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Os Lusíadas

Canto VI

Ana Julia Storti Rosendo


Eduarda Magossi Gonçalves
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Não sabia em que modo festejasse Mas vendo o Capitão que se detinha
O Rei Pagão os fortes navegantes, Já mais do que devia, e o fresco vento
Pera que as amizades alcançasse O convida que parta e tome asinha
Do Rei Cristão, das gentes tão possantes. Os pilotos da terra e mantimentos
Pesa-lhe que tão longe o apousentasse Não se quer mais deter, que ainda tinha
Das Europeias terras abundantes Muito pera cortar do salso argento.
A ventura, que não no fez vizinho Já do Pagão benigno se despede,
Donde Hércules ao mar abriu o caminho. Que a todos amizade longa pede.

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Com jogos, danças e outras alegrias,
A segundo a polícia Melindana,
Com usadas e ledas pescarias,
Com que a Lageia António alegra e
engana,
Este famoso Rei, todos os dias
Festeja a companhia Lusitana,
Com banquetes, manjares desusados,
Com frutas, aves, carnes e pescados.
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Outras palavras tais lhe respondia Via estar todo o Céu determinado
O Capitão, e logo, as velas dando, De fazer de Lisboa nova Roma;
Pera as terras da Aurora se partia, Não no pode estorvar, que destinado
Que tanto tempo há já que vai buscando. Está doutro Poder que tudo doma.
No piloto que leva não havia Do Olimpo dece enfim, desesperado;
Falsidade, mas antes vai mostrando Novo remédio em terra busca e toma:
A navegação certa; e assi caminha Entra no húmido reino e vai-se à corte
Já mais seguro do que dantes vinha. Daquele a quem o mar caiu em sorte.
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As ondas navegavam do Oriente, 11
Já nos mares da Índia, e enxergavam Ali, sublime, o Fogo estava em cima,
Os tálamos do Sol, que nace ardente; Que em nenhũa matéria se sustinha;
Já quási seus desejos se acabavam; Daqui as cousas vivas sempre anima,
Mas o mau de Tioneu, que na alma sente Despois que Prometeu furtado o tinha.
As venturas que então se aparelhavam Logo após ele, leve se sublima
À gente Lusitana, delas dina, O invisíbil Ar, que mais asinha
Arde, morre, blasfema e desatina. Tomou lugar e, nem por quente ou frio,
Algum deixa no mundo estar vazio.
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Noutra parte, esculpida estava a guerra – «Ó Neptuno (lhe disse) não te espantes
Que tiveram os Deuses cos Gigantes; De Baco nos teus reinos receberes,
Está Tifeu debaixo da alta serra Porque também cos grandes e possantes
De Etna, que as flamas lança crepitantes. Mostra a Fortuna injusta seus poderes.
Esculpido se vê, ferindo a Terra, Manda chamar os Deuses do mar, antes
Neptuno, quando as gentes, ignorantes, Que fale mais, se ouvir-me o mais quiseres;
Dele o cavalo houveram, e a primeira Verão da desventura grandes modos:
De Minerva pacífica ouliveira. Ouçam todos o mal que toca a todos.»
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Pouca tardança faz Lieu irado Julgando já Neptuno que seria
Na vista destas cousas, mas entrando Estranho caso aquele, logo manda
Nos paços de Neptuno, que, avisado Tritão, que chame os Deuses da água fria,
Da vinda sua, o estava já aguardando, Que o mar habitam dua e doutra banda.
Às portas o recebe, acompanhado Tritão, que de ser filho se gloria
Das Ninfas, que se estão maravilhando Do Rei e de Salácia veneranda,
De ver que, cometendo tal caminho, Era mancebo grande, negro e feio,
Entre no reino d' água o Rei do vinho. Trombeta de seu pai e seu correio.
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Na mão a grande concha retorcida Vinha por outra parte a linda esposa
Que trazia, com força já tocava; De Neptuno, de Celo e Vesta filha,
A voz grande, canora, foi ouvida Grave e leda no gesto, e tão fermosa
Por todo o mar, que longe retumbava. Que se amansava o mar, de maravilha.
Já toda a companhia, apercebida, Vestida ũa camisa preciosa
Dos Deuses pera os paços caminhava Trazia, de delgada beatilha,
Do Deus que fez os muros de Dardânia, Que o corpo cristalino deixa ver-se,
Destruídos despois da Grega insânia. Que tanto bem não é pera esconder-se.

