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Créditos
Editoração: Carolina Leal Pires e Paula Mendes Costa
Capa: Carolina Leal Pires
Ilustração: “Burst Variations 3” de Billy Alexssander (www.sxc.hu)
Revisão: os autores

Editora associada à

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA
DAS EDITORAS UNIVERSITÁRIAS

Catalogação na fonte:
Bibliotecária Joselly de Barros Gonçalves, CRB4-1748

D582 Dimensão transdisciplinar na formação do professor, 2 /


Organizadoras: Dilma Tavares Luciano e Carolina Leal Pires.
– Recife : Ed. Universitária da UFPE, 2011.
411 p.

E-Letras – Curso de Licenciatura de Letras à distância.


Vários autores.
Inclui referências.
ISBN 978-85-7315-855-7 (broch.)

1. Professores – Formação. 2. Gramática comparada e geral


– Morfologia. 3. Linguística. 4. Teoria da literatura. I. Luciano,
Dilma Tavares (Org.). II. Pires, Carolina Leal (Org.).

370.711 DD (22.ed.) UFPE (BC2011-028)


SUMÁRIO
Introdução – Dilma Tavares Luciano...........................................07
Capítulo 1: Leitura e Produção de Textos Acadêmicos – Virgínia
Leal
Introdução................................................................................19
1. Entrando em contato com os gêneros acadêmicos.....................24
2. Os principais gêneros acadêmicos...........................................28
3. Redação dos gêneros acadêmicos...........................................30
4. A escolha do tema para pesquisa............................................35
5. Aspectos formais e normativos: formatação, citações e
referências bibliográficas.......................................................40
5.1 Formatação..................................................................41
5.2 Tipos e normalização de citações.....................................42
5.3 Normalização de referências bibliográficas........................46
6. Conhecendo melhor alguns gêneros acadêmicos......................48
6.1 Fichamento, resumo e resenha.......................................49
6.1.1 Fichamento.........................................................49
6.1.2 Resumo..............................................................51
6.1.3 Resenha.............................................................52
6.2 Artigo e pôster.............................................................53
6.2.1 Artigo.................................................................53
6.2.2 Pôster acadêmico/científico....................................55
6.3 Projeto de pesquisa.......................................................56
6.4 Relatório de pesquisa....................................................58
6.5 Monografia...................................................................61
Referências...............................................................................65
Atividades.................................................................................69
Capítulo 2: Uma introdução à Morfologia – Stella Telles
1. O que é morfologia?..............................................................79
2. Conceito de palavra e lexema.................................................83
2.1 Palavra x Vocábulo........................................................89
3. Conceito de morfema............................................................90
3.1 Formação de palavras...................................................91
3.2 Palavras lexicais e morfemas não-lexicais........................94
4. Tipos de morfemas...............................................................95
5. Classes de palavras.............................................................101
5.1 Classes do português..................................................102
6. Processos morfológicos – composição, derivação e flexão........104
6.1 Critérios de distinção: derivação x flexão.......................108
7. Tipos de flexão: nominal e verbal..........................................116
7.1 Estrutura do nome.....................................................116
7.2 Estrutura do verbo.....................................................120
8. Morfologia não-concatenativa.............................................121
Referências............................................................................122
Atividades..............................................................................125
Capítulo 3: Teoria da Literatura II – Aldo de Lima
Introdução.............................................................................131
1. Poesia e prosa....................................................................135
2. A metáfora.........................................................................140
2.1 A lição do Ledor.........................................................140
2.2 A astúcia do Ledor......................................................153
Notas bibliográficas..................................................................182
3. Criação literária: inspiração ou composição? ..........................185
4. O poema............................................................................197
4.1 O experimentalismo....................................................208
5. O romance, a novela, o conto, a crônica.................................222
6. O teatro.............................................................................223
Referências.............................................................................226
Leituras complementares..........................................................229
Atividades...............................................................................232
Linguística: Funcionalismo
Capítulo 4: Linguística: Funcionalismo – Maria José de Matos Luna
1. O que é funcionalismo?.........................................................237
2. Texto, contexto e intertexto? ................................................240
2.1 O que seria a unidade textual? .....................................243
2.2 Contexto....................................................................246
2.3 Intertexto..................................................................247
3. Elementos estruturais do texto..............................................250
4. Resumo..............................................................................251
5. Lições básicas de uma gramática de direção
funcional............................................................................252
Referências.............................................................................254
Atividades...............................................................................258
Capítulo 5: Mais uma incursão nos estudos funcionalistas –
Siane Gois Cavalcanti Rodrigues
1. Introdução..........................................................................279
2. O Formalismo: algumas considerações introdutórias.................280
3. Quanto ao Funcionalismo......................................................284
3.1 A Gramaticalização......................................................291
3.2 A relação entre gramática e cognição.............................293
3.3 A pragmática na gramática...........................................295
4. Algumas considerações finais.................................................297
Referências..............................................................................300
Capítulo 6: Metodologia I – Dilma Tavares Luciano e Maria Lúcia
Barbosa
1. “Transver” a prática de ensino...............................................305
1.1 O que significa “metodologia”.......................................313
1.2 Nós somos o que fazemos............................................323
1.3 Fazemos como concebemos..........................................327
2. Um pouco da história do Português como
disciplina escolar..................................................................331
2.1 Da Lei 5.692 à Lei 9.394...............................................340
3. Objetivos do ensino..............................................................346
4. O aprendiz..........................................................................348
4.1 O aprendiz/falante do idioma materno............................349
4.2 Aprendendo com a Literatura........................................352
5. Unidades básicas do ensino...................................................356
6. Penúltimas palavras.............................................................360
Referências.............................................................................363
Atividades...............................................................................367
Capítulo 7: Fundamentos da Educação – Ana Cláudia Tavares
1. Introdução à filosofia e história da educação...........................375
1.1 Antiguidade grega: a Paidéia........................................375
1.2 Sócrates e os sofistas..................................................376
1.3 A Utopia de Platão......................................................378
1.4 Aristóteles e o seu Realismo.........................................380
1.5 Séculos XV e XVI – Renascimento, Humanismo e
Reforma...........................................................................383
1.6 Século XVII – Idade Moderna e Pedagogia
Realista............................................................................386
1.7 Séculos XVIII e XIX – O Século das Luzes e o Ideal
Liberal da Educação...........................................................388
1.8 Séculos XX e XXI – A Educação para a
Democracia.......................................................................391
2. Teorias Sociológicas da Educação...........................................394
2.1 Teorias não-críticas (pedagogia liberal ou educação
como redenção da sociedade) .............................................397
2.2 Teorias crítico-reprodutivistas (pedagogia progressista
ou educação como reprodução da sociedade) ........................400
2.3 Teorias Críticas (ou educação como transformação
da sociedade)...................................................................403
Referências.............................................................................405
Atividades...............................................................................406
Dilma Tavares Luciano

INTRODUÇÃO

Nesse segundo volume da coleção Dimensão Transdisciplinar na


Formação do Professor, esperamos dar continuidade ao processo
iniciado no primeiro período do E-Letras de construção conjunta do
conhecimento, com uma atitude

“sem radicalismos ingênuos ou descasos inconsequentes de


uma docência capaz de tratar o novo sem obstáculos, atenta à
necessidade constante de adaptações nos currículos, porque
ancorada no potencial formativo das teorias disponíveis à
perscrutação”.1

Para tanto, mais uma vez optamos por uma introdução que destaque
alguns aspectos da linguagem dentro da perspectiva sociointeracionista
de ensino da língua, posicionamento epistemológico que caracteriza o
perfil da maioria dos docentes que integram o Departamento de Letras
da UFPE. Pois acreditamos que:

“(...) é no contexto da atividade em funcionamento nas


formações sociais que se encontram as ações imputáveis a
agentes singulares e é no quadro estrutural das ações que se
elaboram as capacidades mentais e a consciência desses

1
Página 312 deste volume.

»7
mesmos agentes humanos. As condutas verbais são concebidas,
portanto, como formas de ação (daí o termo ação de
linguagem), ao mesmo tempo específicas (dado que são
semióticas) e em interdependência com as ações não verbais
[non langagières]”. (grifos da autora)
BRONCKART, Jean-Paul. Atividade de linguagem, textos e discursos: por
um interacionismo sócio-discursivo. São Paulo: Educ, 1999. p.13

Na atualidade, os rumos da linguagem convergem para um espaço em


que a educação é posta em cheque quanto aos processos de
significação tratados na escola ainda presa ao distanciamento entre
produtores e receptores de informação2.

Com o advento da internet, grandes mudanças ocorreram em diversos


âmbitos da sociedade, sugerindo que o trabalho docente acompanhe o
desenvolvimento tecnológico para a produção de informação e
comunicação. De modo específico, a escola deve basear-se na
cosmovisão para ser capaz de enfocar as forças convergentes dos
processos históricos e sociais determinantes da cultura comunicacional
do século XXI: a comunicação em rede.

Acreditamos, ainda, que um curso de formação de professor deve


promover efetiva reflexão sobre a metodologia de ensino, de modo

2
Referimo-nos, aqui, nessa introdução, ao nosso ponto de vista acerca da
mudança de paradigma comunicacional que decorre do desenvolvimento da
telemática, a qual afeta todas as áreas profissionais e de modo especial a
formação do professor. A esse respeito, escrevemos o artigo “O ciberprofessor:
novas perspectivas para o profissional das Letras”, publicado em: O ensino de
línguas: concepções & práticas universitárias. / organização Vera Moura, Maria
Cristina Damianovic, Virgínia Leal. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2010.


transdisciplinar, como forma de contribuição da academia para a
construção de uma sociedade com maior equidade social,
especialmente quando observamos o fosso gerado entre os dois grupos
sociais claramente definidos nos nossos dias: os que têm acesso às
redes comunicacionais e efetivamente são parte delas; e os que estão
à margem desse universo.

A virtualidade, hoje, representa uma dimensão social, econômica e


cultural essenciais à vida cotidiana, revelada pelos novos arranjos
organizacionais em todos os níveis, e sugerindo um processo de
transformação mundial a que se vem denominando globalização.
Transcorrida uma década desse novo século, observamos a sociedade
em rede, e da qual a UFPE está fazendo parte com a realização do E-
Letras, objetivando compreender o nosso papel enquanto educadores
desse e nesse tempo novo.

A comunicação em rede, por resultar da integração de três matrizes de


linguagem num mesmo sistema (escrita, oralidade e linguagem visual)
transforma a tarefa do professor de Português numa atividade
complexa, cujo desafio maior é compreender essa que entendemos ser
a “cultura interacional” decorrente do desenvolvimento tecnológico
hodierno.

“Uma transformação tecnológica de dimensões históricas


3
similares está ocorrendo 2.700 anos depois , ou seja, a

3
O autor refere-se à invenção do alfabeto, na Grécia, por volta do ano 700 a.C.,
considerando-o uma tecnologia de base constitutiva do desenvolvimento da
filosofia ocidental e da ciência como a conhecemos, além de representar o
“preenchimento da lacuma entre o discurso oral e o escrito, com isso separando

»9
integração de vários modos de comunicação em uma rede
interativa. Ou, em outras palavras, a formação de um hipertexto
e uma metalinguagem que, pela primeira vez na história,
integra no mesmo sistema as modalidades escrita, oral e
audiovisual da comunicação humana. O espírito humano reúne
suas dimensões em uma nova interação entre os dois lados do
cérebro, máquinas e contextos sociais. Apesar de toda ideologia
da ficção científica e a publicidade comercial em torno do
surgimento da chamada Infovia, não podemos subestimar sua
importância4. A integração potencial de texto, imagens e sons
no mesmo sistema – interagindo a partir de pontos múltiplos,
no tempo escolhido (real ou atrasado) em uma rede global, em
condições de acesso aberto e de preço acessível – muda de
forma fundamental o caráter da comunicação. E a comunicação,
decididamente, molda a cultura porque, como afirma Postman
“nós não vemos... a realidade...como „ela‟ é, mas como são
nossas linguagens. E nossas linguagens são nossos meios de
comunicação. Nossos meios de comunicação são nossas
metáforas. Nossas metáforas criam o conteúdo de nossa
cultura”5. Como a cultura é mediada e determinada pela
comunicação, as próprias culturas, isto é, nossos sistemas de
crenças e códigos historicamente produzidos são transformados
de maneira fundamental pelo novo sistema tecnológico e o
serão ainda mais com o passar do tempo. [...] O surgimento de
um novo sistema eletrônico de comunicação caracterizado pelo
seu alcance global, integração de todos os meios de
comunicação e interatividade potencial está mudando e mudará

o que é falado de quem fala e possibilitando o discurso conceitual” (CASTELLS,


209, p.413)
4
Do original: “copiar nota”
5
Do original: “copiar”

10«
para sempre nossa cultura. Contudo, surge a questão das
condições, características e efeitos reais dessa mudança.”
Castells, Manuel. (2010). A sociedade em rede. Tradução Roneide
Venancio Majer; atualização para 6ª. edição: Jussara Simões. – ( A era
da informação: economia, sociedade e cultura; v.1) São Paulo: Paz e
Terra, 1999.

No ensino superior a distância, pensando no que informar para formar


o professor de Letras, essa problematização sobre as verdadeiras
condições, características e efeitos reais dessa mudança de paradigma
comunicacional (cf. LUCIANO, 2010) põe-nos diante de diversas
preocupações quanto a essa aculturação à formação em rede,
provocadas pelo desafio à virtualização do texto, esse que é a unidade
básica da comunicação humana.

Como destaca Levy (1996: 36-37),

“não é mais o sentido do texto que nos ocupa, mas a direção e a


elaboração de nosso pensamento, a precisão de nossa imagem
do mundo, a culminação de nossos projetos, o despertar de
nossos prazeres, o fio de nossos sonhos”. E completa: “escutar,
olhar, ler, equivale finalmente a construir-se. (...) o texto serve
de vetor, de suporte ou de pretexto à atualização6 de nosso
próprio espaço mental”

6
“A atualização é criação, invencao de uma forma a partir de uma configuração
dinâmica de forças e de finalidades” (LEVY, 1996, p.16). A atualização é o
processo de resolução do complexo problemático que compõe o virtual.

»11
Nesse segundo período do curso de Licenciatura em Letras a distância
(E-Letras), compõem esses diversos vetores que deverão fazer parte
do espaço mental de cada discente à proporção que o graduando se
envolver verdadeira e profundamente com as “leituras” propostas com
o conhecimento oferecido nas disciplinas intituladas “Leitura e
Produção de Textos Acadêmicos”, “Língua Portuguesa: Vocábulo”,
“Teoria da Literatura II”, Linguística: Funcionalismo”, Metodologia 1 e
“Fundamentos da Educação”, essas duas últimas uma continuação dos
estudos sobre o ensino propriamente dito.

Após a vivência com o primeiro período de curso, os alunos


graduandos em Letras puderam sentir os desafios da incursão em um
domínio discursivo próprio desse nível de formação: os textos
acadêmicos. Assim, consciente do que representa para o sucesso do
aluno de graduação de modo geral o desenvolvimento da competência
textual, a Profª Drª Virgínia Leal oferece o conteúdo para a disciplina
“Leitura e Produção de Textos Acadêmicos”, primeiro capítulo desse
volume da nossa coleção Dimensão Transdisciplinar na Formação do
Professor.

Numa linguagem clara e objetiva, traço marcante em seu discurso, a


autora, Virgínia Leal, consegue transformar um conteúdo técnico, sobre
a arquitetura de textos acadêmicos, em uma “conversa ao pé do
ouvido”, simples assim como são as prosas do cotidiano. E desse
modo, vai atravessando a rigidez dos gêneros que circulam na
academia, “falando” sobre artigo, dissertação, ensaio, fichamento,
monografia, projeto de pesquisa, relatório de pesquisa, resenha,
resumo, pôster e tese, que passarão, certamente, à familiaridade com

12«
o aluno/leitor desse primeiro capítulo, atingindo o objetivo da
disciplina.

No segundo capítulo, destinado ao desenvolvimento da disciplina


“Língua Portuguesa: Vocábulo”, do E-Letras, a Profª Drª Stella Telles é
autora de conteúdo sobre o sistema linguístico com o propósito de
alargar a compreensão do licenciando em Letras sobre o objeto de
estudo da Morfologia da língua, sem, contudo, desconsiderar a
interdependência entre seus componentes.

O capítulo 3 destina-se à finalização do estudo sobre a teoria da


literatura, iniciado no primeiro volume. Assim, em Teoria da Literatura
II é o momento de estudo da poesia, da prosa e do teatro como
discursos de representação histórico-sociocultural, oferecendo ao leitor
preciosos momentos de erudição literária durante a incursão no que
denomina “a lição” e “a astúcia do Ledor”, para reflexão sobre a
metáfora. Faz-nos pensar no fenômeno concebendo “a Literatura assim
como as demais artes (...) grandes exemplos de que a metáfora seria
ineficaz e tautológica se ela observasse tão-somente as semelhanças
existentes entre as coisas, os seres” (p.170).

Nesse segundo volume, à Linguística coube espaço privilegiado com a


contribuição de duas professoras pesquisadoras. No capítulo 4, a Profª
Drª Maria José Luna aborda o funcionalismo linguístico como
movimento particular dentro do estruturalismo, tratando as funções
dos usos linguísticos, logo, oferecendo a oportunidade de observação e
reflexão dos fenômenos sintáticos da língua em seus contextos
específicos de uso. No quinto capítulo, a Profª Drª Siane Góis, por sua
vez, empreende uma incursão na Linguística dita funcionalista

»13
destacando a oposição formalismo/funcionalismo, ao percorrer
brevemente o percurso da Linguística no século XX, numa perspectiva
histórica em certa medida, para entendimento do estruturalismo como
aspecto promotor da referida dicotomia nas abordagens linguísticas.

No sexto capítulo, intitulado Metodologia 1, em coautoria com a Profª


Drª Maria Lúcia Barbosa, propomos a reflexão sobre a prática de
ensino agora com a disposição ao reconhecimento de que nossos
posicionamentos teóricos sobre a língua não devem representar uma
“rigidez de formalização fruto da crença em uma preensão teórica
homogênea e modeladora da prática de ensino” (p. 307).

Ao longo do capítulo, procuramos “conduzir nossos “diálogos” para a


reflexão sobre metodologia de ensino por um caminho de participação
ativa na análise dos fenômenos de linguagem, sejam linguísticos,
sejam literários, de modo a desenvolver em cada um de vocês, alunos
e alunas do curso de “formação de professor”, a capacidade de
avaliação dos recursos didáticos disponíveis à prática docente e de
observação/identificação precisa das dificuldades de seus alunos no
futuro.

Para finalizar, o capítulo 7 traz o conteúdo referente aos “Fundamentos


da Educação”, texto em que a Profª Ana Cláudia Tavares, doutoranda
em Educação, faz uma breve incursão na filosofia e história da
Educação para destacar as diversas “tendências pedagógicas”
enquanto “linhas conscientes de ação”. Em seu texto, destaca-se o
desejo de desvelar a educação como mediação de um projeto social,
portanto, objetivando compreender os condicionantes históricos de

14«
qualquer modelo de educação, para despertar no leitor o desejo de luta
por uma educação libertadora e de qualidade.

Agir para transformar! Esse é o princípio básico que deve fundar toda e
qualquer ação formadora, o que, em nosso caso como professores
responsáveis pela profissionalização de futuros professores de
Português, pretende não perder de vista

“nossa identidade no sentido de abertura à relatividade das


definições e objetividade, distante do apregoado formalismo
excessivo que compromete, e mesmo impede, a apropriação
precisa do ensino de Português numa perspectiva
7
sociointeracionista discursiva” .

7
Citação retirada do Prefácio do volume 1, dessa coleção, página 01.

»15
16«
Virgínia Leal

LEITURA E PRODUÇÃO DE TEXTOS


ACADÊMICOS
18«
Introdução

Sem dúvida, nas disciplinas cursadas no primeiro período deste curso,


seus professores chamaram a atenção para o modo especial de
apresentar o resultado das atividades que lhes foram solicitadas.
Muitos pediram que vocês lessem sobre um determinado assunto em
materiais disponibilizados no ambiente do curso, complementando tais
leituras com uma sugestão de títulos bibliográficos ou com materiais
levantados por vocês em bibliotecas particulares, públicas ou através
da web.

Ler para discutir um assunto acadêmico não é a mesma coisa que ler
para fruição ou divertimento. Ler com objetivo preciso, muitas vezes,
se confunde com a expressão “estudar”. Os objetivos acadêmicos são
satisfeitos quando sabemos qual o tema que está sendo tratado por
um determinado autor, quando o material foi escrito e com quais
propósitos, as filiações teóricas de quem escreve em relação ao
tratamento do tema enfocado etc. Frequentemente, precisamos anotar,
sublinhar, destacar frases/períodos/expressões que parecem ser
importantes ou que parecem resumir a principal posição do autor.

Todos concordam, porém, que anotar um ponto importante, confrontar


a argumentação do autor que está sendo lido com a argumentação de
outros autores ou até mesmo consultar outras obras relacionadas ao
tema fica um pouco difícil em posição de descanso. Além disso, muitos
de nós precisam de concentração para poder de fato construir sentido
– que é o que se espera da leitura. Hoje, não se admite mais uma

»19
concepção de leitura que a veja como decodificação, ou seja, como
uma simples forma de fazer a relação entre grafemas e fonemas. Mais
importante do que saber ler em voz alta, com entonação e
expressividade, é saber ler construindo sentidos: observando
implícitos, desfazendo ambiguidades, inferindo informações,
produzindo conclusões.

Para Koch (2006, p. 11),

“(...) o sentido de um texto é construído na interação texto-


sujeitos e não algo que preexista a essa interação. A leitura é,
pois, uma atividade interativa altamente complexa de produção
de sentidos, que se realiza evidentemente com base nos
elementos linguísticos presentes na superfície textual e na sua
forma de organização, mas requer a mobilização de um vasto
conjunto de saberes no interior do evento comunicativo” (grifos
da autora)”.

Cada disciplina solicitará um conjunto de leituras sobre temas variados,


recorrendo a este importante processo de construção do conhecimento.
E quanto mais se lê, mais preparado se fica para a produção de textos
uma vez que as propriedades formais e funcionais de um determinado
gênero textual podem ser internalizadas. Desse modo, os processos
de leitura e escrita ainda que possam ser tratados
separadamente, estão interligados. Não nos esqueçamos de que,
quando escrevemos, também nos tornamos leitores de nossos textos,
assim como também não devemos esquecer que a construção de uma
memória visual, que nos auxilia em relação à ortografia de uma

20«
palavra ou expressão é dependente da frequência com a qual lemos
sobre os mais variados assuntos.

Então, podemos concluir que quanto mais lemos, mais fazemos


uso de uma estratégia que pode contribuir significativamente
para a produção de textos com alto grau de relevância
interativa. E é através de textos que nós interagimos com nosso
semelhante, com o mundo e com a própria linguagem; é através de
textos que realizamos atividades comunicativas, cognitivas e
metalinguísticas, ao focarmos o homem, o mundo e a linguagem,
respectivamente. Exercitar a linguagem só é possível através de
textos, já que tais atividades não são regularmente postas em
funcionamento por meio apenas de sons isolados, palavras isoladas ou
frases isoladas, ainda que apenas uma palavra possa funcionar como
um texto completo. Um exemplo “clássico” desta última situação pode
ser vislumbrado com a palavra SILÊNCIO escrita em uma placa no
corredor de um hospital; ou a palavra SIGA em uma tabuleta segurada
por um trabalhador no meio da BR 101 norte; ou ainda pela palavra
ELAS na porta de um banheiro de restaurante.

Com o desenvolvimento dos estudos linguísticos na segunda metade


do século XX, vimos nascer com força áreas como a Linguística
Textual, a Análise do Discurso, a Sociolinguística, a Linguística
Aplicada, entre as inúmeras divisões e campos disciplinares que
poderiam ser citados aqui.

A princípio, a Linguística Textual, campo que toma o texto como seu


objeto de estudo, esteve bastante voltada para a análise dos fatores
de textualidade, ou seja, para os elementos que fazem de um conjunto

»21
de palavras um texto. No início, houve uma ênfase na descrição,
análise e interpretação de fenômenos relativos a alguns fatores de
textualidade, mais especificamente, nos fenômenos de coesão e
coerência textuais, além dos estudos que se debruçavam sobre
tipologias de texto.

Em seguida aos estudos sobre tipologia textual em que os tipos


narrativos, dissertativos, injuntivos e descritivos ganharam relevo, a
partir do final da década de noventa do século passado, ou seja, mais
recentemente, o foco dos estudos textuais foi deslocado para a questão
dos chamados gêneros textuais1.

Antes, porém, de continuarmos o nosso curso, será necessário deixar


clara a distinção entre tipo e gênero textuais.

Segundo Marcuschi (2008, p.154), o tipo textual

“designa uma espécie de construção teórica (em geral uma


sequência subjacente aos textos) definida pela natureza
linguística de sua composição (aspectos lexicais, sintáticos,
tempos verbais, relações lógicas, estilo). O tipo caracteriza-se

1
Bem, os estudos sobre gêneros textuais não são recentes. Se recuarmos as
nossas leituras para o que foi produzido no berço da chamada civilização
ocidental, a Grécia antiga, vamos verificar que o termo foi associado aos
estudos literários produzidos notadamente por Aristóteles. De fato, na Retórica,
ele traz uma série de análises e considerações sobre os gêneros literários,
apresentando a distinção entre epopéia, tragédia e comédia. De lá para cá, os
estudos sobre gênero foram sendo ampliados de tal modo que não se
restringem mais aos estudos literários.

22«
muito mais como sequências linguísticas (sequências retóricas)
do que como textos materializados; a rigor, são modos textuais.
Em geral, os tipos textuais abrangem cerca de meia dúzia de
categorias conhecidas como: narração, argumentação,
exposição, descrição, injunção”.

Já a expressão gênero textual se refere, segundo ainda Marcuschi


(2008, p. 155), aos

“textos materializados em situações comunicativas. Os gêneros


textuais são os textos que encontramos em nossa vida diária e
que apresentam padrões sociocomunicativos característicos
definidos por composições funcionais, objetivos enunciativos e
estilos concretamente realizados na integração de forças
históricas, sociais, institucionais e técnicas. Em contraposição
aos tipos, os gêneros são entidades empíricas em situações
comunicativas e se expressam em designações diversas,
constituindo em princípio listagens abertas. Alguns exemplos
de gêneros textuais seriam: telefonema, sermão, carta
comercial, carta pessoal, bilhete, reportagem, aula expositiva,
reunião de condomínio, notícia jornalística, horóscopo, receita
culinária, bula de remédio, lista de compras, cardápio de
restaurante, instruções de uso, inquérito policial, resenha,
edital de concurso, piada, conversação espontânea,
conferência, carta eletrônica, bate-papo por computador, aulas
virtuais e assim por diante”.

»23
Leituras complementares:

DIONISIO, A. P.; BEZERRA; M. A.; MACHADO, A. R. (Orgs.). Gêneros


Textuais e Ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002.

KOCH, I. V. Ler e compreender: os sentidos do texto. São Paulo:


Contexto, 2006.

KOCH, I. V. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez,


2006.

KOCH, I. V. A coesão textual. São Paulo: Contexto, 2002.

KOCH, I. V.; TRAVAGLIA, L. C. A coerência textual. São Paulo:


Contexto, 2004.

MARCUSCHI, L. A. Linguística de Texto: o que é e como se faz.


Recife: Ed. UFPE, 1983.

MARCUSCHI, L. A. Produção textual, análise de gêneros e


compreensão. São Paulo: Parábola, 2008.

1. Entrando em contato com os


gêneros acadêmicos

Dentre os vários gêneros textuais existentes - e não é possível elencar


todos já que eles são tantos quantas são as atividades sociais,
linguísticas e discursivas (MARCUSCHI, 2002), separamos para
trabalhar nesta disciplina os chamados gêneros acadêmicos, isto é,

24«
gêneros de texto que são os mais solicitados durante a realização de
um curso de graduação, por exemplo.

A diversidade de gêneros acadêmicos é muito grande, por esta razão,


selecionamos apenas alguns gêneros textuais escritos e de demanda
frequente entre os professores. Quais são eles? Fichamento, resumo e
resenha de um texto lido, projeto de monografia e a monografia
propriamente dita. Também iremos estudar alguns gêneros solicitados
em congressos científicos, como artigo e pôster. Em todos eles, vão
estar em evidência as chamadas formas de citação da palavra alheia. E
como já foi bastante divulgado na disciplina Introdução à
Linguística, quando usamos o que foi escrito por uma outra
pessoa, de modo literal, sem lhes darmos o devido crédito,
estamos praticando um crime que se chama “plágio”. Vamos,
portanto, tomar bastante cuidado aos nos referirmos ao que existe
sobre qualquer que seja o tema enfocado na literatura existente, quer
disponibilizada em meio tradicional, quer através de novas mídias
interativas.

Voltando aos chamados gêneros acadêmicos, você sabe o que é um


fichamento? Qual a diferença entre resumo e resenha? Como se faz
uma monografia? Pois bem, sempre que entramos em uma nova
esfera de atividade humana, deparamo-nos com textos com os
quais não temos muita familiaridade. É natural, então, que o aluno
de graduação não conheça bem as características dos gêneros textuais
cuja produção lhe é solicitada durante o curso. Um exemplo claro é o
da resenha, pois, no Ensino Médio em geral, o que se pede são
fichamentos e resumos de textos lidos. Monografia, muitos professores
apenas falam dela, mas efetivamente no Ensino Médio não existe a

»25
tradição de se pedir monografias para as disciplinas, menos ainda uma
monografia como conclusão de curso2.

Os gêneros acadêmicos, muitas vezes, possuem o mesmo nome que


gêneros de outras esferas de atividade. Mas, uma resenha sobre um
filme escrita para um jornal possui características distintas de uma
resenha sobre um livro escrita para uma revista científica, por
exemplo. Apesar de ambas apresentarem algum tema resumidamente
e de forma crítica, a primeira é mais valorativa, enquanto a segunda é
mais analítica. Na resenha jornalística, também são mais comuns os
jargões da área; já na resenha acadêmica, as citações de trechos da
obra são recorrentes, apenas para ficar em algumas poucas diferenças.

Mesmo na esfera acadêmica, os gêneros podem ser conhecidos pelo


mesmo nome, apesar de possuírem algumas diferenças entre eles,
como é o caso do resumo. O resumo de um livro que contém 650
páginas é mais extenso que um resumo de um artigo científico que
contém 10 páginas. O primeiro condensa as principais ideias de uma
obra, de um capítulo de um livro etc.; enquanto o segundo tem a
característica de apresentar de forma bastante sucinta a pesquisa
científica que será exposta mais detalhadamente em seguida.

2
Para refletir: você, todo dia, tem contato com os mais diversos gêneros
textuais: notícias jornalísticas, folhetos publicitários, receitas culinárias, lista de
compras, orações, cartas, bulas de remédios e tantos outros mais. Mas, apesar
da diversidade de gêneros, é fácil reconhecê-los quando estamos em contato
diário com eles, e isso orienta nossas trocas comunicativas nas diversas
situações sociais nas quais nos inserimos. Na esfera universitária também
ocorre o mesmo: conhecer os gêneros acadêmicos também vai ajudá-lo(a) a
produzir seus textos e a compreender mais eficientemente os textos que deverá
ler. Então, agora, vamos solicitar que vocês prestem bastante atenção aos tipos
e gêneros que usam no cotidiano, especialmente no contexto acadêmico,
começando a estabelecer diferenças nos escritos que lemos ou nos escritos que
produzimos.

26«
Em suma: como já dissemos, iremos conhecer melhor, nesta disciplina,
os principais gêneros acadêmicos que farão parte de suas atividades
universitárias: fichamento, resumo, resenha, projeto de pesquisa,
relatório de pesquisa, artigo, pôster e monografia, apresentando
modelos para cada um desses gêneros na seção 6. Também iremos
abordar alguns aspectos mais formais dos gêneros acadêmicos, tais
como formatação, sistemas de citação e referências, uso de tabelas,
gráficos, quadros e figuras, tudo de acordo com a Associação Brasileira
de Normas Técnicas (ABNT). Além disso, iremos dar algumas dicas de
cuidados que você deve ter com a escrita acadêmica e com a escolha
do tema de sua pesquisa3.

