. d. 224p.

PERÍODO DA VIDA MILITAR Pela baça Tristeza envenenados: Já sobre o coche de ébano estrelado
(1780-1787) «Emprega noutro objeto os teus rigores; Deu meio giro a noite escura e feia;
Vede a luz, não busqueis, desesperados, que esta vida infeliz está guardada Que profundo silêncio me rodeia
I No mudo esquecimento a sepultura; para vítima só de meus furores.» Neste deserto bosque, à luz vedado!
PROPOSIÇÃO DAS RIMAS DO POETA Se os ditosos vos lerem sem ternura,
Ler-vos-ão com ternura os desgraçados: IV Jaz entre as folhas Zéfiro abafado,
Incultas produções da mocidade CONTRA A INGRATIDÃO DE NISE O Tejo adormeceu na lisa areia;
Exponho a vossos olhos, ó leitores; Não vos inspire, ó versos, cobardia Nem o mavioso rouxinol gorgeia,
Vede-as com mágoa, vede-as com Da sátira mordaz o furor louco, Raios não peço ao criador do mundo, Nem pia o mocho, às trevas costumado:
piedade; Da maldizente voz a tirania : Tormentas não suplico ao rei dos mares,
Que elas buscam piedade, e não louvores; Vulcões à terra, furacões aos ares, Só eu velo, só eu, pedindo à sorte
Desculpa tendes, se valeis tão pouco; Negros monstros ao báratro profundo: Que o fio, com que está minh’alma presa
Ponderai da Fortuna a variedade Que não pode cantar com melodia À vil matéria lânguida, me corte:
Nos meus suspiros, lágrimas e amores ; Um peito, de gemer cansado e rouco . Não rogo ao deus d’amor, que furibundo
Notai dos males seus a imensidade, Te arremesse do pé de seus altares; Consola-me este horror, esta tristeza;
A curta duração dos seus favores; III Ou que a peste mortal voe a teus lares Porque a meus olhos se afigura a morte
SONHO E murche o teu semblante rubicundo: No silêncio total da natureza.
E se entre versos mil de sentimento
Encontrardes alguns, cuja aparência De suspirar em vão já fatigado , Nada imploro em teu dano, ainda que os VI
Indique festival contentamento, Dando trégua a meus males eu dormia; laços O COLO DE MARÍLIA
Eis que junto de mim sonhei que via Urdidos pela fé, com vil mudança
Crede, ó mortais, que foram com violência Da Morte o gesto lívido, e mirrado: Fizeste, ingrata Nise, em mil pedaços: Mavorte, porque em pérfida cilada
Escritos pela mão do Fingimento, O cruel moço alígero o ferira,
Cantados pela voz da Dependência. Curva fouce no punho descarnado Não quero outro despique, outra vingança, Não faz caso da mãe, que chora e brada,
Sustentava a cruel, e me dizia: Mais que ver-te em poder de indignos Quer punir o traidor, que lhe fugira:
II «Eu venho terminar tua agonia; braços,
O AUTOR AOS SEUS VERSOS Morre, não peneis mais, oh desgraçado!» E dizer quem te perde e quem te alcança. Na sinistra o pavês, na destra a espada,
Nos ígneos olhos fuzilante a ira,
Chorosos versos meus desentoados, Quis ferir- me , e de Amor foi atalhada, V Pule à negra carroça ensangüentada,
Sem arte, sem beleza, e sem brandura, Que armado de cruentos passadores INSÓNIA Que Belona infernal coas Fúrias tira:
Urdidos pela mão da Desventura, Aparece, e lhe diz com voz irada :
Assim parte, assim voa ; eis que vê posto Tua cândida mão, teu pé mimoso, A teus lábios voando os ares fendem CONTRA A ViNGANÇA DE AMOR
No colo de Marília o deus alado, Tuas mil perfeições, crer que a ventura Terníssimos desejos sequiosos:
No colo aonde tem mimoso encosto: As guarda para mim, fora loucura; De Pafos o menino ardendo em ira,
Nem sou digno de ti, nem sou ditoso: Teus cabelos subtis e luminosos Porque uma ingrata as suas leis detesta,
Já Marte arroja as armas, e aplacado Mil vistas cegam, mil vontades prendem; Tão grave insulto despicar protesta,
Diz, inclinando o formidável rosto : E que mortal enfim, que peito humano E em arte aos de Minerva se não rendem E a domar-lhe a altivez, teimoso, aspira:
«Valha-te, Amor, esse lugar sagrado!» Merece os braços teus, ó ninfa amada? Teus alvos curtos dedos melindrosos:
Que Narciso? Que herói? Que soberano? Dormindo encontra a desdenhosa Elmira,
VII Reside em teus costumes a candura, Sobra a mão reclinada a nívea testa:
O POETA LIVRE DAS PRISÕES DE Mas que lê minha mente iluminada!... Mora a firmeza no teu peito amante, «Teu génio» (diz) «amansarei com esta
AMOR Céus!... Penetro o futuro!... Ah, não me A razão com teus risos se mistura: Farpa subtil» — e do carcás a tira:
engano;
Ao templo do propício Desengano De Jove para o toro estás guardada. És dos céus o composto mais brilhante; Mas a beta Acidália, a quem somente
A próvida Razão guiou meus passos; Deram-se as mãos Virtude e Formosura Rende o travesso infante vassalagem,
Por ver-me, louco já, mordendo os laços, IX Para criar tua alma e teu semblante. Lhe aparece e lhe grita: «Amor, detém-te!
Os duros laços de um amor profano: RECORDAÇÕES DE FÍLIS
XI »Tu, filho, que não sofres que me
Ajoelho ante o númen soberano, A loura Fílis, na estação das flores, SOBRE A SEPUL TURA DE TIRSÁLIA ultrajem,
Mostro-lhe os roxos, os cativos braços, Comigo passeou por este prado Elmira vens ferir, irreverente!
Dizendo-lhe: «Grã Deus, faze em Mil vezes, por sinal trazia ao lado Negra fera, que a tudo as garras lanças; Nela de tua mãe não vês a imagem?»
pedaços As Graças, os Prazeres e os Amores. Já murchaste, insensível a clamores,
Os ferros, que me pôs Amor tirano!» Nas faces de Tirsália as rubras flores, XIII
Quantos mimos então, quantos favores, Em meu peito as viçosas esperanças: ESPERANÇA AMOROSA
A deidade, inimiga da Esperança, Que inocente afeição, que puro agrado Grato silêncio, trêmulo arvoredo,
Me responde: «Eu te livro do flagelo Não me viram gozar (oh, doce estado!) Monstro, que nunca em teus estragos Sombra propícia aos crimes, e aos amores,
Que oprime os corações; mortal, descansa. Mordendo-se de inveja os mais pastores! cansas, Hoje serei feliz ! — longe, temores,
» Vê as três Graças, vê os nus Amores Longe, fantasmas, ilusões do medo.
Porém, segundo o feminil costume, Como praguejam teus cruéis furores,
Eis que, brandindo um lúcido cutelo, Já Fílis se esqueceu do amor mais terno, Ferindo os rostos, arrancando as tranças! Sabei, amigos Zéfiros, que cedo,
Meus ferros corta, e logo da lembrança E com Jónio se ri de meu queixume. Entre os braços de Nise, entre estas flores,
Me escapa de Marfida o rosto belo. Domicílio da noite, horror sagrado, Furtivas glórias, tácitos favores,
Ah!, se nos corações fosses eterno, Onde jaz destruída a formosura, Hei-de enfim possuir: porém segredo!
VIII Tormento abrasador, negro ciúme, Abre-te, dá lugar a um desgraçado:
CELEBRA AS PERFEIÇÕES DE Serias tão cruel como os do Inferno! Nas asas frouxos ais, brandos queixumes
MARÍLIA Eis desço... eis cinzas palpo... Ah, Morte Não leveis, não façais isto patente,
X dura! Que nem quero que o saiba o pai dos
Não, Marília, teu gesto vergonhoso, LOUVANDO AS GRAÇAS DE Ah, Tirsália! Ah, meu bem, resto adorado! numes:
A luz dos olhos teus, serena e pura, MARÍLIA Torna, torna a fechar-te, ó sepultura!
Teu riso, que enche as almas de ternura, Cale-se o caso a Jove omnipresente,
Agora meigo, agora desdenhoso: Marília, nos teus olhos buliçosos XII Porque se ele o souber, terá ciúmes,
Os Amores gentis seu facho acendem; VÉNUS PROTEGE ELMIRA Vibrará contra mim seu raio ardente.
Disponho ao som de lânguidas querelas De quando em quando as náiades Que em vil murmuração, ralhos eternos
CXVIII A rosa, o cravo, a túlipa, o suspiro: carpindo; Estragas sem descanso a noite e o dia:
AGUARDANDO UMA ENTREVISTA E o Mondego, no caso reflectindo,
PROMETIDA Medrai no chão de amor, florinhas belas... Rompe irado a barreira, alaga as flores: Tu, que nas horas em que o mocho pia
Ah! Lula, eu gozo o Céu!... Lília, eu Caluniaste meus suspiros ternos,
Noite, amiga de Amor, calada, escura, respiro Inda altos hinos o universo entoa Sacode a carga de noventa Invernos
Eia, engrossa os teus véus, os teus Tua alma pura na fragrância delas! A Pedro, que da morta formosura Nas descarnadas mãos da morte fria:
horrores: Convosco, Amores, ao sepulcro voa:
Enquanto vou gozar de mil favores CXX Cai de chofre no báratro profundo,
Sobre o doce teatro da ternura: FAUSTOS ANOS DO SR. ANTÓNIO Milagre da ‘beleza e da ternura! Cai nas entranhas da voraz fornalha,
JOSÉ BERNARDO DA GAMA FARIA E Abre, desce, olha, geme, abraça e c’roa Deixa em sossego o miserável mundo;
Marília, mais gentil, e até mais pura, BARROS, EM SETÚBAL A malfadada Inês na sepultura.
Que as ledas Graças, que as mimosas E entre a maldita, réproba canalha,
flores, Da fria habitação, da vítrea gruta, CXXII Lá bem longe de nós, lá bem no fundo,
Velando às mudas horas dos Amores Alça o Calipo a fronte salitrosa; MORTE DE SUA IRMÃ D. MARIA Arde, murmura, amaldiçoa e ralha.