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Vinha o padre Oceano, acompanhado Anfitrite, fermosa como as flores,
Dos filhos e das filhas que gerara; Neste caso não quis que falecesse;
Vem Nereu, que com Dóris foi casado, O delfim traz consigo que aos amores
Que todo o mar de Ninfas povoara. Do Rei lhe aconselhou que obedecesse.
O profeta Proteu, deixando o gado Cos olhos, que de tudo são senhores,
Marítimo pacer pela água amara, Qualquer parecerá que o Sol vencesse.
Ali veio também, mas já sabia Ambas vêm pela mão, igual partido,
O que o padre Lieu no mar queria. Pois ambas são esposas dum marido.
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Aquela que, das fúrias de Atamante – «Príncipe, que de juro senhoreias,
Fugindo, veio a ter divino estado, Dum Pólo ao outro Pólo, o mar irado,
Consigo traz o filho, belo infante, Tu, que as gentes da Terra toda enfreias,
No número dos Deuses relatado; Que não passem o termo limitado;
Pela praia brincando vem, diante, E tu, padre Oceano, que rodeias
Com as lindas conchinhas, que o salgado O Mundo universal e o tens cercado,
Mar sempre cria; e às vezes pela areia E com justo decreto assi permites
No colo o toma a bela Panopeia. Que dentro vivam só de seus limites;
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24 «E vós, Deuses do Mar, que não sofreis
E o Deus que foi num tempo corpo humano Injúria algũa em vosso reino grande,
E por virtude da erva poderosa, Que com castigo igual vos não vingueis
Foi convertido em pexe, e deste dano De quem quer que por ele corra e ande:
Lhe resultou Deidade gloriosa, Que descuido foi este em que viveis?
Inda vinha chorando o feio engano Quem pode ser que tanto vos abrande
Que Circes tinha usado co a fermosa Os peitos, com razão endurecidos
Scila, que ele ama, desta sendo amado, Contra os humanos, fracos e atrevidos?
Que a mais obriga amor mal empregado.
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«Vistes que, com grandíssima ousadia, «Eu vi que contra os Mínias, que primeiro
Foram já cometer o Céu supremo; No vosso reino este caminho abriram,
Vistes aquela insana fantasia Bóreas, injuriado, e o companheiro
De tentarem o mar com vela e remo; Áquilo e os outros todos resistiram.
Vistes, e ainda vemos cada dia, Pois se do ajuntamento aventureiro
Soberbas e insolências tais, que temo Os ventos esta injúria assi sentiram,
Que do Mar e do Céu, em poucos anos, Vós, a quem mais compete esta vingança,
Venham Deuses a ser, e nós, humanos. Que esperais? Porque a pondes em tardança?
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«Vedes agora a fraca geração «E não consinto, Deuses, que cuideis
Que dum vassalo meu o nome toma, Que por amor de vós do Céu deci,
Com soberbo e altivo coração Nem da mágoa da injúria que sofreis,
A vós e a mi e o mundo todo doma. Mas da que se me faz também a mi;
Vedes, o vosso mar cortando vão, Que aquelas grandes honras que sabeis
Mais do que fez a gente alta de Roma; Que no mundo ganhei, quando venci
Vedes, o vosso reino devassando, As terras Indianas do Oriente,
Os vossos estatutos vão quebrando. Todas vejo abatidas desta gente.
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«Que o grão Senhor e Fados, que destinam, 36
Como lhe bem parece, o baxo mundo, Bem quisera primeiro ali Proteu
Famas, mores que nunca, determinam Dizer, neste negócio, o que sentia;
De dar a estes barões no mar profundo. E, segundo o que a todos pareceu,
Aqui vereis, ó Deuses, como ensinam Era algũa profunda profecia.
O mal também a Deuses; que, a segundo Porém tanto o tumulto se moveu,
Se vê, ninguém já tem menos valia Súbito, na divina companhia,
Que quem com mais razão valer devia. Que Tétis, indinada, lhe bradou:
– «Neptuno sabe bem o que mandou!»