É necessário dizer que a escrita não resulta de um processo linear, ou


seja, um processo em que há uma etapa de pré-escrita ou de
planejamento, seguida de uma etapa de redação propriamente dita,
para findar em uma etapa de finalização da redação, com o uso de
procedimentos de revisão. A escrita permite, a quem escreve, um
processo de relação com a linguagem de idas e vindas. Todos nós, ao
escrevermos um texto qualquer podemos, em maior ou menor grau,

3
Veja, na internet, exemplo de:
Resenha de filme (Tropa de Elite)
Disponível em: <http://pt.shvoong.com/social-sciences/sociology/1710392-
resenha-cr%C3%ADtica-filme-tropa-elite/>.
Resenha de livro (A Pragmática)
Disponível em: <http://rle.ucpel.tche.br/php/edicoes/v10n1/10Resenhas.pdf>
Resumo de livro (Dona Flor e seus dois maridos)
Disponível em: <http://www.resumosdelivros.com.br/j/jorge-amado/dona-flor-
e-seus-dois-maridos/>.
Resumos de artigos científicos (2º Simpósio de Hipertexto e Tecnologias na
Educação)
Disponível em: <http://www.ufpe.br/nehte/simposio2008/livro-resumos-
simposio2008.pdf>.

»27
acrescentar ou retirar ou modificar ou ainda substituir partes do que
escrevemos, especialmente quando entra em cena a alternância de
papéis que assumimos neste processo: escritor e leitor.

Por isso, é tão importante exercitar não só a leitura, como também a


escrita. Quanto mais escrevemos, mais nos apropriamos das
características formais e funcionais dos tipos e gêneros. Mas não se
trata, insistimos, de um exercício mecânico, ingênuo. Exercitar aqui é
apropriar-se dos modos pelos quais um certo gênero acadêmico se
constitui: qual a sua história, quais as propriedades formais, para que
serve, por exemplo. Escrever uma resenha pela primeira vez é uma
ação com um grau de dificuldade sem dúvida muito maior do que
quando o fazemos pela décima quinta vez, e após tomarmos por base
as observações de colegas e de professores, bem como de outros
textos produzidos por autores experientes.

Esperamos, então, que você possa, ao final do período letivo, ter mais
familiaridade com os gêneros acadêmicos, facilitando sua leitura e
produção textual durante o curso de graduação em Letras.

2. Os principais gêneros
acadêmicos

Agora que você já sabe quais são os gêneros textuais mais recorrentes
em um curso de graduação em Letras (e de Ciências Humanas em
geral) - fichamento, resumo, resenha, projeto de pesquisa, relatório de

28«
pesquisa, artigo, pôster e monografia, conheça a definição desses e de
outros gêneros acadêmicos/científicos na tabela abaixo (algumas são
dadas pela ABNT – Associação Brasileira de Normas Técnicas – NBR
14724:2005):

GÊNERO DEFINIÇÃO

Artigo Texto que apresenta os resultados de uma pesquisa ou


estudo, destinado a ser publicado em periódicos,
revistas científicas ou anais de eventos.

Dissertação Documento que representa o resultado de um trabalho


experimental ou exposição de um estudo científico
retrospectivo, de tema único e bem delimitado em sua
extensão, com o objetivo de reunir, analisar e
interpretar informações. Deve evidenciar o
conhecimento da literatura existente sobre o assunto e
a capacidade de sistematização do candidato. É feito
sob a coordenação de um orientador (doutor), visando
a obtenção do título de mestre.

Ensaio Texto que expõe as ideias do autor sobre determinado


tema teórico. É menos formal que o artigo e não está
baseado em pesquisa empírica.

Fichamento Texto que serve para facilitar a localização de estudos


realizados sem que o aluno precise voltar ao texto
original, podendo conter citações diretas, indiretas,
comentários pessoais e referências a outros estudos.

Monografia Documento que representa o resultado de estudo,


devendo expressar conhecimento do assunto escolhido,
que deve ser obrigatoriamente emanado da disciplina,
módulo, estudo independente, curso, programa e
outros ministrados. Deve ser feito sob a coordenação
de um orientador.

Projeto de Documento que descreve os planos, fases e


pesquisa procedimentos de um processo de investigação

»29
científica a ser realizado.

Relatório Documento que relata formalmente os resultados ou


de pesquisa progressos obtidos em investigação de pesquisa e
desenvolvimento ou que descreve a situação de uma
questão técnica ou científica.

Resenha Texto que apresenta um tema ou um livro de forma


sintética e com avaliação crítica. É uma espécie de
resumo crítico.

Resumo Texto que apresenta as ideias gerais de um tema ou de


uma obra, ou de parte destas. Difere-se da resenha,
por não trazer críticas e avaliações sobre o assunto
resumido. Os resumos de artigos, monografias etc.
apresentam de forma bastante concisa o trabalho que
será exposto integralmente em seguida.

Pôster Texto exposto em banners, que ficam fixados em


eventos científicos, apresentando as ideias centrais de
uma pesquisa.

Tese Documento que representa o resultado de um trabalho


experimental ou exposição de um estudo científico de
tema único e bem delimitado. Deve ser elaborado com
base em investigação original, constituindo-se em real
contribuição para a especialidade em questão. É feito
sob a coordenação de um orientador (doutor) e visa a
obtenção do título de doutor ou similar.

3. Redação dos gêneros


acadêmicos

Os gêneros acadêmicos são caracterizados por uma linguagem mais


formal; o cuidado, portanto, com a norma culta se faz necessário.
Muitas vezes, o autor de um trabalho acadêmico importante (uma

30«
tese) prefere até contratar um revisor para evitar que o texto seja
publicado com “erros”. Outras vezes, o texto não apresenta “erros”,
mas tem um estilo que dificulta a clareza das ideias. Eis a razão pela
qual, desde a disciplina Introdução à Linguística, falamos da
importância do uso da norma culta. Você deve ter notado que todo
esse material instrucional, inclusive por força de lei, já está adaptado
às novas normas ortográficas. As palavras linguística, frequente e
outras mais, estão aparecendo sem trema, assim como a palavra ideia
não está mais sendo grafada com acento...

Existe um texto bastante divulgado na internet – cuja autoria ora é


dada como desconhecida, ora ao prof. João Pedro, da UNICAMP – que
traz, de forma bem-humorada, algumas dicas de como escrever (ou de
como não escrever) seus trabalhos. É claro que você poderá não seguir
à risca essas dicas, pois você tem seu próprio estilo e, em certos casos,
é necessário infringir as regras para conseguir dizer o que queremos.
Mas, esteja bem consciente e seguro na hora de ousar.

A versão que apresentamos aqui foi extraída da página da web


http://falabonito.wordpress.com/2006/09/29/ (porém existem
dezenas de outras na internet – algumas com menos dicas, algumas
com outros exemplos, algumas com outra ordem). Polêmicas à parte,
eis o texto:

1. Deve evitar ao máx. a utiliz. de abrev., etc.

2. É desnecessário fazer-se empregar de um estilo de escrita


demasiadamente rebuscado. Tal prática advém de esmero
excessivo que raia o exibicionismo narcisístico.

»31
3. Anule aliterações altamente abusivas.

4. não esqueça as maiúsculas no início das frases.

5. Evite lugares-comuns como o diabo foge da cruz.

6. O uso de parêntesis (mesmo quando for relevante) é


desnecessário.

7. Estrangeirismos estão out; palavras de origem portuguesa estão


in.

8. Evite o emprego de gíria, mesmo que pareça nice, sacou??…


então valeu!

9. Palavras de baixo calão podem transformar o seu texto numa m…

10. Nunca generalize: generalizar é um erro em todas as situações.

11. Evite repetir a mesma palavra, pois essa palavra vai ficar uma
palavra repetitiva. A repetição da palavra vai fazer com que a
palavra repetida desqualifique o texto onde a palavra se encontra
repetida.

12. Não abuse das citações. Como costuma dizer um amigo meu:
“Quem cita os outros não tem ideias próprias”.

13. Frases incompletas podem causar

14. Não seja redundante, não é preciso dizer a mesma coisa de


formas diferentes; isto é, basta mencionar cada argumento uma
só vez, ou por outras palavras, não repita a mesma ideia várias
vezes.

15. Seja mais ou menos específico.

16. Frases com apenas uma palavra? Jamais!

17. A voz passiva deve ser evitada.

18. Utilize a pontuação corretamente o ponto e a vírgula, pois a frase


poderá ficar sem sentido especialmente será que ninguém mais

32«
sabe utilizar o ponto de interrogação

19. Quem precisa de perguntas retóricas?

20. Conforme recomenda a A.G.O.P., nunca use siglas desconhecidas.

21. Exagerar é cem milhões de vezes pior do que a moderação.

22. Evite mesóclises. Repita comigo: “mesóclises: evitá-las-ei!”

23. Analogias na escrita são tão úteis quanto chifres numa galinha.

24. Não abuse das exclamações! Nunca!!! O seu texto fica horrível!!!!!

25. Evite frases exageradamente longas, pois estas dificultam a


compreensão da ideia nelas contida e, por conterem mais que
uma ideia central, o que nem sempre torna o seu conteúdo
acessível, forçam, desta forma, o pobre leitor a separá-la nos seus
diversos componentes de forma a torná-las compreensíveis, o que
não deveria ser, afinal de contas, parte do processo da leitura,
hábito que devemos estimular através do uso de frases mais
curtas.

26. Cuidado com a hortografia, para não estrupar a língúa


portuguêza.

27. Seja incisivo e coerente, ou não.

28. Não fique escrevendo (nem falando) no gerúndio. Você vai estar
deixando seu texto pobre e estar causando ambiguidade, com
certeza você vai estar deixando o conteúdo esquisito, vai estar
ficando com a sensação de que as coisas ainda estão
acontecendo. E como você vai estar lendo este texto, tenho
certeza que você vai estar prestando atenção e vai estar
repassando aos seus amigos, que vão estar entendendo e vão
estar pensando em não estar falando desta maneira irritante.

29. Outra barbaridade que tu deves evitar, tchê, é usar muitas


expressões que acabem por denunciar a região onde tu moras...
nada de mandar esse trem… vixi... entendeu bichinho?

30. Não permita que seu texto acabe por rimar, porque senão
ninguém irá aguentar já que é insuportável o mesmo final

»33
escutar, o tempo todo sem parar.

Além dessas dicas bem-humoradas, podemos acrescentar algumas


outras:

• Evitar parágrafos muito extensos, pois a clareza das ideias pode ficar
comprometida.

• Evitar parágrafos soltos, sem coesão e coerência, que deixam o texto


sem “cadência”.

• Evitar adjetivações desnecessárias. Adjetivar é valorar, classificar: o


que pode ser um risco.

• Evitar palavras estrangeiras e neologismos quando já houver termos


equivalentes em português.

• Evitar citações longas e em outros idiomas (neste último caso, o


trecho original deve vir em nota de rodapé).

• Evitar termos e expressões que denotem “chute teórico”, como, por


exemplo, “diversos fatores contribuem para...” (que fatores?), “para
certa corrente do pensamento...” (que corrente?), “há autores que
defendem...” (que autores?) etc.

Mesmo que a produção de um texto não seja uma atividade cognitiva


linear, é interessante levar em conta o que alguns linguistas observam
como sendo partes de um processo redacional:

• O planejamento – seleção de um tema, atribuição de um objetivo a


este projeto de escrita, especulação sobre o que o leitor está

34«
esperando do texto, estabelecimento de uma espécie de “arquitetura”
textual (se haverá divisões, quais poderiam ser e em que sequência ),
por exemplo.

• A textualização – estruturação linguística do programa ou projeto


elaborado na fase precedente ou de planejamento.

• Os procedimentos revisionais – atividades de adequação do


escrito ao que foi estabelecido como projeto de escrita. Tais
procedimentos englobam ainda a busca de incorreções, de produção de
um estilo, da detecção de ambiguidades, da presença de lacunas, do
acréscimo de informações necessárias à finalização do projeto de
escrita com êxito, entre uma gama bastante variada de atividades
resultantes da alternância de posição de escritor para leitor de seu
próprio texto.

4. A escolha do tema para pesquisa

Definir o assunto a ser objeto do trabalho acadêmico (TA) é sempre um


momento complexo, pois não se trata apenas de exploração dos
conhecimentos acumulados, envolve também afastar dos estudos
infinitas possibilidades práticas e decidir por apenas uma delas. Diante
das infinitas opções, qual escolher? Essa pergunta é feita tanto por um
catedrático experiente, quanto por um estudante de graduação, uma
vez que envolve uma resposta complexa.

»35
Antes de mais nada, um fator a considerar é o tempo disponível
para a realização do trabalho, já que há sempre o estabelecimento
de um prazo para a entrega do trabalho acadêmico.

Para a escolha do tema, há algumas dicas técnicas:

1) A primeira delas é desmistificar a questão da neutralidade do


pesquisador. Não tem quem suporte escrever sobre um tema com o
qual não tem afinidade, prazer, alegria. Não cabe transformar o
trabalho acadêmico numa atividade formal, burocrática, como uma
obrigatoriedade acadêmica a mais a ser cumprida por nós. Para isso,
uma sugestão é transformar essa atividade em um prazer,
principalmente por ela ser, talvez, a única atividade acadêmica na qual
o aluno tem plena liberdade para pensar, criar e desenvolver ideias
próprias. Quem geralmente escolhe o tema é você, aluno. Um
professor pode impor-lhe um tema, mas as relações pedagógicas
contemporâneas “apostam” no diálogo, na negociação entre as partes.
Por tudo isso, afirmamos que a atividade de confecção de uma
monografia de final de curso é fundamental para estimular o aluno a
trabalhar a necessária organização mental, requisito fundamental para
um bom desempenho profissional. Escolher o tema, recortá-lo e
desenvolvê-lo é um ótimo exercício para desenvolver a organização
mental como habilidade profissional.

2) Outra dica: evite se colocar em situações difíceis. Por exemplo,


monografia de final de curso não é trabalho acadêmico que
pede a produção de uma tese, uma nova abordagem sobre

36«
determinado tema. Isso só se exige em um doutorado. Não por isso
a monografia deve ser a mera reprodução de ideias alheias. Cabe ao
autor da monografia enfrentar o tema escolhido dialogando com os
autores pesquisados, e não apenas reproduzindo as ideias lidas como
se fossem argumentos de autoridade.

3) Não cabe confundir título da pesquisa com tema. O título pode


ser mudado até no dia do depósito final do TA. O tema é o conteúdo, a
essência, o assunto, a forma como foi trabalhado, os questionamentos
enfrentados, o marco teórico explorado e a metodologia utilizada.

4) Para a escolha do tema, o aluno deve identificar elementos de


motivação, de atração pelo tema. Trata-se da indispensável: ascese
erótica, disponibilidade cognitiva para com o tema. Procure
identificar um debate, uma discussão, uma aula, uma leitura,
uma história, qualquer situação que atraia sua atenção de
forma diferenciada, peculiar, que lhe desperte a curiosidade a
ponto de você querer estudar para aclarar sua mente quanto ao tema.

Já para a delimitação do tema, há as seguintes técnicas:

1) Delimitação devido ao autor - exemplo: Análise de Discurso


segundo Dominique Maingueneau; delimitação devido ao tempo
(época) - exemplo: discursos políticos da época da ditadura, de 1964-
1986; delimitação devido ao espaço (lugar) - exemplo: discursos
políticos da ditadura brasileira em Pernambuco; delimitação pela
teoria - exemplo: dialogismo e a Filosofia da Linguagem (obs.: essas
hipóteses não são excludentes; podemos mesclá-las).

»37
2) Também auxilia o processo de delimitação do tema, a elaboração
de questionamentos, ou seja, de problematizações sobre o tema
escolhido. Todo tema contém vários questionamentos a serem
enfrentados. É a famosa pergunta que fazemos sobre a realidade e
para a qual a realização da pesquisa busca uma resposta. Se essa
resposta é dada antecipadamente, estamos diante da formulação de
uma hipótese.

3) Identificar as fontes de informações, ou seja, como você


pretende trabalhar o tema também auxilia na delimitação deste. No
momento da escolha do tema, portanto, cabem as seguintes
indagações: vou partir de um caso concreto para elaborar reflexões
sobre o tema? Ou vou partir de estudos teóricos para analisar uma
situação concreta? Há ainda que se pensar sobre que técnicas e
instrumentos de pesquisa serão utilizados para a obtenção dos dados a
serem analisados: pesquisa bibliográfica; pesquisa documental;
entrevista; questionários, observação.

Um recurso que auxilia tanto a escolha quanto a delimitação do tema é


a elaboração de um roteiro de desenvolvimento. Trata-se de
organizar um sumário, projetar o caminho lógico a ser desenvolvido
no TA. Esse roteiro será o que você acha suficiente para seu leitor
compreender e acompanhar a sequência de informações até a
conclusão do TA.

Resumindo: um bom tema de pesquisa deve apresentar, portanto,


algumas qualidades:

38«
a) o seu estudo deve ser viável no tempo disponível para estudá-lo e
em relação aos recursos necessários para desenvolvê-lo;

b) responder a uma pergunta/problema importante sobre a realidade


circundante. E formular bem e adequadamente um problema de
pesquisa não é fácil. Diremos, ainda, que o modo como o problema
é formulado determina o sucesso da pesquisa;

c) tratar de modo original ou ao menos buscar um foco diferente de


modo a produzir um novo conhecimento ou apresentar novos
problemas.

Após a escolha do tema e do problema de pesquisa , é hora de


formularmos hipóteses que são, como já vimos, respostas antecipadas
à pergunta que fizemos sobre a realidade a ser analisada/pesquisada.
Trata-se, portanto, de uma resposta que se apresenta como uma
solução ou explicação possível para o problema levantado, as quais só
serão confirmadas ou refutadas ao final da pesquisa.

Uma observação importante é que nós não partimos do zero para


formular um problema de pesquisa ou formular uma hipótese, por
exemplo. As nossas leituras sobre o que já se disse ou já se fez no
campo escolhido são fundamentais para que saibamos qual a melhor
abordagem, qual a teoria mais adequada, para responder à pergunta
que fizemos sobre a realidade circundante. E uma vez escolhida a
teoria, os passos a seguir também estão praticamente definidos.

Há muito mais a se dizer sobre o que é pesquisa, como fazer a


diferenciação entre tema e problema, como formular objetivos gerais e
específicos, qual a relação entre teoria e método escolhidos etc, mas

»39
optamos por levá-los a observar as pesquisas já realizadas e que são
do domínio público. Nesta direção, remetemos a todos ao site do
programa de Pós-graduação em Letras da UFPE. Lá vocês encontrarão,
em pdf, a versão integral de teses e dissertações defendidas no
programa nos últimos 4 anos. O endereço é: www.ufpe.br/pgletras.

5. Aspectos formais e normativos:


formatação, citações e referências
bibliográficas

A ABNT, Associação Brasileira de Normas Técnicas, elaborou normas


para apresentação de trabalhos acadêmicos que são utilizadas pela
maioria das universidades brasileiras e das publicações científicas
realizadas em nosso país. Essas normas estão: na NBR 14724:2005,
que padroniza a formatação e estrutura de monografias (e demais
trabalhos de conclusão de curso), dissertações e teses; na NBR
10520:2002, que indica como fazer citações em documentos; e na NBR
6023:2002, que normatiza a elaboração de referências bibliográficas.

Alguns eventos acadêmicos, periódicos e revistas científicas, contudo,


podem sugerir outras normas para publicação dos trabalhos, assim
como outras universidades também podem adotar padrões normativos
para os trabalhos de conclusão de curso diferentes dos preconizados
pela ABNT. O importante é consultar previamente essas normas para
elaborar seu trabalho adequadamente.

40«
A seguir, vamos tratar das normas da ABNT para formatação de
trabalhos acadêmicos e, nas próximas seções, também das normas de
citação e referência.

5.1 Formatação

Papel Formato – A4;


Cor – branco.

Fonte Tamanho – 12 para o texto e 10 para citações com


mais de três linhas, notas de rodapé e outros;
Cor da fonte – preta;
Tipo da fonte – a norma da ABNT não estabelece o
tipo da fonte, porém a mais usual é a Times New
Roman (o tipo Arial também vem sendo aceito).

Margens Esquerda e Superior – 3 cm;


Direita e Inferior – 2 cm.
Obs.: As citações com mais de 3 linhas devem
estar recuadas em 4 cm da margem esquerda.

Espacejamento Texto – espaço 1,5 cm;


(espaço de entre
Citações com mais de 3 linhas, rodapé etc. –
linhas) espaço simples;
Títulos – dois espaços duplos;
Referências ao final do trabalho – espaço simples e
entre si, duplo.

Alinhamento Títulos com indicativos numéricos – alinhamento à


esquerda;
Títulos sem indicativos numéricos – alinhamento

»41
centralizado;
Corpo do texto – alinhamento justificado.

Numeração das Conta-se a partir da folha de rosto, mas numera-se


Páginas com algarismos arábicos apenas a partir da
primeira folha da introdução.
Obs.: A numeração deve estar localizada na margem
superior direita, a 2 cm da superior e a 2 cm da
direita.

5.2 Tipos e normalização de


citações

Citações são referências a textos de outros autores, podendo ser do


tipo direta ou indireta. Quando utilizadas sem exageros, servem para
sustentar o que estamos argumentando ou para ilustrar nosso
pensamento, enriquecendo o texto. É uma “autoridade teórica”. Porém,
o abuso das citações tem efeito contrário: tornam o texto “pobre”, pois
devemos ser capazes de elaborar nosso próprio texto e exprimir nossas
próprias ideias.

• Citações indiretas

São paráfrases do texto original. O pensamento do autor do texto fonte


é expresso com as nossas próprias palavras. Devemos, contudo,
sempre indicar o sobrenome do autor e o ano da obra; já a página
onde se encontra a referência pode ser, ou não, indicada.

42«
Exemplos:

Segundo Weedwood (2002, p. 7), é necessário retomar desde


os gregos e romanos até Bakhtin para saber o que é a
linguística.

Obs: O sobrenome do autor é escrito em caixa baixa, pois integra o texto, ou


seja, está fora dos parênteses. A data da obra e a página vêm logo em seguida
ao sobrenome, entre parênteses, lembrando que a referência da página é
elemento facultativo.

Para saber o que é a linguística, deve-se voltar aos gregos e romanos


até chegar a Bakhtin (WEEDWOOD, 2002).

Obs: O sobrenome do autor do texto citado é escrito em caixa alta, pois está
dentro dos parênteses (que apresenta também a data da referida obra). A
referência vem apenas após a citação. Como a numeração da página é
facultativa, esta não foi colocada.

• Citações diretas

São as citações que transcrevem ipsis literis as palavras do autor. Se a


citação tiver até três linhas, deve vir entre aspas, seguindo a mesma
formatação do texto onde está inserida. Se a citação ultrapassar três
linhas, deve-se recuá-la 4 cm, diminuir a fonte para tamanho 10 e
utilizar o espacejamento simples. Não devem ser usadas aspas, nem
itálico (a não ser que estejam no texto original). Em ambos os casos, a
indicação da página é obrigatória.

Exemplos:

De acordo com Weedwood (2002, p. 7), “para transmitir


noções bem fundadas do que seja a linguística, é preciso
refazer um percurso mais longo e completo, desde os
gramáticos gregos e romanos até Bakhtin”.

»43
Obs: A citação tem até 3 linhas, então vem entre aspas e no corpo do texto.
Como o nome do autor está no corpo do texto (em caixa baixa), apenas a data
e a página do trecho referido vêm entre parênteses.

Além dos efeitos da linguística sobre outras disciplinas,


a crescente produção linguística e sua fecunda influência sobre o ensino de
língua no Brasil não podem ser subestimadas, assim como não se podem
ignorar os desafios que se apresentam a pesquisadores e professores que
encaram a língua(gem) como atividade psicossocial, cuja nota dominante e
inerente é a transformação (WEEDWOOD, 2002, p. 7).

Obs.: A citação tem mais que 3 linhas, então está recuada, sem aspas, com
fonte em tamanho 10 e espacejamento simples. Como o nome do autor não
está no corpo do texto, deve aparecer entre parênteses, em caixa alta, junto à
data e à indicação da página referida, após a citação.

IMPORTANTE

1) Apresentamos aqui o sistema autor-data de indicação das fontes


bibliográficas. Existe também o sistema numérico (em que as fontes
são numeradas em ordem crescente e em algarismos arábicos no
próprio texto, sendo indicadas de forma completa em notas de rodapé
ou ao final do texto).

Ex.: Segundo Faraco, “a linguística é a ciência que tem como objeto a


linguagem verbal ou as línguas naturais1.”
Obs.: consulte a próxima seção para saber como colocar a referência
bibliográfica completa no rodapé ou ao final do texto.

2) Nas citações diretas ou indiretas a uma mesma obra escrita por


mais de um autor, se os sobrenomes dos autores estiverem fora dos
parênteses, deve-se colocar o conetivo “e” entre eles. Mas se os
sobrenomes dos autores estiverem dentro dos parênteses, deve-se
separá-los com ponto-e-vírgula.

Ex.: Charaudeau e Maingueneau (2004) afirmam que a análise do discurso foi


mais desenvolvida na França.
Ex.: “A França foi um dos maiores centros de desenvolvimento da análise do
discurso” (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p. 13).

44«
3) Nas citações indiretas, se um mesmo tema foi abordado por vários
autores, o sobrenome e a data de cada uma das obras ficam
separados com ponto-e-vírgula.

Ex.: A pragmática vem sendo retomada e revista no início do século XXI sob
uma perspectiva mais otimista (LEVINSON, 2007; ARMENGAUD, 2006;
MARCONDES, 2005; OLIVEIRA, 2001).

4) Não se esqueça de colocar reticências entre colchetes nos trechos


suprimidos do texto original transcrito.

Ex.: A linguística [...] floresceu a partir de 1950.

5) Caso haja erros de grafia ou de gramática, deixe o texto como está


no original e coloque a expressão “sic” entre parênteses.

Ex.: Esse é o trajeto aqui oferecido, para que os leitores possa (sic) fazer ideia
exata do motivo [...].

6) Se você está transcrevendo uma citação de um autor que está no


texto de um segundo autor, utilize a expressão “citado por” ou “apud”
(esta deve vir em itálico porque está em latim).

Ex.: “Nenhuma enunciação verbalizada pode ser atribuída exclusivamente a


quem a enunciou” (BAKHTIN apud WEEDWOOD, 2002, p. 153).
Obs.: Evite, contudo, usar esse tipo de citação, preferindo citar
diretamente o autor original.

7) O mais importante é que haja uma uniformidade, um padrão


estético/normativo no seu trabalho. Por exemplo, se você optou por
não colocar a referência de página nas citações indiretas, mantenha
esta escolha durante todo o texto.

»45
5.3 Normalização de referências
bibliográficas

Nas referências bibliográficas, deve constar toda publicação que foi


indicada durante o trabalho. Você deve ficar bem atento principalmente
à pontuação, ao uso de letras maiúsculas, ao uso do negrito e a
sequência dos dados – autor, título, subtítulo, local, editora e data são
informações imprescindíveis.

Abaixo, disponibilizamos alguns exemplos de referências:

livro de um WEEDWOOD, B. História concisa da


único autor Linguística. São Paulo: Parábola, 2002.

livro de 2 ou 3 CHARAUDEAU, P.; MAINGUENEAU, D. Dicionário


autores de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto,
2004.

livro de 4 WODAK, R. et al. The discursive construction of


autores ou national identity. Edimburgo: Edinburgh UP,
mais 1999.

dissertação SOARES, I. F. O Professor e o texto -


não publicada Desencontros e esperanças: um olhar sobre o
fazer pedagógico de professores de Português do
ensino médio e suas concepções de linguagem.
Recife: UFPE, 2006. Dissertação (Mestrado em
Letras e Linguística).

capítulo de MARCUSCHI, L. A. Gêneros textuais: definição e


livro funcionalidade. In: DIONISIO, A.P.; BEZERRA; M.
A.; MACHADO, A. R. (Orgs.). Gêneros textuais &

46«
ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002, p. 19-36.

artigo em LAUERBACH, G.; AIJMER, K. Argumentation in dialogic


periódico media genres: talk shows and interviews. Journal of
Pragmatics, Amsterdam, v.3, n.8, p. 1333-1341, ago.
2007.

artigo em anais ROJO, R. Interação em sala de aula e gêneros


de congressos escolares do discurso: um enfoque enunciativo. In:
CONGRESSO NACIONAL DA ABRALIN, 2., 1999,
Florianópolis. Anais... Florianópolis: UFSC, 2000. p.
75.

artigo em HABERMAS, J. Nação ferida ou sociedade em


jornal aprendizado. Folha de São Paulo, São Paulo, 29 jul.
1989.

artigo em SALGADO, M. G. Trabalhos de face em interações


periódico profissionais. Linguagem em (Dis)curso,
eletrônico Tubarão, v.7, n.1, p. 9-26, jan./abr. 2007.
Disponível em:
<http://www.unisul.br/site/linguagem/0701/3%20
art%201%20(salgado).pdf>. Acesso em 20 jul.
2007.

artigo em SILVA, J. P. A inexistência da flexão de gênero


internet nos substantivos da língua portuguesa.
Disponível em:
<http://www.filologia.org.br/pub_outras/sliit01/sliit
01_09-28.html>. Acesso em: 20 jul. 2007.

documento em ALMANAQUE Abril: sua fonte de pesquisa. São


CD-ROM Paulo: Abril, 1998. 1 CD-ROM.

filme longa O CARTEIRO e o poeta. Direção: Michael Radford.


metragem em Produção: Mário Cecchi Gori. Intérpretes: Massimo
DVD Troisi; Mario Ruoppolo; Maria Grazia Cucinotta.
Roteiro: Anna Paviganano. Música: Luis Enriquez
Bacalov. Itália: Miramax Films, 1994. 1 DVD
(109min), widescreen, color. Produzidor por Blue
Dahlia Productions. Baseado em livros de Antonio
Skarmeta.

fotografia em SALGADO, S. Trabalhadores. 1971. 28

»47
papel fotografias, color. 17,5 cm x 13 cm.

IMPORTANTE

1) A lista de referências bibliográficas é organizada pelos


sobrenomes dos autores em ordem alfabética.

Obs.: A abreviatura dos primeiros nomes é facultativa quando não há


autores homônimos.

2) Quando houver mais de uma obra de um mesmo autor, pode-se


substituir o nome do autor por ______ (6 espaços sublinhados).

Ex.: BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo:


Hucitec, 2004.

______. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1984.

3) Quando houver duas obras de um mesmo autor datadas do


mesmo ano, diferenciar as obras acrescentando letra minúscula, por
ordem alfabética, ao ano de publicação.

Ex: CHARAUDEAU, P. Discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2006a.

______. Discurso político. São Paulo: Contexto, 2006b .

6. Conhecendo melhor alguns


gêneros acadêmicos

Nesta seção, iremos focalizar os gêneros acadêmicos com os quais


você terá mais contato durante seu curso de graduação: fichamento,
resumo, resenha, artigo, pôster, projeto de pesquisa, relatório de

48«
pesquisa e monografia. Apresentaremos suas principais características,
finalidades, componentes curriculares etc., conforme a ABNT (NBR
10520:2002, NBR 6023:2002, NBR 6022:2003, NBR 6028:2003 e NBR
14724:2005). Também disponibilizaremos exemplos desses gêneros
acadêmicos (alguns são arquivos cedidos gentilmente por Morgana
Soares, Simone Reis, Siane Góis, Joseane Brito, Jaciara Gomes,
Carolina Pires e Alice Melo - e sua orientadora Cristina Teixeira; já
outros são links para exemplos encontrados na internet).

6.1 Fichamento, Resumo e Resenha

Esses gêneros têm em comum a característica de condensar as


principais ideias de um texto, de uma obra, de uma teoria. Mas cada
um tem suas especificidades de propósitos comunicativos, de
componentes estruturais etc.

Vamos conhecer melhor cada um deles?

6.1.1 Fichamento

Para que você localize seus estudos realizados, sem precisar voltar ao
texto original, o gênero mais adequado é o fichamento, também
conhecido como ficha de leitura.