Receia o casto pejo, que murmura: E risonho penteia a nunca enxuta EUGÉNIA BARBOSA DU BOCAGE,
Alva melena, ríspida e limosa: FALECIDA NA FLOR DA IDADE CXXIV
Em deleitoso e tácito retiro, A G... P... S... M..., APONTADOR NO
Suspensa entre o temor, entre o desejo, Em torno dele a modular se escuta De radiosas virtudes escoltada ARSENAL DA MARINHA
Flutua a bela, a cuja posse aspiro: Chusma de ninfas cândida e formosa; Deste imaturo adeus ao mundo triste,
Dos ventos o tropel bramindo luta Coa mente no almo pólo, aonde existe Aquele que ali vês, rosto maldito,
Ah!, já nos braços meus a aperto e beijo! Lá na eólia masmorra cavernosa: Bem, que sempre se goza e nunca enfada: No sexto camarote vinculado,
Já, desprendendo um lânguido suspiro, E novo apontador, novo morgado,
No seio do prazer se absorve o pejo. Dando lascivos ósculos nas flores À fouce, a segar vidas destinada, Sacerdote fiel do hebraico rito:
Gratos eflúvios Zéfiro derrama, Mansíssima cordeira o colo uniste;
CXIX Desfaz do Inverno os mádidos vapores: O que é do Céu ao Céu restituíste, A bazófia entre a crença o põe aflito
A UMA DONZELA DE EXTREMA Restituíste ao nada o que é do nada: Pela insígnia, que traz ao peito inchado,
BELEZA, E DE RARA VIRTUDE, Almo prazer os corações inflama, Por fora quer mostrar-se homem honrado,
MORTA NA FLOR DOS ANOS Tudo respira amor, tudo louvores E inda gemo, inda choro, alma querida, Em casa pisa a cruz e o sambenito:
Ao festivo natal do ilustre Gama. Teu fado amigo, tua dita imensa,
De homens e numes suspirado encanto, Que em vez de pranto a júbilo convida! Agora ele aspirava a nova graça
Lília, inocente como virgem rosa, CXXI Dum tal príncipe herdar de preto couro,
Lília mais branda, Lília mais formosa LAMENTÁVEL CATÁSTROFE DE D. Ah! Pio acordo minha mágoa vença; Por ter parte a mulher na fusca raça:
Que a ninfa etérea, de puníceo manto; INÊS DE CASTRO E cativeiro para o justo a vida,
A morte para o justo é recompensa. Mas indo ao Alentejo alçar o louro,
Eu, e os Amores, que perderam tanto, Da triste, bela Inês, inda os clamores Sem valer-lhe da usura o foro e a traça,
Damos-te às cinzas oblação mimosa: Andas, Eco chorosa, repetindo; CXXIII Foi expulso do paço com desdouro.
Curva goteje minha dor saudosa Inda aos piedosos Céus andas pedindo A UM VELHO MALDIZENTE
Na mole of’renda, que requer meu pranto: Justiça contra os ímpios matadores; CXXV
Tu, maligno ladrão, cruel harpia, AO MESMO
Em teu sagrado, perenal retiro, Ouvem-se inda na Fonte dos Amores Monstro dos monstros, fúria dos Infernos,
Com pena de latão atrás da orelha, Troquei-vos pelo mal, que me sufoca; De quando em quando um ai trémulo e Ao meu ídolo amado, ausente, e lindo,
No sovaco chapéu, na mão tinteiro, Troquei-vos pelos ais, pelos pesares: rouco Formo nas mãos d’Amor sagrados votos:
Passeia ufano em torno do estaleiro Oh, câmbio triste!, oh, deplorável troca!
Um novo apontador de origem velha: Mas tantas aflições, tantos pesares, Mordaz tristeza o coração me corte,
CXXVII Tudo é pouco, Gertrúria, tudo é pouco, Sofra tudo, ó Gertrúria, por amar-te,
Ora altivo, arqueando a sobrancelha, RECORDANDO-SE DA Se inda eu vir os teus olhos singulares. Farte-se embora a cólera da sorte:
Marca a falta do pobre carpinteiro; INCONSTÂNCIA DE GERTRÚRIA
Ora submisso ás ordens do porteiro, CXXIX Mas talvez (ai de mim!) que se não farte,
Dá revista à mestrança, que aparelha: Da pérfida Gertrúria o juramento À MESMA, RECEOSO DA SUA Que ou tua variedade, ou minha morte,
Parece-me que estou inda escutando, CONSTÂNCIA Me roube as esperanças de lograr-te.
Acaba o exercício baixo, e sujo, E que inda ao som da voz suave e brando
E sai do arsenal o Dom Quixote Encolhe as asas, de encantado, o vento: Qual o avaro infeliz, que não descansa, CXXXI
Com mais pingos de breu do que um Volvendo os olhos dum para o outro lado, PRESSÁGIOS DE DES VENTURA
marujo: No vasto, infatigável pensamento, Por cuidar que ao tesouro idolatrado PROPÍNQUA
Os mimos da perjura estou notando... Cobiçosa vontade as mãos lhe lança:
Eis que é tempo de vir o paquebote; Eis Amor, eis as Graças festejando Usurpando um minuto a meu lamento,
Aparecem Dona Aires co sabujo, Dos ternos votos o feliz momento. Tal eu, meu doce amor, minha esperança, Amigo sono os olhos me ocupava,
Vinculados em certo camarote. De suspeitas cruéis atormentado, E enquanto o débil corpo descansava,
Mas ah!... Da minha rápida alegria Receio que a distância, o tempo, o fado, Velava amor, velava o pensamento:
Para que acendes mais as vivas cores, Te arranquem meus carinhos da
PERÍODO DE EXPATRIAÇÃO Lisonjeiro pincel da fantasia? lembrança: Eis que em deserto e lúgubre aposento,
(1788 a 1790) Que semimorta luz mais afeava,
Basta, cega paixão, loucos amores; Receio que, por minha adversidade, Cri, Gertrúria (ai de mim!), que te avistava
CXXVI Esqueçam-se os prazeres de algum dia, Novo amante sagaz, e lisonjeiro, Já sem cor, já sem voz, já sem alento:
O POETA DISTANTE DA SUA Tão belos, tão duráveis como as flores. Macule de teus votos a lealdade;
AMADA Súbito acordo em lágrimas banhado,
CXXVIII Ah!, crê, bela Gertrúria, que o primeiro E, das trevas palpando o véu medonho,
Olhos suaves, que em suaves dias A GERTRÚRIA AUSENTE Dia em que eu chore a tua variedade Em vão busco o teu corpo delicado:
nos meus tantas vezes empregados; Será da minha vida o derradeiro.
Vista, que sobre esta alma despedias Por fofos escarcéus arremessado Mas inda em ânsias trémulo suponho
Deleitosos farpões, no Céu forjados: Ora aos abismos, ora ao firmamento, CXXX Que me vaticinou meu negro fado
Escutando o furor e o som violento GERTRÚRIA, ESCRITO DURANTE Dos males o pior no horrível sonho.
Santuários de amor, luzes sombrias, Do ríspido Aquilão, de Noto irado: UMA VIAGEM
Olhos, olhos da cor de meus cuidados, CXXXII
Que podeis inflamar as pedras frias, Aberto o peito, o coração rasgado Enquanto os bravos, formidáveis Notos, ORÁCULO DE AMOR
Animar os cadáveres mirrados. Pelo agudo punhal do apartamento, Por entre os cabos trémulos zunindo,
Qual pombinho, que foi de açor cruento O fendente baixel vão sacudindo Alva Gertrúria minha, a quem saudoso
Troquei-vos pelos ventos, pelos mares, Pelas garras mortais atravessado; A climas do meu clima tão remotos: Mando trémulos ais enternecidos;
Cuja verde arrogância as nuvens toca, Gertrúria, que encantaste os meus sentidos
Cuja horríssona voz perturba os ares: Assim num cego amor já cego e louco, Enquanto de Nereu contínuos motos Cum meigo riso, cum olhar piedoso:
Envio, alma querida, envio aos ares Na vacilante popa estou sentindo,
Amor, o injusto Amor, nume doloso, Teu níveo colo, para os mais sagrado: A CAMÕES, COMPARANDO COM OS Pinta um rabo de fogo em mãos sombrias,
Insensível penedo a meus gemidos, DELE OS SEUS PRÓPRIOS E por timbre d’escudo uma carocha:
Me exala sobre os tímidos ouvidos Sonhei que era feliz por ser ousado, INFORTÚNIOS
Estas vozes cruéis em tom raivoso: Que o siso, a força, a voz, a cor, perdia Põe-lhe em roda com letras rebranquias:
Num êxtase suave, em que bebia Camões, grande Camões, quão semelhante «Honor d’Abraão, à tribo acende a tocha,
«Tu, que já desfrutaste os meus favores, O néctar nem por Jove inda libado: Acho teu fado ao meu quando os cotejo! Celebra a Páscoa, espera inda o Messias. »
Tu, que na face de Gertrúria bela Igual causa nos fez perdendo o Tejo
Néctar bebeste, mitigaste ardores, Mas no mais doce, no melhor momento, Arrostar co sacrílego gigante: CLXVIII
Exalando um suspiro de ternura, A UM BACHAREL QUE CASOU COM
» Não tornarás, não tornarás a vê-la: Acordo, acho-te só no pensamento: Como tu, junto ao Ganges sussurrante UMA VELHA PARA LHE EMPOLGAR
Lamenta, desgraçado, os teus amores, Da penúria cruel no horror me vejo; UMA TENÇA DE SEISCENTOS MIL-
Acusa, desgraçado, a tua estrela. » Oh, destino cruel! Oh, sorte escura! Como tu, gostos vãos, que em vão desejo, RÉIS
Que nem me dure um vão contentamento! Também carpindo estou, saudoso amante:
CXXXIII Que nem me dure em sonhos a ventura! Pilha aqui, pilha ali, vozeia autores,
VISÃO NOCTURNA (Feito na Índia) Ludíbrio, como tu, da sorte dura, Montesquieu, Mirabeau, Voltaire, e
CXXXV Meu fim demando ao Céu, pela certeza vários;
Meia-noite seria; eu passeando ESPEDINDO-SE DA PÁTRIA, AO De que só terei paz na sepultura. Propõe sistemas, tira corolários,
No meu palmar chorava o meu destino; PARTIR PARA A ÍNDIA E usurpa o tom d’enfáticos doutores:
Eis que ao som de um gemido repentino Modelo meu tu és... Mas, ó tristeza!...