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A ira com que súbito alterado Já lá o soberbo Hipótades soltava
O coração dos Deuses foi num ponto, Do cárcere fechado os furiosos
Não sofreu mais conselho bem cuidado Ventos, que com palavras animava
Nem dilação nem outro algum desconto: Contra os varões audaces e animosos.
Ao grande Eolo mandam já recado, Súbito, o céu sereno se obumbrava,
Da parte de Neptuno, que sem conto Que os ventos, mais que nunca impetuosos,
Solte as fúrias dos ventos repugnantes, Começam novas forças a ir tomando,
Que não haja no mar mais navegantes! Torres, montes e casas derribando.
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Enquanto este conselho se fazia – «Com que milhor podemos (um dizia)
No fundo aquoso, a leda, lassa frota Este tempo passar, que é tão pesado,
Com vento sossegado prosseguia, Senão com algum conto de alegria,
Pelo tranquilo mar, a longa rota. Com que nos deixe o sono carregado?»
Era no tempo quando a luz do dia Responde Leonardo, que trazia
Do Eóo Hemispério está remota; Pensamentos de firme namorado:
Os do quarto da prima se deitavam, – «Que contos poderemos ter milhores,
Pera o segundo os outros despertavam. Pera passar o tempo, que de amores?»
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39 Consentem nisto todos, e encomendam
Vencidos vêm do sono e mal despertos; A Veloso que conte isto que aprova. –
Bocijando, a miúdo se encostavam «Contarei (disse) sem que me reprendam
Pelas antenas, todos mal cobertos De contar cousa fabulosa ou nova;
Contra os agudos ares que assopravam; E por que os que me ouvirem daqui aprendam
Os olhos contra seu querer abertos; A fazer feitos grandes de alta prova,
Mas estregando, os membros estiravam. Dos nacidos direi na nossa terra,
Remédios contra o sono buscar querem, E estes sejam os Doze de Inglaterra.
Histórias contam, casos mil referem.
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«No tempo que do Reino a rédea leve, «E que se houver alguém, com lança e espada,
João, filho de Pedro, moderava, Que queira sustentar a parte sua,
Despois que sossegado e livre o teve Que eles, em campo raso ou estacada,
Do vizinho poder, que o molestava, Lhe darão feia infâmia ou morte crua.
Lá na grande Inglaterra, que da neve A feminil fraqueza, pouco usada,
Boreal sempre abunda, semeava Ou nunca, a opróbrios tais, vendo-se nua
A fera Erínis dura e má cizânia, De forças naturais convenientes,
Que lustre fosse a nossa Lusitânia. Socorro pede a amigos e parentes.

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«Entre as damas gentis da corte Inglesa «Mas, como fossem grandes e possantes
E nobres cortesãos, acaso um dia No reino os inimigos, não se atrevem
Se levantou discórdia, em ira acesa Nem parentes, nem férvidos amantes,
(Ou foi opinião, ou foi porfia). A sustentar as damas, como devem.
Os cortesãos, a quem tão pouco pesa Com lágrimas fermosas, e bastantes
Soltar palavras graves de ousadia, A fazer que em socorro os Deuses levem
Dizem que provarão que honras e famas De todo o Céu, por rostos de alabastro,
Em tais damas não há pera ser damas; Se vão todas ao Duque de Alencastro.
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«Era este Ingrês potente e militara
Cos Portugueses já contra Castela,
Onde as forças magnânimas provara
Dos companheiros, e benigna estrela.
Não menos nesta terra exprimentara
Namorados afeitos, quando nela
A filha viu, que tanto o peito doma
Do forte Rei, que por mulher a toma.
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«Este, que socorrer-lhe não queria
Por não causar discórdias intestinas,
Lhe diz: – «Quando o direito pretendia
Do Reino lá das terras Iberinas,
Nos Lusitanos vi tanta ousadia,
Tanto primor e partes tão divinas,
Que eles sós poderiam, se não erro
Sustentar vossa parte a fogo e ferro;
Os doze da
Inglaterra
Manuscrito quinhentista:

Crónica Breve das Cavalarias


dos Doze de Inglaterra
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«E se, agravadas damas, sois servidas, «Já chega a Portugal o mensageiro,
Por vós lhe mandarei embaixadores, Toda a corte alvoroça a novidade;
Que, por cartas discretas e polidas, Quisera o Rei sublime ser primeiro,
De vosso agravo os façam sabedores; Mas não lho sofre a régia Majestade.
Também, por vossa parte, encarecidas Qualquer dos cortesãos aventureiro
Com palavras d' afagos e d' amores Deseja ser, com férvida vontade,
Lhe sejam vossas lágrimas, que eu creio E só fica por bem-aventurado
Que ali tereis socorro e forte esteio.» Quem já vem pelo Duque nomeado.
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«Destarte as aconselha o Duque experto «Lá na leal cidade donde teve
E logo lhe nomeia doze fortes; Origem (como é fama) o nome eterno
E por que cada dama um tenha certo, De Portugal, armar madeiro leve
Lhe manda que sobre eles lancem sortes, Manda o que tem o leme do governo.
Que elas só doze são; e descoberto Apercebem-se os doze, em tempo breve,
Qual a qual tem caído das consortes, D' armas e roupas de uso mais moderno,
Cad' ũa escreve ao seu, por vários modos, De elmos, cimeiras, letras e primores,
E todas a seu Rei, e o Duque a todos. Cavalos, e concertos de mil cores.
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«Já do seu Rei tomado têm licença, «E quando caso for que eu, impedido
Pera partir do Douro celebrado, Por Quem das cousas é última linha,
Aqueles que escolhidos por sentença Não for convosco ao prazo instituído,
Foram do Duque Inglês exprimentado. Pouca falta vos faz a falta minha:
Não há na companhia diferença Todos por mi fareis o que é devido.
De cavaleiro, destro ou esforçado; Mas, se a verdade o esprito me adivinha,
Mas um só, que Magriço se dizia, Rios, montes, Fortuna ou sua enveja
Destarte fala à forte companhia: Não farão que eu convosco lá não seja.»
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– «Fortíssimos consócios, eu desejo «Assi diz e, abraçados os amigos
Há muito já de andar terras estranhas, E tomada licença, enfim se parte.
Por ver mais águas que as do Douro e Tejo, Passa Lião, Castela, vendo antigos
Várias gentes e leis e várias manhas. Lugares que ganhara o pátrio Marte;
Agora que aparelho certo vejo, Navarra, cos altíssimos perigos
(Pois que do mundo as cousas são Do Perineu, que Espanha e Gália parte.
[tamanhas) Vistas, enfim, de França as
Quero, se me deixais, ir só por terra, [cousas grandes,
Porque eu serei convosco em Inglaterra. No grande empório foi parar de Frandes.
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«Ali chegado, ou fosse caso ou manha, «Mas aquela a quem fora em sorte dado
Sem passar se deteve muitos dias. Magriço, que não vinha, com tristeza
Mas dos onze a ilustríssima companha Se veste, por não ter quem nomeado
Cortam do Mar do Norte as ondas frias; Seja seu cavaleiro nesta empresa;
Chegados de Inglaterra à costa estranha, Bem que os onze apregoam que acabado
Pera Londres já fazem todos vias; Será o negócio assi na corte Inglesa,
Do Duque são com festas agasalhados Que as damas vencedoras se conheçam,
E das damas servidos e amimados. Posto que dous e três dos seus faleçam.
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«Chega-se o prazo e dia assinalado «Já num sublime e púbrico teatro
De entrar em campo já cos doze Ingleses, Se assenta o Rei Inglês com toda a corte;
Que pelo Rei já tinham segurado; Estavam três e três e quatro e quatro,
Armam-se d' elmos, grevas e de arneses. Bem como a cada qual coubera em sorte;
Já as damas têm por si, fulgente e armado, Não são vistos do Sol, do Tejo ao Batro,
O Mavorte feroz dos Portugueses; De força, esforço e d'ânimo mais forte,
Vestem-se elas de cores e de sedas, Outros doze sair, como os Ingleses,
De ouro e de jóias mil, ricas e ledas. No campo, contra os onze Portugueses.
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«Viram todos o rosto aonde havia
A causa principal do reboliço:
Eis entra um cavaleiro, que trazia
Armas, cavalo, ao bélico serviço;
Ao Rei e às damas fala e logo se ia
Pera os onze, que este era o grão Magriço;
Abraça os companheiros, como amigos
A quem não falta, certo nos perigos.