»49
O fichamento deve conter indicação bibliográfica, citações diretas,
indiretas, comentários pessoais e referências a outros estudos. O texto
pode ser estruturado em tópicos, mas não se esqueça de sempre
localizar a página do texto original na qual se encontra a informação
retirada.

Componentes de um fichamento

a) Indicação da bibliografia – conforme as normas da ABNT


(confira seção 5.3)

b) Resumo – com as principais ideias da obra.

c) Citações – diretas ou indiretas, conforme indica a ABNT (confira


seção 5.2)

d) Comentários e referências a outros estudos – com sua


avaliação e crítica sobre o texto e com ideias novas que surgiram
com a leitura (opcional).

Exemplo de fichamento

Consulte a versão online da nossa disciplina


(www.ufpe.br/cead/moodle).

50«
6.1.2 Resumo

É o gênero que traz uma apresentação concisa sobre um tema ou um


texto. Após a leitura da obra a ser resumida, você deve elaborar um
texto breve, com suas próprias palavras, onde ideias secundárias e
detalhes são suprimidos para enfatizar a ideia essencial da obra (seja
sua própria pesquisa ou um livro de outro autor). O resumo deve ser
bem estruturado logicamente para que se torne compreensível.

Podemos distinguir dois tipos de resumos: aqueles que apresentam os


trabalhos de conclusão de curso (TCC) ou que são elaborados para
apreciação da pesquisa em congressos, por exemplo, e o acadêmico.
Alguns autores, contudo, fazem outras distinções, como resumo
indicativo, resumo informativo, resumo indicativo/informativo, resumo
expandido, resumo técnico etc.

Nos resumos que fazem parte das monografias, dissertações e teses ou


que são elaborados para um evento ou publicação científica, você deve
fazer uma apresentação panorâmica da pesquisa, indicando o tema, a
afiliação teórica, os objetivos, a metodologia e se quiser, ou for
necessário, os resultados da pesquisa. Lembre-se, contudo, de que o
texto deve ser bastante conciso. Para a monografia, por exemplo, a
ABNT sugere que o resumo contenha, no máximo, até 250 palavras.

»51
Exemplo de resumo de TCC

Consulte a versão online da nossa disciplina


(www.ufpe.br/cead/moodle).

Exemplo de resumo para eventos acadêmicos/científicos

Consulte a versão online da nossa disciplina


(www.ufpe.br/cead/moodle).

Já a extensão dos resumos acadêmicos é determinada por seu


professor e/ou por sua capacidade de síntese. Esse tipo de resumo
(onde você deve apenas apresentar as principais ideias de uma obra ou
assunto) é um exercício didático, solicitado nos cursos de graduação e
pós-graduação como forma de acompanhar o aprendizado do aluno e
para aperfeiçoar a sua habilidade em condensar um determinado tema.

Exemplo de resumo acadêmico

Consulte a versão online da nossa disciplina


(www.ufpe.br/cead/moodle).

6.1.3 Resenha

A resenha é uma espécie de resumo crítico. Você, ao elaborar uma


resenha, deve resumir a obra, mas também expor sua posição crítica
com relação a esta. Esse gênero era caracterizado por ser publicado

52«
em revistas científicas, porém, atualmente, também serve como
exercício didático, a exemplo do resumo acadêmico.

É importante ressaltar que na resenha, além de você trazer o tema


abordado na obra e a forma como o autor trabalha este tema
(destacando seus pontos mais relevantes), é necessário que, ao final,
você analise criticamente a obra, fazendo uma avaliação sobre sua
importância teórica, sobre sua relação com outras obras, sobre seus
alcances e deficiências ao tratar o tema.

Exemplo de resenha

Consulte a versão online da nossa disciplina


(www.ufpe.br/cead/moodle).

6.2 Artigo e pôster

Esses gêneros têm em comum a característica de divulgar uma


pesquisa em eventos científicos, sendo que o artigo também é
publicado em revistas especializadas.

6.2.1 Artigo

O artigo é o gênero acadêmico mais utilizado para a divulgação de uma


pesquisa, tanto em eventos quanto em publicações científicas. Traz,

»53
além de discussão teórica sobre um tema, uma análise, por exemplo,
sobre determinado corpus (conjunto de textos), sobre um case (caso
específico sobre o fenômeno estudado) ou sobre dados empíricos
(informações obtidas através de técnicas pesquisa, como observação,
entrevistas etc.). Quando o texto aborda apenas questões teóricas,
trata-se de um ensaio.

Componentes de um artigo científico

a) Título – indique o principal tema do artigo em um título breve e


original. Se precisar, utilize um subtítulo.

b) Nome do autor e afiliação – indique seu nome e a instituição


da qual você faz parte (como pesquisador, professor ou estudante).

c) Resumo – como visto no item 6.1.2.

d) Abstract – tradução do resumo em inglês (se o evento ou


publicação solicitar a tradução em outro idioma, utilizar o
solicitado).

e) Palavras-chave – indique os termos que permitam a outros


pesquisadores encontrar a sua pesquisa em sistemas de busca
eletrônicas ou em fichas catalográficas.

f) Introdução – introduza o tema do seu artigo e o objetivo da


pesquisa, justificando-a, mas sem entrar em muitos detalhes sobre
o conteúdo.

g) Desenvolvimento – desenvolva o tema, definindo o problema


de pesquisa e as hipóteses, fazendo uma revisão da literatura
existente sobre o tema, apresentando a metodologia etc.

h) Análise – apresente com bastante detalhes a análise dos dados


e os resultados obtidos com a pesquisa.

i) Conclusão – discuta os resultados da pesquisa, retomando suas


ideias centrais e ressaltando as contribuições do seu trabalho para a

54«
solução do problema de pesquisa levantado. Você também deve
apontar futuras pesquisas que podem ser realizadas sobre o tema
para aprofundar a questão ou para superar alguma deficiência
metodológica encontrada.

j) Referências – todas as obras que foram citadas (direta ou


indiretamente) na pesquisa devem ser listadas. Siga as normas da
ABNT ou as elaboradas especificamente para o evento ou publicação
em que será divulgada pesquisa.

l) Anexos – anexe tabelas, gráficos, figuras, quadros, entrevistas


etc. que não foram inseridos no corpo do texto, mas que serão
relevantes para a pesquisa.

Exemplos de artigos científicos4

Confira, na internet (Revista Ao Pé da Letra), exemplos de artigos:


<http://www.revistaaopedaletra.net/volumes.html>.

6.2.2 Pôster acadêmico/científico

O pôster é a apresentação visual de uma pesquisa, ficando exposto nos


eventos científicos em forma de banner. Como o suporte – espaço
físico – deste gênero é limitado (com geralmente 70 cm de largura e
120 cm de altura), o texto deve ser sucinto, trazendo resumidamente

4
Como vocês puderam ver, esses artigos foram divulgados na Revista ao Pé da
Letra, uma publicação do Departamento de Letras da Universidade Federal de
Pernambuco dedicada à difusão de trabalhos científicos de alunos de graduação
sobre temas relativos à linguagem e à literatura. Se você tiver um trabalho
realizado para uma disciplina que recebeu já um parecer positivo de seu
professor, submeta-o aos pareceristas da revista. Nesse mesmo site, você pode
ter acesso às regras para publicação!

»55
as principais partes da pesquisa (introdução, desenvolvimento,
conclusões), além do título, nome do autor e sua afiliação. Os detalhes
do trabalho, contudo, são informados durante a apresentação oral do
pôster.

Nesse gênero acadêmico, devem ser bastante utilizados gráficos,


tabelas, ilustrações e figuras. Os blocos de textos devem ser bem
delimitados, para facilitar a leitura. Também por essa razão, é
necessário que o tamanho da fonte seja grande (cerca de tamanho 90
para título e 40 para o corpo do texto).

Mas, lembre-se: antes de elaborar um pôster, você deve consultar as


normas específicas do evento no qual seu trabalho será exposto. Não
exagerar no volume de texto, contudo, é sempre a regra básica.

Exemplo de pôster acadêmico/científico

Consulte a versão online da nossa disciplina


(www.ufpe.br/cead/moodle).

6.3 Projeto de Pesquisa

O projeto de pesquisa é uma proposta de desenvolvimento de uma


investigação científica, apresentado pelo aluno antes de iniciar seu
trabalho de conclusão de curso ou pelo candidato a uma bolsa de
iniciação científica ou a uma vaga em cursos de pós-graduação, por
exemplo.

56«
Assim, o projeto de pesquisa é uma espécie de carta de intenções,
onde o pesquisador vai expor previamente os planos, as fases e os
procedimentos da pesquisa que está se propondo a realizar.

É importante que o tema da pesquisa seja de interesse tanto do


pesquisador proponente, quanto da instituição ao qual este é ou estará
vinculado durante a investigação, entre outros fatores. Veja novamente
a seção 4 sobre a escolha do tema.

Em geral, um projeto de pesquisa deverá conter os componentes


estruturais descritos a seguir (contudo, insistimos novamente na
necessidade de consultar as normas de cada curso, instituição ou
concurso):

Componentes de um projeto de pesquisa

a) Capa – com título da pesquisa, nome do autor, finalidade da


pesquisa e orientador (este último dado é opcional).

b) Sumário (opcional).

c) Apresentação – apresenta quem, o que, para que, por que,


como e quando será realizada a pesquisa.

d) Problematização – expõe o objeto da pesquisa e a pergunta sobre esse


objeto a ser respondida com a investigação. Responde à pergunta: O QUÊ?

e) Justificativa – descreve a situação atual do tema a ser


pesquisado, ressaltando a importância e necessidade da pesquisa
proposta. Responde à pergunta: POR QUÊ?

»57
f) Objetivos – define a meta a ser atingida com a pesquisa,
dividindo-se em objetivo geral e objetivos específicos. Responde à
pergunta: PARA QUÊ?

g) Fundamentação teórica – embasa teoricamente a pesquisa,


explicitando teorias, autores e conceitos que servem de base para a
investigação.

h) Metodologia – explicita os métodos e os procedimentos de pesquisa


(delimitação dos dados e definição dos instrumentos de coleta,
levantamento, tratamento e análise destes). Responde à pergunta: COMO?

i) Cronograma – detalha o tempo necessário para execução de


cada etapa da pesquisa. Responde à pergunta: QUANDO?

j) Orçamento – necessário apenas para as pesquisas custeadas por


algum órgão financiador; nele devem constar os recursos materiais
que serão necessários para execução da pesquisa.

l) Referências bibliográficas – ver seção 5.3.

m) Anexos (opcional) – adiciona documentos que forem


necessários ao esclarecimento do texto.

Exemplo de projeto de pesquisa

Consulte a versão online da nossa disciplina


(www.ufpe.br/cead/moodle).

6.4 Relatório de Pesquisa

O relatório de pesquisa é um documento que relata formalmente os


resultados de uma pesquisa ou os progressos obtidos até uma

58«
determinada fase desta. O projeto de pesquisa é retomado no relatório
como forma de relato e não mais de proposta, sendo que a este são
acrescentados os resultados da investigação. Se na redação do projeto
de pesquisa são utilizados verbos no futuro (“os dados serão
coletados...”), no relatório os verbos são utilizados no pretérito (“os
dados foram coletados...”).

Indicamos, abaixo, a estrutura de um relatório de pesquisa (modelo da


UFPE para o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica –
PIBIC/CNPq):

Componentes de um relatório de pesquisa

a) Identificação – coloque seu nome e do seu orientador, o título


do projeto e do subprojeto e identifique a área/subárea (de acordo
com a classificação do CNPq) à qual o trabalho está vinculado.

b) Resumo – faça uma apresentação panorâmica da pesquisa,


indicando o tema, a afiliação teórica, os objetivos, a metodologia e
os resultados da pesquisa. Dever ser escrito na língua vernácula e
ser constituído de uma sequência de frases concisas e objetivas e
não de uma simples enumeração de tópicos.

c) Sumário – enumere as principais divisões, seções e outras


partes do trabalho, na mesma ordem e grafia em que a matéria nele
se sucede.

d) Introdução – explique a relevância do trabalho e faça uma


revisão da literatura sobre o tema.

e) Objetivos – indique quais foram os objetivos geral e específicos


da pesquisa.

f) Metodologia – explicite os métodos empregados na


investigação. Se achar pertinente, indique os sujeitos da pesquisa,
os materiais/equipamentos utilizados e o procedimento de coleta e

»59
de análise dos dados.

g) Resultados e discussão - exponha detalhadamente os


resultados obtidos na pesquisa de forma objetiva (geralmente, na
apresentação dos resultados, são apresentados os dados
quantitativos e podem ser utilizados gráficos e tabelas) e interprete
analiticamente os resultados obtidos à luz do referencial teórico que
sustentou a pesquisa (geralmente, na discussão dos resultados, são
apresentados os dados qualitativos).

h) Conclusões – teça as considerações parciais ou finais da


pesquisa, que podem, ou não, ser concludentes (geralmente não
são, mas trazem novos questionamentos e propostas para uma
nova investigação).

i) Referências bibliográficas – liste todas as referências a outros


autores e obras que foram citadas na pesquisa.

j) Dificuldades encontradas – apresente as maiores dificuldades


que você encontrou no processo de pesquisa.

l) Atividades paralelas desenvolvidas pelo bolsista – descreva


outras atividades que foram desenvolvidas por você
concomitantemente à pesquisa.

m) Data e assinatura – coloque a data de conclusão de seu


relatório e assine o trabalho. Seu orientador também deve fazer o
mesmo.

Exemplo de relatório de pesquisa

Consulte a versão online da nossa disciplina


(www.ufpe.br/cead/moodle).

60«
6.5 Monografia

Monografia é o nome dado aos trabalhos acadêmicos que servem como


requisito para a conclusão de cursos de graduação ou de especialização
(trabalhos de conclusão de curso) ou como instrumento de avaliação
de disciplinas de graduação e pós-graduação.

Além das questões abordadas na aula “Escolha do Tema” (seção 4.),


você deve ficar bastante atento às exigências formais desse gênero
textual, que apresenta diversos componentes obrigatórios e opcionais,
conforme mostra a tabela abaixo:

Componentes de uma monografia (definições e orientações


da ABNT)

a) Capa (obrigatório) – é a proteção externa do trabalho e sobre a


qual se imprimem as informações indispensáveis à sua identificação
(obrigatório); contém: nome da instituição (opcional), nome do
autor, título, subtítulo (se houver), número de volumes (se houver
mais de um), cidade da instituição onde a monografia será
apresentada e o ano de depósito.

b) Lombada (opcional) – parte da capa do trabalho que reúne as


margens internas da folhas; contém: nome do autor, título
(impressos longitudinalmente e legível do alto para o pé da
lombada), elementos alfanuméricos de identificação (por exemplo,
v. 2).

c) Folha de rosto (obrigatório) – folha que contém os elementos


essenciais à identificação do trabalho; no anverso, contém: nome do
autor, título do trabalho, subtítulo (se houver); número de volumes
(se houver mais de um), natureza (monografia) e objetivo
(aprovação em disciplina, grau pretendido e outros), nome da
instituição a que é submetida, área de concentração, nome do

»61
orientador, nome do co-orientador (se houver), cidade da instituição
onde deve ser apresentada, ano de depósito; no verso, contém:
ficha catalográfica, conforme o Código de Catalogação Anglo-
Americano vigente.

d) Errata (opcional) – lista de folhas de linhas em que ocorrem


erros, seguidas das devidas correções. Apresenta-se quase sempre
em papel avulso ou encartado, acrescido do trabalho depois de
impresso.

e) Folha de aprovação (obrigatório) – folha que contém os


elementos essenciais à aprovação do trabalho; é colocada após a
folha de rosto, constituída pelo nome do autor do trabalho, título do
trabalho e subtítulo (se houver), natureza, objetivo, nome da
instituição a que é submetido, área de concentração, data de
aprovação, nome, titulação e assinatura dos componentes da banca
examinadora e instituições a que pertencem.

f) Dedicatória (opcional) – folha onde o autor presta homenagem


ou dedica seu trabalho.

g) Agradecimento(s) (opcional) – folha onde o autor faz


agradecimentos dirigidos àqueles que contribuíram de maneira
relevante à elaboração do trabalho.

h) Epígrafe (opcional) – folha onde o autor apresenta uma citação,


seguida de indicação de autoria, relacionada com a matéria tratada
no corpo do trabalho; pode vir após os agradecimentos e também
nas folhas de aberturas das seções primárias.

i) Resumo (obrigatório) – resumo na língua vernácula, constituído


de uma sequência de frases concisas e objetivas e não de uma
simples enumeração de tópicos, não ultrapassando 250 palavras,
seguido, logo abaixo, das palavras representativas do conteúdo do
trabalho (palavras-chave).

l) Resumo em língua estrangeira (obrigatório) – resumo com as


mesmas características do resumo em língua vernácula, digitado ou
datilografado em folha separada (em inglês Abstract, em espanhol
Resumen, em francês Résumé, por exemplo).

j) Lista de ilustrações (opcional) – deve ser elaborada de acordo


com a ordem apresentada no texto, com cada item designado por

62«
seu nome específico, acompanhado do respectivo número da
página.

m) Lista de tabelas (opcional) – elaborada de acordo com a ordem


apresentada no texto, com cada item designado por seu nome
específico, acompanhado do respectivo número da página.

n) Lista de abreviaturas e siglas (opcional) – consiste na relação


alfabética das abreviaturas (representação de uma palavra por meio
de alguma de suas sílabas ou letras) e siglas (reunião das letras
iniciais dos vocábulos fundamentais de uma denominação ou título)
utilizadas no texto, seguidas das palavras ou expressões
correspondentes grafadas por extenso.

o) Lista de símbolos (opcional) – deve ser elaborado de acordo


com a ordem apresentada no texto, com o devido significado do
símbolo (sinal que substitui o nome de uma coisa ou de uma ação).

p) Sumário (obrigatório) – contém a enumeração das principais


divisões, seções e outras partes do trabalho, na mesma ordem e
grafia em que a matéria nele se sucede.

q) Introdução (obrigatório) – é a parte inicial do texto, onde devem


constar a delimitação do assunto tratado, objetivos da pesquisa e
outros elementos necessários para situar o tema do trabalho.

r) Desenvolvimento (obrigatório) – parte principal do texto, que


contém a exposição ordenada e pormenorizada do assunto; divide-
se em seções e subseções, que variam em função da abordagem do
tema e do método.

s) Conclusão (obrigatório) – parte final do texto, na qual se


apresentam conclusões correspondentes aos objetivos ou hipóteses.

t) Referências (obrigatório) – conjunto padronizado de elementos


descritivos retirados de um documento, que permite sua
identificação individual; deve ser elaborado conforme a NBR 6023
(seção 5.3)

u) Glossário (opcional) – relação de palavras ou expressões


técnicas de uso restrito ou de sentido obscuro, utilizadas no texto,
acompanhadas das respectivas definições.

»63
v) Apêndices (opcional) – texto ou documento elaborado pelo
autor, a fim de complementar sua argumentação, sem prejuízo da
unidade nuclear do trabalho; são identificados por letras maiúsculas
consecutivas, travessão e pelos respectivos títulos.

x) Anexos (opcional) – texto ou documento não elaborado pelo


autor, que serve de fundamentação, comprovação e ilustração.

z) Índices (opcional) – lista de palavras ou frases, ordenadas


segundo determinado critério, que localiza e remete para as
informações contidas no texto.

Exemplo de monografia

Consulte a versão online da nossa disciplina


(www.ufpe.br/cead/moodle).

Agora, que você já tem algumas ferramentas para ler e produzir textos
acadêmicos dos quais precisa ao longo do curso, é hora de colocá-las
em prática. Afinal, é lendo que se aprende a ler, ou seja, a construir
sentido; e é escrevendo que se aprende a escrever, ou seja, a se
apropriar das características formais e funcionais de um certo gênero,
a reconhecer mnemonicamente a grafia de uma palavra ou expressão;
enfim, a dar “a César o que é de César”, fazendo o legal e ético
registro dos autores lidos, e se constituindo como autor.... Mãos à
obra!

64«
Referências

Bibliografia básica:

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 10520:


informação e documentação: citações em documentos: apresentação.
Rio de Janeiro, 2002.

______. NBR: 6023: informação e documentação: referências:


elaboração. Rio de Janeiro, 2002.

______. NBR: 6022: informação e documentação: artigo em


publicação periódica científica impressa: apresentação. Rio de Janeiro,
2003.

______. NBR: 6028: informação e documentação: resumo:


apresentação. Rio de Janeiro, 2003.

______. NBR: 14724: informação e documentação: trabalhos


acadêmicos: apresentação, 2005.

BAUER, M. W. & GASKELL, G. Pesquisa qualitativa com texto,


imagem e som. Petrópolis: Vozes, 2004.

CALDAS, M.A. E.; VIDAL, M.M.G.; VASCONCELOS, M.V.B. de A.;


CASTRO, L.C.C. de. Documentos Acadêmicos: um padrão de
qualidade. Recife: Ed. da UFPE, 2006.

DIONISIO, A. P.; BEZERRA; M. A.; MACHADO, A. R. (Orgs.). Gêneros


Textuais e Ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002.

HENRIQUES, C. C.; SIMÕES, D. M. (Orgs.). A redação de trabalhos


acadêmicos: teoria e prática. Rio de janeiro: Ed. da UERJ, 2008.

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KOCH, I. V. Ler e compreender: os sentidos do texto. São Paulo:
Contexto, 2006.

______. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez,


2006.

______. A coesão textual. São Paulo: Contexto, 2002.

______; TRAVAGLIA, L. C. A coerência textual. São Paulo: Contexto,


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MACHADO, A. R.; LOUSADA, E.; ABREU-TARDELLI, L.S. Resenha. Rio


de Janeiro: Lucerna, 2004.

MACHADO, A. R.; LOUSADA, E.; ABREU-TARDELLI, L.S. Resumo. Rio


de Janeiro: Lucerna, 2004.

______. Planejar gêneros acadêmicos. Rio de Janeiro: Parábola


Editorial, 2005.

MARCUSCHI, L. A. Linguística de Texto: o que é e como se faz.


Recife: Ed. UFPE, 1983.

______. Produção textual, análise de gêneros e compreensão.


São Paulo: Parábola, 2008.

MESQUITA, M. L. de A pesquisa e a construção do conhecimento


científico – do planejamento aos textos, da escola à academia. São
Paulo: Rêspel, 2005.

MOTTA-ROTH, D. (org.) Princípios básicos: redação acadêmica.


Laboratório de redação. Santa Maria: Ed. da UFSM, 2004.

66«
Bibliografia complementar:

BENNETT-KASTOR, T. Analysing children’s language: methods and


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68«
Leitura e produção de textos acadêmicos – Virgínia Leal

ATIVIDADES

Atividade 1

Faça uma relação dos textos produzidos/lidos por você ao longo de um


dia e tente classificá-los em tipos e em gêneros.

Apresente essa lista no Fórum “Tipos e Gêneros - Lista”.

Atividade 2

Escolha um dos textos apresentados em sua lista elaborada na


atividade 1 e apresente as suas dúvidas e questionamentos quanto à
classificação realizada, acrescentando um pequeno excerto desse
texto.

Insira sua resposta no Fórum “Tipos e Gêneros - Exemplo”.

Atividade 3

Dê exemplos de diferentes gêneros textuais cujas características


formais apresentam uma predominância de sequências tipológicas
narrativas.

Insira a sua resposta no Fórum “Tipos narrativos”.

»69
Atividade 4

Faça uma “enquete” com 5 colegas ou amigos para saber o que eles
leem e sobre o que escrevem no cotidiano. Procure saber ainda qual
dessas atividades é a preferida; qual a que apresenta maior grau de
dificuldade; e qual é o gênero textual mais requerido no cotidiano.

Procure, ainda, saber a frequência de leitura de jornais, revistas, livros


(em meios tradicionais ou digitais).

Apresente os resultados no Fórum “Leitura e Escrita no Cotidiano”.

Atividade 5

Apresente um exemplo de resumo de livro e um de resumo de


monografia e aponte suas semelhanças e diferenças quanto à forma, à
funcionalidade etc.

Anexe seu trabalho na Base de Dados “Resumos – semelhanças e


diferenças”.

Atividade 6

Quais gêneros acadêmicos/científicos apresentados na seção 2 você já


produziu? Quais você já leu? E quais você não conhecia?

Insira sua resposta no Fórum “Principais gêneros acadêmicos”.

70«
Atividade 7

Qual a principal diferença entre resumo e resenha


(acadêmicos/científicos)?

Insira sua resposta no Fórum “Resumo e resenha – principal


diferença”.

Atividade 8

Discuta com seus colegas as “30 dicas para escrever bem” (do texto
atribuído ao prof. João Pedro). Você pode iniciar a discussão a partir,
por exemplo, desses questionamentos: quais as dicas de que você
mais gostou? Quais as mais interessantes? E mais óbvias?

Poste sua mensagem no Fórum “30 dicas para escrever bem”. Não
se esqueça de justificar suas respostas e de interagir com seus
colegas, comentando as opiniões apresentadas.

Atividade 9

Ainda com relação ao texto “30 dicas para escrever bem”, faça uma
autoavaliação da sua própria escrita, apontando os “erros” que você
mais comete em seus textos e as dicas que você acha que já segue.

Anexe eu trabalho na Base de Dados “Autoavaliação”. Não se


esqueça de justificar suas respostas, apresentando trechos de suas
próprias produções textuais que exemplifiquem os “erros e acertos”
apontados.

»71
Atividade 10

Analisando as “30 dicas para escrever bem”, produza um texto em que


a não observância de uma ou mais delas é interessante para a
construção de um estilo ou para provocar determinados efeitos de
sentido. Ou seja, dê um exemplo de quebra possível do uso de tais
regras.

Deposite o seu texto na Base de Dados “Escrita/Textualização”.

Atividade 11

Escolha um artigo OU um projeto de pesquisa OU uma monografia e


procure identificar qual o critério utilizado pelo autor para delimitar o
tema de seu trabalho.

Poste sua mensagem no Fórum “Delimitação do tema de


pesquisa”. Não se esqueça de disponibilizar o link desse trabalho
escolhido para os colegas.

Atividade 12

De acordo com as normas da ABNT, formate o texto “nonononono”


(consulte a versão online da disciplina).

Anexe seu trabalho na Base de Dados “Formatação ABNT”.

72«
Atividade 13

Vá ao site do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPE


(www.ufpe.br/pgletras) e escolha uma dissertação ou tese (não se
esqueça de dizer qual foi o trabalho investigativo selecionado). Em
seguida, escolha duas citações diretas e tranforme-as em indiretas.

Discuta, ainda, os efeitos produzidos com esta mudança.

Poste a sua atividade no Fórum “Transformando citações diretas


em indiretas”.

Atividade 14

Apresente uma citação direta e uma citação indireta de um trecho de


qualquer texto acadêmico/científico de sua escolha na área de Letras
(esse texto pode estar em livro impresso, em artigo de internet, em
cd-rom etc.).

Utilize o sistema autor-data de indicação das referências bibliográficas


(estas devem ser apresentadas também de forma completa ao final de
sua mensagem).

Caso o texto que você escolheu não esteja inserido nessas categorias
apresentadas por nós, pesquise como fazer sua indicação bibliográfica
na internet.

»73
Insira sua resposta no Fórum “Citações e referências
bibliográficas”.

Atividade 15

Leia o texto A redação científica, do professor Rhycardo Monteiro:


<http://www2.unemat.br/rhycardo/download/redacao_cientif
ica.pdf>.

Em seguida, faça um FICHAMENTO desse texto, atentando para os


aspectos formais e normativos que estamos estudando.

Anexe o arquivo com seu texto na Base de Dados “Fichamento”.

Atividade 16

No site do PPGL (www.ufpe.br/pgletras) você encontrará


disponibilizadas as dissertações e tese defendidas a partir de 2006.

Selecione uma delas, leia o resumo e identifique: tema; objetivos;


hipóteses; fundamentação teórica; procedimentos metodológicos
empregados e os resultados obtidos.

Apresente os resultados no Fórum “Resumos - componentes”.

74«
Atividade 17

Leia o artigo A internet vai acabar com a língua portuguesa?, de


José Luiz Fiorin – <http://www.letras.ufmg.br/arquivos/matte/
ievidosol /Fiorin.pdf>.

Em seguida, faça um RESUMO desse texto, atentando para os


aspectos formais e normativos que estamos estudando na disciplina.

Anexe o arquivo com seu texto na Base de Dados “Resumo”.

Atividade 18

Leia o texto O plágio na comunidade científica: questões


culturais e linguísticas, de Sonia M. R. Vasconcelos –
<http://cienciaecultura.bvs.br/pdf/cic/v59n3/a02v59n3.pdf>.

Em seguida, faça uma RESENHA desse texto, atentando para os


aspectos formais e normativos que estamos estudando na disciplina.

Anexe o arquivo com seu texto na Base de Dados “Resenha”.

Atividade 19

Quais são os cuidados que devemos ter ao elaborar um pôster para


apresentar nossa pesquisa em um evento acadêmico/científico?

»75
Atividade 20

Pesquise, na internet, exemplos dos gêneros artigo científico, pôster,


projeto de pesquisa, relatório de pesquisa e monografia.

Escolha um único exemplo de qualquer desses gêneros acima listados e


indique quais os componentes que foram e que não foram
contemplados nesse texto extraído da internet.

Você pode observar se esses componentes eram obrigatórios ou


opcionais, se cada um deles foi apresentado total ou parcialmente, se
estavam dispostos na mesma sequência demonstrada em nosso
material didático-pedagógico etc.

Ou seja, não restrinjam essa análise à leitura dos títulos e subtítulos do


texto escolhido, pois, na introdução de uma monografia, podem estar
descritos os objetivos e a metodologia da pesquisa, por exemplo.

Insira sua resposta na Base de dados “Componentes”. E não se


esqueça de disponibilizar o link do exemplo escolhido.

Atividade 21

A partir desse mesmo exemplo escolhido, discuta a relação que você


observou entre metodologia e objetivos a serem alcançados.

Poste sua resposta no Fórum “Relação entre objetivos e


metodologia”.

76«
Stella Telles

UMA INTRODUÇÃO À MORFOLOGIA


78«
1. O que é morfologia?

A Morfologia é uma disciplina linguística que tem como objetivo o


estudo da estrutura das palavras. O próprio termo “morfologia”
significa “estudo da forma”. No âmbito da ciência linguística, que tem
como objeto de estudo as línguas naturais, a Morfologia se ocupa da
estrutura das palavras.

E para nos aprofundar acerca dos propósitos desta disciplina,


precisamos alargar nossa compreensão sobre a área de estudo da
Morfologia. Com esse fim, iremos discutir abaixo alguns de seus
objetivos.

Como recurso de reflexão, faremos


do conceito da disciplina Morfologia,
apresentado acima,
o nosso ponto de partida:

O que é estudar
a estrutura das
palavras?

Em face dessa pergunta,


é importante atentarmos para

»79
>> O SIGNIFICADO DA PALAVRA ESTRUTURA.
>> O MÉTODO QUE DEVEMOS UTILIZAR PARA ALCANÇAR
O OBJETIVO “ESTUDAR UMA DADA ESTRUTURA”.

Seguindo essa instrução, podemos mais


facilmente alcançar algumas respostas válidas
para a nossa pergunta inicial
(o que é estudar a estrutura das palavras?), quais
sejam:

Observar as
maneiras como as
palavras são
formadas; Entender os mecanismos
como as partes das
palavras se relacionam
entre si, bem como as
próprias palavras se
relacionam umas com as
outras.

Identificar as partes
constitutivas das
palavras;

80«
Mas essas respostas ainda não encerram nossa discussão. Sabemos
que a língua apresenta outros componentes de base: Fonologia,
Sintaxe e Semântica. Esses componentes, assim como a Morfologia,
têm cada um seus objetos de estudo. Entendemos, ainda, que todos
esses níveis não são isolados, ao contrário disso, são interdependentes.
E, para proceder a um estudo mais detalhado, que busque um
resultado válido e explicativo para o funcionamento efetivo da língua,
precisamos considerar a interdependência entre os seus componentes,
acima elencados. Por essa razão, diremos que, além do estudo da
estrutura das palavras, TAMBÉM É OBJETO da Morfologia analisar
COMO a estrutura das palavras interage com outros níveis
1
(componentes) da gramática .