Olho, e vejo uma sombra no ar girando: Eu me ausento de ti, meu pátrio Sado, Se te imito nos transes da ventura, Ciência de livreiros e impressores
Mansa corrente deleitosa, amena, Não te imito nos dons da natureza. Traz da vasta memória nos armários;
Quem és, Guirá? (pergunto-lhe Em cuja praia o nome de Filena E tratando os cristãos de visionários,
arquejando); Mil vezes tenho escrito e mil beijado: PERÍODO DE LUTAS LITERARIAS E Só rende culto a Vénus e aos Amores:
Quem és, quem és, ó Lémure malino?... PRISÃO (1791 a 1797)
«Sou o espírito» (diz) «de Saladino, Nunca mais me verás entre o meu gado A mulher, que a barriga lhe tem forra
De quem já leste o caso miserando: Soprando a namorada e branda avena, CLXVII Do jugo da vital necessidade,
A cujo som descia mais serena, A UM RICAÇO TIDO NA CONTA DE Deixa em casa gemer, como em
» De Grisalda as traições inda lamento Mais vagarosa, para o mar salgado: CRISTÃO-NOVO masmorra:
Da solitária noite entre os horrores,
E os olhos, mortal cego, abrir-te intento: Devo enfim manejar por lei da sorte A certo genealógico de tretas Este biltre, labéu da humanidade,
Cajados não, mortíferos alfanges, Suplicou um Luculo entusiasmado É um tal zote, um bacharel de borra;
» Não soltes por Natércia mais clamores; Nos campos do colérico Mavorte; Para pôr num feliz aveludado Tem de um burro o juízo e a castidade.
Sepulta a desleal no esquecimento: Armas com prosa, timbre com caretas:
Olha o trágico fim de meus amores!» E talvez entre impávidas falanges CLXIX
Testemunhas farei da minha morte «Sim, senhor» (diz-lhe o mestre d’altas A CERTO SUJEITO QUE, MAL
CXXXIV Remotas margens, que humedece o pelas SABENDO LER, DIZIA TER FEITO
VENTURA SONHADA Ganges. Folheando volume remendado), TRINTA TRAGÉDIAS, QUE NINGUÉM
«Neste livro aqui só tenho encerrado
Sonhei que nos meus braços inclinado CXXXVIII Judias raças e famílias pretas. » Tragédia de Tancreu, rei de Disúria,
Teu rosto encantador, Gertrúria, via; Original em plano, atroz no enredo;
Que mil ávidos beijos me sofria Disse; toma nas mãos a horrível brocha, Tem actos dez, o herói morre de medo,
Depois de onze minutos de lamúria: Tudo zangar coa mesma cantilena: Amigo Frei João, cuidas que é barro
O fumoso tabaco por que berro?
Tragédia de Runrum, sultão da Incúria, CLXXI Heroicidade em versos cento e cento; Um nigromante me transforme em perro
Que honrar a Pátria há-de ir um dia cedo; ESTANDO EM CENA OUTRA Engana o herói o hispano, morre a espada, Se há coisa para mim como o cigarro!
Pregão, baraço, açoutes e degredo COMÉDIA CUJA TRADUÇÃO SE Lúgubre afinal lê-se um testamento:
Pilha o protagonista e lambe a injúria: ATRIBUÍA A BELCHIOR MANUEL Ele me arranca pegajoso escarro,
CURVO SEMEDO De núpcias houve certa misturada; Que nas fornalhas deste peito encerro:
Peça de gorgorão, rei de Bioco, Findou-se o drama, pôs-se em movimento O frio, as aflições de mim desterro,
Terra ao norte da Líbia, ao sul do mapa, CARTAZ Na boca o riso, o pé com pateada. Quando lhe lanço a mão, quando lhe
A acção vem nos Anais de Man’el Coco: agarro.
Quarta-feira catorze do corrente CLXXIII
Eis com que ao Letes o aranhiço escapa: Se apresenta outra vez com bom cenário A TOMÉ BARBOSA DE FIGUEIREDO De vício tal, se é vício, não me corro,
Tem mais sete em borrão, que dentro em No Salitre a comédia do Antiquário, DE ALMEIDA CARDOSO E só tomo rapé, simonte ou esturro,
pouco A que tem concorrido imensa gente. (Oficial de línguas na Secretaria dos Quando quero zangar algum cachorro.
Aos zângãos do café irão dar papa. Negócios Estrangeiros)
É obra traduzida novamente Amigo Frei João, não sejas burro;
CLXX Por um poeta, amigo do empresário, Dos tórridos sertões, pejados d’ouro, Dize bem do cigarro, senão morro:
A LIÇÃO AO PÉ DA LETRA Memorião, que engole um dicionário Saiu um sabichão d’escassa fama, Traze-me lume já, ou dou-te um murro!
E orna de verdes pâmpanos a frente: Que os livros preza, os cartapácios ama,
(Feito na ocasião em que andava em cena Que das línguas repartem o tesouro: CLXXV
a tragédia Elaire, de Miguel António de Em lugar d’entremez se há-de seguir A UM CÉLEBRE MULATO JOAQUIM
Barros) Do Franco a grande peça curiosa, Arranha o persiano, arranha o mouro, MANUEL, GRANDE TOCADOR DE
Tragédia de Sesostris que faz rir: Sabe que Deus em turco Alã se chama; VIOLA E IMPROVISADOR DE
Gritava mestre Brás: «Filha traidora!... Que no grego alfabeto o G é gama, MODINHAS
Hei-de arrancar-te os olhos, vil cadela! Tem versos naturais; parecem prosa! Que taurus em latim quer dizer touro:
Vou pregar férreas trancas na janela, Que venha o nobre público aplaudir Esse cabra, ou cabrão, que anda na berra,
Porque a não veja o biltre que a namora. » Espera a companhia obsequiosa. Para papaguear saiu do mato: Que mamou no Brasil surra e mais surra,
Abocanha talentos, que não goza; O vil estafador da vil bandurra,
Nisto a moça infeliz suspira, e chora, CLXXII É mono, e prega unhadas como gato: O perro, que nas cordas nunca emperra:
Suspiram Graças, chora Amor com ela; ACHANDO-SE EM CENA UMA
Tão mimosa não é, não é tão bela, TRAGÉDIA DE FELISBERTO INÁCIO É nada em verso, quase nada em prosa: O monstro vil, que produziste, ó Terra,
Quando pérolas verte a linda Aurora! JANUÁRIO CORDEIRO Não conheces, leitor, neste retrato Onde narizes natureza esmurra,
O guapo charlatão Tomé Barbosa? Que os seus nadas harmónicos empurra,
«Ser sapateiro, ou grande, o fado ordena; Em vermelho cartaz propôs-se à cena Com parda voz, das paciências guerra:
Sou um pai que da honra os lares trilha, Lusa tragédia, que a nação gloria; CLXXIV
Tragédias nunca viu quem me condena: Do grã Nuno Gonçalves de Faria, ESTANDO O AUTOR NA CELA DE O que sai no focinho à mãe cachorra,
Produção singular de uma hábil pena. FR. JOÃO DE POUSAFOLES, E O que néscias aplaudem mais que a Mirra,
»O pregar-lhe as janelas não me humilha; ACONTECENDO APAGAR-SE-LHE O que nem veio da prosápia forra:
Que há pouco o grã Miguel mostrou na No acto primeiro Elvira, em não pequena UM CIGARRO, PEDIU LUME, QUE
cena Fala, maldiz da guerra a sanha impia: ESTE LHE RECUSOU O que afina inda mais quando se espirra,
Que fez o rei da Trácia o mesmo à filha.» Amante, irmão e pai vêm à porfia Merece à filosófica pachorra
Um corno, um passa-fora, um arre, um Liberdade gentil, desterra a pena Encantador Garção, tu me arrebatas E Anália me persegue o pensamento.
irra. Em que esta alma infeliz jaz sepultada: Audaz vibrando o plectro venusino;
Suave Albano, dedicado Alcino, CCLXXXVIII
CCIV Vem, ó deusa imortal, vem, maravilha, Musas do terno Amor, vós me sois gratas; O AUTOR AOS SEUS VERSOS
ASPIRAÇÕES DO LIBERALISMO, Vem, ó consolação da humanidade,
EXCITADAS PELA REVOLUÇÃO Cujo semblante mais que os astros brilha: Adoro altos prodígios, que relatas, Vós, que de meus extremos sois a história,
FRANCESA, E CONSOLIDAÇÃO DA Cantor da Glória, majestoso Elpino, Versos, por negro zoilo em vão roubados,
REPÜBLICA EM 1797 Vem, solta-me o grilhão d’adversidade; Tu, que agitado de ímpeto divino Nascidos da Ternura, e restaurados
Dos céus, descende, pois dos céus és filha, Acesos turbilhões na voz desatas: Co pronto auxílio de fiel memória:
Liberdade, onde estás? Quem te demora? Mãe dos prazeres, doce Liberdade!
Quem faz que o teu influxo em nós não Ó cisnes imortais do Tejo ameno! Da Inveja conseguindo alta vitória
caia? CCVI A carrancuda Inveja em mim não cria Ide, meus versos, em Amor fiados,
Porque (triste de mim!), porque não raia POR OCASIÃO DOS FAVORÁVEIS Víboras prenhes de infernal veneno: Que dele só dependem vossos fados,
Já na esfera de Lísia a tua aurora? SUCESSOS OBTIDOS NA ITÁLIA Que nele só demando a minha glória:
PELAS TROPAS FRANCESAS, SOB O O clarão, que esparzis, me acende e guia:
Da santa redenção é vinda a hora COMANDO DE BONAPARTE, EM Culto, incenso vos dou, quando condeno Não vos importe o público juízo;
A esta parte do mundo, que desmaia: 1797 Delírios que Belmiro ao prelo envia. Da voz, que pelo mundo se derrama,
Oh! Venha... Oh! Venha, e trémulo Os vivas caprichosos não preciso.
descaia A prole de Antenor degenerada, PERÍODO DE DESALENTO E MORTE
Despotismo feroz, que nos devora! O débil resto dos heróis troianos, (1798 a 1805) Voai aos olhos, cuja luz me inflama;
Em jugo vil de aspérrimos tiranos, Tereis de Anarda aprovador sorriso,
Eia! Acode ao mortal, que frio e mudo Tinha a curva cerviz já calejada: CCLXXXVII Um sorriso de Anarda é mais que a Fama.