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«A dama, como ouviu que este era aquele
Que vinha a defender seu nome e fama,
Se alegra e veste ali do animal de Hele,
Que a gente bruta mais que virtude ama.
Já dão sinal, e o som da tuba impele
Os belicosos ânimos, que inflama;
Picam d'esporas, largam rédeas logo,
Abaxam lanças, fere a terra fogo;
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«Algum dali tomou perpétuo sono
E fez da vida ao fim breve intervalo;
Correndo, algum cavalo vai sem dono,
E noutra parte o dono sem cavalo.
Cai a soberba Inglesa de seu trono, 68
Que dous ou três já fora vão do valo. «Mas dizem que, contudo, o grão Magriço,
Os que de espada vêm fazer batalha, Desejoso de ver as cousas grandes,
Mais acham já que arnês, escudo e malha. Lá se deixou ficar, onde um serviço
66 Notável à Condessa fez de Frandes;
«Gastar palavras em contar extremos E, como quem não era já noviço
De golpes feros, cruas estocadas, Em todo trance onde tu, Marte, mandes,
É desses gastadores, que sabemos, Um Francês mata em campo, que o destino
Maus do tempo com fábulas sonhadas. Lá teve de Torcato e de Corvino.
Basta, por fim do caso, que entendemos
Que com finezas altas e afamadas,
Cos nossos fica a palma da vitória
E as damas vencedoras e com glória.
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«Outro também dos doze em Alemanha Não eram os traquetes bem tomados,
Se lança e teve um fero desafio Quando dá a grande e súbita procela.
Cum Germano enganoso, que, com manha – «Amaina (disse o mestre a grandes
Não devida, o quis pôr no extremo fio.» [brados),
Contando assi Veloso, já a companha Amaina (disse), amaina a grande vela!»
Lhe pede que não faça tal desvio Não esperam os ventos indinados
Do caso de Magriço e vencimento, Que amainassem, mas, juntos dando nela,
Nem deixe o de Alemanha em esquecimento. Em pedaços a fazem cum ruído
Que o Mundo pareceu ser destruído!
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Mas neste passo, assi prontos estando, O céu fere com gritos nisto a gente,
Eis o mestre, que olhando os ares anda, Cum súbito temor e desacordo;
O apito toca: acordam, despertando, Que, no romper da vela, a nau pendente
Os marinheiros dũa e doutra banda, Toma grão suma d' água pelo bordo.
E, porque o vento vinha refrescando, – «Alija (disse o mestre rijamente,
Os traquetes das gáveas tomar manda. Alija tudo ao mar, não falte acordo!
– «Alerta (disse) estai, que o vento crece Vão outros dar à bomba, não cessando;
Daquela nuvem negra que aparece!» À bomba, que nos imos alagando!»
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A nau grande, em que vai Paulo da Gama,
Quebrado leva o masto pelo meio,
Quási toda alagada; a gente chama
Aquele que a salvar o mundo veio.
74 Não menos gritos vãos ao ar derrama
Os ventos eram tais que não puderam Toda a nau de Coelho, com receio,
Mostrar mais força d' ímpeto cruel, Conquanto teve o mestre tanto tento
Se pera derribar então vieram Que primeiro amainou que desse o vento.
A fortíssima Torre de Babel.
Nos altíssimos mares, que creceram, 76
A pequena grandura dum batel Agora sobre as nuvens os subiam
Mostra a possante nau, que move espanto, As ondas de Neptuno furibundo;
Vendo que se sustém nas ondas tanto. Agora a ver parece que deciam
As íntimas entranhas do Profundo.
Noto, Austro, Bóreas, Áquilo, queriam
Arruinar a máquina do Mundo;
A noite negra e feia se alumia
Cos raios em que o Pólo todo ardia!
Torre de Babel
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As Alciónias aves triste canto
Junto da costa brava levantaram,
Lembrando-se de seu passado pranto,
Que as furiosas águas lhe causaram.
Os delfins namorados, entretanto, 80
Lá nas covas marítimas entraram, Vendo Vasco da Gama que tão perto
Fugindo à tempestade e ventos duros, Do fim de seu desejo se perdia,
Que nem no fundo os deixa estar seguros. Vendo ora o mar até o Inferno aberto,
Ora com nova fúria ao Céu subia,
78 Confuso de temor, da vida incerto,
Nunca tão vivos raios fabricou Onde nenhum remédio lhe valia,
Contra a fera soberba dos Gigantes Chama aquele remédio santo e forte
O grão ferreiro sórdido que obrou Que o impossíbil pode, desta sorte:
Do enteado as armas radiantes;
Nem tanto o grão Tonante arremessou
Relâmpados ao mundo, fulminantes,
No grão dilúvio donde sós viveram
Os dous que em gente as pedras converteram.
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– «Divina Guarda, angélica, celeste,
Que os céus, o mar e terra senhoreias:
Tu, que a todo Israel refúgio deste
Por metade das águas Eritreias;
Tu, que livraste Paulo e defendeste 83
Das Sirtes arenosas e ondas feias, «Oh ditosos aqueles que puderam
E guardaste, cos filhos, o segundo Entre as agudas lanças Africanas
Povoador do alagado e vácuo mundo: Morrer, enquanto fortes sustiveram
A santa Fé nas terras Mauritanas;
82 De quem feitos ilustres se souberam,
«Se tenho novos medos perigosos De quem ficam memórias soberanas,
Doutra Cila e Caríbdis já passados, De quem se ganha a vida com perdê-la,
Outras Sirtes e baxos arenosos, Doce fazendo a morte as honras dela!»
Outros Acroceráunios infamados;
No fim de tantos casos trabalhosos,
Porque somos de Ti desamparados,
Se este nosso trabalho não te ofende,
Mas antes teu serviço só pretende?
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Mas já a amorosa Estrela cintilava Grinaldas manda pôr de várias cores
Diante do Sol claro, no horizonte, Sobre cabelos louros a porfia.
Mensageira do dia, e visitava Quem não dirá que nacem roxas flores
A terra e o largo mar, com leda fronte. Sobre ouro natural, que Amor enfia?
A Deusa que nos Céus a governava, Abrandar determina, por amores,
De quem foge o ensífero Orionte, Dos ventos a nojosa companhia,
Tanto que o mar e a cara armada vira, Mostrando-lhe as amadas Ninfas belas,
Tocada junto foi de medo e de ira. Que mais fermosas vinham que as estrelas.