1
A língua articulada tem como propósito a comunicação humana. Em sua
configuração encontramos uma gramática, constituída pelos componentes antes
apresentados. Entretanto, identificar as partes integrantes da gramática não
implica absolutamente entendê-la como um conjunto de compartimentos
autônomos entre si. Muito pelo contrário, para que a língua se atualize,
funcione naturalmente, quer dizer, para que seja ativada socialmente, a inter-
relação de seus componentes (fonologia-morfologia-sintaxe-semântica) é
condição necessária.

»81
E para o estudo da Morfologia, que outros níveis que devemos
considerar?

Vamos considerar dois níveis que são diretamente relevantes para o


estudo da estrutura das palavras:

• O nível da Fonologia: porque toda palavra tem uma forma


fonológica, ou seja, é constituída por um ou mais sons. Sendo
assim, o estudo da produção sonora das palavras
possibilitará a identificação de sua estrutura interna e de
suas fronteiras (seu início e seu fim).

• O nível da Sintaxe: uma vez que as palavras são as


menores unidades que constituem o discurso, e sua forma
pode responder, por exemplo, por seu funcionamento na
estrutura da oração.

Temos, por fim, um outro importante aspecto do estudo da morfologia:

Investigar a maneira como a estrutura das palavras se relaciona com


os significados das palavras.

82«
2. Conceito de palavra e lexema

“Não pode haver prova mais convincente do que a seguinte: o


índio, completamente despercebido do conceito de palavra
escrita, não tem apesar disso dificuldade séria em ditar um
texto a um investigador linguístico, palavra por palavra (...)”.
Edward Sapir (em sua obra clássica A linguagem: introdução ao estudo
da fala, traduzida por Mattoso Câmara Jr. e publicada pela Editora
Acadêmica, 1971).

Em seu texto, Sapir quis salientar o fato de que um falante nativo de


qualquer língua tem uma noção do que genericamente denominamos
palavra. De fato, o usuário da língua, independentemente de seu
conhecimento formal, do estudo de sua língua, é capaz de intuir e
reconhecer as palavras.

Do ponto de vista teórico, quando pensamos o que vem a ser uma


“palavra”, precisamos lembrar que seu conceito não pode se ancorar
na reflexão realizada a partir de uma só língua. Existem muitas línguas
marcadamente diferentes entre si, o que implica dizer que o que
consideramos “palavra” pode também se diferenciar de língua para
outra. Concluímos aqui que é bastante difícil considerar uma só
definição de palavra capaz de servir para qualquer língua.

E como chegamos à definição de palavra2? Para chegarmos a uma


definição de palavra, precisamos utilizar critérios fundamentados nos

2
Sobre a definição de palavra, também leiam a seção 3.2.

»83
mesmos componentes da língua: fonológicos, morfológicos, sintáticos e
semânticos.

Seguindo o proposto por Andrew Spencer, em seu curso de morfologia


(http://privatewww.essex.ac.uk/~spena/), e adaptando o
conteúdo para uma explanação da língua portuguesa, podemos
considerar o seguinte:

Para a nossa reflexão acerca da


(01) {casa, carro, menino}
noção de “palavra”, vamos observar
os itens (1), (2), (3) ao lado.

Podemos agora fazer a seguinte (02) {casa, casas}


pergunta: Quantas palavras
existem em cada item ao lado?

Com relação ao item (1), (03) {faculdade, falcudade}


respondemos de imediato: existem
três palavras.

E com relação aos itens (2) e (3)? Podemos apresentar a mesma


resposta?

De um lado, podemos considerar uma resposta afirmativa, SIM, nos


itens (2) e (3) também encontramos duas palavras em cada um dos
itens. Por outro lado, poderemos chegar a um outro tipo de resposta, e

84«
essa será: no item (2), há apenas uma palavra, “casa”, que se
apresenta com duas formas morfológicas, “casa” e “casas”.

Assim também é o caso do item (3), que tem uma palavra, mas, nesse
caso, com duas formas fonéticas. Por isso, se você procurar no
dicionário o item “falcudade”, não o encontrará, mas apenas
“faculdade”, que corresponde à forma lexical do português. E se
procurar pelo item “casa”, você encontrará apenas uma forma, “casa”.
O plural “casas” é formado por uma regra geral do português,
responsável pela pluralização de grande parte dos nomes de nossa
língua, de maneira que não há nenhuma necessidade de listar em um
dicionário a forma no plural separadamente. Podemos descrever “casa”
como a forma singular da palavra “casa” e “casas” como a forma plural
da palavra “casa”.

É útil, portanto, haver diferentes termos para os dois diferentes


sentidos da palavra “palavra”. Nós consideraremos, daí, que há um
lexema “casa”, que tem pelo menos duas formas de palavra, “casa”
e “casas”. Assim entendemos que o que chamamos de lexema
corresponde a uma idéia abstrata que temos de qualquer palavra, a
qual constitui o dicionário que está presente no conhecimento
linguístico do falante. Quando esse realiza produz vocalmente (ou
escreve) uma dada palavra ele está concretizando-a de acordo com a
gramática (regras) de sua língua. No caso do português, as palavras
substantivas são em sua maioria variáveis morfologicamente, ou seja,
se flexionam. Casa flexão corresponde a uma forma de palavra. Como
recurso didático, quando falarmos de um lexema, poderemos escrevê-
los em itálico, tal como casa, para lembrar que ele representa um
significado associado a um conjunto de formas da palavra.

»85
O conceito de lexema é também valioso para a análise de verbos.
Considere os dados (a,b,c,d) no exemplo:

Nos dados acima, nós vemos várias formas do lexema tomar:


{tomando, tomou, toma, tomará}.

Da mesma maneira como vimos anteriormente com a palavra casa, as


formas verbais acima são todas resultantes de regras regulares da
gramática do português. A forma “tomando” se encontra no gerúndio,
constitui uma locução com o verbo “estar” e nos diz que a ação verbal
não está concluída. “Tomou” é uma forma que expressa o tempo
passado, com relação ao momento da fala, e refere-se a um sujeito de
terceira pessoa. Essa forma também é utilizada com o sujeito
pronominal “você”, o qual, embora seja usado para a segunda pessoa,
concorda com a forma verbal de terceira pessoa. A forma “toma” nos
traz a idéia de uma ação habitual, em um tempo não definido. Quanto
à pessoa, verificamos o mesmo que se dá com a forma “tomou”: um
uso quando o sujeito é do tipo “Victor”, “Pedro”, “Maria”, “a menina”,
“o jovem”, ou seja, um sujeito de terceira pessoa, ou quando se trata
do sujeito pronominal “você”. Além disso, sabemos que as formas
“tomou” e “toma” concordam com o sujeito tanto pelas propriedades

86«
gramaticais de terceira pessoa quanto de número singular.

Diante disso, podemos considerar a noção de “palavra”, a partir de sua


propriedade semântica – que envolve a expressão de um significado
constante a que atribuímos o nome de lexema – e de sua
independência fonológica, referente a sua realização no discurso – que
nos remete à verificação de sua produção isolada (com suas diferentes
formas de palavra), bem como à constituição de sua estrutura interna,
morfológica.

Nesse sentido, as palavras podem ser simples, quando apresentam


apenas um morfema3, ou complexas, quando são constituídas de mais
de um morfema.

As palavras que ocorrem isoladamente no contexto de pergunta


/resposta têm independência fonológica (podem ser realizadas
independentemente de outras palavras) e podem ou não ser
morfologicamente estruturadas. Essas palavras são consideradas
4
formas livres , conforme designação do linguista Bloomfield.

Palavras simples, não estruturadas morfologicamente, estão dispostas


a seguir:

luz sal sol

mar véu poá

3
Para a definição de morfema, consulte a seção 3.
4
Para a definição dos conceitos acima, consulte MATTOSO CÂMARA, 1976.

»87
mão céu raiz

vil vau abaju

senhor lei lúpus

dor rei léu

flor vez acori

pires mês caqui

íris lápis cajá

caju sul guaraná

anel viés quartel

candomblé retrós nível

As palavras complexas, por sua vez, apresentam estrutura interna, ou


seja, são constituídas por mais de um morfema. Compare as palavras
acima com as que seguem:

senhor+es lei+s mal+es

dor+es rei+s mês+es

flor+es vez+es pau+s

Como podemos observar, nessas últimas palavras encontramos dois


morfemas (a raiz + o plural), o que nos confirma que se tratam de
palavras com morfologia, ou seja, com complexidade estrutural.

88«
2.1 Palavra x Vocábulo

A partir do que vimos, na seção anterior, sobre o conceito de palavra e


de lexema, podemos avançar para a distinção entre “palavra” e
“vocábulo”. Para isso, recorreremos às definições muito
esclarecedoras, encontradas em Mattoso Câmara Jr. (1977) e
apresentadas abaixo:

PALAVRAS VOCÁBULOS

Palavras são – Vocábulos são – mais abrangentes


“Vocábulos providos de que as palavras e podem ser assim
significação externa, subdivididos: “Do ponto de vista
5
concentrada no radical ; da fonação, o vocábulo
noutros termos, corresponde a uma divisão
vocábulos providos de fonológica intermediária entre a
semantema. Na língua sílaba e o grupo de força. Como
portuguesa, como nas forma linguística, sequência de
línguas em geral, as fonemas, resultante dessa divisão,
palavras são, que é – a) forma livre ou – b)
essencialmente – a) os forma dependente, isto é, – a)
nomes, na sua tríplice pode constituir por si só uma
função de substantivos, frase, ou – b) pode desprender-se
adjetivos e advérbios, na frase de outra forma a que
b) os verbos. A palavra necessariamente se liga, pela
é sempre uma forma intercalação livre de outras formas
livre, e pois um lexema ou pela mudança de posição.

5
Conceito: corresponde à parte lexical de um vocábulo, ou seja, a parte que
traz sua significação externa à língua, não gramatical. Ex.: No vocábulo
"colares", podemos separar a forma "colar" da forma "-es". A primeira
representa um conceito que é estabelecido a partir da relação dos falantes com
seu mundo real ou imaginário, já a segunda forma tem um valor mais
gramatical e não carrega a base significativa do vocábulo.

»89
na terminologia norte- Assim em – o livro de Pedro,
americana.” temos duas formas livres – livro
(...), Pedro, e duas formas
dependentes – o, de (...)”.

3. Conceito de morfema

O morfema pode ser conceituado como a unidade mínima significativa


ou dotada de significado que integra a palavra. Nesse sentido, o
morfema pode ser Lexical ou Gramatical. O primeiro corresponde, em
termos gerais, ao que nos referimos acima como “lexema”, o segundo
representa as partes significativas sem conteúdo externo à língua.

Se uma palavra não apresenta estrutura interna, ou seja, se é formada


por apenas um morfema, ela, a palavra, corresponde ao um morfema.
Por exemplo, na palavra “mãe”, como não a podemos subdividir em
partes ou morfemas menores, entendemos que ela corresponde ao
próprio morfema lexical. Já em “cantar”, por se tratar de uma palavra
complexa, identificamos as formas menores “cant-“, “-a” e “-r”. Nesse
caso, o morfema lexical (lexema) não corresponde a um morfema, mas
ao conjunto desses três, em sequência.

90«
3.1 Formação de palavras

Há vários meios de construirmos palavras. Podemos considerar a


palavra deslealdade. A parte central da palavra é leal, que corresponde
ao radical da palavra, uma forma indivisível que carrega seu significado
básico. Como podemos verificar, a forma adicionada ao radical, que se
encontra na margem direita da palavra, é a forma -dade. Formas
adicionadas à margem direita dos radicais são chamadas de sufixos.
Com esse sufixo, encontramos a forma lealdade. Já no lado esquerdo
da palavra, temos a forma des-. Formas adicionadas à margem
esquerda dos radicais são chamadas de prefixos. Com esse prefixo
adicionado à forma lealdade, chegamos à palavra deslealdade.

Aos prefixos e sufixos, nós damos o nome de afixos.

Afixos são morfemas que não se realizam sozinhos como o fazem as


palavras.

Dessa forma, entendemos que as palavras que têm afixos (prefixos


e/ou sufixos) são palavras complexas, ou seja, são estruturadas
morfologicamente.

Abaixo estão dispostas mais palavras complexas, estruturadas


morfologicamente:

»91
Alarm+e

Calibr+e

Cátedr+a

Jog+o

Fad+a

Óculo+s

Avô /Avó

Formoso/f[ó]rmos+a

Para analisarmos uma palavra complexa, precisamos identificar seus


componentes, verificando sua recorrência em outras palavras da língua
e se mantêm mais ou menos o mesmo significado e a mesma função.
Essas formas recorrentes são os morfemas. A relação entre as
formas (morfemas) e sua função pode apresentar diferentes níveis de
complexidade.

De acordo com Givón (1987), no estudo do léxico, devemos considerar


em pormenor os conceitos de:

92«
MORFEMAS LEXICAIS MORFEMAS MORFERMAS
(palavras) GRAMATICAIS DERIVACIONAIS

Englobam os conceitos e Morfemas Morfemas


os significados que dizem gramaticais derivacionais
respeito mais atuam na são usados para
precisamente ao estrutura criar (derivar)
vocabulário lexical. Esses gramatical das novas palavras
morfemas correspondem orações. Assim lexicais a partir
às palavras lexicais e eles tomam das pré-
codificam conceitos parte da existentes. A
nocionais estáveis, codificação morfologia
compartilhados tanto da derivacional diz
culturalmente, ou tipos de informação respeito
experiência vivenciadas proposicional primariamente
pelos usuários da língua. quanto da ao domínio da
Ao tomarmos as palavras coerência do lexicografia,
lexicais em seu conjunto, discurso. além do da
como uma rede gramática.
interencadeada, elas
representam nosso
universo físico, cultural e
interno compartilhado.
Nesse sentido, uma
palavra como mesa
guarda um significado
constante, posto que
estável, para os falantes
do português.

»93
Os morfemas lexicais correspondem ao que chamamos de lexemas,
enquanto que os morfemas gramaticais e derivacionais são morfemas
afixais, periféricos aos lexicais e não trazem em si o núcleo significativo
da palavra.

3.2 Palavras lexicais e morfemas


não-lexicais

Abaixo apresentamos os critérios extraídos de Givón (1987), que


buscam estabelecer a distinção entre as palavras lexicais, que têm
radical, e os morfemas não-lexicais, ou seja, com função mais
gramatical na morfologia da língua, incluindo os morfemas
derivacionais. Observe que os critérios abaixo não representam
características categóricas, mas tendências, as quais refletem o
comportamento interlinguístico, através do mundo.

Critérios para a distinção de palavras lexicais de morfemas não


–lexicais:

CRITÉRIO PALAVRAS MORFEMAS


LEXICAIS NÃO-LEXICAIS

a. status morfêmico livre preso

b. extensão fonológica comprida curta

c. Acento acentuado não-acentuado

d. expressão semântica complexa e simples e geral


específica

94«
e. tamanho da classe grande pequena

f. natureza enquanto aberta fechada


membro de classe

g. Função visão de mundo gramática ou


derivação de
palavra

Nesse texto, os morfemas afixais do português são classificados


seguindo o proposto por Mattoso Câmara (1976) e revisto por Silva e
Koch (2007):

De acordo com essas autoras, são quatro os tipos de morfemas não-


lexicais, ou seja, de morfemas gramaticais:

classificatórios,

flexionais,

derivacionais, e

relacionais.

Na seção a seguir apresentamos suas definições e subdivisões.

4. Tipos de morfemas

A identificação da ocorrência de um dado morfema corresponde a um


tipo de processo morfológico existente na língua. Nesse sentido, alguns
dos conceitos de morfemas encontrados abaixo não referem a “forma”

»95
em si mesma, mas o processo que se dá regularmente em uma palavra
ou classe de palavras. Assim, podemos ver a diferença conceitual entre
os morfemas “aditivo” e “subtrativo”. O morfema “aditivo” corresponde
à forma fonológica dotada de significado que constitui um dado
morfema, como o morfema “-s” de plural na palavra “camas”. Por
outro lado, o morfema “subtrativo” não corresponde a uma forma em
si mesma, mas ao processo de perda de alguma parte (segmento ou
sequência de segmentos) da palavra, como a supressão do “-r” no
verbo “cantar” que resulta no substantivo “canto”.

A seguir, são apresentados os tipos de morfemas encontrados no


português.

A. CLASSIFICATÓRIO

B. FLEXIONAL
1. Aditivo
2. Subtrativo
3. Alternativo
4. Morferma zero
5. Morferma latente ou alomorfe zero

C. RELACIONAL

D. DERIVACIONAL

Abaixo, apresentaremos brevemente a definição de cada um dos tipos


de morfemas presentes no quadro acima. Para leitura adicional sobre
cada um deles, indicamos Mattoso Câmara (1977) e Silva e Koch
(2007).

96«
A. MORFEMA CLASSIFICATÓRIO:

Corresponde às vogais temáticas (a-, e-, o-) e (a-, e-, i-) presentes em
nomes (substantivos e adjetivos) e em verbos, respectivamente.

Exemplos de vogais Exemplos de vogais


temáticas em nomes temáticas em verbos

a- cas+a a- cant+a+r
e- gent+e e- com+e+r
o- jog+o i- part+i+r

Palavras que não apresentam tais vogais são consideradas formas


atemáticas. As palavras simples, que não têm estrutura morfológica,
vistas mais acima, tais como paz, flor e amor, são atemáticas.

B. FLEXIONAL:

Os morfemas flexionais são formas presas que apresentam o conteúdo


mais gramatical presente na morfologia da palavra. Uma das
características fundamentais de um morfema flexional é a sua
obrigatoriedade. (Para a distinção entre “flexão” e “derivação”, ler a
seção 6.).

Para cada flexão aposta a um lexema ou palavra tem-se como


resultado uma forma de palavra do lexema, e não um novo lexema.
Cada lexema, por sua vez, pertence a uma classe de palavra da língua,

»97
a qual se define morfologicamente pelos tipos de morfemas flexionais
que recebe.

Em português, tradicionalmente, os nomes (substantivos e adjetivos)


são caracterizados por receberem a flexão de “gênero” e “número” e os
verbos, as flexões de “modo-tempo” e “número-pessoa”.

1. ADITIVO:

Os aditivos flexionais são formas afixais, como valor gramatical,


que se acrescentam aos morfemas lexicais.

Luta+s = lutas

2. SUBTRATIVO:

Resulta do processo de perda de material fonológico na palavra.

anão  anã

ancião  anciã

3. ALTERNATIVO:

Corresponde à alternância de um fonema no interior do


vocábulo. Em alguns casos, a alternância deriva da adição de

98«
um morfema na palavra. Por exemplo, palavras com morfema
adjetival “-oso”, quando passam para o feminino, sofrem a
alternância entre as vogais “o” e “ó” (fechada e aberta,
respectivamente). Esse processo pode ser visto em “zeloso” +
“-a” = zel[ó]sas; “amoroso” + “-a” = “amor[ó]sas.

4. MORFEMA ZERO:

Diz respeito à ausência de segmento ou material fônico que é


significativo na língua. Por exemplo, se nos perguntarmos qual
o morfema de plural em “escolas” de imediato identificamos o
“-s”, como indicativo de plural, uma vez que quase todas as
palavras da língua expressam o valor de plural através da
presença do “-s” e de suas variantes (“-es”, “-is”). Além disso,
sabemos que a palavra “escola” está no singular, pois esse
valor se opõe ao plural. Em geral, se uma palavra substantiva
não está no plural estará no singular. Os dois valores não
coocorrem em uma mesma palavra, eles são excludentes. Agora
podemos proceder à mesma estratégia que usamos para o
plural, a fim de encontrar o singular em “escola”. Se essa
palavra está no singular, qual é o morfema que indica o
singular? Buscamos, mas não encontramos um morfema que
corresponda ao singular. Como resultado, podemos dizer que é
a ausência do “-s” de plural que indica o singular. Se
admitirmos que essa ausência equivale a um “zero
significativo”, posto que traz a informação “não-presença de”,
ou seja, “não-plural”, poderemos concluir que a ausência do
singular é morfológica, a qual damos o nome de “morfema

»99
zero”. A representação desse morfema é “”, como em casa-,

em contraste com casa-s, para a forma plural.

5. MORFEMA LATENTE OU ALOMORFE ZERO:

Corresponde a variante zero de um morfema que tem forma


fonológica. Vimos que a marca de plural em “escolas” é o “-s”
final. Porém, no caso de uma palavra como “pires” a mesma
dedução não é válida. Se ouvirmos essa palavra (“pires”),
isoladamente, não podemos dizer se de fato ela está no singular
ou no plural, uma vez que o “s” final, nessa palavra, não
significa plural, pois faz parte da raiz da palavra, não
corresponde a um sufixo. Entretanto, diante do sintagma
nominal “os pires” sabemos que há uma indicação no
determinante artigo de mais de um referente, mais de um
objeto, de forma que o conteúdo é plural. Ainda assim, não
podemos dizer que o “s” final é o “-s” do plural, pois ele já
estava na forma singular da palavra. A interpretação que
resulta desse fato é considerarmos o plural como um alomorfe
(variante morfológica) do morfema “-s”, ao lado dos demais
alomorfes desse morfema: “-es” e “-is”. A representação do

alomorfe zero é igual a do morfema zero, “”.

C. RELACIONAL:

São os morfemas que encadeiam os lexemas no contínuo da frase.


Como tais, seu recurso é de ordem sintática. São eles: preposições,
conjunções e pronomes relativos.

100«
D. DERIVACIONAL:

Os morfemas derivacionais correspondem às formas presas aditivas


(são, portanto, em sua maioria, morfemas aditivos) que se fixam às
palavras formando novos itens lexicais na língua. Os afixos
derivacionais podem ser prefixados ou sufixados. Apesar de
apresentarem alguma regularidade, ocorrendo em muitos lexemas de
uma dada classe, eles não são obrigatórios, e não promovem relação
com a sintaxe. Eles têm forte carga lexical, e sua semântica pode
alterar substancialmente o significado do lexema ao qual se afixa: “in-”
+ “feliz” = “infeliz”. Enquanto sufixos, alguns deles alteram a classe de
palavra do lexema de base, como pode ser observado em “claro”
(adjetivo), e “a+claro+ar”  “aclarar” (verbo).

5. Classes de palavras

As classes de palavras constituem o vocabulário da língua. Esse pode


ser refletido como:

a) Vocabulário ativo: aquele que dado falante possui, que faz uso.

b) Vocabulário passivo: aquele que o falante conhece, mas


comumente não utiliza.

Nesse sentido, estamos dizendo que o léxico possui o inventário total


de palavras de uma língua.

»101
Por léxico mental, assumimos que se trata das palavras e dos recursos
lexicais que se encontram armazenados no cérebro de um indivíduo.

As palavras não se encontram aleatoriamente no léxico da língua. Isso


significa que elas são membros distribuídos nas classes de palavras
existentes na referida língua. E como podemos entender a constituição
do léxico? É fundamental que estabeleçamos critérios para a sua
classificação.

Critérios de classificação das classes de palavras (GIVÓN, 1987):

SEMÂNTICO MORFOLÓGICO SINTÁTICO

Os tipos de Os tipos de A(s)


significados (traços morfemas presos – posição(ões)
semânticos) que gramatical e típica(s) que as
tendem a ser derivacional – que palavras de uma
codificados pelas tendem a ser particular classe
palavras de uma afixados nas tendem a ocupar
determinada classe. palavras de uma em uma oração.
dada classe.

5.1 Classes do Português

As classes de palavras do português, como para qualquer língua,


compõem o vocabulário da língua. Esse, portanto, compreende as
palavras lexicais, que apresentam um radical em sua estrutura, com

102«
valor nocional, e as palavras gramaticais, que não apresentam um
valor nocional, e são, dessa sorte, palavras funcionais.

Quais são as Classes de Palavras do Português? Ao consultarmos uma


gramática da língua, encontraremos:

As classes acima correspondem à classificação apresentada em nossas


gramáticas normativas. As três primeiras classes (substantivo, adjetivo
e verbo) são as chamadas classes abertas, pois são muito extensas,
não-limitadas e renováveis. Elas também correspondem aos morfemas
lexicais, de acordo com os critérios apresentados na seção 3.2, de
nosso conteúdo, acima.

As classes fechadas, por sua vez, são consideradas classes de palavras


com função gramatical, sendo responsáveis pelo estabelecimento das

»103
relações que se processam entre as palavras lexicais, ou seja, os
lexemas, em nosso encadeamento linguístico.

6. Processos morfológicos -
composição, derivação e flexão

Há duas principais funções na morfologia. Uma é criar formas de


palavras, tais como o plural “bolas” do lexema bola. A outra é criar
novas palavras na base de lexemas pré-existentes na língua. O mais
simples meio de criar uma nova palavra é tomar duas palavras
existentes e combiná-las. Por exemplo, para referirmos um particular
tipo de gênero comestível, designado especificamente para representar
uma dada fruta, nós tomamos o lexema banana e o lexema nanica e
criamos uma nova palavra: banana-nanica.

Isso é chamado de composição e o resultado


é conhecido como palavra composta ou
(mais usualmente) como composto.

Por que “banana-nanica” é uma palavra e não uma frase? A razão é


que ela se comporta como uma única palavra. Por exemplo, nós
podemos modificar a combinação inteira com um adjetivo: “banana-
nanica deliciosa”. Frequentemente, um adjetivo que modifica um nome
pode ser separado do nome por um comentário entre parêntesis:
“Crianças acham realmente a banana-nanica (por exemplo, Victor,
Camila e Igor) deliciosa”. Contudo, nós não podemos separar os
componentes “banana” e “nanica” no composto: *Crianças acham a

104«
banana (por exemplo, Victor, Camila e Igor) nanica deliciosa.

Algumas vezes, identificar compostos como opostos a frases é um


tanto difícil. Para sua análise, é preciso realizar um exame cuidadoso
acerca de sua formação e de seu uso; precisamos também verificar
como os compostos são formados e as propriedades linguísticas que
eles têm. Para nosso propósito, um composto é simplesmente a
concatenação de duas palavras existentes para formar uma
combinação que se comporta como uma única palavra. Quando isso
ocorre, dizemos que a forma resultante foi “lexicalizada” e se encontra
no dicionário da língua.

Agora, considere as palavras “caçador”, “varredor”, “abridor”. São


todas nomes relacionados aos verbos: “caçar”, “varrer”, “abrir”. Grosso
modo, eles significam “pessoa/animal ou instrumento que caça,
varre, abre” e são frequentemente chamados de Nominais Agentivo
ou Instrumental (porque palavras, tais como caçador, referem isso).
Claramente, a sequência final -dor atribui esse novo aspecto de
significado e cria um novo nome de um verbo. Assim, concluímos que
caçador não é uma forma do verbo caçar, enquanto que caçamos ou
caçando são duas formas do respectivo verbo. Além disso, sabemos
que caçador não é um verbo e, assim, tratamos as palavras caçar e
caçador como lexemas distintos.

Isso significa que, com a adição de -dor ao verbo caçar, criamos um


novo lexema de um outro, mais velho.

»105
Essa criação de novos lexemas é chamada de
derivação ou de morfologia derivacional.

No português, as classes abertas ou maiores de lexemas são quatro;


substantivo, adjetivo, verbo e advérbio. As três primeiras podem sofrer
o processo de derivação e mudar de classe. Já o advérbio, apesar de
fazer parte das classes lexicais abertas, não participa da derivação de
forma robusta e regular. Assim também ocorre com as demais classes
de palavras do português, as quais são consideradas “fechadas”:
preposição, artigo, pronome, conjunção, numeral e interjeição.

Vamos considerar palavras como “lavável”, “achável” e “narrável”.


Nessas palavras, o verbo passa a adjetivo, com o valor de “o que pode
ser lavado, achado, narrado”, por meio da adição de “-ável” (também
com forma -ível, como em “cabível”). Em “lealdade”, “ruindade”,
“igualdade”, nós criamos substantivos dos adjetivos “leal”, “ruim”,
“igual”, respectivamente, pela adição de “-dade” (também com forma
“-idade”, como em “felicidade”).

Há casos em que criamos verbos de adjetivos ou substantivos, pela


adição de “-ear”, como em “clarear”, “altear” (dos adjetivos “claro”,
“alto”) e “bombear”, “cabecear” (dos substantivos “bomba”, “cabeça”).

Podemos criar adjetivos de substantivos, como em “floral”, “frutal”,


“invernal”, e verbos de nomes, como em “motorizar”, “demonizar”.

Finalmente, é possível criar um novo lexema sem mudar a categoria

106«
gramatical da palavra. Assim, nós podemos criar os nomes “ferreiro”,
“jardineiro” dos nomes “ferro”, “jardim”, os lexemas adjetivais
“imortal”, “impróprio” dos adjetivos “mortal”, “próprio” e os verbos
“refazer”, “retomar”, “reencontrar”, dos verbos “fazer”, “tomar”,
“encontrar”.

Nós, agora, entendemos dois meios pelos quais novas palavras são
produzidas: nós podemos produzir novos lexemas, tais como
“contador” de “contar”, e podemos produzir formas de palavras de um
único lexema, tal como a forma plural de “bolo” ou a forma do tempo
passado de “olhar”.

A construção de formas de palavras é


conhecida como flexão ou morfologia
flexional.

Assim, através da flexão, temos várias formas de palavras de um


lexema, e não uma mudança de sua classe lexical. As formas flexionais
são também chamadas de formas gramaticais.

Os tipos flexões existentes numa dada língua não são necessariamente


os mesmos observados em uma outra língua. Estamos dizendo, com
isso, que a flexão depende da gramática de língua. Muitas línguas, por
exemplo, não têm formas para indicar pluralidade em nomes, enquanto
outras têm tais formas. Algumas línguas apresentam formas para
indicar o tempo nos verbos, enquanto outras não distinguem o tempo
com a flexão verbal.

»107
Quando línguas distinguem singular do plural ou passado de futuro,
através da mudança da forma de seus lexemas nominais e verbais,
dizemos que elas têm categorias flexionais ou gramaticais de
número e tempo, respectivamente.

Quando um nome está no plural ou um verbo no tempo passado, nós


dizemos que ele tem propriedade flexional de “plural (número)” ou de
“passado (tempo)”.

A construção de formas de lexemas com a


flexão na base de um lexema e a construção
de novos lexemas recebem o nome de
processo morfológico.

Assim, nós podemos falar de processo flexional quando pluralizamos


substantivos e de processo derivacional quando formamos um nome de
um verbo.

6.1 Critérios de distinção:


derivação x flexão

Seguindo o proposto pela linguista Bybee (1987), iremos considerar os


seguintes critérios que servirão de base para distinguirmos os
processos morfológicos da derivação e flexão:

108«
A seguir, retomaremos esses cinco critérios dispostos acima,
apresentando-os individualmente:

a) Obrigatoriedade (previsibilidade)

Flexão + previsível

Derivação - previsível

1. Mora___ n___ cidad___ mais tranquil___, bel___ e limp___


d__ Brasil.
2. Você ______ou seu _____o na ______a mais _____a da
______e.

Observem que os espaços em branco na frase 1. acima correspondem


a partes das palavras que deduzimos facilmente (e quase
integralmente): “Moramos na cidade mais tranquila, bela e limpa do
Brasil”. Isso é possível porque essas partes são as obrigatórias, ou
seja, são os morfemas não-lexicais, também chamados de gramaticais.

»109
Por outro lado, em 2., não conseguiremos completar as partes que
faltam, porque essas correspondem aos morfemas lexicais, que
carregam em seus radicais os significados do mundo exterior à língua.
Mas afinal qual a frase em 2.? A frase é “Você comprou seu carro na
oficina mais cara da cidade”. Como podem ver, esse conteúdo não é
previsível, posto que, quando vamos falar algo, nós escolhemos as
palavras lexicais de acordo com o que queremos comunicar. Dessa
forma, poderíamos ter, entre tantas outras possíveis, as seguintes
frases para 2.: “Você encontrou seu primo na festa mais famosa da
cidade” ou “Você formou seu grupo na prova mais concorrida da
faculdade”.