Oculta o pátrio amor, torce a vontade, INSÓNIA AMOROSA
E em fingir, por temor, empenha estudo: Era triste sinónimo do nada CCLXXXIX
A morta liberdade envolta em danos; Já com ténue clarão, já quase escura ASSEGURANDO ANÁLIA DA SUA
Movam nossos grilhões tua piedade; Mas eis que irracionais vão sendo A nocturna Diana o céu volteia, FIRMEZA
Nosso númen tu és, e glória, e tudo, humanos, E sobre o Tejo azul, que mal prateia,
Mãe do génio e prazer, á Liberdade! Graças, ó Corso excelso, à tua espada! Vai duplicando a trémula figura: Distrai, meu coração, tua amargura,
Os males que te assanha a fantasia:
Tu, purpúreo reitor; vós, membros graves, Aura subtil nas árvores murmura, Provém da formosura essa agonia?
CCV Tremei na cúria da sagaz Veneza: No lago adormecido a rã vozeia, Seja o seu lenitivo a formosura;
REPRODUÇÃO DO ANTECEDENTE, Trocam-se as agras leis em leis suaves: Mocho importuno agouros mil semeia,
ESTANDO O AUTOR PRESO Dentre as umbrosas moitas da espessura: Por mil objectos adoçar procura
Restaura-se a razão, cai a grandeza, O ardor que lavra em ti de dia em dia;
Liberdade querida, e suspirada, E o feroz despotismo entrega as chaves Letárgico vapor Morfeu derrama, Mas ó fatal poder da simpatia!
Que o Despotismo acérrimo condena; Ao novo redentor da natureza. Com que insinua um doce desalento Ó moléstia d’amor, que não tem cura!
Liberdade, a meus olhos mais serena No livre coração de quem não ama:
Que o sereno clarão da madrugada! CCLXI Astúcia exercitar que te resista,
LOUVANDO ALGUNS POETAS Triste de mim! Se repousar intento Minha Anália, meu bem, debalde intento,
Atende à minha voz, que geme e brada LÍRICOS SEUS CONTEMPORÂNEOS Os olhos me abre Amor, Amor me Está segura em mim tua conquista.
Por ver-te, por gozar-te a face amena; inflama,
Como hei-de minorar-te o vencimento, Ouvirem-se os voláteis amadores, Mantido às vezes de sucinto almoço,
Coarctar o império teu, se as mais à vista Mas é talvez o exemplo das perjuras, Seus versos modulando e seus ardores De ceia casual, jantar incerto:
Valem menos que tu no pensamento? Outro anima talvez, enquanto eu choro, Dentre os aromas de pomar sombrio:
Morrendo de saudosas amarguras; Dos esburgados peitos quase aberto,
CCXC Se é doce mares, céus, ver anilados Versos impinge por miúdo e grosso;
LAMENTA UM DESENGANO E pelo ardente excesso com que adoro, Pela quadra gentil, de Amor querida, E do que em frase vil chamam caroço,
INESPERADO Ao clarão de medonhas conjecturas Que esperta os corações, floreia os prados: Se o quer, é vox clamantis in deserto:
Vejo o fantasma da traição que ignoro.
Tenta em vão temerária conjectura Mais doce é ver-te de meus ais vencida, Pede às moças ternura, e dão-lhe motes!
Sondar o abismo do invisível Fado, CCXCII Dar-me em teus brandos olhos desmaiados Que tendo um coração como estalage,
Que, de umbrosos mistérios enlutado, O SORRISO DE ANÁLIA Morte, morte de amor melhor que a vida. Vão nele acomodando a mil pexotes:
Some aos olhos mortais a luz futura:
Quando Anália, o meu bem, que o Céu CCXCIV Sabes, leitor, quem sofre tanto ultraje,
Presumia (ai de mim!), vendo a ternura namora, A ILUSÕES DO DESEJO DESFEITAS Cercado de um tropel de franchinotes?
Daquela que me trouxe enfeitiçado, Meigo sorriso de outro céu desprende, PELA REALIDADE É o autor do soneto — é o Bocage!
Presumia que Amor tinha guardado Geme, e o que é vida num gemido aprende
Nos braços do meu bem minha ventura: Peito, que amor, e que a existência ignora: Desejo iluso e vão! Para que traças CCCLXXIV
Quadro, que imagens divinais of’rece? PRÓXIMO AOS SEUS ÚLTIMOS DIAS
Ó Terra! Ó Céu! Mentiram-me os Quando Anália, o meu bem, suspira, ou A terna ausente amada me aparece,
brilhantes chora, Em céu d’amores eclipsando as Graças: Ave da morte, que piando agouros
Olhos seus, onde achei suave abrigo; A doce mágoa, doce fogo acende; Tinges meus ares de funéreo luto!
Quão fáceis de enganar são os amantes! Na estância divinal com Jove entende, Ante a doce visão com que me enlaças, Ave da morte (que em teus ais a escuto),
Quase tenta implorá-la o ser que implora; Já murcho, estéril já, meu ser floresce: Meus dias murcharás, mas não meus
Humanos, que seguis as leis que sigo, Mas súbito fantasma eis desvanece louros:
Vós, corações, que ao meu sois Sente um Deus como sente a natureza Chusma d’encantos, que em teu sonho
semelhantes, Aquela em cujos dons adorno o canto, abraças: Doou-me Febo aos séculos vindouros,
Ah! Comigo aprendei, chorai comigo. Aquela que a meus versos dá grandeza: Deponho a flor da vida, e guardo o fruto,
C’roado de cipreste o Desengano Pagando em vil matéria um vão tributo,
CCXCI Mas (se posso antepor encanto a encanto) D meu nada me agoura... O dor mais forte Retenho a posse de imortais tesouros.
INCERTEZAS SOBRE A FIDELIDADE Amo-lhe o riso, adoro-lhe a tristeza; - Do que em seu grau supremo o esforço
DE ANÁLIA AUSENTE De Vénus a chorar tal era o pranto! humano! Nome no tempo e ser na eternidade!
Que fado! O ponto escuro, assoma
Amor, que o pensamento me salteias CCXCIII Chorai, Piedade, e Amor, tão triste sorte, embora,
Coas memórias d’Anália a cada instante; A MESMA Chorai: longe de Anália expira Elmano; Dê-me o piedoso adeus comum saudade:
Tirano, que vaidoso e triunfante Os que a ternura uniu, desune a morte.
Me apertas mais e mais servis cadeias: Se é doce no recente, ameno Estio, E rindo-me na campa os dons de Flora,
Ver toucar-se a manhã d’etéreas flores CCCLXIII Mais do que eles a adorne esta verdade:
Doces as aflições com que me anseios, E, lambendo as areias, e os verdores, SEGUNDO RETRATO «Lísia cantava Elmano e Lísia o chora.»
Se ao ver-se de meus olhos tão distante Mole e queixoso deslizar-se o rio:
Soltasse Anália um ai do peito amante, De cerúleo gabão, não bem coberto, CCCLXXV
E o fogo antigo lhe inflamasse as veias! Se é doce no inocente desafio Passeia em Santarém chuchado moço, SOBRE O MESMO ASSUNTO
Adeus, ó génios que Olisseia admira! Eu me arrependo; a língua quase fria
Nestóreos dias, que sonhava Elmano, Cantor, que honrastes, honrareis cantores, Já Bocage não sou!... A cova escura Brade em alto pregão à mocidade,
Brilhantes de almos gostos, d’áurea sorte, Versos, pranto lhe dai, que Elmano expira Meu estro vai parar desfeito em vento... Que atrás do som fantástico corria:
Pomposa fantasia, audaz transporte, Eu aos Céus ultrajei! O meu tormento
As asas cerceiem do orgulho insano: Deixai-lhe a cinza em paz, fatais Amores; Leve me torne sempre a terra dura: Outro Aretino fui... A santidade
E vós do extinto vate a campa, e lira, Manchei!... Oh! Se me creste, gente impia,
Plano de um nume contradiz meu plano, Virtudes, que exaltou, cobri de flores! Conheço agora já quão vã figura Rasga meus versos, crê na eternidade!
E quer que se esvaeça, e quer que aborte; Em prosa e verso fez meu louco intento;
Eis, eis palpita, precursor da morte, CCCLXXVI Musa!... Tivera algum merecimento
No túmido aneurisma o desengano: DITADO ENTRE AS AGONIAS DO Se um raio da razão seguisse pura!