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– «Estas obras de Baco são, por certo Assi foi; porque, tanto que chegaram
(Disse), mas não será que avante leve À vista delas, logo lhe falecem
Tão danada tenção, que descoberto As forças com que dantes pelejaram,
Me será sempre o mal a que se atreve.» E já como rendidos lhe obedecem;
Isto dizendo, dece ao mar aberto, Os pés e mãos parece que lhe ataram
No caminho gastando espaço breve, Os cabelos que os raios escurecem.
Enquanto manda as Ninfas amorosas A Bóreas, que do peito mais queria,
Grinaldas nas cabeças pôr de rosas. Assi disse a belíssima Oritia:
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Desta maneira as outras amansavam
Subitamente os outros amadores;
E logo à linda Vénus se entregavam,
90 Amansadas as iras e os furores.
Assi mesmo a fermosa Galateia Ela lhe prometeu, vendo que amavam,
Dizia ao fero Noto, que bem sabe Sempiterno favor em seus amores,
Que dias há que em vê-la se recreia, Nas belas mãos tomando-lhe homenagem
E bem crê que com ele tudo acabe. De lhe serem leais esta viagem.
Não sabe o bravo tanto bem se o creia,
Que o coração no peito lhe não cabe; 92
De contente de ver que a dama o manda, Já a manhã clara dava nos outeiros
Pouco cuida que faz, se logo abranda. Por onde o Ganges murmurando soa,
Quando da celsa gávea os marinheiros
Enxergaram terra alta, pela proa.
Já fora de tormenta e dos primeiros
Mares, o temor vão do peito voa.
Disse alegre o piloto Melindano:
– «Terra é de Calecu, se não me engano.
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«Esta é, por certo, a terra que buscais Por meio destes hórridos perigos,
Da verdadeira Índia, que aparece; Destes trabalhos graves e temores,
E se do mundo mais não desejais, Alcançam os que são de fama amigos
Vosso trabalho longo aqui fenece.» As honras imortais e graus maiores;
Sofrer aqui não pôde o Gama mais, Não encostados sempre nos antigos
De ledo em ver que a terra se conhece; Troncos nobres de seus antecessores;
Os giolhos no chão, as mãos ao Céu, Não nos leitos dourados, entre os finos
A mercê grande a Deus agardeceu. Animais de Moscóvia zibelinos;