O critério de obrigatoriedade observado em morfemas gramaticais


indica a diferença entre esses e os morfemas lexicais da língua. Os
morfemas gramaticais têm, portanto, presença requerida pela
gramática e são denominados flexionais. Eles se diferenciam,
sobretudo, dos morfemas derivacionais, que, mesmo sendo morfemas
presos, não são previsíveis, ou seja, obrigatórios.

Por isso, se retomarmos ainda as frases 1. e 2., poderemos refletir o


seguinte: Em 1. , do contexto “Mora__ n_ cidad_ mais tranquil_, bel_
e limp_ d_ Brasil” deduzimos “Moramos na cidade mais tranquila, bela
e limpa do Brasil”. Porém, não aceitaríamos como previsível as
seguintes partes sublinhadas: “Moramos na cidade mais intranquila,
bela e limpinha do Brasil”.

110«
b) Generalidade (+ ou – produtividade)

Flexão + geral

Derivação - geral

O critério da “generalidade” diz respeito à regularidade de ocorrência


do morfema nos membros da classe de palavra. Esse critério deve ser
refletido juntamente com o anterior, o que prevê a obrigatoriedade. Se
um morfema é obrigatório, ele deverá ocorrer em todas ou na maioria
das palavras de uma dada classe. Por isso, o morfema flexional será
também mais geral. Para exemplificar, abaixo temos as desinências
verbais do presente do indicativo e da primeira pessoa do plural que se
repetem em todas as raízes verbais lexicais diferentes.

Ama + mos
Encontra + mos
Saí + mos
Faz (e) + mos
... + mos
... + mos

Por outro lado, a não-obrigatoriedade do morfema derivacional implica


sua ocorrência menos geral. Como podemos verificar nos itens abaixo,
nem todos os adjetivos irão receber o morfema derivacional “-(i)dade”,
e esse é o caso das três últimas palavras, cujos asteriscos indicam que
não são atestadas na língua portuguesa.

»111
Acidental + (i)dade = acidentalidade
Atrativo + (i)dade = atratividade
Razoável + (i)dade = razoabilidade
Cremoso + (i)dade = cremosidade

Formoso + (i)dade = * formosidade


Corajoso + (i)dade = * corajosidade
Belo + (i)dade = * belidade

c) Estabilidade semântica

Flexão + estabilidade

Derivação - estabilidade

A estabilidade diz respeito ao fato de os morfemas flexionais não


alterarem seu significado, pois, por serem obrigatórios, devem
apresentar uma constância em seu valor semântico. Assim, ao dizer
que os morfemas flexionais preservam sua semântica,
independentemente das palavras nas quais ocorrem, estamos dizendo
também que eles são mais estáveis semanticamente. Os morfemas de
passado imperfeito, por exemplo, não altera seu significado, embora, a
depender da conjugação verbal, apresentem alomorfia (formas
variáveis):

112«
anda -va
parti -a
comi -a

Diferentemente, os morfemas derivacionais apresentam menos


estabilidade semântica, por permitirem maior extensão de sentido.
Vejam os diferentes valores semânticos encontrados com a aposição do
sufixo “-oso” à palavra saudade:

Saudoso (Retirado do Dicionário Aurélio, 2000)

(ô). [Por *saudadoso (< saudade + -oso), com


haplologia.]

Adj.

1. Que causa saudades: Muito lhe doeu a morte do


saudoso amigo; "Vai buscar a flauta, Rufino. Ouçam o
Queirós. Não imaginam como ele é saudoso na flauta!"
(Machado de Assis, Várias Histórias, p. 179).

2. Que sente saudades: É muito saudoso do


passado; "E, ao vir do Sol, saudoso e em pranto, / Inda as
procuro [às estrelas] pelo céu deserto." (Olavo Bilac,
Poesias, p. 51).

3. Que denota saudades: "Pois, se os olhos seco / E


não choro mais, / Inda se ouve um eco / De saudosos ais."
(José Albano, Rimas, p. 111); Lançou à terra natal, ao
partir, um olhar saudoso.

»113
d) Relevância semântica

Flexão - relevância, o significado da


palavra não é alterado

Derivação + relevância, o significado da


palavra é alterado

A relevância semântica diz respeito à alteração semântica observada


na palavra quando essa recebe um afixo. Quanto mais alteração
semântica houver, mais o afixo é relevante para a palavra que o
hospeda.

Os morfemas flexionais não alteram o significado dos radicais aos quais


são afixados. Assim, pelo fato de os morfemas flexionais preservarem
a semântica da palavra à qual se prendem, podemos conferir a eles
menor relevância semântica. Isso pode ser observado no plural
indicado a seguir. A pluralização não modifica o significado dos itens
casa e dor:

casa / casas
dor / dores

Os morfemas derivacionais, por sua vez, alteram o significado da


palavra que os recebe. Vemos a seguir, as palavras em pares, com
valores distintos, decorrentes da afixação de morfemas derivacionais.
Vemos, daí, maior relevância semântica do morfema de derivação.

114«
vender (ação) / vendedor (pessoa que vende)
cortar (ação) / cortador (instrumento de corte)
moral / amoral (negação do adjetivo)
encontrar / reencontrar (repetição da ação)

Essa distinção também explica claramente o fato de a derivação


ocorrer mais próxima do radical e de a flexão ser mais periférica:

Inaugurar + dor + es = inauguradores


(deriv.) (flex.)

e) Mudança de classe de palavra

Flexão + estabilidade

Derivação - estabilidade

Esse critério se refere à possibilidade de o morfema derivacional poder


promover a alteração de classe da palavra. Esse processo nunca é
decorrente da flexão.

Verbo + al + izar = verbalizar


(subs) (adj.) (verb.)

Os critérios apresentados acima buscam dar conta das diferenças


morfológicas existentes entre um processo que promove a variação

»115
morfológica da palavra – sem maiores implicações para a semântica da
palavra –, que é a flexão, e um outro processo que tem a propriedade
lexicogênica, ou seja, que promove a criação de uma nova palavra na
língua: a derivação.

7. Tipos de flexão: nominal e


verbal

Nessa seção, iremos estudar o processo de flexão nominal e verbal.


Para isso, recomendamos a leitura do livro de Mattoso Câmara (1977)
e de Silva e Koch (2007).

7.1. Estrutura do Nome

O Nome compreende as classes de Substantivo e Adjetivo. A estrutura


do nome pode ser representada pela seguinte fórmula:

T (R + VT) + SFG + SFN

T = tema

R = radical

VT = vogal temática

SFG = sufixo flexional de gênero

SFN = sufixo flexional de número

116«
Flexão de Número

Seguindo a proposta de Mattoso Câmara Jr. (1977), abaixo são


apresentados os condicionamentos das realizações do morfema
indicativo do número:

Morfema Plural – arquifonema /S/: Oposto ao Morfema Flexional de


Singular {}

A) Alomorfes fonologicamente condicionados:

• sibilantes :

[s] pós-vocálica e/ou precedida por consoante


surda e silêncio.




[z] pós-vocálica e precedida por consoante


sonora e vogal.




»117
• chiantes :

 pós-vocálica e/ou precedida por consoante


surda e silêncio.




 pós-vocálica e precedida por consoante


sonora.




B) Alomorfes morfologicamente condicionados:

• Alomorfe {}

Exs.: lápis, simples, pires

• Reposição vogal temática + {S}

a) /S , R/

paz + e + S mar + e + S

118«
b) /l/

1. /l/ após vogal, não /i/:

formal + (e) + s  forma + i + s

quartel + (e) + s  quarté + i + s

2. /l/ após /i/ átono:

estéril + e + s  estére + e + s

dócil +e+s  doce +e+s

3. /l/ após /i/ tônico:

sutil +s  suti + s

A interpretação para a flexão de gênero em português é atualmente


controversa. Embora a interpretação flexional desse processo seja às
vezes refutada, neste estudo introdutório, partiremos da visão clássica
que admite o gênero como fruto de processo flexional. Um de seus
argumentos diz respeito ao fato de que o gênero participa da
morfossintaxe através da regra de concordância nominal. Seguindo o
disposto em Mattoso Câmara (1977), o morfema de gênero apresenta
a oposição entre morfema masculino zero “-” e morfema de gênero
feminino “-a”.

As discussões sobre a posição de Mattoso Câmara devem ser


acompanhadas da leitura cuidadosa de seu texto.

»119
7.2. Estrutura do Verbo

O verbo é a classe de palavra mais complexa morfologicamente. De


sua estrutura, podemos deduzir a seguinte Fórmula Geral para a
palavra verbal.

T (R + VT) + SF (SMT + SNP)

T = tema

R = radical

VT = vogal temática

SF = sufixo flexional

SMT = sufixo modo-temporal

SNP = sufixo número-pessoal

Para o estudo da estrutura verbal iremos refletir o conteúdo


sobre o assunto presente na obra “Estrutura da Língua
Portuguesa” (MATTOSO CÂMARA Jr., 1977). Nesse livro, o autor
apresenta sua análise da morfologia verbal dos verbos regulares
e irregulares do português, demonstrando que mesmo os
irregulares apresentam alguma regularidade. A leitura desse
conteúdo é fundamental para a compreensão e segmentação da
estrutura da palavra verbal.

120«
8. Morfologia não-concatenativa

Por morfologia não-concatenativa, tratamos dos processos


morfológicos que se dão através da reduplicação (repetição de
fonema(s), sílaba(s) em uma palavra) ou do truncamento (redução de
parte da palavra).

Como casos de reduplicação temos:

pai / papai

mãe / mamãe

tia / titia

Em formas onomatopaicas, muitas vezes, o léxico apresenta apenas a


forma reduplicada:

cocoricar

gargalhar

O truncamento se verifica através da diminuição da estrutura


fonológica da palavra. A perda de parte da palavra não ocorre de forma
aleatória, o processo se dá de acordo com as possibilidades
morfológicas e fonológicas da língua e podem variar de dialeto para
dialeto:

»121
professora / prof(e)

refrigerador / refri

apartamento / ap

Uma outra forma de truncamento decorre da formação de uma palavra


através da aglutinação ou fusão de duas palavras.

Aborrecer + adolescência = aborrescência

Apertado + apartamento = apertamento

Essas são fontes também lexicogênicas no português. Embora não


sejam tão regulares em ocorrência nas palavras que constituem uma
dada classe, sua formação obedece às restrições impostas pela
gramática da língua. Por exemplo, o resultado fônico da palavra
reduplicada ou da que sofreu truncamento obedece, em geral, as
regras de acentuação do português.

Referências

Bibliografia básica:

LAROCA, Maria Nazaré de Carvalho. 2003. Manual de Morfologia do


Português. Campinas: Pontes; MG: UFIF.

122«
MATTOSO CÂMARA JR, Joaquim. 1976. Estrutura da Língua
Portuguesa. Petrópolis: Vozes.

SILVA, Maria Cecília Perez de Souza; KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça.


2007. Linguística aplicada ao português: morfologia. São Paulo:
Editora Cortez.

Bibliografia complementar:

BASÍLIO, Margarida. 1989. Teoria Lexical. São Paulo: Editora Ática,


Série Princípios 88.

BECHARA, Evanildo. 2002. Moderna Gramática Portuguesa. São


Paulo: Companhia Editora Nacional. Edição Revista e Ampliada.

CASTILHO, Ataliba Teixeira de (org).1996. Gramática do Português


Falado. Volume III: As abordagens, São Paulo: Editora UNICAMP.

CUNHA, Celso; CINTRA, Luis F. Lindley. 2001. Nova Gramática do


Português Contemporâneo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. Edição
Revista.

ILARI, Rodolfo (org). 1993. Gramática do Português Falado.


Volume II: Níveis de análise linguística, São Paulo: Editora UNICAMP.

KATO, Mary A. (org). 1996. Gramática do Português Falado.


Volume V: Convergências, São Paulo: Editora UNICAMP.

KEDHI, Valter. 1992. Formação de Palavras em Português. São


Paulo: Editora Ática, Série Princípios 215.

______. 1993. Morfemas do Português. São Paulo: Editora Ática,


Série Princípios 188.

»123
MATTOSO CÂMARA JR, Joaquim. 1989. Princípios de Linguística
Geral. Rio de Janeiro: Acadêmica.

______. 1977. Dicionário de Filologia e Gramática referente à


língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Acadêmica.

NEVES, Maria Helena. 2002. A Gramática: história, teoria e análise,


ensino. São Paulo: UNESP.

ROCHA, Luiz Carlos de Assis. 1998. Estruturas Morfológicas do


Português. Minas Gerais: Ed. Da UFMG.

ROSA, Maria Carlota. 2000. Introdução à Morfologia. São Paulo:


Editora Contexto.

SANDMANN, Antônio J. 1993. Morfologia Geral. São Paulo: Editora


Contexto. (1991, 1a edição).

Website do linguista Andrew Spencer:


<http://privatewww.essex.ac.uk/~spena/>.

124«
Língua Portuguesa: Vocábulo – Stella Telles

ATIVIDADES

Atividade 1

Faça uma pesquisa na bibliografia recomendada e em outras fontes


que, porventura, você disponha sobre o conceito de “morfologia” e
apresente um resumo acerca do conteúdo da seção 1.

Atividade 2

De acordo com o apresentado na seção 2, apresente 10 lexemas do


português (da classe dos substantivos), cada um com três formas
diferentes.

Atividade 3

Apresente mais 20 palavras constituídas de uma forma livre.

Atividade 4

Pesquise e apresente os conceitos de “semantema” e “radical”.

Atividade 5

Traga 20 exemplos de palavras estruturadas morfologicamente.

»125
Atividade 6

Forneça exemplos de “palavras lexicais” e “morfemas não-lexicais”


para cada critério apresentado (de “a” a “f”).

Atividade 7

Estabeleça a distinção entre “morfema zero e alomorfe zero”. Forneça


exemplos.

Atividade 8

Pesquise, em gramáticas normativas do português, as subclassificações


do substantivo e verbo.

Atividade 9

Apresente os morfemas derivacionais que alteram classes de palavras


da língua portuguesa. Identifique a classe do lexema não-derivado e a
nova classe decorrente da derivação.

Atividade 10

Seguindo o modelo exposto nessa seção, forneça exemplos para os


critérios que diferenciam os processos morfológicos derivacionais dos
flexionais.

126«
Atividade 11

Reflita o conceito e o processo morfológico do gênero apresentado por


Mattoso Câmara em “Estrutura da Língua Portuguesa” e exponha seu
entendimento e ou questionamentos sobre o assunto.

Atividade 12

Identifique estruturalmente, em palavras da língua, o morfema de


plural e seus alomorfes.

Atividade 13

A partir da estrutura da palavra verbal apresentada nesta seção 7.2 e


após o complemento de conteúdo em nossa conversa na plataforma,
escolha um verbo para cada conjugação da língua, conjugue-os e
identifique os morfemas que constituem cada forma de palavra verbal.

Atividade 14

Forneça 10 (dez) exemplos de palavras que sofreram processo de


truncamento.

»127
128«
Aldo de Lima

TEORIA DA LITERATURA II
130«
Introdução

A poesia, a prosa e o teatro como discursos de representação


histórico-sociocultural

Em sua conferência Educação e inclusão social, na 55ª Reunião da


SBPC – Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – realizada no
Centro de Convenções da UFPE, aos 14 de julho de 2003, o então
Ministro da Educação, Professor Cristóvão Buarque, falou sobre um dos
problemas da contemporaneidade globalizada: a dessemelhança.

Para exemplificá-la, o Professor se referiu, não às diferenças


socioculturais entre uma criança que nasce nos Alpes suíços e outra
que nasce nas regiões miseráveis da África, mas às dessemelhanças
que as distanciam das identidades humanas, provocadas por uma
política socioeconômica que a poucos proporciona tudo o que a ciência
e a tecnologia produzem e a muitos quase nada, ou nada, do que é
produzido para o bem-estar do ser humano. A reflexão contundente
acerca dessa dessemelhança faz, como o próprio Professor disse,
alguns de seus ouvintes interpretá-lo como sinistro, ou coisa que o
valha.

Nada, no entanto, há de sinistro em suas palavras. Diríamos realidade.


Uma realidade que, como argumentou o Professor, tem urgência de ser
combatida e superada com a contribuição de uma Universidade
vanguardista, dinâmica, pública e gratuita, e pela Poesia. Sim, pela

»131
Poesia! Para sobressalto de Platão e de seus discípulos1. Só os poetas,
afirmou o Professor Cristóvão Buarque, são capazes de enxergar o que
está além dos dramas humanos e propor um mundo sem diferenças,
ou, usando a sua palavra, dessemelhanças.

Essa afirmação, embora sem novidade, não deixou de ter uma grande
repercussão porque, primeiro: foi dita numa reunião científica, pública,
onde a educação, a ciência e a tecnologia debateram a inclusão social;
segundo: junta-se a uma tradição que ratifica a vocação e os
conteúdos utópicos da poesia. Utopia, assinale-se, no contexto da
lição de Karl Mannheim, para quem um estado de espírito é utópico
quando está em incongruência com o estado de realidade dentro do
qual ocorre, in: Ideologia e utopia. Nesta perspectiva, as utopias
contêm um elemento transformador porque são ideias, representações
que visam a uma nova realidade. Com efeito, o poeta é utópico não só
porque realiza um produto espiritual, mas porque, observando seu
tempo incongruentemente, abala determinado estado da realidade. É
neste sentido que a Poesia é fonte de conhecimento, de transformação,
de inclusão, de cidadania. Por isso, ela existe. Existe para um certo
deleite espiritual, em cujo percurso se transforma em um diálogo
humanizador, porque voltado para o nosso entendimento recíproco. Daí
ser necessária no conjunto de nossas produções de conhecimento.
Basilar no processo civilizador e transformador que realizamos na

1
Conforme já lemos no primeiro ponto de Teoria da Literatura I, Platão proibiu
a presença dos poetas na sua República porque são imitadores, ou seja, autores
de uma produção afastada três graus da natureza: desse modo, o autor de
tragédias, se é um imitador, estará por natureza afastado três graus do rei e da
verdade, assim como todos os outros imitadores (PLATÃO. p. 324. Op. cit. Cf.
ref. bib.).

132«
construção de nossa história sociocultural, na construção de nossa
Humanização.

Também a prosa insere-se neste contexto de prazer estético, em cujo


percurso constrói um diálogo cujo conteúdo de observação e
interrogação acerca do ser humano aproxima-os em suas necessidades
históricas. Lembremo-nos, neste sentido, da ascensão do romance no
Romantismo, em cuja trama protagonizará elementos da vida burguesa
que compunham cada vez mais as paisagens urbanas.

Desde então, o romance metaforiza a


realidade social de um ser humano, histórico,
intérprete e crítico de si mesmo. Com efeito, a
dialética sociedade/romance está na gênese deste
gênero cujo conteúdo/fôrma2 vai exceder suas

2
Aurélio Buarque conserva o acento em fôrma para designar o recipiente.
Assim, tem-se:
“fôrma. [De forma, com mudança de timbre] S.f. 1. Modelo oco onde se põe
metal derretido, material em estado plástico, vidro ou qualquer que,
solidificando-se, tomará a forma desejada; molde. [...] 9. Fig. Aquilo que impõe
normas a uma personalidade, a uma obra, eliminado-lhes as características
individuais: Aquele colégio é uma verdadeira fôrma; suas alunas pensam todas
de maneira igual. [Pl.: fôrmas. Cf. forma e formas do verbo formar , e forma,
s.f., e pl. formas. Parece-nos inaceitável (não só nesta palavra, mas, talvez,
sobretudo nela) a abolição do acento diferencial, decorrente da Lei no. 5 765,
de 18/12/1971, que estabelece alterações no sistema ortográfico de 1943.
Considerem-se estes versos de Manuel Bandeira: “Vai por cinquenta anos / Que
lhes dei a norma: / Reduzi sem danos / A fôrmas a forma.” (Estrela da Vida
Inteira, p.51.) Seria inteiramente impossível perceber o sentido da estrofe se
não fora o acento diferencial. O mesmo se dirá disto de Martins Fontes: “Pela
penugem, primeiro, / E, depois, segundo a norma, / Pelo gosto, pelo cheiro, /
Pela fôrma, ou pela forma, / Certas frutas européias, / Como o pêssego – oh!
prazer! – / Por vezes nos dão idéias / Que me acanho de dizer.” (Sol das Almas,
p. 40.) Veja-se, ainda, Emanuel de Morais, Manuel Bandeira, pp.29, 43 (três

»133
fronteiras urbanas e chegar aos universos mais
longínquos de uma sociedade provinciana ou rural,
contagiada por típicos problemas dos costumes e
hábitos burgueses, ou pequenos burgueses. Os
exemplos, neste contexto, formam uma expressiva
lista, mas assinalemos em Portugal: O crime do
Padre Amaro; na Inglaterra: Judas, o obscuro; na
França: Madame Bovary; na modernidade
brasileira: São Bernardo.

Desde suas raízes, o romance coincide com a vocação globalizadora da


classe social que definiu sua estrutura como hoje a conhecemos. Toda
a nossa história moderna, todos os nossos conflitos, todas as nossas
contradições e realizações, todas as nossas heranças culturais
submetidas às visões sociais de mundo de uma burguesia utópica, ou
ideológica, estão na trama do romance cuja trajetória transformou-o
numa vasta metáfora de nosso projeto histórico-sociocultural.

Quanto ao teatro, “ninguém duvida do fato de que o espetáculo de


uma tragédia, ou mesmo de uma comédia, provoca no homem reações
agradáveis e até apaziguantes. [...] O teatro permanece uma
representação, isto é, uma série de ações cujas consequências não
passam de imaginárias e o espectador ou o intérprete que aí se
entrega sob a máscara do personagem pode exprimir-se sem nenhum
receio de prejudicar a outrem e com um sentimento de liberdade total,
que o alivia. É este alívio que denominamos catarse, a purgação das
paixões” (O teatro e a angústia dos homens. Rio de Janeiro: Duas

vezes), 44.)] In: Novo dicionário da língua portuguesa. 2. ed. Rio de


Janeiro: Nova Fronteira, 1986”.

134«
Cidades, 1970, p. 9,10, 35). É no conceito aristotélico de catarse que
se encontra uma das grandes lições a respeito da representação social
inerente à Arte.

Neste programa de Teoria da Literatura II, além de introduzirmos um


pequeno estudo sobre o teatro, iremos aprofundar um assunto já
estudado no programa de Teoria da Literatura I: a especificidade do
texto literário: função poética, estudo dos gêneros e formas literárias.

1. Poesia e prosa

Ainda que a tradição procure estabelecer certas distinções entre poesia


e prosa, os resultados não são satisfatórios porque a questão não se
encerra no aspecto formal, ou seja, de a poesia apresentar-se, em
princípio, em verso, metrificado ou livre, e a prosa, não-versificada.
Neste contexto, lembremo-nos de que há poesia e poemas em prosa.

Também não será no aspecto do conteúdo porque uma como a outra


têm em comum o ser humano como seus grandes assuntos; há de
assinalar ainda que tanto no poema e nas formas fixas da poesia (o
soneto, por exemplo) como nas formas da prosa (o romance) o poeta e
o prosador imitam a natureza (Imitar naquela interpretação aristotélica
já estudada em Teoria da Literatura I).

Como distinguir então poesia e prosa se até seus instrumentos de


trabalho, que são as palavras, são os mesmos? Como funciona a

»135
palavra na poesia? Como funciona a palavra na prosa? Sabemos que,
tanto naquela como nesta, a palavra não deixa de expressar seu ritmo
e uma certa melodia, nem de ser, na lição de Aristóteles, enérgeia:
força em ação, vigor.

Uma diferença fundamental parece estar na questão que envolve a


metáfora, na medida em que a Literatura interroga e depõe sobre a
vida e o ser humano metaforicamente. Isso significa que, no processo
de comunicação, um código comum que obrigatoriamente deve existir
entre o emissor e o destinatário, na Literatura é quase nulo. Sobretudo
na poesia, a metáfora literária é mais espessa, porque é muito distante
do uso referencial do signo linguístico:

“o que a linguagem poética comunica é o que a linguagem


veicular deixa de comunicar; enquanto esta última retrocede
perante a ambiguidade (preocupação de concisão, por exemplo)
e a exclui, sempre que a eficácia da comunicação estiver em
perigo, a mensagem poética organiza sua mensagem
ambicionando torná-la cada vez mais ambígua,”

é o que ensinam Daniel Delas e Jacques Filliolet, em Linguística e


poética, p. 237.

Para o poeta norte-americano Ezra Pound, 1885-1972, a linguagem da


prosa é muito menos carregada; talvez seja esta a única distinção
eficaz entre poesia e prosa. A prosa permite maior apresentação fatual,
maior precisão, exigindo porém número muito maior de palavras (A
arte da poesia. São Paulo: Cultrix, 1976. p. 38).

136«
Neste contexto, passemos então para o próximo ponto que nos informa
acerca da metáfora a qual, para Aristóteles, permite dar ao estilo maior
dignidade (Arte retórica. Op. cit. p.176).

Leitura complementar

Uma vez que nos referimos ao poema em prosa, leia e pense


sobre o poema em prosa de Murilo Mendes (1901/1975) que
transcrevemos a seguir. Antes, no entanto, citamos um
comentário da Profª. Luciana Stegagno Picchio acerca da prosa
escrita por este Poeta:

[...] “a prosa de Murilo é tão imaginativa, sintética, poética (no


sentido estruturalista de virada para si própria) como o é a sua
poesia. A escolha de uma ou outra forma, com uma separação
nada nítida entre os dois níveis expressivos, só depende da
funcionalidade do texto, da mensagem que lhe é confiada.
Como os poemas propriamente ditos, sua disposição gráfica,
pelo acento colocado no significante, pela concentração
sintética da informação delegada a vocábulos polissêmicos e
irradiantes, antes que a termos denotativos, as prosas
murilianas se colocam no eixo paradigmático da metáfora,
muito mais do que ao longo do eixo metonímico do sintagma. E
por isso, quando topamos com o trecho informativo, humilde,
embora às vezes ironicamente esclarecedor, temos como que a
surpresa duma intrusão. Estas aparentes intrusões de materiais
espúrios, estas bruscas mudanças de estilo, estas „quedas‟, se

»137
quisermos, são porém as que nos fornecem a chave última para
uma leitura do Murilo mais secreto e vulnerável, e talvez por
isso mesmo mais humano e universal, mais moderno. Não vale,
para a prosa poética, invocar pressupostos ascendentes
culturais simbolistas, o poema em prosa francês e português,
mas apenas o desejo de capturar o real na forma mais
econômica, mais sintética possível” (In: Transistor; antologia
de prosa 1931-1974. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980, p.
13.)

O poema em prosa que transcrevemos está neste mesmo livro


(p. 89.). Observe que nas palavras da Profa. Luciana Picchio
existe um conceito de prosa poética e poema em prosa.

O porquinho-da-índia

O porquinho-da-índia é um animal muito gracioso e fino, nada


erpe, que me fez uma reverência, sorrindo-me com malícia, a
primeira vez que o encontrei – há muitos anos – atravessando
meio desconfiado o soalho de uma poesia de Manuel Bandeira.

O poema (do livro Libertinagem), ou a poesia como está escrito,


de Manuel Bandeira (1886/1968), a que se refere Murilo
Mendes é o seguinte:

138«
Porquinho-da-índia

Quando eu tinha seis anos

Ganhei um porquinho-da-índia.

Que dor no coração me dava

Porque o bichinho só queria estar debaixo do

[fogão!

Levava ele pra sala

Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos

Ele não gostava:

Queria era estar debaixo do fogão.

Não fazia caso nenhum das minhas

[ternurinhas...

- O meu porquinho-da-índia foi a minha

[primeira namorada.

»139
2. A metáfora

2.1 A lição do Ledor

É com Aristóteles (o Ledor, como o chamava Platão) que se inicia, no


Ocidente, o debate teórico e funcional sobre a metáfora. O conceito
pioneiro aparece na Poética - capítulo XXI, e é assunto nos capítulos
IX, XVI, XXII. Na Arte retórica - Livro III, ele volta a abordá-lo nos
capítulos II, III, IV, VI, X, XI. Também em outros tratados ele se refere
à metáfora conforme veremos no desenvolvimento deste capítulo.

Em princípio, pode nos parecer que o Estagirita, ao argumentar na


Poética que a metáfora consiste no transportar3 para uma coisa o
nome de outra, ou do gênero para a espécie, ou da espécie para o
gênero, ou da espécie de uma para a espécie de outra, ou por
analogia1, não tenha reconhecido na produção metafórica um ato
criativo. Muito pelo contrário. Entendendo que a metáfora revela o
engenho natural do poeta; com efeito, bem saber descobrir as
metáforas significa bem se aperceber das semelhanças4, Aristóteles

3
A medicina antiga – e também a Filosofia, começando por Platão – atribuíam a
faculdade poética a um transtorno psíquico. Era uma mania, quer dizer, um
furor sagrado, um entusiasmo, um transporte [grifo nosso]. (PAZ, Octavio. A
outra voz. São Paulo: Siciliano, 1993. p. 140). Indagamos: será que também
Aristóteles chegou a adotar essa ideia, na medida em a palavra grega
methaforá significa transporte? Será que tudo o que ele teorizou acerca da
metáfora faz parte dessa tradição assinalada por Octavio Paz?
4
A tese acerca da semelhança era comum entre os gregos. Também Platão
assim compreende o trabalho do artista. No diálogo entre Sócrates e Adimanto,
Livro II, d‟ A república, lemos o seguinte: Adimanto – quais são essas fábulas e

140«
viu, neste engenho, uma forma e uma fonte de conhecimento cujos
processos e produtos resultam de um associacionismo através do qual,
como ele entendia, o ser humano constrói o conhecimento.
Consequência desse associacionismo é sua preferência pela metáfora
formada a partir da analogia: das quatro espécies de metáforas,
apreciamos sobretudo as que se baseiam na analogia3, e seu conceito
de poesia como imitação, a mímese - capítulo I da Poética.

Apesar de as lições dos capítulos XXI e XXII da Poética apontarem o


transportar e a semelhança como processos formadores da metáfora,
Aristóteles, como acabamos de ler, também ensina que ela, mesmo
como produto do processo analógico, pode ser formada com a falta de
um nome, ou com a negação de suas qualidades próprias. No capítulo
XI, Livro III, da Arte Retórica, ele diz, no entanto, que devemos tirar
as metáforas das coisas que nos são chegadas, sem serem demasiado
evidentes4.

Muito embora tenha sua preferência pelo processo analógico, a lição


sobre a “falta de um nome” ou “a negação das suas qualidades
próprias” redireciona o próprio conceito de metáfora defendido pelo
Estagirita. Para quem viu “qualidades próprias” no signo linguístico, a
metáfora estaria mesmo submetida à ideia do transportar e da
semelhança. Mas a inteligência racional que observa e argumenta que
não é ofício do poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar

o que há nelas de condenável? Sócrates – o que antes e acima de tudo deve ser
condenado, mormente quando a mentira não possui beleza. Adimanto – e
quando não possui? Sócrates – quando os deuses e os heróis são mal
representados, como um pintor que pinta objetos sem nenhuma semelhança
com os que pretendia representar. (A república. São Paulo: Nova Cultural,
1997. p. 65).

»141
27

o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a


verossimilhança e a necessidade5, é a mesma que ultrapassa a
compreensão das “qualidades próprias” do signo linguístico para
observar as “qualidades verossímeis” da metáfora.

Como se vê, tanto o processo como o conteúdo metafórico, desde os


ensinamentos de Aristóteles, não podem ser explicados apenas através
de uma paráfrase que restitua ao nome que foi substituído, figurado, a
sua “qualidade própria”. Se assim o fosse, a metáfora seria tão-
somente uma comparação entre um ser e outro ser, entre um ser e um
objeto, ou vice-versa, e a poesia uma forma e uma fonte de
conhecimento alienadas da natureza. O que seria um contrassenso. Ao
argumentar a catarse, o Ledor já dava lições sobre os conteúdos
psicossociais da arte. Da arte como uma necessidade histórica para
expressão, socialização e purificação de nossas visões de mundo e dos
nossos impulsos íntimos. Por conseguinte, a lição da catarse –
interpretada por Jean Piaget no seu Problemas de psicologia genética
como uma tomada de consciência dos conflitos afetivos e uma
reorganização que permite ultrapassá-los – dá conta não só dos
conteúdos sociais como dos conteúdos terapêuticos e éticos da arte.