SEU TRÂNSITO FINAL

Cartas de uma Freira Portuguesa Parece-me, no entanto, que até ao minha paixão, quando me davas provas da Poderias contentar te com uma paixão
Soror Mariana Alcoforado sofrimento, de que és a única causa, já vou tua. menos ardente que a minha? Talvez
tendo afeição. Mal te vi a minha vida foi Como é possível que a lembrança de encontrasses mais beleza (houve um
PRIMEIRA tua, e chego a ter prazer em sacrificar-ta. momentos tão belos se tenha tornado tão tempo, no entanto, em que me dizias que
Mil vezes ao dia os meus suspiros vão ao cruel? E que, contra a sua natureza, sirva eu era muito bonita), mas não encontrarias
Considera, meu amor, a que ponto teu encontro, procuram-te por toda a parte agora só para me torturar o coração? Ai!, a nunca tanto amor, e tudo o mais não é
chegou a tua imprevidência. Desgraçado!, e, em troca de tanto desassossego, só me tua última carta reduziu-o a um estado nada.
foste enganado e enganaste-me com falsas trazem sinais da minha má fortuna, que bem singular: bateu de tal forma que Não enchas as tuas cartas de coisas
esperanças. Uma paixão de que esperaste cruelmente não me consente qualquer parecia querer fugir-me para te ir procurar. inúteis, nem me voltes a pedir que me
tanto prazer não é agora mais que engano e me diz a todo o momento: Cessa, Fiquei tão prostrada de comoção que lembre de ti. Eu não te posso esquecer, e
desespero mortal, só comparável à pobre Mariana, cessa de te mortificar em durante mais de três horas todos os meus não esqueço também a esperança que me
crueldade da ausência que o causa. Há-de vão, e de procurar um amante que não sentidos me abandonaram: recusava uma deste de vires passar algum tempo
então este afastamento, para o qual a voltarás a ver, que atravessou mares para vida que tenho de perder por ti, já que comigo. Ai!, porque não queres passar a
minha dor, por mais subtil que seja, não te fugir, que está em França rodeado de para ti a não posso guardar. Enfim, voltei, vida inteira ao pé de mim? Se me fosse
encontrou nome bastante lamentável, prazeres, que não pensa um só instante nas contra vontade, a ver a luz: agradava-me possível sair deste malfadado convento,
privar-me para sempre de me debruçar tuas mágoas, que dispensa todo este sentir que morria de amor, e, além do não esperaria em Portugal pelo
nuns olhos onde já vi tanto amor, que arrebatamento e nem sequer sabe mais, era um alívio não voltar a ser posta cumprimento da tua promessa: iria eu,
despertavam em mim emoções que me agradecer-to. Mas não, não me resolvo, a em frente do meu coração despedaçado sem guardar nenhuma conveniência,
enchiam de alegria, que bastavam para pensar tão mal de ti e estou por demais pela dor da tua ausência. procurar-te, e seguir te, e amar-te em toda
meu contentamento e valiam, enfim, tudo empenhada em te justificar. Nem quero Depois deste acidente tenho padecido a parte. Não me atrevo a acreditar que isso
quanto há? Ai!, os meus estão privados da imaginar que me esqueceste. Não sou já muito, mas como poderei deixar de sofrer possa acontecer; tal esperança por certo
única luz que os alumiava, só lágrimas bem desgraçada sem o tormento de falsas enquanto não te vir? Suporto contudo o me daria algum consolo, mas não quero
lhes restam, e chorar é o único uso que suspeitas? E porque hei-de eu procurar meu mal sem me queixar, porque me vem alimentá-la, pois só à minha dor me devo
faço deles, desde que soube que te havias esquecer todo o desvelo com que me de ti. É então isto que me dás em troca de entregar. Porém, quando meu irmão me
decidido a um afastamento tão manifestavas o teu amor? Tão tanto amor? Mas não importa, estou permitiu que te escrevesse, confesso que
insuportável que me matará em pouco deslumbrada fiquei com os teus cuidados, resolvida a adorar-te toda a vida e a não surpreendi em mim um alvoroço de
tempo. que bem ingrata seria se não te quisesse ver seja quem for, e asseguro-te que seria alegria, que suspendeu por momentos o
com desvario igual ao que me levava a melhor para ti não amares mais ninguém. desespero em que vivo. Suplico-te que me
digas porque teimaste em me desvairar pensar que procederias com mais lealdade ardentes da tua paixão. Ao teu lado era dias não cingia as minhas esperanças à tua
assim, sabendo, como sabias, que dos que é costume: o excessos do meu demasiado feliz para poder imaginar que lembrança mas tens-me ensinado a
terminavas por me abandonar? Porque te amor parece que devia pôr-me acima de um dia te encontrarias longe de mim. E, submeter-me a tudo quanto te apetece.
empenhaste tanto em me desgraçar? quaisquer suspeitas e merecer uma contudo, lembro-me de te haver dito Apesar disso, não estou arrependida
Porque não me deixaste em sossego no fidelidade que não é vulgar encontrar-se. algumas vezes que farias de mim uma de te haver adorado. Ainda bem que me
meu convento? Em que é que te ofendi? Mas a tua disposição para me atraiçoar desgraçada; mas tais temores depressa se seduziste. A crueldade da tua ausência,
Mas perdoa-me; não te culpo de nada. triunfou, afinal, sobre a justiça que devias desvaneciam, e com alegria tos sacrificava talvez eterna, em nada diminuiu a
Não me encontro em estado de pensar em a tudo quanto fiz por ti. Não deixaria de para me entregar ao encanto, e à exaltação do meu amor Quero que toda a
vingança, e acuso somente o rigor do meu ser infeliz se soubesse que só ao meu falsidade!, dos teus juramentos. Sei bem gente o saiba, não faço disso nenhum
destino. Ao separar-nos, julgo que nos fez amor ganharas amor, pois tudo quisera qual é o remédio para o meu mal, e segredo; estou encantada por ter feito tudo
o mais temível dos males, embora não dever unicamente à tua inclinação por depressa me livraria dele se deixasse de te quanto fiz por ti, contra toda a espécie de
possa afastar o meu coração do teu; o mim; mas estou tão longe de tal estado amar. Ai, mas que remédio... Não; prefiro conveniências. E já que comecei, a minha
amor, bem mais forte, uniu-os para toda a que já lá vão seis meses sem receber uma sofrer ainda mais do que esquecer-te. E honra e a minha religião hão-de consistir
vida. E tu, se tens algum interesse por única carta tua. Só à cegueira com que me depende isso de mim? Não posso só em amar-te perdidamente toda a vida.
mim, escreve-me amiúde. Bem mereço o abandonei a ti posso atribuir tanta censurar-me ter desejado um só instante Não te digo estas coisas para te
cuidado de me falares do teu coração e da desgraça: não tinha obrigação de prever deixar de te querer. És tu mais digno de obrigar a escrever-me. Ah, nada faças
tua vida; e sobretudo vem ver-me. que as minhas alegrias acabariam antes do piedade do que eu, pois vale mais sofrer contrafeito! De ti só quero o que te vier do
Adeus. Não posso separar-me deste meu amor? Como poderia esperar que corno sofro do que ter os fáceis prazeres coração, e recuso todas as provas de amor
papel que irá ter às tuas mãos. Quem me ficasses para sempre em Portugal, que te hão-de dar em França as tuas que tu próprio te possas dispensar. Com
dera a mesma sorte! Ai, que loucura a renunciasses à tua carreira e ao teu país amantes. Em nada invejo a tua prazer te desculparei, se te for agradável
minha! Sei bem que isso não é possível! para não pensares senão em mim? indiferença: fazes-me pena. Desafio-te a não te dares ao trabalho de me escrever;
Adeus; não posso mais. Adeus. Ama-me Nenhum alívio há para o meu mal, e se me que me esqueças completamente. sinto uma profunda disposição para te
sempre, e faz-me sofrer mais ainda. lembro das minhas alegrias maior é ainda Orgulho-me de te haver posto em estado perdoar seja o que for.
o meu desespero. Terá sido então inútil de já não teres, sem mim, senão prazeres Um oficial francês, caridosamente,
todo o meu desejo, e não voltarei a ver-te imperfeitos; e sou mais feliz que tu, falou-me de ti esta manhã durante mais de
SEGUNDA no meu quarto com o ardor e porque tenho mais em que me ocupar. três horas. Disse-me que em França fora
arrebatamento que me mostravas? Ai, que Nomearam-me há pouco tempo feita a paz. Se assim é, não poderias vir
ilusão a minha! Demasiado sei eu que porteira deste convento. Todos os que ver-me e levar-me para França contigo?
Creio que faço ao meu coração a todas as emoções, que em mim se falam comigo crêem que estou doida, não Mas não o mereço. Faz o que quiseres: o
maior das afrontas aos procurar dar-te apoderavam da cabeça e do coração, eram sei que lhes respondo, e é preciso que as meu amor já não depende da maneira
conta, por escrito, dos meus sentimentos. em ti despertadas unicamente por certos freiras sejam tão insensatas como eu para como tu me tratares.
Seria tão feliz se os pudesse avaliar pela prazeres e, comos eles, depressa se me julgarem capaz seja do que for. Ah, Desde que partiste nunca mais tive
violência dos teus! Mas não posso confiar extinguiam. Precisava, nesses deliciosos como eu invejo a sorte do Manuel e do saúde, e todo o meu prazer consiste em
em ti, nem posso deixar de te dizer, instantes, chamar a razão em meu auxílio Francisco! Porque não estou eu sempre ao repetir o teu nome mil vezes ao dia.
embora sem a força com que o sinto, que para moderar o funesto excesso da minha pé de ti, como eles? Teria ido contigo e Algumas freiras, que conhecem o estado
não devias maltratar-me assim, com um felicidade e me levar a pressentir tudo servir-te-ia certamente com mais deplorável a que me reduziste, falam-me
esquecimento que me desvaira e chega a quanto sofro presentemente. Mas de tal dedicação. de ti com frequência. Saio o menos
ser uma vergonha para ti. É justo que modo me entregava a ti, que era Nada desejo no mundo senão ver-te. possível deste quarto onde vieste tanta
suportes, ao menos, as queixas de impossível pensar no que pudesse vir Lembra-te ao menos de mim. Bastar-me- vez, e passo o tempo a olhar o teu retrato,
desgraças que previ ao ver-te decidido a envenenar a minha alegria e impedir de ia que me lembrasses, mas eu nem disso que amo mil vezes mais que à minha vida.
deixar-me. Reconheço que me enganei, ao me abandonar inteiramente às provas tenho a certeza. Quando te via todos os Sinto prazer em olhá-lo, mas também me
faz sofrer, sobretudo quando penso que Ai, como sou digna de piedade por ainda com o teu, a que sou mil vezes mais violência dos meus sentimentos te não
talvez nunca mais te veja. Por que não partilhar contigo as minhas mágoas, e sensível? Contudo, não me resolvo a baste! Sê mais exigente!
fatalidade não hei-de voltar a ver-te? Ter- ser só minha a desventura! Esta ideia desejar que não penses em mim; e Ordena-me que morra de amor por ti!
me-ás deixado para sempre? Estou mata-me, e morro de terror ao) pensar que confesso ter ciúmes terríveis de tudo o que Suplico-te que me ajudes a vencer a
desesperada, a tua pobre Mariana já não nunca te houvesses entregado em França te dá gosto e alegria, e fraqueza própria de uma mulher, e que
pode mais: desfalece ao terminar esta completamente aos nossos prazeres. Sim, impressiona o teu coração. toda a minha indecisão acabe em puro
carta. Adeus, adeus, tem pena de mim! reconheço agora a falsidade do teu Não sei porque te escrevo: terás, desespero. Um fim trágico obrigar-te-ia,
arrebatamento. Enganaste-me sempre que quando muito, piedade de mim, e eu não sem dúvida, a pensar mais em mim; talvez
falaste do encantamento que sentias quero a tua piedade. Contra mim própria fosses sensível a uma morte
TERCEIRA quando eslavas a sós comigo. Unicamente me indigno, quando penso em tudo o que extraordinária, e a minha memória seria
à minha insistência devo os teus cuidados te sacrifiquei: perdi a reputação, expus-me amada. Não é isso preferível ao estado a
e a tua ternura. Intentaste desvairar-me a à cólera de minha família, expus-me à que me reduziste?