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As graças a Deus dava, e razão tinha, Não cos manjares novos e esquisitos,
Que não somente a terra lhe mostrava Não cos passeios moles e ouciosos,
Que, com tanto temor, buscando vinha, Não cos vários deleites e infinitos,
Por quem tanto trabalho exprimentava, Que afeminam os peitos generosos;
Mas via-se livrado, tão asinha, Não cos nunca vencidos apetitos,
Da morte, que no mar lhe aparelhava Que a Fortuna tem sempre tão mimosos,
O vento duro, férvido e medonho, Que não sofre a nenhum que o passo mude
Como quem despertou de horrendo sonho. Pera algũa obra heróica de virtude;
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Mas com buscar, co seu forçoso braço, Destarte se esclarece o entendimento,
As honras que ele chame próprias suas; Que experiências fazem repousado,
Vigiando e vestindo o forjado aço, E fica vendo, como de alto assento,
Sofrendo tempestades e ondas cruas, O baxo trato humano embaraçado.
Vencendo os torpes frios no regaço Este, onde tiver força o regimento
Do Sul, e regiões de abrigo nuas, Direito e não de afeitos ocupado,
Engolindo o corrupto mantimento Subirá (como deve) a ilustre mando,
Temperado com um árduo sofrimento; Contra vontade sua, e não rogando.

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E com forçar o rosto, que se enfia,
A parecer seguro, ledo, inteiro,
Pera o pelouro ardente que assovia
E leva a perna ou braço ao companheiro.
Destarte o peito um calo honroso cria,
Desprezador das honras e dinheiro,
Das honras e dinheiro que a ventura
Forjou, e não virtude justa e dura.

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