Com uma visão pragmática e racionalista sobre a arte: a arte é


idêntica a uma capacidade de produzir, envolvendo o reto raciocínio.
Toda arte relaciona-se à criação e ocupa-se em inventar e em estudar
as maneiras de produzir alguma coisa que pode existir ou não e cuja
origem está em quem produz, e não no que é produzido 6, o Estagirita
não poderia interpretar como espúrio o trabalho do poeta. Ao dizer que
o poeta é imitador, Aristóteles ratifica o vínculo entre poesia e
conhecimento, poesia e natureza, sem comprometer, no entanto, sua

142«
autonomia porque, como ele mesmo argumenta, a poesia trabalha com
o verossímil: a epopeia, a tragédia, assim como a poesia ditirâmbica e
a maior parte da aulética e da citarística, todas são, em geral,
imitações7. O poeta é um imitador na medida em que o imitar é
congênito no homem (e nisso difere dos outros viventes, pois, de
todos, é ele o mais imitador e, por imitação, apreende as primeiras
noções), e os homens se comprazem no imitado8. Esta congenialidade,
segundo o Ledor, é uma das causas que contribuiu para a criação da
poesia: pelas precedentes considerações se manifesta que não é ofício
do poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que
poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a
verossimilhança e a necessidade. [...] Porque ele é poeta pela imitação
e porque imita ações9.

Ao comentar o conceito aristotélico de poesia como imitação, Octavio


Paz10 assinala que não se pode compreender com toda a clareza o que
significa a imitação ensinada por Aristóteles se esquecermos que para
ele a natureza é um todo animado, um organismo e um modelo vivo.

Para Aristóteles e para todo o povo grego. Lembremo-nos da lição de


Werner Jaeger11 quando ensina que o conceito de natureza construído
pelos gregos é de origem espiritual. Antes mesmo desta concepção,
segundo a interpretação de Jaeger, os gregos já entendiam as coisas
do mundo inalienáveis entre si, numa conexão viva onde tudo ganhava
posição e sentido. A vocação do espírito grego para a apreensão das
leis da realidade manifestava-se patente em todas as esferas da vida:
pensamento, linguagem, ação e todas as formas de arte. Tudo se
concentra na concepção do ser como estrutura natural, amadurecida,
originária e orgânica.

»143
Este senso de natureza5, apontado por Jaeger, leva-nos a outra lição
de Octavio Paz que aprofunda a compreensão do que o Estagirita
argumentou acerca da poesia como imitação da natureza: desse
modo, a “ocorrência” poética não brota do nada, nem o poeta a extrai
de si mesmo: ela é o fruto do encontro entre a natureza animada, dona
de existência própria, e a alma do poeta12.

De onde concluímos que a compreensão da dialética


arte/natureza/sociedade é tão clássica quanto Aristóteles, e a
interferência da arte sobre a natureza - porque esta, na sua
interpretação, não é capaz de realizar-se plenamente13 - é tão natural
quanto o trabalho do poeta que a imita para algum fim:

5
Garcia Bacca interpreta e explica a Poética a partir das relações do povo grego
com a natureza: toda la filosofía griega, como ya es del dominio común, está
impregnada de un hylozoísmo o animismo más o menos sutil y disimulado,
operante siempre; es el resto de mentalidad primitiva que en el heleno
quedaba. [...] Podemos, pues, añadir, sin bajar a detalles, que se irán
descubriendo poco a poco en sus respectivos lugares que: el plan de la Poética
jnnes un plan hylozoísta. (Poética. Versión directa, introducción y notas de
Juan David Garcia Bacca. 2. ed. Caracas: Universidad Central de Venezuela,
1970. p. 9-10) [grifo do autor]. Ao comentar o conceito de Aristóteles sobre a
arte: a arte, por um lado, completa o que a natureza é impotente a efetuar, por
outro lado a imita – In: Física, II 8 199 a 15-70, Pe. Marie-Dominique Philippe
defende que não se trata de copiar, reproduzir a natureza. O Sábio quer dizer
que a arte age como a natureza: é princípio de movimento, de realização que
tem sua determinação própria, seu fim próprio, seus meios próprios. Em outras
palavras, a arte implica toda uma “técnica” orientada conscientemente para
uma obra precisa a realizar. O Filósofo, além disso, precisa bem que a arte
“completa e imita a natureza”: a arte realiza o que a natureza não pode fazer,
pois a natureza do universo físico não tem esse concurso imanente e imediato
da inteligência. A produção artística é obra da inteligência. Por isso a arte pode
expressar e dizer certa perfeição que a natureza, na maioria dos casos, não
pode exprimir. Aristóteles o mostra, sobretudo, com respeito ao poeta, pois
talvez seja na poesia, na tragédia, que isso se manifesta melhor. (Introdução à
filosofia de Aristóteles. São Paulo: Paulus, 2002. p. 99).

144«
“não deve ser esquecido que a natureza, para Aristóteles, é
sempre orientada por um fim, por isso imitá-la, ou aperfeiçoá-
la, significa perseguir por meio da arte os mesmos fins próprios
dela. [...] A consequência desta concepção é que não apenas o
termo „arte‟ frequentemente é, para Aristóteles, sinônimo de
„ciência‟, mas também que a arte coincide exatamente com
certo tipo de ciência, as assim chamadas „ciências poiéticas‟, ou
produtivas”.14

À proporção que imita as ações e a vida, a tragédia não é imitação de


homens, mas de ações e de vida [...] e a própria finalidade da vida é
uma ação15, a poesia, na interpretação de Aristóteles, é uma forma de
conhecimento, porque a imitação é um ato cognitivo. É importante
realçar que o pensamento do Ledor acerca da imitação antecede as
lições do mais obstinado interacionista que a Epistemologia conhece:
Jean Piaget, em cujo livro A formação do símbolo na criança, dedica
toda a sua primeira parte à gênese da imitação.

No âmbito do conceito aristotélico, a metáfora é gênero, isto é,


princípio básico, e não espécie. É neste sentido que nele não há

»145
diferença entre metonímia6 e metáfora, embora seja possível
caracterizá-las: a metáfora, pela similaridade e analogia; a metonímia,

6
Metonímia é uma palavra que não aparece na Poética, nem na Arte retórica.
Gilberto Mendonça Teles ensina que o termo metonímia deve ter sido criado no
período do helenismo greco-latino. E foi possivelmente o retor Dionísio de
Halicarnasso quem o levou para Roma, no tempo de Augusto. Quintiliano
divulgou-o na sua Institutio oratoria (VIII, 6, 23), aparecendo assim descrito na
Retórica a Herênio (IV, 43): “ornamento que, de objetos vizinhos e análogos,
tira uma expressão que sugere a ideia de um objeto que não é chamado por seu
nome, como se alguém, falando de Tarpeius, o chamasse Capitolino”. O
mesmo fenômeno expressivo era também conhecido em Roma por denominatio,
epitimeses e hipálage, tal como aparece no Orator ad M. Brutum (27, 93), de
Cícero. (Retórica do silêncio I: teoria e prática do texto literário. 2. ed. Rio de
Janeiro: J. Olympio, 1989. p. 374). Há pesquisadores que não veem diferença
entre metonímia e sinédoque. Wolfgang Kaiser (Análise e interpretação da obra
literária. 6. ed. Coimbra: Armênio Amado, 1976. p. 120) entende que entre
sinédoque e metonímia não é costume estabelecer hoje grande diferença. Em
ambos os casos se trata de um desvio, tomando a parte pelo todo (lar, em vez
de casa de família), a matéria pelo produto (uva por vinho), um indício somático
pelo indivíduo ou grupo de indivíduos (cabelo branco por velhice), o autor pela
obra (ler Homero), a causa ou meio pelo efeito (língua em vez de idioma, letra
em vez de caligrafia), etc., etc. Pode dar-se também o caso contrário e termos,
então, de partir da generalidade para o caso especial (mortais em vez de
homens). Roman Jakobson também vê a sinédoque no âmbito da contiguidade:
seguindo a linha das relações de contiguidade, o autor realista realiza
digressões metonímicas, indo da intriga à atmosfera e das personagens ao
quadro espácio-temporal. Mostra-se ávido de pormenores sinedóquicos. Na
cena do suicídio de Anna Karenina, a atenção artística de Tolstoi se concentra
na bolsa da heroína; e em Guerra e paz, as sinédoques “buço no lábio superior”
e ”ombros nus” são utilizadas pelo mesmo escritor para designar as
personagens femininas às quais esses traços pertencem. (Linguística e
comunicação. São Paulo: Cultrix, 1994. p. 57). Umberto Eco, no entanto,
argumenta que nos quatro tipos de metáfora ensinados por Aristóteles, dois são
sinédoques: gênero a espécie; espécie a gênero. Este argumento ele defende e
explica no terceiro capítulo do seu Conceito de texto. São Paulo: Edusp, 1984.
Tanto neste capítulo como no quarto, Eco explana suas interpretações acerca da
metáfora ora como produto de semelhanças, ora como produto de oposição:
percebe-se que o fato de a metáfora recorrer a semelhanças não é uma
definição muito convincente. Recorre a semelhanças desde que existam muitas
oposições (p. 87).

146«
pela contiguidade do gênero para a espécie, da espécie para o gênero,
da espécie de uma para a espécie de outra.

Na Arte retórica, Aristóteles ensina que não há ninguém que na


conversação corrente não se sirva de metáforas 16. A inclusão do
assunto nesta Arte caracteriza a metáfora como um instrumento de
comunicação tanto do discurso poético como do retórico. Por
conseguinte, vê-se que seu mecanismo básico, o transportar e a
similaridade, exerce duas funções: uma poética, que está ligada à
mimese; outra retórica, ligada à persuasão. Não esqueçamos, contudo,
que o Sábio proscreve a metáfora da argumentação científica porque
ela lhe é imprópria:

“outro lugar-comum consiste em ver se o opositor falou por


metáfora, por exemplo, se definiu ciência como irrevogável, ou
terra como nutriz, ou temperança como harmonia, uma vez que
tudo quanto se diz por metáfora é obscuro”.17

Também nos Analíticos posteriores e nos Tópicos, a lição se repete.


Naquele, lê-se o seguinte: se, na controvérsia dialética temos de evitar
as metáforas, é também evidente que não nos devemos servir de
metáforas, nem de expressões metafóricas na definição, de contrário
também a dialética utilizaria as metáforas 18; neste, lê-se que entre
todas as definições, as de ataque mais difícil são as que utilizam
termos que, em primeiro lugar, não sabemos bem se são aduzidos na
acepção simples ou em várias acepções, ou que, por outro lado, não
sabemos se são aduzidos em acepção literária, ou por metáfora, por
quem define. É em virtude de sua obscuridade que não se torna
possível argumentar contra esses termos; e como se ignora se essa

»147
obscuridade é devida ao caráter metafórico, torna-se impossível refutá-
los19.

Apesar destas advertências, o uso da metáfora no domínio da retórica


é possível com a condição de evitar o estilo poético: [as metáforas]
podem dar frieza ao estilo20; podem ser inconvenientes, umas porque
são ridículas - a prova está em que os autores cômicos também
recorrem a elas -; outras podem pecar por excesso de majestade e por
seu caráter trágico. Além disso, são obscuras se tomadas de longe 21.
Esta mesma lição é encontrada no capítulo X da Retórica:

“[a metáfora] não deve ser tomada de longe, pois em tal caso
seria difícil de apreender; nem ser de interpretação que salte à
vista, pois deixaria de causar impressão”.22

Aqui fica bem patenteada a importância que Aristóteles atribui ao


contexto como elemento formador de metáforas.

Problematizadas no campo da aprendizagem, observa-se que tanto a


mimese (representação, imitação) como a metáfora (transporte,
semelhança ou interação/fusão) são processos que têm importância
substantiva na construção do conhecimento. Com relação à metáfora,
pesquisas recentes, a exemplo das empreendidas por Howard

148«
Gardner23, demonstram a vocação humana de produzi-la desde a sua
mais tenra idade de sujeito falante7.

7
Também Vico registrou essa vocação na sua Ciência nova: o mais sublime
ofício da poesia é o de conferir sentido e paixão às coisas insensatas. E é
propriedade dos infantes o tomar coisas inanimadas entre as mãos e,
entretendo-se, falar-lhes como se elas fossem pessoas vivas. [...] É fato natural
nas crianças que as mesmas com as ideias e nomes dos homens, das mulheres
e das coisas que pela primeira vez conheceram, com essas ideias e com esses
nomes aprendam e nomeiem todos os homens, mulheres e coisas que se
assemelham ou tenham alguma relação com as primeiras coisas apreendidas.
(Princípios de (uma) ciência nova: acerca da natureza comum das nações. 2.
ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 41, 44-45). A respeito desta propriedade
dos infantes, transcrevemos a seguinte lição de David Elkind: intimamente
relacionado com a causalidade fenomenalista está outro modo de pensamento
na criança pequena a que se deu o nome de realismo nominal [grifo do autor].
As crianças pequenas têm uma reverência especial por nomes e símbolos de
toda sorte. A capacidade recém-descoberta de criarem símbolos não traz
consigo, pelo menos imediatamente, a capacidade de distinguirem claramente
entre símbolo e o referente. A tendência dessas crianças é para pensarem que o
símbolo faz parte do referente. Acreditam que o nome da lua está na lua, que
sempre se chamou lua e que é impossível chamá-la de qualquer outra coisa.
Para a criança pequena, os nomes não são designações arbitrárias, mas
propriedades dos objetos que eles representam. (Desenvolvimento e educação
da criança; aplicação de Piaget na sala de aula. Rio de Janeiro: Zahar, 1978).
De acordo com este realismo nominal, como entender uma criança de 6 anos e
1 mês que cria uma história na qual folhinhas se machucam e são socorridas
por uma ambulância de folhas? (Cf. REGO, 1990, p. 42, Bib.) Sobre esta
capacidade que tem a criança de conotar, Elkind defende o seguinte: a
conceptualização consciente dos nossos próprios processos mentais a que se
deu o nome de inteligência reflexiva [grifo do autor], usualmente só aparece na
adolescência e com a realização de operações formais. Somente nesse período,
o jovem é capaz de pensar sobre o pensamento. Entretanto, eu acredito haver
uma espécie de inteligência reflexiva que se manifesta assim que a criança
adquire linguagem e que reflete as tensões entre a inteligência prática
inconsciente e a inteligência simbólica consciente. Quer dizer, as crianças
ouvem e adquirem muitas palavras para as quais não têm conceitos, e possuem
muitos conceitos, graças à atividade inconsciente da inteligência prática, para as
quais não dispõem de palavras. Por conseguinte, as crianças tentam relacionar
os seus conceitos com os seus símbolos verbais, um processo a que proponho
dar-se o nome de aprendizagem conotativa [grifo do autor]. A aprendizagem
conotativa envolve expressamente a construção de significados, o
estabelecimento de conexões entre conceitos e símbolos figurativos. Envolve

»149
Quanto à mimese, todos sabemos que o sujeito cognoscente não só
imita como modifica e constrói esquemas através das suas ações
interativas com o mundo concreto no qual é um sujeito ativo. A
construção do conhecimento em todos os seus níveis está ligada à ação
resultante da interação sujeito/objeto. Chamamos a atenção, no
entanto, para o fato de tanto na mimese como na metáfora estar
contida uma ideia associacionista cuja tradição remonta a Aristóteles8.

Sob uma visão empirista, Aristóteles tinha mesmo que ver nesses
instrumentos de linguagem e comunicação uma relação analógica,
representacional, imitativa, contextual com a vida (a natureza) e as
ações, porque no associacionismo, segundo David Hume, (com ele, o
associacionismo será visto, pioneiramente, como princípio central na
análise da mente humana), o conhecimento é alcançado mediante a
conexão de ideias seguindo os princípios de semelhança, contiguidade

nem mais nem menos que os esforços da criança para dar sentido ao seu
mundo. [...] Num sentido muito real, a aprendizagem conotativa envolve a
reapresentação [grifo do autor] da experiência ao nível operatório concreto.
Portanto, poderíamos dizer que existe uma inteligência reapresentativa ao nível
operatório concreto, a qual precede a inteligência reflexiva do nível operatório
formal. (Ib. p.115).
8
Platão já apresentara antes de Aristóteles uma teoria associacionista,
esquecida, no entanto, mediante sua doutrina das ideias inatas. Por isso é
Aristóteles considerado o autor mais antigo que argumentou sobre a associação
como uma teoria da memória. A lição do Estagirita (Parva naturalia – memória e
reminiscência), apud Herrnstein e Boring, ensina que na memória uma ideia
acompanha outra porque são semelhantes, contrastantes ou, frequentemente,
contíguas: os atos de recordação, tal como ocorrem na experiência, se devem
ao fato de um movimento ter, por natureza, outro movimento que a ele sucede
em ordem regular. Segundo Richard J. Herrnstein e Edwin G. Boring, nos dois
mil anos que sucederam os três princípios associacionistas defendidos por
Aristóteles o da associação por contiguidade foi o mais estável. (Textos básicos
de história da psicologia. São Paulo: Herder/USP, 1971. p. 400-405).

150«
espacial e temporal, e casualidade 24, acompanhado, evidentemente,
pelas experiências sobre o mundo físico. Há uma passagem na
Metafísica onde o Estagirita diz que tanto a arte como a ciência são
formas de conhecimento que o ser humano criou através da
experiência:

“mas a espécie humana [vive] também de arte e de raciocínio.


É da memória que deriva aos homens a experiência: pois as
recordações repetidas da mesma coisa produzem o efeito de
uma única experiência, e a experiência quase se parece com a
ciência e a arte. Na realidade, porém, a ciência e a arte vêm aos
homens por intermédio da experiência, porque a experiência,
como afirma Polos, e bem, criou a arte, e a inexperiência, o
acaso. E a arte aparece quando, de um complexo de noções
experimentadas, se exprime um único juízo universal dos
[casos] semelhantes”.25

Neste contexto de ensaios e experiências, em que o ser humano


executa ações construindo a inteligência, está mais uma explicação
para o que Aristóteles pensou sobre mímese como representação ou
imitação, e metáfora como um transportar ou uma analogia. À
proporção que se contrapôs à doutrina das ideias inatas, o Estagirita a
substituiu pela tabula rasa, onde vão sendo impressas as associações.
Com efeito, o conhecimento, a inteligência provêm dos sentidos que
dotam a mente de imagens as quais se associam entre si segundo a
contiguidade, a semelhança e o contraste. Essa base teórica
associacionista nos dá a impressão de que a metáfora, principalmente
ela, não deixa de ser um conceito “lógico” através do qual seu primeiro
teorizador ensinava um raciocínio que se contrapunha à Lógica que ele

»151
criou. Por ser um lógico é que ele identificou a metáfora e observou
que as palavras com seu sentido ordinário comunicam tão-somente
aquilo que já sabemos. Por isso, seu gênio defendeu que desviar uma
palavra de seu sentido ordinário permite dar ao estilo maior
26
dignidade .

Se para Aristóteles poesia é imitação, a metáfora, como ele teorizou,


teria que, necessariamente, ser mesmo analogia. Dessa forma, há uma
lógica na aristotélica lógica acerca da metáfora. Mas esta, na medida
em que permite ao ser humano ressignificar o mundo, renomeá-lo,
reorganizá-lo, não é tão-somente analogia.

Passemos a outras lições acerca desse instrumento


que dimensiona a dignidade do estilo (da forma), ao
ressignificar seus conteúdos (sociohistóricos).
Algumas dessas lições explicam a metáfora para
além da analogia.

152«
2.2 A astúcia do Ledor9

Parodiando José Guilherme Merquior, dizemos que a história da


metáfora no Ocidente é uma longa crônica quase sempre permeada
pelo pensamento do Estagirita.

Em princípio, o transportar e a semelhança do Estagirita podem até


parecer fragmentários; são, no entanto, a fonte para muitas reflexões
sobre a metáfora. Da investigação retórica, semântica e linguística à
filosófica e à psicológica, o conceito do Sábio grego, aceito ou não,
revisto ou esquecido, não deixa de ser a base para diversos estudos
sobre essa forma de elocução poética (e retórica). Seu pensamento
influenciou grande segmento da crítica ocidental desde os romanos até
a crítica do ainda contemporâneo século XX.

Ao que ele designou de metaphorá, Cícero, que se preocupou com os


efeitos estéticos da metáfora, atribuindo-lhe o poder de manifestar
ideias com concisão, realce e brilhantismo, chamou de translatio:
translatio similitudinis est ad verbum unum contracta brevitas27.

9
A paródia com o título do livro de José Guilherme Merquior (A astúcia da
mímese. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1972) é explicada com as palavras do
próprio crítico: o fenômeno, porém, por nós chamado „astúcia da mímese‟, não
concerne especificamente ao lírico. A obtenção de um conhecimento especial
sobre aspectos „universais‟ da vida humana (considerados de interesse
constante para o espírito) mediante a figuração de seres singulares é comum a
todos os gêneros literários; é o modus operandi da literatura em geral. Ora, a
astúcia da mímese indica a causa final do literário, que guarda o segredo da
universalidade das suas obras: essa capacidade de interessar aos homens em
qualquer tempo e lugar [grifo nosso], p. 12.

»153
Termo, aliás, que parece ter recebido a preferência de uma crítica com
relação ao transporte aristotélico.

Preferência e interpretações maiores, entretanto, recaíram sobre a tese


de Quintiliano para quem a metáfora é uma comparação abreviada,
metaphora brevior est similitudo, usada por todas as pessoas, mesmo
aquelas sem cultura, nem sensibilidade 28.

No que pese a influência da tese quintiliana, a metáfora não é processo


nem produto de uma comparação, porque, como sabemos, ela
proporciona, ao contrário desta (do símile), novas formas de
conhecimento. O comparativo como indica apenas que dois seres ou
dois objetos se justapõem no todo ou em parte, mas não se
incorporam, não se fundem e, por isso, não criam uma nova realidade,
um novo significado, sobretudo, um novo conhecimento. Ainda que o
próprio Aristóteles empregue o como, ele ensina que ao se empregar,
por exemplo, esta metáfora: um homem honesto é como o quadrado,
ambos os termos implicam uma ideia de perfeição, mas não mostram o
ato. Pelo contrário, a expressão: “Ele possuía o vigor e a flor da idade”,
traduz um ato; esta igualmente: “Tu, como homem livre de
embargos...” encerra um ato. Do mesmo modo esta metáfora: “E os
helenos lançando-se com seus pés rápidos”. O vocábulo (lançando-se)
mostra um ato e constitui uma metáfora29.

O pensamento de Aristóteles, este sobretudo, e o de Quintiliano


formarão a base de uma teoria da metáfora a qual só no século XX
será avaliada, e reinterpretada, através de estudos semânticos,

154«
filosóficos e linguísticos10. Sobre a tradição da metáfora no Ocidente,
Oswaldino Marques30 ensina que os antigos consideraram quatro tipos
principais de translação: de seres animados a inanimados, dos
inanimados aos animados, dos animados aos animados e dos
inanimados aos inanimados. Para esse crítico, é evidente um esforço
no sentido de reduzir a amplitude do conceito aristotélico de metáfora,
que admitia toda sorte de transposições. Para os retóricos gregos e
romanos subsequentes, a metáfora só designa transposições fundadas
na relação de semelhança.

Conforme assinalamos, só nas primeiras décadas do século XX é que


essa tradição da metáfora no Ocidente será substancialmente revista e
avaliada. O estudo pioneiro, e dos mais importantes, que a
contemporaneidade realizou sobre a metáfora é o do semanticista,

10
Naturalmente que ao longo de todos os anos que antecederam o século XX, a
metáfora foi especulada: durante a Idade Média, o assunto esteve geralmente à
margem das cogitações, em parte refletindo o estado geral das coisas literárias.
Afora incidentais referências de Geoffroy de Vinsauf e sua Poetria nova (século
XII), o tópico foi relegado a segundo plano, e assim praticamente permaneceu
até os séculos XVI e XVII. Em 1725, Giambatista Vico na sua Scienza nuova
discute o assunto; em 1762, com a publicação de Elements of criticism, Lorde
Kames retoma a questão da metáfora. [...] Decerto, a doutrina clássica
continuava largamente acatada, mas aos poucos as análises em torno da
metáfora abandonavam o estágio retórico, gramatical, formal, e penetravam
num estágio semântico ou filosófico. Deixava, portanto, de ser divisada como
figura de linguagem para se converter em figura de pensamento. O impulso
inicial veio-lhe do Essai de sémantique (1897), de M. Breal (MOISÉS, Massaud.
A criação literária. 11. ed. São Paulo: Cultrix, 1989. p.198; Id. Dicionário de
termos literários. São Paulo: Cultrix, 1974. p. 327-328). Outros estudos
clássicos que se destacam sobre o assunto são o Traité des tropes, de
DuMarsais – 1730; Les figures du discours, de Pierre Fontanier – 1821. Greimas
e Courtés assinalam que a produção teórico-acadêmica sobre a metáfora é tão
extensa que pode constituir sozinha uma biblioteca (GREIMAS, Algirdas J.;
COURTÉS, Joseph. Dicionário de semiótica. São Paulo: Cultrix, [19__ ]. p.
274).

»155
psicólogo e teórico de poesia I. A. Richards. Suas reflexões sobre esse
assunto estão em O significado de significado, Princípios de crítica
literária e Filosofia da retórica (The philosophy of rethoric).

Em O significado de significado, Richards argumenta que a metáfora é


a simbolização primitiva da abstração e que se torna possível porque
em sua acepção mais genérica ela

“é o uso de uma referência a um grupo de coisas entre as quais


existe uma dada relação análoga num outro grupo. Na compreensão
da linguagem metafórica, uma referência toma parte do contexto de
uma outra referência, numa forma abstrata”.31

Segundo Richards, há duas maneiras para esse processo. Por exemplo:


(inspirado no próprio autor) uma referência à pedra pode ser
conjugada a uma referência ao homem, sendo o resultado uma
referência ao homem que trabalha com pedra, isto é, o pedreiro,
aquele cujo ofício é o trabalho com pedra e cal. Nesse caso, não há
metáfora. Mas quando se diz: “Vivemos numa selva de pedra”, a parte
do contexto da referência à pedra, que se combina com as outras
referências, aparece numa forma abstrata, ou seja, suas características
pertinentes não estão incluídas no conjunto de edifícios que compõem
a imagem das grandes metrópoles.

Em Princípios de crítica literária, capítulo 32: A imaginação, Richards


argumenta, como ele mesmo designa na nota 225 de O significado de
significado32, sobre outras formas de metáfora. Aqui, segundo suas
lições, a metáfora e a comparação podem ser consideradas em

156«
conjunto, além de terem uma grande variedade de funções na fala.
Embora não explique como esse conjunto se processa, porque a
metáfora é também uma comparação, nem explane sobre o que é essa
variedade de funções na fala, Richards defende que uma metáfora
pode ser ilustrativa ou diagramática. Esse é o uso científico ou prosaico
mais comum da metáfora. Por conseguinte, a ilustração é tão-somente
uma atitude, uma pretensão do orador para com seu tema ou seu
auditório e a metáfora usada num sentido comum, trivial. Ao
considerar outros usos da metáfora, o crítico inglês esclarece que uma
das principais distinções entre a poesia e a prosa está no fato de que,
enquanto para aquela devemos ter atenção, conscientemente, às
características essenciais das palavras, para esta a nossa atenção é
desnecessária. É por isso que, nesse capítulo, ao conduzir a questão
para o poético, a metáfora para Richards tem outros usos; ela é, por
exemplo, o agente supremo pelo qual coisas díspares e até então
desconexas são ligadas em poesia por causa dos efeitos sobre atitudes
e impulsos, que decorrem de sua colocação e das combinações que a
mente estabelece entre elas33. Através dessa interpretação, o crítico
inglês projeta seu ponto de vista de que pensamento e metáfora (a
poética, pelo visto) são articulados entre si e supera sua compreensão
de metáfora, cf. cit. 31, como analogia.

É no quinto capítulo do The philosophy of rethoric – “Metaphor”, que


Richards discute com mais detalhe o assunto. Genericamente, esse
capítulo pode ser visto como um aprofundamento daquilo que seu
autor refletiu nas duas obras já citadas. Aqui, sua lição maior: o
pensamento é metafórico34, em certo sentido já anunciada no capítulo
sobre A imaginação, pode até ser considerada, na atualidade, um
truísmo. À época, no entanto, ela foi inovadora porque colocou a
metáfora, para além dos âmbitos poético, retórico e semântico, no das

»157
ciências cognitivas. Ainda hoje, lendo autores como Lakoff e Johnson,
vemos que, se há truísmo, ele se repete e é muito contemporâneo:

“a afirmação mais importante que temos feito até aqui é que a


metáfora não é apenas uma questão de linguagem, isto é,
meramente de palavras. Pelo contrário, argumentamos que os
processos do pensamento são na sua maioria metafóricos”.35

Muito embora entenda que o conhecimento da realidade se baseia na


relação sinal-intérprete-referente e que o pensamento resulta de um
processo comparativo (associacionista) cujo sentido só existe no
contexto a que pertence, a metáfora agora é vista por Richards como
princípio onipresente da linguagem36 resultante de um confronto entre
duas ideias: tenor + vehicle (veículo)11. 37

Essas ideias apontadas por Richards substituem certas locuções as


quais, na sua opinião, só proporcionavam sentidos dúplices e confusão

11
Oswaldino Marques argumenta o seguinte: a rigor, os termos sugeridos por
Richards são tenor e vehicle. Dada a impossibilidade de encontrarmos em
português um equivalente satisfatório para „tenor‟, tomamos emprestado a
Charles Morris (ver „Foundations of the theory of signs‟, Chicago, The Univ. of
Chicago Press, 1945) a palavra designatum, que aí também, desempenha um
papel semelhante (Teoria da metáfora & renascença da poesia americana. Rio
de Janeiro: São José, 1956. p. 21). No entanto, J. A. Osório Mateus tradutor
para a língua portuguesa do livro, em inglês, de Stephen Ullmann (Semântica:
uma introdução à ciência do significado. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1977. p. 442), traduz esse termo por teor. Pesquisadores
brasileiros atuais também traduzem o termo por teor, a exemplo de Luiz
Antônio Marcuschi (A propósito da metáfora. Revista de Estudos da Linguagem,
Belo Horizonte, v. 9, nº. 1, p. 82, 2000) e Mara Sophia Zanotto (Metáfora,
cognição e ensino de leitura. Revista de Documentação de Estudos em
Linguística Teórica e Aplicada, São Paulo, v. 11, nº. 11. p. 25, 1995).

158«
terminológica no trato com o assunto. Na lição do crítico inglês, elas
substituem locuções como “a ideia original” e “a ideia tomada de
empréstimo”; “aquilo que está sendo dito ou pensado” e “aquilo com
que está sendo comparado”; “a ideia subjacente” e “a qualidade
imaginada”; “o tema principal” e “aquilo que se lhe assemelha”; ou,
ainda mais confusamente, “o significado e a metáfora” ou “a ideia e a
sua imagem”38.

Decorrente de um processo interativo, essas ideias em confronto são


responsáveis pela produção de um sentido novo, diferente do que
apresentam isoladamente. Para Richards, é essa interação que produz
a metáfora, a qual passa a ser entendida por ele como dois
pensamentos de diferentes coisas que atuam juntos e escorados por
uma única palavra, ou frase, cujo significado é o resultado da sua
interação39.

Este interacionismo semântico de Richards será adotado, com


variações, por Max Black. Em A metáfora, cuja primeira versão data de
1954, Black argumenta, do ponto de vista da semântica, sobre uma
teoria da interação, segundo a qual, a metáfora resulta de uma
interação entre dois conteúdos semânticos distintos, formada pelo que
ele designa de focus (conteúdo primário), que representa a palavra
usada metaforicamente e frame (conteúdo secundário), que representa
o contexto literal onde a metáfora está situada.