Que há-de ser de mim? Que queres tu sangue-frio; nunca olhaste a minha paixão cólera de minha família, a severidade das Adeus. Era melhor nunca te ter visto.
que eu faça? Estou tão longe de tudo senão como um troféu, o teu coração não leis deste país para com as freiras, e à tua Ah, sinto até ao fundo a mentira deste
quanto imaginei! Esperava que me foi verdadeiramente atingido por ela. ingratidão, que me parece o maior de pensamento e reconheço, no momento em
escrevesses de toda a parte por onde Serás tão infeliz, e terás tão pouca todos os males. Apesar disso, creio que os que escrevo, que prefiro ser desgraçada
passasses e que as tuas cartas fossem delicadeza, que só para isso te servisse o meus remorsos não são verdadeiros; do amando-te do que nunca te haver
longas; que alimentasses a minha paixão meu ardor? E como é possível que, com fundo do meu coração queria ter corrido conhecido. Aceito, assim, sem uma
com a esperança de voltar a ver-te; que tanto amor, não te houvesse feito ainda perigos maiores pelo teu amor, e queixa, a minha má fortuna, pois não a
uma inteira confiança na tua fidelidade me inteiramente feliz? Tenho pena, por amor sinto um prazer fatal por ter arriscado a quiseste tornar melhor. Adeus: promete-
desse algum sossego, e ficasse, apesar de de ti apenas, dos infinitos prazeres que vida e a honra por ti. Não deveria me que terás saudades minhas se vier a
tudo, num estado suportável, sem perdeste. Será possível que não te tenham oferecer-te o que tenho de mais precioso? morrer de tristeza; e oxalá o desvario desta
excessivo sofrimento. Tinha até formado interessado? Ah, se os conhecesses, E não devo sentir-me satisfeita por ter paixão consiga afastar-te de tudo. Tal
uns vagos projectos de fazer todos os perceberias, sem dúvida, que são mais feito o que fiz? O que me não satisfaz, consolação me bastará, e se é forçoso
esforços que pudesse para me curar, se delicados do que o de me haveres pelo menos assim me parece, é o abandonar-te para sempre, queria ao
tivesse a certeza de me haveres esquecido seduzido, e terias compreendido que é sofrimento e o desvario deste amor, menos não te deixar a nenhuma outra. E
por completo. A tua ausência, alguns bem mais comovente, e bem melhor, amar embora não possa, pobre de mim!, iludir- serias tão cruel que te servisses do meu
impulsos de devoção, o receio de arruinar violentamente que ser amado. me a ponto de estar contente contigo. desespero para te tornares mais sedutor, e
inteiramente o que me resta de saúde com Não sei o que sou, nem o que faço, Vivo - que infidelidade! - e faço tanto por te gabares de ter despertado a maior
tanta vigília e tanta aflição, as poucas nem o que quero; estou despedaçada por conservar a vida como por perdê-la! paixão do mundo? Adeus, mais urna vez.
possibilidades do teu regresso, a frieza dos mil sentimentos contrários. Pode Morro de vergonha! Então o meu Escrevo-te cartas tão longas! Não tenho
teus sentimentos e da tua despedida, a tua imaginar-se estado mais deplorável? desespero está só nas minhas cartas? Se te cuidado contigo! Peço-te que me perdoes,
partida justificada com falsos pretextos, e Amo-te de tal maneira que nem ouso amasse tanto como já mil vezes te disse, e espero que terás ainda alguma
tantas outras razões, tão boas como sequer desejar que venhas a ser perturbado não teria morrido há muito tempo? indulgência com uma pobre insensata, que
inúteis, prometiam ser-me ajuda por igual arrebatamento. Matar-me-ia ou, Enganei-te, és tu que deves queixar-te de o não era, como sabes, antes de te amar.
suficiente, se viesse a precisar dela. Não se o não fizesse, morreria desesperada, se mim. Ah, porque não te queixas? Vi-te Adeus; parece-me que te falo de mais do
sendo, afinal, senão eu própria o meu viesse a ter a certeza que nunca mais partir, não tenho esperança de te ver estado insuportável em que me encontro;
inimigo, não podia suspeitar de toda a tinhas descanso, que tudo te era odioso, e regressar e no entanto respiro. Atraiçoei- mas agradeço-te, com toda a minha alma,
minha fraqueza, nem prever todo o a tua vida não era mais que perturbação, te; peço-te perdão. Mas não, não me o desespero que me causas, e odeio a
sofrimento de agora. desespero e pranto. Se não consigo já perdoes! Trata—me com dureza. Que a tranquilidade em que vivi antes de te
suportar o meu próprio mal, como poderia conhecer Adeus. O meu amor aumenta a
cada momento. Ah, quanto me fica ainda amor é tão fiel que só consente em culpar- a quem poderias abandonar sem perfídia e prazer que vou descobrindo: amar-te entre
por dizer.. te para ser maior o prazer em te justificar. crueldade. O teu procedimento é mais de tanta mágoa. O que me desgosta e
Atormentaste-me com a tua um tirano empenhado em perseguir, que atormenta é o ódio e a aversão que ganhei
insistência, transtornaste-me com o teu de um amante preocupado apenas em a tudo. A família, os amigos e este
QUARTA ardor, encantaste-me com a tua agradar. Ai!, porque tratas tão mal um convento são-me insuportáveis. Tudo o
delicadeza, confiei nas tuas juras, seduziu- coração que é teu? que seja obrigada a ver, tudo o que
me a minha inclinação violenta, e o que se Bem sei que é tão fácil para ti inadiavelmente tenha de fazer, me é
O teu tenente acaba de me contar que seguiu a tão agradável e feliz começo não desprenderes-te de mim como para mim o odioso. Tão ciosa sou da minha paixão
um temporal te obrigou a arribar ao Reino são mais que suspiros, lágrimas e uma foi prender-me a ti. Eu teria resistido a que julgo dizerem-te respeito todas as
do Algarve. Receio que tenhas sofrido tristíssima morte que julgo sem remédio. razões bem mais poderosas do que as que minhas acções e todas as minhas
muito no mar, e este temor de tal modo se E certo que tive, ao amar-te, alegrias te levaram a partir, sem precisar de obrigações. Sim, tenho escrúpulo de não
apoderou de mim, que nem tenho pensado surpreendentes, mas custam-me agora os invocar o meu amor por ti, nem me passar serem para ti todos os momentos da minha
nas minhas mágoas. Estás convencido que maiores tormentos: são extremas todas as pela cabeça que fazia fosse o que fosse de vida. Ai!, que seria de mim sem tanto ódio
o teu tenente se preocupa mais com o que emoções que me causas. Se tivesse extraordinário: todas elas me pareceriam e tanto amor a encher-me o coração?
te acontece do que eu? Porque está então resistido com afinco ao teu amor, se te insignificantes e nunca nenhuma poderia Conseguiria eu sobreviver ao que
mais bem informado e, enfim, porque não houvesse dados motivos de desgosto ou de arrancar-me de ao pé de ti. Mas tu quiseste obsessivamente me preocupa para levar
me tens escrito? ciúme para mais te prender, se tivesses aproveitar os pretextos que encontraste uma existência tranquila e sem cuidados?
Bem desgraçada sou, se depois da tua notado em mim qualquer intencional para regressar a França. Um navio partia - Tal vazio e tal insensibilidade não me
partida ainda não tiveste ocasião de o reserva, se, enfim, tivesse tentado opor porque não o deixaste partir? Tua família convêm.
fazer; e mais ainda, se a tiveste e não me (embora, sem duvida, fossem inúteis tais havia-te escrito - não sabias quanto a Toda a gente se apercebeu da
escreveste. Não sei de maior ingratidão e esforços) a razão à natural inclinação que minha me tem perseguido? Razões de completa mudança do meu carácter, dos
injustiça; mas ficaria aflitíssima se, por tenho por ti, e que cedo me fizeste notar, honra levavam-te a abandonar-me - fiz eu meus modos, do meu ser. Minha mãe
causa disso, te viesse a acontecer qualquer poderias então punir-me severamente e algum caso da minha? Tinhas obrigação falou-me nisto, primeiro com azedume,
desgraça, pois prefiro não ser vingada a servires-te do teu domínio sobre mim; de servir o teu Rei - mas, se é verdade o depois com certa brandura. Nem sei que
que sejas punido. Resisto a tudo o que porém antes de dizeres que me querias já que dizem dele, não necessitava dos teus lhe respondi; parece-me que lhe confessei
parece mostrar-me que já me não amas, e eu te julgava digno de amor, manifestaste- serviços e ter-te-ia dispensado. tudo. Até as freiras mais austeras têm dó
com mais facilidade me entrego me a tua paixão, fiquei deslumbrada, e Que felicidade a minha, se tivéssemos do estado em que me encontro, que lhes
cegamente à minha paixão do que às abandonei-me a ti perdidamente. passado a vida juntos! Mas, se era forçoso merece alguma simpatia, e até cuidado.
razões que tenho para lamentar o teu Tu não estavas cego como eu, porque que uma cruel ausência nos separasse, Todos se comovem com o meu amor, só
abandono. me deixaste então chegar ao estado a que creio que devo estar satisfeita por não ter tu ficas profundamente indiferente,
Quanta inquietação me terias poupado cheguei? Que querias dum desvario que sido infiel, e por nada do mundo quereria escrevendo-me apenas frias cartas, cheias
se, quando nos conhecemos, o teu não podia senão importunar-te? Se sabias ter cometido acção tão indigna. Como de repetições, metade do papel em branco,
procedimento fosse tão descuidado como que não ficavas em Portugal, porque me pudeste, conhecendo o meu coração e a dando grosseiramente a entender que
o é agora! Mas quem, como eu, se não escolheste a mim para tornares tão minha ternura até ao fundo, decidir-te a estavas morto por acabá-las.