Através do exemplo o homem é um lobo40, Black explica esse processo


interativo que ocorre entre dois conteúdos semânticos distintos. Tem-
se aqui dois assuntos (subjects): um principal, que é o homem, e um
secundário, que é o lobo. A exigência inicial é que os significados

»159
literais das duas palavras (dos assuntos) sejam conhecidos pelo leitor
ou pelo ouvinte, conhecimento que, necessariamente, não precisa ser o
normal, dicionarizado, mas que esteja no que Black designa de sistema
de tópicos da palavra. Ao ouvir ou ler uma metáfora, o falante
seleciona algumas das propriedades culturais do assunto secundário (o
lobo), integrando-as ao principal. O sentido metafórico, o algo novo
que ela nos traz, viria dessa interação porque a metáfora do lobo
suprime certos detalhes e acentua outros: dito brevemente, organiza
nossa visão do homem [grifo nosso]41. Dessa forma, as metáforas,
porque expressam novas organizações, favorecem o ser humano a
perceber aspectos de sua realidade ao mesmo tempo em que
estabelecem certas interações entre ele e essa realidade físico-
espiritual.

Nesta mesma obra, Black também nos apresenta uma “gramática


lógica” para a metáfora. Com essa “gramática”, Black pretendia obter
respostas para perguntas, entre outras, do tipo:

“como reconhecemos um caso de metáfora?; existem critérios


para tanto?; é possível traduzir metáforas para expressões
literais?; quais são as relações entre a metáfora e o símile?; o
que pretendemos dizer com a metáfora?” 42

Para esta última pergunta, uma resposta, talvez, esteja no fato de seu
autor ver na metáfora uma função cognitiva. Como ele próprio
argumenta, a metáfora organiza nossa visão de homem.

160«
Black entende que não é possível limitar as possibilidades de
interpretação do sentido metafórico; esse sentido não pode ser
observável a partir de um sistema padrão porque o falante está
sempre produzindo situações metafóricas de efeito nada convencionais
(decorrente, sem dúvida, do contexto). Daí sua advertência para a
necessidade de se considerar a ambiguidade como um dos aspectos da
metáfora. A questão, no entanto, não está em se considerar
ambiguidade, mas o contexto. A interpretação de Marcuschi sobre a
lição de Lipps de que não existe uma “significação originária” mas
“origem de um significado” e para o qual o significado se pleni-fica
(voll-zieht) apenas no contexto de uso, reforça o nosso ponto de vista:

“explode-se, por exemplo, um edifício, uma ponte, etc. com


dinamites, mas um orador explode, com palavras, uma reunião,
como também operários explodem governos com greves, etc.
Apesar de todas essas divergências, tudo isso é „explodir‟
(Lipps, 1958:67, com adaptações). Daí afirmar Lipps não haver
„significado originário‟, mas „origem de um significado‟, o que
torna a definição da metáfora como „transposição do significado
de uma palavra‟ totalmente inadequada (Lipps, 1958: 69-
72)”.43

Ao resumir sua teoria interativo-semântica da metáfora, Max Black


apresenta estes sete itens:

1) o enunciado metafórico tem dois temas distintos: um


“principal” e outro secundário;

»161
2) o melhor modo de considerar tais assuntos é, com
frequência, como “sistemas de coisas”, e não como “coisas”;

3) a metáfora funciona aplicando ao assunto principal um


sistema de “significados acompanhantes” característico do
enunciado secundário;

4) esses significados geralmente consistem em “trivialidades”


sobre este último assunto, mas em certos casos oportunos
podem ser significados divergentes estabelecidos ad hoc pelo
autor;

5) a metáfora seleciona, acentua, suprime e organiza os traços


característicos do assunto principal ao sugerir enunciados sobre
o que normalmente se aplica ao assunto secundário;

6) isso indica deslocamentos de significado de certas palavras


que pertencem à mesma família ou sistema da expressão
metafórica e alguns destes deslocamentos, embora não todos,
podem consistir em transferências metafóricas. (Mas as
metáforas subordinadas têm de ser lidas menos “seriamente”);

7) não há qualquer “razão” simples e geral que dê conta dos


deslocamentos de significados necessários, isto é, não há
desculpas para que umas metáforas funcionem e outras não44.

Defendendo-se de uma provável interpretação comparativa ou


substitutiva presente em sua teoria, Black adverte logo após a
apresentação desses itens o seguinte: quando se pensa sobre isso (a
comparação) se vê que o item um é incompatível com as formas mais
simples do “enfoque substitutivo”; que o item sete é formalmente
incompatível com o “enfoque comparativo” e que os demais oferecem
certas razões para considerar inadequados os enfoques deste último

162«
tipo45. É neste sentido que não concordamos com algumas opiniões,
como a de Marcuschi, a qual argumenta que, embora a teoria da
interação supere a transposição de significado como pilar da metáfora,
Black abre espaço para uma possível comparação, o que transforma
sua posição em insatisfatória. Marcuschi se refere ao exemplo
fornecido pelo próprio Black - O homem é um lobo -. Nós entendemos
que essa metáfora, predicativa, como a designa Hugo Friedrich12, antes
de ser produto de uma comparação, ela forma, condiciona uma
comparação: “O homem é como um lobo”. Isso, aliás, é o que
argumenta o próprio Marcuschi: a comparação é, no máximo, um
resultado da metáfora e não o contrário46. Opinião também de Black:
dizer que a metáfora cria a semelhança seria muito mais esclarecedor
do que dizer que a mesma formula uma semelhança que já existia
anteriormente47. Concluímos que o exemplo de Black, para dispensar
qualquer visão comparativista, teria sido mais eficaz se fosse algo
como o homem lobo ou homem lobo.

12
No aspecto formal, a metáfora predicativa com caráter de definição não
parece atrativo, pois este tipo pertence a todas as épocas da literatura. „A noite
é um pombo negro‟ (Lasker-Schuler); „A guitarra é um poço cheio de vento em
vez de água‟ (Diego). [...] Também por outro caminho a metáfora moderna se
aproxima da identificação, ou seja, quando se serve de uma técnica de
justaposição – técnica que apareceu na primeira metade do século XIX, a
princípio de forma tímida: „Moeda de ouro, meio-dia‟ (Goldmunze Mittag),
„Prestidigitador, dia‟ (Taschenspieler Tag), „Barco, fantasia‟ (Barke „Phantasie‟).
Nestes casos, o primeiro substantivo é sempre a metáfora do segundo,
tratando-se, no fundo, de uma metáfora predicativa, na qual falta o „é‟,
predicado verbal. Precisamente esta abreviação torna este tipo de metáfora
típico da poesia moderna. É famoso o conciso verso final de Zone, de
Apollinaire: Soleil cou coupé; também aqui há uma aglutinação que, de
imediato, coloca junto ao sujeito (sol), sua fase momentânea (ocaso), todavia
este é tratado apenas de forma metafórica, de maneira que se poderia falar de
uma metáfora absoluta, cujo significado básico (o pôr-do-sol) não é nem
mesmo enunciado. (FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. 2. ed. São
Paulo: Duas Cidades, 1991. p. 208-209).

»163
George Lakoff e Mark Johnson em alguns pontos, e em todo o capítulo
22 de Metáforas da vida cotidiana, também descartam a semelhança -a
analogia por base- do modus operandi da metáfora. Ora, se é possível
a substituição de um termo em um suposto enunciado metafórico é
porque nele não existe metáfora. Nesse caso, o que se tem é uma
metonímia; esta é que nos permite usar uma palavra por outra, ainda
que exerça algumas funções de metáfora, como assinalam esses
autores através do exemplo que fornecem: quando dizemos “O Times
ainda não chegou à coletiva de imprensa”, usamos O Times não
apenas para nos referir a um repórter ou outro, mas também para
sugerir a importância da instituição que ele representa. Assim, “O
Times não chegou à coletiva de imprensa” significa algo diferente de
“Steve Roberts ainda não chegou à coletiva de imprensa”, embora
Steve Roberts seja o repórter do Times em questão48.

A compreensão interativo-semântica entre dois temas distintos leva-


nos a pensar a metáfora como produto de uma tensão entre contrários.
Mais uma vez, a lição de Lipps, sob a interpretação de Marcuschi, se
não trata do assunto nesta direção, ajuda-nos a esclarecer esse modo
interativo que estamos argumentando:

“é possível, no entanto, que uma expressão metafórica não


tenha significado literal, como mostra H. Lipps mediante a
palavra animalesco. „O animalesco (tierisch) caracteriza um
comportamento humano. Mas foi transferido para esse sentido?
Provavelmente não, pois o próprio animal não é animalesco.
Animalesco caracteriza uma deficiência que apenas quando
vista à luz das exigências humanas torna-se uma deficiência‟
(Lipps, 1958:69-71). Consideremos outro exemplo, também de

164«
H. Lipps, que preenche as condições das relações subjetivas
fora do campo de significado original. „Para caracterizar a
ignorância de alguém o denominamos um burro ou um camelo.
Isso, porém, com o qual o comparamos, não é tomado
simplesmente como portador da mesma característica. Os
camelos não são de forma alguma ignorantes; um burro não é
um burro no mesmo sentido que um homem‟ (Lipps, 1958:73).
Fica com isso comprovado, segundo Lipps, que não tem
fundamento pleno a noção de metáfora como transposição de
sentido [grifos do autor da citação]”. 49

A interpretação de Richards, Lipps, Black e mais recentemente de


Lakoff e Mark Johnson sobre a semelhança abala alguns estudos que
se ocupam da similaridade como uma das bases formadoras da
metáfora. É o caso, por exemplo, do estudo de Paul Ricoeur – O
trabalho da semelhança, em que ele defende que a semelhança é o
fundamento da substituição posta em prática na transposição
metafórica dos nomes e, mais genericamente, das palavras; a
metáfora é, por excelência, um tropo por semelhança50.

Além desse equívoco sobre a semelhança como fundamento da


metáfora, vê-la como tropo é um equívoco maior. A metáfora só é um
tropo se for entendida, e equivocadamente, como uma figura de
linguagem de onde se observa um desvio ou mudança de significado13.

13
A retórica antiga opunha às figuras de pensamento (litotes, ironia,
interrogação oratória, etc.) e às figuras de construção (elipse, silepse, etc.) os
tropos ou figuras de palavras. Tropo [grifo dos autores], todavia, acabou por
aplicar-se a todas as espécies de figuras que podemos considerar como um
desvio (em grego tropos) do sentido da palavra (DUBOIS, Jean. et al. Dicionário
de linguística. São Paulo: Cultrix, 1978. p. 603).

»165
A exemplo de Richards, Black, Lipps, Marcuschi, Lakoff e Johnson, este
estudo trata a metáfora também à margem dos tropos.

Em outro ensaio, O processo metafórico como cognição, imaginação e


sentimento, Ricoeur retoma o assunto, no âmbito ainda da
semelhança, para abordá-lo entre uma teoria semântica da metáfora e
uma teoria psicológica da imaginação e do sentimento. Para ele,
teorias interacionistas como as de Richards e Black não conseguem
atingir seu objetivo caso não incluam imaginação e sentimento àquilo
que parece ser mera característica psicológica e sem, portanto,
preocupar-se com alguns fatores paralelos e extrínsecos ao cerne
informativo da metáfora. Ricoeur51 argumenta que Aristóteles ao
teorizar a primeira análise de metáfora nos forneceu sugestões
relativas ao que chamamos de função semântica da imaginação (e, por
consequência, do sentimento) na expressão do sentido metafórico. Ao
afirmar que o dom de elaborar boas metáforas depende da capacidade
de ponderar sobre semelhanças e que, além disso, a clareza de boas
metáforas resulta de sua capacidade de “colocar frente aos olhos” o
sentido por elas exposto, o que fica sugerido é um tipo de dimensão
pictórica, que pode ser chamada de função pictórica do sentido
metafórico.

Sendo esse o problema, para qual direção devemos olhar em busca de


uma avaliação da função semântica da imaginação e do sentimento?
Parece que é na busca da semelhança que o momento pictórico ou
icônico está implicado, como Aristóteles sugere quando diz que
elaborar boas metáforas é contemplar semelhanças ou, de acordo com
outras traduções, ter um insight de similaridades.

166«
Muito embora nesse ensaio Ricoeur fale mais uma vez sobre a busca
da semelhança, ele já vê a metáfora, também, como criadora de um
novo significado, além de, a exemplo de Black, entender que ela
explica a similaridade: a metáfora não é o enigma, mas a solução do
enigma52. É importante assinalar que, ao reconhecer na metáfora a
solução do enigma, Ricoeur se contrapõe ao Ledor quando esse
postulou que as metáforas são enigmas velados53.

Também ao defender a busca da semelhança, pelo menos n‟A metáfora


viva, Ricoeur problematiza o assunto numa perspectiva revisionista.
Mesmo sem esclarecer suas opiniões no sentido de ver na similaridade
a antítese, ele defende que, para se obter uma metáfora, se deve
continuar a identificar a incompatibilidade anterior através de nova
compatibilidade; enxergar a semelhança é ver o mesmo apesar, e
através, da diferença.

Essa tensão entre similitude e diferença caracteriza a estrutura lógica


da semelhança54. Apesar dessa revisão, Ricoeur é um dos pensadores
de nossa contemporaneidade que não renuncia aos pressupostos da
poética e da retórica clássica14.

14
O linguista Roman Jakobson também faz parte desse grupo. Em seu estudo
Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia ele argumenta que o
desenvolvimento de um discurso pode ocorrer segundo duas linhas semânticas
diferentes: um tema (topic) pode levar a outro quer por similaridade, quer por
contiguidade. O mais acertado seria talvez falar de processo metafórico no
primeiro caso, e de processo metonímico no segundo, de vez que eles
encontram sua expressão mais condensada na metáfora e na metonímia
respectivamente. Coerentemente, o linguista compreende a metáfora como um
tropo: na poesia, diferentes razões podem determinar a escolha entre esses
dois tropos [referindo-se à metáfora e à metonímia]. Finalizando o estudo, ele
postula que a similaridade das significações relaciona os símbolos de uma
metalinguagem com os símbolos da linguagem a que ela se refere. A similitude

»167
relaciona um termo metafórico com o termo a que substitui (Linguística e
comunicação. São Paulo: Cultrix, [19__]. p. 55, 57, 61). Entendemos que a
contribuição desse estudo de Jakobson está particularmente endereçada, como
o próprio título antecipa, para os estudos sobre a afasia. Sem dúvida, trata-se
de um estudo linguístico que, à época, deve ter trazido um grande avanço
teórico para os especialistas da matéria: foneticistas, neurologistas,
otorrinolaringologistas, educadores, psicólogos, como deve ainda contribuir para
os mais „novos‟: os fonoaudiólogos. Por que um estudo sobre a afasia põe como
tema principal a metáfora e a metonímia? Porque para Jakobson das duas
figuras polares de estilo, a metáfora e metonímia, esta última, baseada na
contiguidade, é muito empregada pelos afásicos cujas capacidades de seleção
foram afetadas. Garfo é substituído por faca, mesa por lâmpada, fumaça por
cachimbo, comer por torradeira (p. 49). [...] A interpretação de um signo
linguístico por meio de outros signos da mesma língua, sob certo aspecto
homogêneos, é uma operação metalinguística que desempenha papel essencial
na aprendizagem da linguagem pela criança. O recurso à metalinguagem é
necessário tanto para a aquisição da linguagem como para seu funcionamento
normal. A carência afásica da „capacidade de denominar‟ constitui propriamente
uma perda de metalinguagem, (p.47). Nesse estudo, Jakobson demonstra que
tanto a metáfora como a metonímia são os únicos recursos linguísticos do
afásico – o qual só usa um ou outro: na afasia, um ou outro desses dois
processos é reduzido ou totalmente bloqueado – fato que, em si, torna o estudo
da afasia particularmente esclarecedor para o linguista. No comportamento
verbal normal, ambos os processos estão constantemente em ação, mas uma
observação atenta mostra que, sob a influência dos modelos culturais, da
personalidade e do estilo verbal, ora um, ora outro processo goza de
preferência, (p. 55). Embora Jakobson no item V desse estudo - Os polos
metafórico e metonímico - teorize sobre metáfora e metonímia tanto no campo
da literatura como da pintura e do cinema, ele se fundamenta, como
assinalamos, na tradição aristotélica quanto aos seus processos de formação ou
de mudanças estruturais decorrentes de fatores sociohistórico-culturais. A
metáfora, para ele, é um tropo e produto de uma similaridade. Nesse contexto,
seu estudo formou discípulos. Ele é a base teórica para Michel Le Guern realizar
seu Sémantique de la métaphore et de la métonymie: não seria exagerado
afirmar que o presente livro não é mais que uma prolongação deste trabalho.
Apesar de que Jakobson nem sempre dá às suas teorias uma formulação tão
explícita como seria esperado, é aqui onde se encontram os fundamentos
necessários a todo estudo sobre a metáfora e a metonímia (La metáfora y la
metonimia. Madrid: Ediciones Cátedra, 1976. p. 138-139). Paul Ricoeur também
lhe dedica reflexões especiais em O trabalho da semelhança, Estudo VI, d‟ A
metáfora viva. Porto: Rés, 1983. p. 260. Além de Roman Jakobson, os retóricos
do Centre d‟Études Poétiques - Université de Liége, também integram o grupo
aristotélico quando teorizam que a metáfora não é propriamente uma

168«
A filiação do pensador francês ao aristotelismo, pelo menos nessa
matéria, manifesta-se, por exemplo, quando ele enquadra suas
reflexões sobre o processo metafórico como cognição, imaginação e
sentimento na visão empirista de David Hume, para quem o
conhecimento é alcançado mediante a associação de ideias. Ricoeur
chega a lembrar que a função da inovação semântica (aquela, segundo
ele, que faz a metáfora não ser o enigma, mas a solução do enigma),
não deve ser mal compreendida enquanto tivermos em mente a teoria
da imagem de Hume como uma tênue impressão, isto é, como um
resíduo perceptual55.

Aqui, cristaliza-se mais ainda a filiação de Ricoeur à tradição


associacionista, através de Hume, na medida em que, para esse
empirista inglês, como já assinalamos, o conhecimento humano é
constituído por impressões e ideias. As impressões seriam os dados
primitivos recebidos através dos sentidos; as ideias, cópias que a
mente recolhe dessas mesmas impressões as quais perdurariam uma
vez desaparecidas estas últimas. Como as ideias não têm valor em si
mesmas, o conhecimento é obtido a partir da conexão entre as ideias
seguindo os princípios da semelhança. É o próprio Hume 56 que declara:

substituição de sentido, mas uma modificação do conteúdo semântico de um


termo. Essa modificação resulta da conjunção de duas operações de base:
adição e supressão de semas. Noutros termos, a metáfora é produto de duas
sinédoques. Como vimos, o conceito de metonímia/sinédoque estão contidos,
embora não assim designados, no conceito do Estagirita. É neste sentido que
não identificamos nos estudos do Centre lições inovadoras para a teoria da
metáfora, muito embora concluam que, formalmente, a metáfora se liga a um
sintagma onde aparecem contraditoriamente a identidade de dois significantes e
a não-identidade de dois significados correspondentes. (DUBOIS, Jean. et al.
Retórica geral. São Paulo: Cultrix, 1976. p. 151).

»169
“embora o fato de as diferentes ideias se ligarem umas às
outras seja demasiado evidente para ter escapado à
observação, não vejo que algum filósofo tenha procurado
enumerar ou classificar todos os princípios de associação. Ora,
este é um assunto que bem parece merecer um pouco de
atenção. Quanto a mim, creio existirem apenas três princípios
de conexão entre as ideias, a saber: a semelhança, a
contiguidade de tempo e lugar e a causa ou efeito”.

Retomemos a lição de Lipps sobre a semelhança. Nós entendemos que


também aí, queira ou não, ele questiona de forma bastante inovadora
o que é literal para a metáfora. Ou seja, podemos concluir, embora o
filósofo alemão não afirme diretamente nada nesse sentido, pelo
menos no conteúdo da citação utilizada, que também o literal não é um
elemento constitutivo da metáfora. O que coincide com a nossa
compreensão, porque se a metáfora organiza e cria novos
conhecimentos e significados, daí ela ser uma forma/fonte de
conhecimento, não existe o que ser parafraseado.

A Literatura assim como as demais artes são os grandes exemplos de


que a metáfora seria ineficaz e tautológica se ela observasse tão-
somente as semelhanças existentes entre as coisas, os seres.
Imaginemos se, ao estudarmos um poema ou um romance, fôssemos
em busca de um sentido literal de que fala alguns teóricos, a exemplo
de Nelson Goodman:

“o uso metafórico da linguagem difere de modo significativo de


seu uso literal”.57

170«
Estaríamos negando esse poema ou esse romance; estaríamos
negando, principalmente, a própria metáfora no seu estatuto de
nomear o mundo e sua história sociocultural.

É neste sentido que a nossa compreensão do literal não coincide com a


de Nelson Goodman e, muito menos, com a de Donald Davidson.
Embora Goodman defenda que o uso metafórico da linguagem, longe
de ser um ornamento porque participa plenamente do progresso do
conhecimento, ele subordina a metáfora à substituição de algumas
categorias “naturais” por categorias novas e esclarecedoras ao revisar
teorias e ao trazer-nos novas realidades. Tudo isso, porém, sob a “luz
da substituição”, como se a metáfora do destino ou do inferno
substituísse algum elemento da nossa História.

O sentido literal, como é defendido por Goodman, aponta, ainda que


esse autor não queira, para a tese quintiliana da comparação e a
aristotélica da semelhança como teorias básicas, verdadeiras e
definitivas sobre a metáfora. Esse, aliás, é, também, um dos conceitos
de Davidson58 para quem uma metáfora nos faz notar certa
semelhança, uma semelhança nova ou surpreendente entre duas ou
mais coisas. A metáfora, na interpretação de Davidson, depende, de
algum modo, dos significados originais; uma explicação adequada da
metáfora deve admitir que os significados primários e originais das
palavras permanecem ativos em seu cenário metafórico. (Para contra-
argumentar Davidson, lembremo-nos de Lipps, para quem não existe
um significado original, mas origem de um significado).

Por conseguinte, podemos argumentar que, para esse autor, a


paráfrase literal é completamente dispensável na medida em que a

»171
metáfora, segundo ele, nos faz ver uma coisa como outra, fazendo
algum tipo de afirmação literal que inspira o insight ou leva a ele59.
Alguns de seus equívocos, inclusive esse que acabamos de transcrever,
decorrem do fato de que ele, como um positivista, se ocupa com algo o
qual, segundo a sua própria opinião, nada acrescenta ao conhecimento
humano: mas, se estou certo, a metáfora não diz nada além do
significado literal (nem seu criador diz coisa alguma, ao usar a
metáfora, além do literal)60. Sobre essa questão, ele argumenta, por
exemplo, o seguinte:

“devemos desistir da ideia de que a metáfora transporta uma


mensagem, isto é, de que tenha um conteúdo ou significado;
[...] aquilo que eu nego é que a metáfora realiza sua tarefa
através de um significado especial, de um conteúdo cognitivo
específico61; [...] podemos aprender muito sobre o significado
das metáforas comparando-as com um símile, pois um símile
nos diz, em parte, o que uma metáfora simplesmente nos faz
notar espicaçando-nos. [...] A diferença semântica mais óbvia
entre o símile e a metáfora é que todos os símiles são
verdadeiros e que a maioria das metáforas são falsas62; [...] o
que as palavras de fato fazem com seu significado literal, em
um símile, deve-lhes ser possível fazer numa metáfora. Uma
metáfora dirige a atenção para os mesmos tipos de
similaridade, se não para as mesmas similaridades, do símile
correspondente. Porém as analogias e paralelos inesperados e
sutis, que é tarefa da metáfora promover, não precisam
depender, para sua promoção, de nada mais que o significado
literal das palavras”.63

172«
Por fim, indo de encontro a essas ideias, o próprio Davidson afirma que
a metáfora, no entanto, é um artifício legítimo, não apenas na
literatura, mas também na ciência, na filosofia e no direito 64.

A metáfora, no entanto, não é um artifício, mas um ato criativo,


cognitivo, associacionista para os gregos e interacionista, fusão de
pensamentos antagônicos, para a modernidade, a exemplo de
metáforas criadas pelo Barroco e pelo Romantismo.

No claro/escuro, no eterno/efêmero, no teocêntrico/antropocêntrico


barroco; ou na religiosidade e no mundanismo, na fé e no cepticismo
romântico pontilham as contradições da natureza humana em
metáforas construídas a partir da dialética vida/morte; divino/humano;
amor/ódio; pecado/remissão, as quais nos evidencia a relação
inalienável entre metáfora e vida.

Nessa relação metáfora/vida, está inserida naturalmente a relação


metáfora/história. Cada sociedade tem sua metáfora, ou suas
metáforas. É por isso que Hermann Pongs, apud Welleck, defende que
a metáfora greco-romana é quase restrita à analogia, um paralelismo
como que obrigatório65. Tal juízo, além de comprovar os conteúdos
históricos da metáfora, faz-nos entender melhor toda aquela atenção
de Aristóteles à analogia, especialmente quando ele sublinhou que a
tragédia é imitação de ações e da vida. Aqui, fica bem patenteado o
paralelismo que a metáfora grega usou para pensar o ser humano no
âmbito da sua existência e de seu destino através da grande arte
trágica. Da tragédia à epopeia, desta à poesia contemporânea, a
metáfora, condicionada pela História, está, irremediavelmente, ligada a
uma certa concepção de vida, a uma visão de mundo, a uma ideologia,

»173
a uma utopia. A metáfora dos iluministas, por exemplo, jamais
corresponderia à metáfora trágica dos gregos ou interacionista de
opostos do Barroco. O Arcadismo configura muito bem a fé iluminista
sobre as possibilidades antropocêntricas quando transforma a
natureza, graciosa e redentora, em uma das metáforas mais
significativas e tradutoras da ideologia das luzes.

Lembremo-nos, entretanto, de que a consciência do efêmero, do


transitório, a angústia de uma existência dividida entre o humano e o
divino, mais o acirramento de crises políticas e sociais que pontilhavam
a Europa Ibérica obrigaram o ser humano renascentista a rever e a
questionar seus ideais antropocêntricos, depositários de uma grande fé
na condução do mundo e de sua própria história. Mais uma vez essa
mesma história mostrará que, além de um médium entre o Criador e a
criatura, (o artista) o poeta é a má consciência do seu tempo66.

Quando Francesco Mazzola, em 1523, se autorretratou diante de um


espelho convexo, “iniciando” a estética maneirista, a metáfora no
Ocidente nunca mais poderia se basear na analogia, no paralelismo, na
comparação, no equilíbrio ou na linearidade grega (Francesco Mazzola -
cognominado Il Parmigianino -, Autorretrato diante do espelho
convexo. FONTE: HOCKE. Gustav R. Maneirismo: o mundo como
labirinto. São Paulo: Perspectiva, 1974. p. 16). Com a metáfora do
espelho, cujo conteúdo/fôrma histórico não permite que seja
confundido com a do espelho de Narciso nem com a “emergência do
eu” típica do alvorecer da Idade Moderna, e da qual Mazzola faz parte,
o ser humano aprofunda e problematiza ainda mais a leitura e a crítica
acerca dos conflitos e das tensões que compõem sua história social: a
metáfora do espelho quase se transforma em obsessão e em substrato

174«
da angústia, da morte e do tempo67. Através dela, o drama humano
contradiz a fé antropocêntrica e um consequente individualismo típicos
do alvorecer da modernidade. O alongamento, em primeiro plano, da
mão de Francesco Mazzola, que a faz anatomicamente insólita, em
oposição ao aparente equilíbrio de seu semblante, espelha as tensões
histórico-político-socioculturais que a Idade Moderna já manifestava.

Hocke68, ao comentar este quadro, assinala que ele não representa


tão-somente o retrato do Parmigianino (Francesco Mazzola nasceu em
Parma e, por isso, é cognominado “Il Parmigianino” ). Além de retratar
os conflitos sociopolíticos da Europa renascentista, ele pinta o homem
maneirista, o janota cerebral e melancólico o qual, para Baudelaire, se
apresenta como “alguém de destaque” e que procura “viver e dormir
diante de um espelho”; que tem medo do espontâneo e que ama a
escuridão e que, por isso, orgulha-se do fato de descobrir o sensível
através de metáforas abstrusas e se esforça por captar o fantástico
graças a uma linguagem sumamente rebuscada.

A partir do Maneirismo (chegando às Vanguardas e ao Modernismo –


com suas diversas expressões) o processo da metáfora, até então
analógico, evolui para o processo interativo entre dois pensamentos de
diferentes coisas identificado por Richards e adotado, com variações,
por Black. Garcia Lorca também dirá algo parecido sobre a formação da
metáfora:

“a metáfora une dois mundos antagônicos por meio de um salto


equestre da imaginação”.69

»175
Hugo Friedrich, como veremos, designará esse processo interativo de
técnica da fusão, ressaltando a capacidade da metáfora moderna de
unir algo próximo a algo distante, de desenvolver combinações as mais
desconcertantes ao transformar um elemento que já é longínquo num
absolutamente remoto. Na poesia, os exemplos desse processo
interativo são inúmeros. Entre eles, conforme já assinalamos, a
metáfora barroca do claro/escuro, da tensão de opostos:
Deus/humano; bem/mal; morte/vida. São João da Cruz, em seu Noite
escura, ao tentar conciliar a dialética alma/razão organiza uma
interação, ou fusão, que resulta nas belas metáforas do Amado e da
noite escura da alma.

A metáfora barroca como produto dessa tensão e interação entre


opostos resulta daquilo que, por exemplo, os ingleses chamam de wit,
e que pode ser traduzido por sutileza, engenho. É o uso constante
desse wit que levou Samuel Johnson a renegar John Donne e suas
junções forçadas de ideias sem correlação70. São, entretanto, essas
junções e outros elementos, como a obscuridade, que levaram alguns
poetas contemporâneos (Eliot e Pound, por exemplo) a perceberem a
modernidade desse poeta barroco, a qual se manifesta no seu realismo
sobre a natureza humana, na compreensão de que tudo pode ser
poético, na concatenação de ideias (o conceptismo), no jogo com as
palavras (o cultismo), na sátira e na

“perfeita fusão da razão com o sentimento no ato da criação


poética e a vigorosa expressão de um dualismo que prenuncia
toda a fragmentação cultural e espiritual do mundo em que
vivemos”.71

176«
Sucedendo o predomínio do Barroco, no contexto da Era Industrial e do
Estado Moderno, uma outra metáfora vai depor sobre a desilusão de
um projeto político-social que não cumpriu com os ideais
revolucionários de liberdade, igualdade e fraternidade. É a metáfora do
grotesco e do sublime.

O que o homem fez com o homem? questiona-se Wordsworth no


último verso do seu Versos compostos no início da primavera. A
inquirição sobre o que fizemos, ou fazemos, da nossa existência,
embora histórica, assume seus contornos típicos de época.

No Romantismo, ela será provocada não só por aquela desilusão


político-revolucionária como pelas consequências do Capitalismo
industrial, pela urbanização desordenada das grandes capitais
europeias, pela afirmação dos “valores” reacionários da burguesia
vitoriosa. Recordemo-nos, como exemplo, do poema Londres, de
William Blake, e da sua contundente observação acerca da sociedade
emergente capitalista. É essa visão, esse espreitar, que fará o poeta
romântico evadir-se para universos longínquos, épocas distantes e,
principalmente, para a natureza, reduto de bondade e harmonia, e de
cuja contemplação surgirá o expressivo sentimento religioso romântico,
o qual contribuirá, sem dúvida, na formação de uma de suas melhores
metáforas.

Ao contrário do Barroco, onde a busca do Amado representava o apelo


humano para uma reconciliação com o divino, sem por isso o poeta
considerar-se um profeta ou um médium, no Romantismo o poeta é
um médium, elo da criatura com o Criador; capaz de libertar o ser
humano, levando-o até Ele:

»177
“Trêmulo permaneço dia e noite; meus amigos ficam
espantados. / Mas perdoam o meu divagar, pois não posso
afastar-me da grande tarefa! / A tarefa de abrir os Mundos
Eternos, de abrir a Visão imortal / Do Homem para os Mundos
interiores de seu Pensamento: para a Eternidade / Em contínua
expansão no Seio de Deus: para a Imaginação Humana”.72

Como sabemos, a interpretação do poeta como médium é histórica; ela


não está presente apenas no contexto de um lirismo religioso-cristão.
Por isso, uma lírica moderna também dará continuidade a essa
interpretação:

“O poeta é o médium/ da Natureza-mãe/ que explica sua


grandeza/ por meio das palavras”.73

declara Federico Garcia Lorca no seu poema Este é o Prólogo. Essa


leitura acerca do poeta tem raízes socioculturais e coincide com as
origens da arte no projeto histórico da humanidade: a arte, além de
servir ao ser humano na dominação da natureza e no desenvolvimento
das relações sociais, foi um instrumento mediador entre ele e suas
projeções metafísicas; em sua origem, a arte foi magia, um auxílio
mágico à dominação de um mundo real inexplorado74.