deixaria enganar por tantos cuidados , e a desgraçada? Terias, certamente deixar-me para sempre, e a expor-me ao Dona Brites insistiu, nestes últimos
quem não pareceriam verdadeiros? Que encontrado neste país uma mulher mais tormento de que só venhas a lembrar te de dias, para que saísse do meu quarto;
difícil resolvermo-nos a duvidar da bonita com quem tivesses os mesmos mim quando me sacrificas a nova paixão? julgando distrair-me, levou-me a passear
lealdade de quem amamos! Sei muito bem prazeres, pois só os de natureza grosseira Bem sei que te amo perdidamente; no até ao balcão de onde se avista Mértola.
que te serves de qualquer desculpa, mas, procuravas; que te amasse fielmente entanto, não lamento a violência dos Segui-a, mas fui logo ferida por tão atroz
mesmo sem pensares em dar-ma, o meu enquanto aqui estivesses; que se impulsos do meu coração; habituei-me à lembrança que passei o resto do dia lavada
resignasse, com o tempo, à tua ausência, e sua tirania, e já não poderia viver sem este em lágrimas. Trouxe-me outra vez para o
meu quarto, atirei-me para cima da cama, justificassem os meus, e gostaria que todas me ainda de pé, mas, se a não puder de te obrigar a fazer quinhentas léguas, e a
e ali fiquei a reflectir na pouca esperança as mulheres de França te achassem sustentar, prefiro perdê-la por completo e expores-te a naufrágios, para te afastares
que tenho de vir um dia a curar me. Tudo encantador, mas que nenhuma te amasse e perder-me também. Envia-me o retrato de mim. Não esperava ser tratada assim
o que fazem para me confortar agrava o nenhuma te agradasse. Este desejo é dela e alguma das suas cartas e conta-me por ninguém: devias lembrar-te do meu
meu sofrimento, e nos próprios remédios inconcebível e ridículo; sei por tudo quanto te diz. Talvez encontre nisso pudor, da minha confusão, da minha
encontro novas razões de aflição. Muitas experiência que és incapaz de fidelidade e razões para me consolar, ou afligir ainda vergonha, mas tu não te lembras de nada
vezes dali te vi passar com um ar que me não precisas de ajuda para me esqueceres, mais. Neste estado é que não posso que possa levar-te contra vontade a amar-
deslumbrava; estava naquele balcão no dia nem a isso seres levado por nova paixão. permanecer, e qualquer mudança me será me.
fatal em que senti os primeiros sinais da Desejaria eu que tivesses um motivo favorável. Gostaria também de ter o O oficial que há-de levar esta carta
minha desgraçada paixão. Pareceu-me que razoável? Seria mais desgraçada, é certo, retrato do teu irmão e da tua cunhada. previne-me, pela quarta vez, que quer
pretendias agradar-me, embora não me mas não serias tão culpado. Tudo o que te diz respeito me enternece, a partir. Como ele tem pressa! Abandona,
conhecesses; convenci-me de que me Vejo que ficarás em França sem minha dedicação ao que te pertence é com certeza, alguma desgraçada neste
havias distinguido entre todas aquelas que grande prazer, e com inteira liberdade. completa; só o que a mim se refere não me pais. Adeus. Custa-me mais acabar esta
estavam comigo; quando paravas Será a fadiga de tão longa viagem, preocupa. Às vezes parece-me que até me carta d que te custou a ti deixa-me, talvez
imaginava que o fazias intencionalmente qualquer pequena conveniência, ou o sujeitaria a servir aquela que amas. O para sempre. Adeus. Não me atrevo
para que melhor te visse, e admirasse o receio de não corresponderes à minha tormento que me causas e o teu desprezo sequer a chamar-te meu amor, nem a
garbo e a destreza com que dominavas o exaltação que aí te retêm? De mim, nada abalaram-me de tal modo, que nem sequer abandonar-me completamente a tudo o
cavalo; dava comigo assustada, quando o receies! Bastar-me-ia ver-te de vez em ouso pensar que pudesse vir a ter ciúmes que sinto. Quero-te mil vezes mais que à
levavas por sítios perigosos; enfim, quando e saber apenas que estávamos no de ti, com receio de te desagradar; e creio minha vida e mil vezes mais do que
interessava-me secretamente por todas as mesmo lugar. E talvez me iluda; sei lá se ter feito o pior que podia fazer ao atrever- imagino. Ah, corno eu te amo, e como tu
tuas acções, sentia já que não eras de não serás mais sensível à crueldade e à me a censurar-te. Também estou és cruel! Nunca me escreves; não consigo)
modo nenhum indiferente, e reclamava frieza de outra mulher do que foste à convencida de que não devia impor-te deixar de te dizer ainda isto. Recomeço, e
para mim tudo quanto fazias. Conheces de minha generosidade. Será possível que desvairadamente como faço, por vezes, oficial partirá. Se partir, que importa?
sobra o que se seguiu a tal começo; e, gostes de quem te faça mal? Mas antes de um sentimento que não aprovas. Escrevo mais para mim do que para ti; não
embora não tenha obrigação de te poupar, te enleares numa grande paixão, reflecte Há já muito tempo que um oficial procuro senão alívio. O tamanho desta
não devo falar-te nisso, com receio de te bem no horror do meu sofrimento, na espera esta carta. Tencionava escrevê-la carta vai assustar-te: não a lerás. Que fiz
tornar ainda mais culpado, se possível, do incerteza dos meus planos, na contradição de forma a não te aborrecer, mas é tão eu para ser tão desgraçada? Porque
que já és, e ter de me acusar por tantos e dos meus impulsos, na extravagância das incoerente que será melhor acabá-la. Ai, envenenaste a minha vida? Porque não
inúteis esforços que te obrigassem a ser- minhas cartas, na minha confiança, e não está em mim poder fazê-lo! Quando te nasci noutro país? Adeus. Perdoa-me. Já
me fiel. Nunca o serás! Se não conseguir aflição, e desejos, e ciúmes. Ah, serás um escrevo é como se falasse contigo e não ouso pedir-te que me queiras. Vê ao
vencer a tua ingratidão à força de amor e desgraçado! Suplico-te que tires ao menos estivesses, de algum modo, mais perto de que me reduziu o meu destino. Adeus.
renúncia, como haveria de consegui-lo proveito do estado em que me encontro, e mim. A próxima não será tão longa nem
com cartas e queixumes? que assim o meu sofrimento não seja tão importuna; podes abri-la e lê-la, QUINTA
Estou mais que convencida do meu inútil. confiado na minha promessa. Na verdade
infortúnio; a injustiça do teu procedimento Haverá cinco ou seis meses, fizeste- não devo falar-te de uma paixão que te Escrevo-lhe pela última vez e espero
não me deixa a menor dúvida, e tudo devo me uma confidência bem desagradável: desagrada, e não voltarei a falar nela. fazer-lhe sentir, na diferença de termos e
recear, já que me abandonaste. confessaste-me, com a maior franqueza, Vai fazer um ano, faltam só alguns modos desta carta, que finalmente acabou
Serei só eu a sentir o teu encanto? teres amado uma mulher na tua terra; se é dias, que me entreguei inteiramente a ti. A por me convencer de que já me não ama e
Nenhuns outros olhos darão por ele? Creio ela que te impede de regressar, manda-mo tua paixão parecia-me tão sincera e que devo, portanto, deixar de o amar.
que me não seria desagradável se, de dizer sem rodeios, para que eu deixe de ardente, que não poderia imaginar sequer Mandar-lhe-ei, pelo primeiro meio, o
algum modo, os sentimentos de outras me consumir. Um resto de esperança tem- que a minha te viesse a aborrecer, a ponto que me resta ainda de si. Não receie que
lhe volte a escrever, pois nem sequer porei continuar a amá-lo, apesar da sua arrependimento me enchessem de cólera e afeição que não deve durar eternamente, e
o seu nome na encomenda. De tudo isso ingratidão, do que deixá-lo para sempre. de despeito; e tudo isso poderia de novo a amargura que acompanha um amor
encarreguei D. Brites, que eu habituara a Descobri que lhe queria menos do que à incendiar-me. violento, quando não é correspondido? E
confidências bem diferentes. Os seus minha paixão, e sofri penosamente em Não se meta pois no meu caminho; por que razão, uma cega inclinação e um
cuidados não me serão tão suspeitos combatê-la, depois que o seu indigno destruiria, sem dúvida, todos os meus cruel destino, persistem quase sempre em
quanto os meus. Ela tomará as precauções procedimento me tornou odioso todo o seu projectos, fosse qual fosse a maneira por prender-nos àqueles que só a outros são
necessárias para que eu fique com a ser. O orgulho tão próprio das mulheres que se intrometesse. Não me interessa sensíveis?
certeza de que recebeu o retrato e as não me ajudou a tomar qualquer decisão saber o resultado desta carta; não perturbe Mesmo que esperasse distrair-me com
pulseiras que me deu. Quero porém dizer- contra si. Ai, suportei o seu desprezo, e o estado para que me estou preparando. nova afeição, e deparasse com alguém
lhe que me encontro, há já alguns dias, na teria suportado o ódio e o ciúme que me Parece-me que pode estar satisfeito com o capaz de lealdade, é tal a pena que sinto
disposição de me desfazer e queimar essas provocasse a sua inclinação por outra! Ao mal que me causa, qualquer que fosse a por mim que teria muitos escrúpulos em
lembranças do seu amor, que tão preciosas menos, teria qualquer paixão a combater. sua intenção de me desgraçar. Não me tire arrastar o último dos homens ao estado a
me foram. Mas tanta franqueza lhe tenho Mas a sua indiferença é intolerável. Os desta incerteza; com o tempo espero fazer que me reduziu. E embora me não mereça
mostrado que nunca acreditaria que eu impertinentes protestos de amizade e a dela qualquer coisa parecida com a já nenhum respeito, não poderia decidir-
fosse capaz de chegar a tal extremo. ridícula correcção da sua última carta tranquilidade. Prometo-lhe não o ficar a me a tão cruel vingança, mesmo se, por
Quero sentir até ao fim a pena que tenho provaram-me ter recebido todas as que lhe odiar: por de mais desconfio de uma mudança que não vislumbro, isso
em separar-me delas e causar-lhe ao escrevi e que, apesar de as ter lido, não sentimentos de sentimentos exaltados para viesse a depender de mim.
menos algum despeito. perturbaram o seu coração. Ingrato! E a me permitir intentá-lo. Procuro neste momento desculpá-lo, e
Confesso-lhe, para vergonha minha e minha loucura é tanta ainda, que Estou convencida de que talvez sei bem que uma freira raramente inspira
sua, que me encontrei mais presa do que desespero por já não poder iludir-me com encontrasse aqui um amante melhor e amor; no entanto parece-me que, se a
quero dizer-lhe a estas futilidades, e senti a ideia de não chegarem aí, ou de não lhe mais fiel; mas ai!, quem me poderá ter razão fosse usada na escolha, deveriam
outra vez necessidade de toda a minha terem sido entregues. amor? Conseguirá a paixão de outro preferir-se às outras mulheres: nada as
reflexão para me separar de cada uma em Detesto a sua franqueza. Pedi-lhe eu homem absorver-me? Que poder teve a impede de pensar constantemente na sua
particular, e isto quando já me gabava de para me dizer pura e simplesmente a minha sobre si? Não sei eu por paixão, nem são desviadas por mil coisas
me ter desprendido de si. Mas, com tantos verdade? Porque me não deixou com a experiência que um coração enternecido com que as outras se distraem e ocupam.
motivos, consegue-se sempre o que se minha paixão? Bastava não me ter escrito: nunca mais esquece quem lhe revelou Creio que não deve ser muito agradável
deseja. Pus tudo nas mãos de D. Brites. eu não procurava ser esclarecida. Não me prazeres que não conhecia, e de que era ver aquelas a quem amamos sempre
Quantas lágrimas me não custou esta chegava a desgraça de não ter conseguido susceptível?, que todos os seus impulsos distraídas com futilidades; e é preciso ter
resolução! Depois de mil impulsos e mil de si o cuidado de me iludir? Era preciso estão ligados ao ídolo que criou? que os bem pouca delicadeza para suportar, sem
hesitações, que nem pode imaginar, e de não lhe poder perdoar? Saiba que acabei seus primeiros pensamentos e primeiras desespero, ouvi-las só falar de reuniões,
que certamente não lhe darei conta, por ver quanto é indigno dos meus feridas não podem curar-se nem apagar- atavios e passeios. Continuamente se está
roguei-lhe para me não voltar a falar sentimentos; conheço agora todas as suas se?, que todas as paixões que se oferecem exposto a novos ciúmes, pois elas são
nelas, nem mas restituir ainda que lhas detestáveis qualidades. Mas, se tudo como auxílio, e se esforçam por o encher e obrigadas a certas atenções, certas
pedisse só para as ver uma vez mais e, por quanto fiz por si pode merecer-lhe apaziguar, lhe prometem em vão um condescendências, certas conversas. Quem
fim, remeter-lhas sem me prevenir. qualquer pequena atenção para algum sentimento que não voltará a encontrar? , pode garantir que em tais ocasiões se não
Não conheci o desvario do meu amor favor que lhe peça, suplico-lhe que não que todas as distracções que procura, sem divirtam, e que suportem os maridos
senão quando me esforcei de todas as me escreva mais e me ajude a esquecê-lo nenhuma vontade de as encontrar, apenas somente com extremo desgosto, e sem
maneiras para me curar dele, e receio que completamente. Se me mostrasse, ao de servem para o convencer que nada ama qualquer aprovação? Como elas devem
nem ousasse tentá-lo se pudesse prever leve que fosse, ter sentido algum desgosto tanto como a lembrança do seu desconfiar de um amante que lhes não
tanta dificuldade e tanta violência. Creio ao ler esta carta, talvez eu acreditasse; sofrimento? Porque me deu a conhecer a peça contas rigorosas de tudo isso, que
que me teria sido menos doloroso talvez a sua confissão e o seu imperfeição e o desencanto de uma acredite facilmente e sem inquietação no
que lhe dizem, e as veja, confiante e sabê-lo! Já lhe pedi, e volto a suplicar-lho voltar a este país, declaro-lhe que o deu, e de que tinha, confesso, extrema
tranquilo, sujeitas a todas essas para não me escrever mais. entregarei à vingança da minha família. necessidade.
obrigações! Nunca reflectiu na maneira como me Muito tempo vivi num abandono e Ao devolver-lhe as suas cartas,
Mas não pretendo provar-lhe com tem tratado? Nunca pensou que me deve numa idolatria que me horrorizam, e o guardarei, cuidadosamente, as duas
boas razões que me devia amar. Fracos mais obrigações do que a qualquer outra remorso persegue-me com uma crueldade últimas que me escreveu ; hei-de lê-las
meios seriam estes, e eu outros usei bem pessoa? Amei-o como uma louca, tudo insuportável. Sinto uma vergonha enorme ainda mais do que li as primeiras, para não
melhores sem nenhum resultado. Conheço desprezei! O seu procedimento não é de dos crimes que me levou a cometer; já não voltar a cair nas minhas fraquezas. Ah,
de sobra o meu destino para tentar mudá- um homem de bem. É preciso que tivesse tenho pobre de mim!, a paixão que me quanto me custam e como teria sido feliz
lo. Hei-de ser toda a vida uma desgraçada! por mim uma aversão natural para me não impedia de conhecer-lhes a se tivesse consentido que o amasse
Não o era já quando o via todos os dias? ter amado apaixonadamente. Deixei-me monstruosidade. Quando deixará o meu sempre! Reconheço que me preocupo
Morria de medo que me não fosse fiel; fascinar por qualidades bem medíocres. coração de ser dilacerado? Quando é que ainda muito com as minhas queixas e a
queria vê-lo a cada momento e isso não Que fez para me agradar? Que sacrifícios me livrarei desta cruel perturbação? sua infidelidade, mas lembre-se que a mim
era possível; inquietava-me com o perigo fez por mim? Não procurou tantos outros Apesar de tudo, creio que não lhe desejo própria prometi um estado mais tranquilo,
que corria ao entrar neste convento; não prazeres? Renunciou ao jogo e à caça? nenhum mal, e talvez me não importasse que espero atingir, eu então tomarei uma
vivia quando estava em campanha; Não foi o primeiro a partir para que fosse feliz. Mas como poderá sê-lo, se resolução extrema, que virá a conhecer
desesperava-me por não ser mais bonita e campanha? Não foi o último a regressar? tiver coração? sem grande desgosto. De si nada mais
mais digna de si; lamentava a Expôs-se loucamente, apesar de tanto lhe Quero escrever-lhe ainda outra carta quero. Sou uma doida, passo o tempo a
mediocridade da minha condição; pensava haver pedido que se poupasse por amor de para lhe mostrar que daqui a algum tempo, dizer a mesma coisa. É preciso deixá-lo e
nos prejuízos que lhe podia acarretar a mim. Nunca procurou um meio de se fixar talvez já tenha mais serenidade. Com que não pensar mais em si. Creio mesmo que
afeição que parecia ter por mim; em Portugal, onde era estimado. Uma satisfação lhe censurarei então o seu não voltarei a escrever-lhe. Que obrigação
imaginava que não o amava bastante; carta de seu irmão bastou para o fazer injusto procedimento, quando este já não tenho eu de lhe dar conta de todos os meus
receava, por si, a cólera de minha família; abalar, sem a menor hesitação. E não vim me importunar; lhe farei sentir que o sentimentos?
enfim, encontrava-me num estado tão eu saber que, durante a viagem, a sua desprezo; que falo da sua traição com a
lamentável como aquele em que estou disposição era a melhor do mundo? maior indiferença; que esqueci alegrias e De: Cartas Portuguesas atribuídas a
agora. Forçoso me é confessar que tenho penas; e só me lembro de si quando me Mariana Alcoforado, traduzidas por
Se me tivesse dado alguma prova de razões para o odiar mortalmente. Ah, eu quero lembrar! Eugénio de Andrade (pseudón.), Edição
amor, depois de ter saído de Portugal, teria própria atraí sobre mim tanta desgraça! Concordo que tem sobre mim muitas bilingue, RTP, Março de 1980, 80 págs.
feito todos os esforços para sair daqui; ter- Acostumei-o desde início, ingenuamente, vantagens, e que me inspirou uma paixão
me-ia disfarçado para ir ter consigo. Ai, a uma grande paixão, e é necessário algum que me fez perder a razão; mas não deve
que teria sido de mim se não se importasse artifício para nos fazermos amar. Devem envaidecer-se com isso. Eu era nova,
comigo, depois de estar em França? Que procurar-se com habilidade os meios de ingénua; haviam-me encerrado neste
horror! Que loucura! Que vergonha tão agradar: o amor por si só não suscita convento desde pequena; não tinha visto
grande para a minha família, a quem amor. Como pretendia que eu o amasse, e senão gente desagradável; nunca ouvira as
quero tanto, depois que deixei de o amar! como havia formado tal desígnio, não belas coisas que constantemente me dizia;
A sangue-frio, como vê, reconheço houve nada que não tivesse feito para o parecia-me que só a si devia o encanto e a
que podia ainda ser mais digna de piedade atingir; ter-se-ia decidido mesmo a amar- beleza que descobrira em mim, e na qual
do que sou. Ao menos uma vez na vida me, se tal fosse preciso. Mas percebeu que me fez reparar; só ouvia dizer bem de si;
falo lhe ponderadamente. Quanto lhe o amor não era necessário para o êxito do toda a gente me dispunha a seu favor; e
agradará a minha moderação, e como seu empreendimento, nem dele precisava ainda fazia tudo para despertar o meu
ficará satisfeito comigo! Mas não quero para nada. Que perfídia! Pensa poder amor… Mas, por fim, livrei-me do
enganar-me impunemente? Se por acaso encantamento. Grande foi a ajuda que me

Você também pode gostar