Na modernidade, a histórica aliança da arte com a magia vai reforçar a


imagem do poeta como um vidente incompreendido, um esotérico
eremita num mundo que se industrializa e se individualiza. Um
passante. Magia oculta, exteriorização da dor (autêntica ou fingidora)

178«
da alma, egotismo, niilismo, exílio espontâneo, reclusão, fuga são
componentes românticos que favorecerão à lírica moderna criar uma
metáfora, de raízes maneirista-barrocas, baseada numa técnica que
Hugo Friedrich chama de técnica da fusão: foi em Rimbaud que, pela
primeira vez, nos encontramos frente a um procedimento que
chamamos de técnica da fusão. Também a lírica do século XX faz uso
dela75. Friedrich defende que essa metáfora, caso se queira falar ainda
de metáfora e não já de técnica da fusão 76, se transforma no meio
estilístico mais adequado à fantasia ilimitada da poesia moderna
porque ela superou, no que poderia ainda recordar, uma de suas
funções antigas que é a comparação, não aplicável desde o Barroco e,
tampouco, à poesia moderna.

Para Friedrich, a metáfora moderna não nasce da necessidade de


reconduzir conceitos desconhecidos a conceitos conhecidos. Ela realiza
o grande salto da diversidade de seus elementos a uma unidade
alcançável só no experimento da linguagem. Da sua capacidade
fundamental de unir algo próximo com algo distante, essa metáfora
desenvolveu as combinações mais desconcertantes ao transformar um
elemento que já é longínquo num absolutamente remoto, sem se
importar com a exigência de uma realização concreta ou, mesmo,
lógica. É neste sentido, para o crítico alemão, que a poesia cria a
ligação daquilo que materialmente, de modo algum, é possível
relacionar entre si. Será que nesta lição de Friedrich está uma
atualidade do pensamento do Ledor quando este defendeu que as
metáforas são enigmas velados77?

O que o teórico alemão identifica, sobretudo em Baudelaire, Rimbaud,


Mallarmé e, entre outros poetas, Apollinaire, Garcia Lorca, Ungaretti,

»179
Paul Valéry, T. S. Eliot, Saint-John Perse, Jorge Gullén, explica esta
metáfora moderna e o caráter dissonante da poesia que eles criaram:

“o que compõem, o exprimem de forma dissonante: o


indeterminado por meio de palavras determinantes, o
complicado por meio de frases simples; o sem fundamento por
meio de argumento (ou vice-versa), o inconexo por meio de
conexões (ou vice-versa), o espaço ou a ausência de tempo por
meio de designações de tempo, o abstrato por meio das forças
mágicas das palavras, o arbitrário quanto ao conteúdo por meio
de formas rigorosas, a imagem do invisível por meio de partes
de imagens sensíveis. Essas são as dissonâncias modernas da
linguagem poética. Continua, porém, sendo linguagem, mesmo
se apenas raras vezes seja ainda uma linguagem destinada à
compreensão. Pois a linguagem é manejada como um teclado,
do qual não se pode prever quais sons e significados emitirá. Os
poetas estão sós com a linguagem. Mas também só a linguagem
pode salvá-los”.78

Esta lição de Hugo Friedrich, com a qual encerramos estas anotações,


tem neste levantamento teórico uma importância substantiva porque
fundamenta a argumentação de que na Literatura (e nas artes) a
metáfora apresenta dois tipos distintos: a metáfora da analogia e da
comparação (dos greco-romanos à Renascença) e a metáfora da
interação de contrários, ou da técnica da fusão de contrários (do
Maneirismo à contemporaneidade), ou seja, a metáfora grega:
comparação, analogia, transposição; a metáfora ibérica (ibérica porque
suas primeiras manifestações aconteceram na Itália maneirista): fusão
e interação de contrários, de tensões.

180«
Esta distinção pode ser demonstrada, por exemplo, através daquelas
cinco oposições estabelecidas por Wölfflin79 para caracterizar a
15
passagem do Renascimento ao Barroco ; essa passagem, como
defende Wölfflin, é um exemplo bastante elucidativo de como o espírito
de uma nova época exige uma nova forma:

RENASCIMENTO BARROCO
(a metáfora da analogia e da (a metáfora da interação de
comparação) contrários, ou da técnica da
fusão de contrários)

linear, sensibilidade manual pictórica, sensibilidade visual

composição de plano, de composição em


forma a ser sentida profundidade, para ser
seguida

forma fechada, deixando de forma aberta, fazendo com


fora o observador que o observador se
interiorize na obra

pluralidade unidade

clareza absoluta clareza relativa

15
Joel Neves assinala que Wölfflin descura do Maneirismo, pois impõe a
formação do Barroco como sucessão necessária à Renascença em razão da
lógica imanente da evolução das formas (Ideias filosóficas no barroco mineiro.
Belo Horizonte: Itatiaia, 1986. p. 115-117).

»181
Notas bibliográficas

1. ARISTÓTELES. Poética. Tradução, prefácio, introdução, comentário e


apêndices de Eudoro de Sousa. 5. ed. [Lisboa]: Imprensa Nacional – Casa da
Moeda, 1998. p. 134.
2. Ibid., p. 138.
3. ARISTÓTELES. Arte retórica. Livro III. Tradução de Antônio Pinto de
Carvalho; introdução e notas de Jean Voilquin e Jean Capello; estudo
introdutório de Goffredo Telles Júnior. 14. ed. Rio de Janeiro; Ediouro, [19__ ],
p. 195.
4. Id. Arte retórica. Op. cit. p. 198-199.
5. Id. Poética. Op. cit. p. 115.

6. Id. Ética a Nicômaco. Livro VI, 1140a – 10-17. São Paulo: Martin Claret,
2001. p. 131.

7. Id. Poética. Op. cit. p. 103.


8. Ibid., p. 106-107.

9. Ibid., p. 115.
10. PAZ, Octavio. O arco e a lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983, p. 195.
11. JAEGER, Werner. Paidéia; a formação do homem grego. 2. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1989. p. 8.
12. PAZ, Octavio. Ibid. p. 195.
13. ARISTÓTELES. Physique; Livre II, La nature et les causes: 8,199a 21.
Texte établi et traduit par Henri Carteron. 2. ed. Paris: Societé D‟Édition „Les
Belles Lettres‟, 1952. p. 77.
14. BERTI, Enrico. As razões de Aristóteles. São Paulo: Edições Loyola, 1998. p.
163-164.
15. ARISTÓTELES. Poética. Op. cit., p. 111.

16. Id. Arte retórica. Op. cit. p.176.


17. Id. Tópicos. Livro VI-139b. Tradução e notas de Pinharanda Gomes. Lisboa:
Guimarães Editores, 1987. p. 200.
18. Id. Analíticos posteriores. Livro II-97b. Tradução e notas de Pinharanda
Gomes. Lisboa: Guimarães Editores, 1987. p. 152.
19. Id. Tópicos. Livro III-158b. p. 291.

20. Id. Arte retórica. Op. cit. p. 181.

182«
21. Ibid., p. 181.
22. Ibid., p. 195.

23. GARDNER, Howard. Arte, mente e cérebro; uma abordagem cognitiva da


criatividade. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1999. p. 143.

24. HUME, David. Investigação sobre o entendimento humano. Seção II. São
Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 137.

25. ARISTÓTELES. Metafísica; Livro I, capítulo I: 3,5,7. Tradução direta do


grego por Vincenzo Cocco; notas de Joaquim de Carvalho. São Paulo: Abril
Cultural, 1973. p. 211-212.
26. Id. Arte retórica. Op. cit., p. 176.
27. CARRETER, F. L. Diccionario de términos filológicos. 3. ed. Madrid: Editorial
Gredos, 1990. p. 275.
28. MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1974.
p. 327.
29. ARISTÓTELES. Arte retórica. Op. cit., p. 198.
30. MARQUES, Oswaldino. Teoria da metáfora & renascença da poesia
americana. Rio de Janeiro: São José, 1956. p. 19-20.
31. RICHARDS, I. A. O significado de significado: um estudo da influência da
linguagem sobre o pensamento e sobre a ciência do simbolismo. Rio de Janeiro:
Zahar, 1972. p. 218.

32. Id. Princípios de crítica literária. Porto Alegre: Globo, 1967. p. 204.
33. Ibid., p. 204.
34. Id. The philosophy of rethoric. New York: Oxford University Press, 1950. p.
94.
35. LAKOFF, George, JOHNSON Mark. Op. cit., p. 42.
36. RICHARDS, I. A. Ibid., p. 92.
37. Ibid., p. 96.
38. Ibid., p. 96.
39. Ibid., p. 93.

40. BLACK, Max. Modelos y metáforas. Madrid: Editorial Tecnos, 1966. p. 51.
41. Ibid., p. 49.

42. Ibid., p. 37.


43. MARCUSCHI, Luiz A. A propósito da metáfora. Revista de Estudos da
Linguagem, Belo Horizonte, v. 9, n. 1, p. 80-81, jan./jun. 2000.
44. BLACK, Max. Op. cit., p. 54
45. Ibid., p. 54.

»183
46. MARCUSCHI, Luiz A. Op. cit., p. 85.
47. BLACK, Max. Op. cit., p. 47..

48. LAKOFF, George, JOHNSON, Mark. Metáforas de la vida cotidiana. 4. ed.


Madrid: Ediciones Cátedra, 1998. p. 74-75.

49. MARCUSCHI, Luiz A. Op. cit., p. 81.


50. RICOUER, Paul. A metáfora viva. Porto: Rés, 1983. p. 260.

51. Id. O processo metafórico como cognição, imaginação e sentimento. In:


SACKS, S. (Org.). Da metáfora. São Paulo: EDUC; Campinas, SP: Pontes, 1992.
p. 146.
52. Ibid., p.148.

53. ARISTÓTELES. Metafísica, op. cit., p.177.


54. RICOEUR, Paul. A metáfora viva. Op. cit., p. 315.
55. Ibid., p. 150.
56. HUME, David. Op. cit., p. 137.
57. GOODMAN, Nelson. A metáfora como trabalho adicional. In: SACKS, S.
(Org.). Da metáfora. São Paulo: EDUC; Campinas, SP: Pontes, 1992. p. 177.

58. DAVIDSON, Donald. O que as metáforas significam. In: SACKS, S. (Org.).


Da metáfora. São Paulo: EDUC, Campinas, SP: Pontes, 1992. p. 37-38.

59. Ibid., p.51.


60. Ibid., p. 36.

61. Ibid., p. 49.


62. Ibid., p. 41-45.

63. Ibid., p. 44.

64. Ibid., p. 36.


65. WELLEK, Renee.; WARREN, Austin. Teoria da literatura. 3. ed. [s. l.]:
Publicações Europa-América. 1976. p. 244.
66. PERSE, Saint- John. Anábase. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979. p. 17.
67. HOCK, Gustav R. Maneirismo: o mundo como labirinto. São Paulo.
Perspectiva, 1974. p. 14.

68. Ibid., p. 17.


69. LORCA, Federico Garcia. A imagem poética em Dom Luís de Gongora. Obras
completas. Madri: Nova Aguilar, 1957. p. 72.
70. VIZIOLI, Paulo. John Donne: poeta do amor e da morte. São Paulo: J. C.
Ismael, 1985. p. 11.
71. Ibid., p. 12.

184«
72. BLAKE, William. Poesia e prosa selecionadas. Introdução, seleção e tradução
de Paulo Vizioli. São Paulo: J. C. Ismael, 1984. p. 51.

73. LORCA, Federico Garcia. Romanceiro gitano e outros poemas. Tradução e


nota introdutória de Oscar Mendes. 2. ed. Rio de Janeiro: J. Aguilar, 1975. p.
196-197.
74. FISCHER, Ernst. A necessidade da arte. 9. ed. Rio de Janeiro: Guanabara,
1987. p. 19.
75. FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. 2. ed. São Paulo: Duas
Cidades, 1991. p. 206.
76. Ibid., p. 157.
77. ARISTÓTELES. Metafísica, op. cit., p. 177.
78. FRIEDRICH, Hugo. Op. cit., p. 211.
79. WÖLFFLIN, Heinrich. Conceitos fundamentais da história da arte. 2. ed. São
Paulo: Martins, 1989. p. 10, 14-16.

3. Criação literária: inspiração ou


composição?

Desde os gregos, existe sobre os poetas um juízo de que são seres


diferentes. Conforme assinalamos logo no início do ponto sobre a
metáfora, a lição de Octavio Paz registra que a medicina antiga – e
também a Filosofia, começando por Platão – atribuíam a faculdade
poética a um transtorno psíquico. Era uma mania, quer dizer, um furor
sagrado, um entusiasmo, um transporte.

Talvez seja esse juízo uma das causas que faça determinada tradição
ver a criação poética sobretudo como inspiração; ou algo que se revela
como epifanias.

»185
Acontece que a criação poética não está acima das relações histórico-
sociais. Naturalmente que o poeta enxerga aquilo que a maioria das
pessoas apenas veem. Mas isso também ocorre com o cientista e o
filósofo. Todo ser humano, por exemplo, sempre percebeu, como ainda
o percebe, que os corpos caem, mas foi um indivíduo que, além de
perceber, deve ter se perguntado - por que os corpos caem? E ao
pensar, ao racionalizar sua pergunta, a respondeu.

O que estou argumentando é que a produção de conhecimento, da qual


a Literatura faz parte, não é tão-só inspiração, é, também,
composição. Trabalho. Engenho. Se a poesia e a prosa fossem tão-
somente inspiração, Dante Alighieri não teria produzido A Comédia;
Carlos Drummond de Andrade, Sentimento do mundo; João Cabral de
Melo Neto, O cão sem plumas. João Guimarães Rosa não teria
produzido seus grandes sertões, nem João Ubaldo Ribeiro, seu Viva o
povo brasileiro. Poucos exemplos de uma extensa lista.

Você vai ler a opinião de dois poetas sobre a composição poética.


Trata-se de Edgar Allan Poe, poeta americano, 1809-1849, autor,
dentre outros poemas, do célebre O corvo. O outro é o brasileiro João
Cabral de Melo Neto, 1920-1999, autor, dentre outros poemas, de O
rio.

Em A filosofia da composição, Edgar Allan Poe declara que

“[...] muitas vezes pensei quão interessantemente podia ser


escrita uma resenha por um autor que quisesse – isto é, que

186«
pudesse – pormenorizar, passo a passo, os processos pelos
quais qualquer uma de suas composições atingia seu ponto de
acabamento. Por que uma publicação assim nunca foi dada ao
mundo é coisa que eu não sei explicar, mas talvez a vaidade dos
autores tenha mais responsabilidade por essa omissão do que
qualquer outra causa. Muitos escritores – especialmente os
poetas – preferem ter por entendido que compõem por meio de
uma espécie de sutil frenesi, de intuição estática; e
positivamente estremeceriam ante a ideia de deixar o público
dar uma olhadela, por trás dos bastidores, para os verdadeiros
propósitos só alcançados no último instante, para os inúmeros
relances de ideias que não à maturidade da visão completa,
para as imaginações plenamente amadurecidas e repelidas em
desespero como inaproveitáveis, para as cautelosas seleções e
rejeições, as dolorosas emendas e interpolações; numa palavra
para as rodas e rodinhas, os apetrechos de mudança no cenário,
as escadinhas e os alçapões do palco, as penas de galo, a tinta
vermelha e os disfarces postiços que, em noventa e nove por
cento dos casos, constituem a característica do histrião
literário. Bem sei, de outra parte, que de modo algum é comum
o caso em que um autor esteja absolutamente em condições de
reconstituir os passos pelos quais suas conclusões foram
atingidas. As sugestões, em geral, tendo-se erguido em
tumulto, são seguidas e esquecidas de maneira semelhante.
Quanto a mim, nem simpatizo com a repugnância acima aludida
nem, em qualquer tempo, tive a menor dificuldade em
relembrar os passos progressivos de qualquer de minhas
composições; e, desde que o interesse de uma análise, ou
reconstrução, tal como a que tenho considerado um desiderato,
é inteiramente independente de qualquer interesse real ou
imaginário na coisa analisada, não se deve encarar, como falta

»187
de decoro de minha parte, o mostrar o modus operandi, pelo
qual uma de minhas próprias obras se completou. Escolhi O
corvo, como a mais geralmente conhecida. É meu desígnio
tornar manifesto que nenhum ponto de sua composição se
refere ao acaso, ou à intuição, que o trabalho caminhou, passo
a passo, até completar-se, com a precisão e a sequência rígida
de um problema matemático”.

A partir de então, o Poeta explica o passo a passo da composição de


seu famoso poema (In: O corvo e suas traduções. Org. Ivo Barroso. 2.
ed. Rio de Janeiro: Lacerda, 2000. p. 38-39).

Em Poesia e composição – a inspiração e o trabalho de arte,


conferência que João Cabral de Melo Neto pronunciou na Biblioteca de
São Paulo em 1952, o Poeta argumenta que

“[...] a composição literária oscila permanentemente entre os


dois pontos extremos a que é possível levar as ideias de
inspiração e trabalho de arte. De certa maneira, cada solução
que ocorre a um poeta é lograda com a preponderância de um
ou outro desses elementos. Mas essencialmente essas duas
maneiras de fazer não se opõem. Se uma solução é obtida
espontaneamente, como presente dos deuses, ou se ela é
obtida após uma elaboração demorada, como conquista dos
homens, o fato mais importante permanece: são ambas
conquistas de homem, de um homem tolerante ou rigoroso, de
um homem rico de ressonância ou de um homem pobre de
ressonâncias. Por este lado, ambas as ideias se confundem, isto

188«
é, ambas visam à criação de uma obra com elementos de
experiência de um homem”.
(In: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e modernismo
brasileiro. 4. ed. Petrópolis: Vozes).

Considerando, no entanto, que a partir da Modernidade (como, aliás, já


estudamos no 1º ponto de Teoria da Literatura I), muitos escritores
farão uma própria poética, João Cabral prossegue a sua conferência
dizendo

“[...] já que é impossível apresentar um tipo ideal de


composição, perfeitamente válido para o poema moderno e
capaz de contribuir para a realização do que se exige
modernamente de um poema, temos de nos limitar ao estudo
do que as ideias opostas da inspiração e trabalho artístico
trouxeram à poesia de hoje. Na literatura atual, a polarização
entre essas ideias chegou a seus pontos mais extremos e é a
partir desses extremos que se organizam as ideias hoje
correntes sobre composição”.

A partir dessas ideias que chegaram a seus pontos mais extremos, o


Poeta de Educação pela pedra dá continuidade a sua fala levantando
questões acerca da inspiração e do trabalho de arte na composição
literária.

Além desses poetas, apresentamos também o poeta pernambucano


Mauro Mota (1911-1984) e a sua

»189
Arte poética

Elabora o poema como


a fruta elabora os gomos
a fruta elabora o suco
a fruta elabora a casca,
elabora a cor e sobre-
tudo elabora a semente.

Observe como o poema realça uma característica da poesia moderna,


ou seja, aquela através da qual o poeta reflete sobre o trabalho
literário. Nesta poética, ao usar o verbo elaborar, Mauro Mota adverte
que a criação do poema é um ato de trabalho: elaborar vem do latim
elaborare, de labor, laboris, trabalho. Note que o verbo está em todo o
poema, empregado no imperativo: elabora o poema como..., o que
demonstra que o poeta fala a um leitor elabora (tu) (pretenso poeta?),
e no presente do indicativo: a fruta elabora... O imperativo, que
expressa uma ordem e o indicativo (no presente), uma ação definida,
que se pratica constantemente. Aqui lembramos a observação feita no
1º ponto do curso de Teoria da Literatura I, ou seja, a poesia moderna
entende que é a palavra que deve ser trabalhada porque é ela que
expressa em múltiplos sentidos o assunto sobre o qual o Poeta indaga,
comenta, observa. Reconsidera a natureza; reorganiza seus conteúdos
através da metáfora. No âmbito dessa observação, leia o texto de
Cassiano Ricardo que transcrevemos na Leitura complementar.

190«
Leitura complementar

De Cassiano Ricardo (1895/1974), a introdução do seu


ensaio 22 e a poesia de hoje, in: Os cadernos de cultura.
Ministério da Educação e Cultura, 1964, p. 3-6.

Presumo que a melhor forma de se verificar a situação da


poesia está na revolução pela qual vem passando a palavra, na
estrutura do poema.

A palavra primitiva – não há quem o ignore – era poética


por excelência, dada a origem metafórica da linguagem. Depois,
já em outro estágio, passou ela a servir apenas de veículo para
transmitir o conceito poético. Tornou-se descolorida, gasta; e o
que a salvara era o que o poeta tinha a “dizer”.

Foi preciso reinventá-la, revalorizá-la, pela dúvida


semântica, pelo exame de sua dialética interna, pelo
obscurecimento, pela clarificação. Estendeu-se essa reinvenção
à própria linguagem, criando-se um dialeto lírico (específico)
dentro da língua comum.

»191
Mas a pesquisa (embora aqui referida aos saltos) adquiriu
novos aspectos: o “mot juste” da estética parnasiana, a palavra
fluida do simbolismo, a “palavra em liberdade” do modernismo.

Cada palavra passou a ser, ainda, uma “pequena


biografia”, um “sinal de identidade” para cada poeta, como
“serpente” para Valéry, “cisne” para Mallarmé, “rosa” para
Rilke. Uma mesma palavra – rosa – era uma coisa para o autor
dos Sonetos a Orfeu (com as suas conotações), outra para o
poeta de “L‟après-midi d‟un Faune” (cette rose ne
l‟interromps...”), outra para Drummond (“rosa do povo”) outra
para Manuel Bandeira (rosa, coisa essencial, “tudo o mais era
excesso”).

Já o “plurissigno” mudaria o problema. Uma palavra com


muitos sentidos, multívoca, substituiria a unívoca, diferente
para cada poema.

Por outro lado, “rosa” deixaria de ser uma variável “rosa-


dos-ventos” para ser rosa mesmo, em seu sentido exato, direto,
na poesia de Gertrude Stein: “rose is a rose is a rose is a rose”.

Para se ter uma ideia do valor da palavra no poema


bastará aquele caso de Mallarmé indo buscar (já
etimologicamente) o seu acervo vocabular no dicionário de
Littré, segundo a denúncia que Charles Chassé publicou, não há
muito.

192«
A experimentação, porém, não cessa.

Uma palavra registrada como “poética” nos léxicos


(ósculo, cerúleo, quérulo, querubim) se faz obsoleta e até
antipoética, e alguma outra prosaica, racional, adquire foros de
poética (porque, como, isto é, etc.) Como “because”, três vezes
em seguida nos três primeiros versos de Ash-Wednesdey”.
Graças ao clima semântico para ela criado, ou mesmo em
função do poema (coloquial).

Já Saint-John Perse vai procurar a palavra no francês


arcaico (“Chronique”), o que faz lembrar o nosso Gonçalves
Dias (1847) no “ensaio filológico” de suas sextilhas de Frei
Antão. Incorpora-se à palavra a página em branco em “Un Coup
de Dés (Mallarmé).

No “caligrama” (Apollinaire) a palavra passa a ter uma


função de desenho gráfico. Em novas experiências, chega-se ao
ideograma (Ezra Pound); ao enxerto de uma palavra em outra
(tmese), de um fonema em outro; ao letrismo figurativo,
funcional (Cummings).

Percebe-se, assim, a evolução do material com que lida o


produtor do poema a fim de atingir a “nuclearidade poética”.
Porque, numa exata observação de Mário Chamie, só através da
palavra, não do discurso, pode ser obtida a criação de uma nova
linguagem.

»193
Agora, a importância da palavra-coisa, isolada do texto,
assume feição nova na luta contra o “discursivo”, contra o
verso-frase, contra a velha “unidade rítmica”. É a vez, também,
da palavra independente da coisa a que se refere (jarro sem o
jarro). Recorre-se à fenomenologia para considerar as coisas
em estado de “naïvété” a-histórica, pré-conceitural, pré-
linguística. A linguagem nada terá que ver com o ser das coisas,
muito menos com a “coisidade” de cada coisa.

O automatismo do século XX, a microfísica, a cibernética


teriam que atingir a sensibilidade do artista, a linguagem em
que ele se exprime.

Daí a palavra integrada no seu instante.

Atomizada, por ex., de modo que possa, no mundo


eletrônico, se partir, se fragmentar (gráfica e semanticamente)
como “maravilha”, fragmentada em “mar”, “ave”, e “ilha”. Ao
lado da “palavra-metáfora”, a “palavra-montagem”, como
“silvamoonlake” (Joyce).

Inventa-se a “palavra-ideograma”, do concretismo (Décio


Pignatari, Haroldo e Augusto de Campos), servindo de base, no
poema, para uma sintaxe “analógico-visual”. A experiência de
Mário Chamie, já no setor de uma semântica estética (lavradaz,
lavrador-ladrão; alfinjetadas”, dores), com aproveitamento de
sufixos e prefixos, ilustra bem esta fase de pesquisa, na poesia
de vanguarda. A palavra “diaclásica” (fraturada) em função do

194«
poema, em Edgar Braga, será outro exemplo bastante
expressivo de “duplicação” ou “estruturação” vocabular.

Não se pode deixar sem registro, ainda o caso da poesia


“não-objeto”, de Ferreira Gullar, que pretende “libertar a
palavra da poesia”. “O poeta tem a palavra mas já não tem um
quadro estético preestabelecido para colocá-lo habilmente.

É a palavra fora do dicionário, da frase, da página; a


palavra fora da linguagem , mas num lugar onde, “isolada,
irradie toda a sua carga”.

Em A hora da estrela, Clarice Lispector (1925/1977)


apresenta Rodrigo S. M., personagem que expõe seus conflitos
acerca de como elaborar uma história que já está nele próprio:
“ainda bem que o que eu vou escrever já deve estar na certa de
algum modo escrito em mim”. Clarice Lispector foi apontada
como uma ficcionista que praticamente só escrevia em estado
de inspiração. O comentário, decorrente, talvez, da sua
escritura muito intimista, não procede e a própria Clarice
desmente essa impressão quando, em carta de 05 de novembro
de 1948, à sua irmã Tania Kaufmann, discute o romance inédito
que Tania lera e comentara: “[...] a carta que recebi hoje de
você trata de A cidade sitiada. [...] Tudo o que você diz sobre o
livro está justo, ou então, outras vezes, quase justo. Vou
estudar bem a questão e escreverei talvez ainda nesta carta.

»195
Vou, por exemplo, reler o capítulo que você acha enxertado (os
primeiros desertores) e ver quais as ligações. É muito provável
que haja ligações. [...] Suponho que a ligação de Perseu com o
resto, é que ele não precisava, como Lucrécia, de procurar a
realidade – porque ele era a realidade, ele fazia parte da
verdade. A mulher de preto sentiu que ele era assim, e que era
inalcançável por isso, como uma criança, Perseu era o que
Lucrécia não conseguiu ser. Basta como justificativa desse
capítulo? Ou ainda parece enxertado? – Também o fato de eu
chamar S. Geraldo de subúrbio, vou estudar. Você tem razão,
mas creio que vai ser talvez difícil de mudar, porque teria que
mudar outras coisas também. Mas vou ver ainda. [...] Quanto
ao fato de eu dizer: “Depois de guardar os pratos enxutos é que
se iniciou a verdadeira história dessa tarde” – estou de acordo
que na verdade não houve mudança de plano mental. Mas me
refiro ao fim do capítulo, quando ela vê realmente a sala de
visitas, atingindo por assim dizer um “êxtase” de visão. Sei que
você tem razão, mas não encontrei outro modo de aprofundar o
plano em que as coisas se passavam (aprofundamento
necessário) senão falando em “verdadeira história dessa
tarde”. Ainda vou estudar todos os pontos dos quais você fala,
querida, e lhe escreverei o mais depressa possível.” (in:
Correspondências: Clarice Lispector. Org. Teresa Montero. Rio
de Janeiro: Rocco, 2002).

Em outra carta, de 17 de março de 1956, para suas irmãs


Elisa Lispector e Tania Kaufmann, Clarice Lispector comenta
que “meu livro está com Érico que parece estar gostando muito.
(O livro é A maçã no escuro e o Érico a que Clarice se refere é o
escritor gaúcho Érico Veríssimo. Observação nossa.) Ele está

196«
fazendo várias anotações e vamos ver se concordo. Tinha uma
vontade louca de me ocupar muito, mas não em livro, estou
muito cansada. Esse livro teve umas oito cópias, cada uma um
pouco diferente da outra. Mas queria me ocupar, cabeça sem
emprego só dá chateação” (op. cit. 2002. p.207-208).

4. O poema16

Nos pontos anteriores, foram abordados alguns aspectos da natureza


da poesia e da criação poética. Vamos agora comentar algumas
fôrmas do poema, eleito como a fôrma típica de realização da poesia.
Comecemos através do soneto. De Ledo Ivo (do livro Acontecimento do
soneto):

Soneto das catorze janelas

O que se esquiva em mim mais se levanta


no sul da arte poética, no drama
onde o meu ser transfigurado clama

16
As palavras em negrito, deste capítulo, constam no dicionário indicado na
Bibliografia básica. O estudante de Letras não pode dispensar da sua biblioteca
dicionários especializados desta Área. Isto não quer dizer que vá limitar-se aos
significados ali apresentados. Naturalmente que para uma monografia, uma
dissertação, uma tese, ou qualquer ensaio mais especulativo, o pesquisador não
pode ater-se ao que um dicionário introduz em suas explicações. Para os
pesquisadores de Literatura e Teoria Literária, o dicionário de Massaud Moisés –
Dicionário de termos literários, cf. ref. bib. – ainda é o mais completo em Língua
Portuguesa do Brasil. Apresenta verbetes, entre alguns, substantivamente
explicados, com referências bibliográficas através das quais o pesquisador
ampliará o conteúdo de suas pesquisas indo diretamente às fontes citadas.

»197
que eu escreva a canção que não me encanta

mas, por falar de mim, sempre me espanta


pela perícia com que me proclama.
E eu destruo o supérfluo, usando a chama
que sobre o meu trabalho o sol decanta.

Não se faz um soneto; ele acontece


e irrompe da alquimia do que somos
subindo as altas torres do não ser.

Nas rimas que ninguém nos oferece,


pungentes, nós seguimos, e fitamos
catorze casas para nos conter.

O soneto é uma fôrma fixa, de origem italiana, que soma um total de


catorze versos, dispostos em dois quartetos e dois tercetos, com
rimas, geralmente, construídas sob o esquema abba/abba,cdc/dcd.
Originalmente, o esquema de rimas obedecia à distribuição:
abba/abba/cde/cde. Assim estruturado, é conhecido como
petrarqueano. Talvez pela sua ampla aceitação na Inglaterra, ali se
desenvolveu um tipo de soneto conhecido por soneto inglês ou
shakespeariano, formado de três quartetos e um dístico, cujas rimas
se fazem sob o esquema abab/cdcd/efef/gg, e o soneto spenserista,
também disposto em três estrofes e um dístico no seguinte esquema
de rima: abab/bcbc/cdcd/ee. O metro mais utilizado no soneto é o
decassílabo, com acento na 4ª, 7ª e 10ª). Há outras medidas a
exemplo do alexandrino (que soma doze sílabas).

198«
Segundo a lição de Massaud Moisés, Dante Alighieri (1265-1321) foi o
primeiro grande poeta a cultivar o soneto, mas coube a Petrarca
(1304-1374) o mérito de lhe dar uma fôrma e um conteúdo que se
tornariam modelares para os pósteros, não só na Itália como em
outros países da Europa (In: Dicionário de termos literários. São Paulo:
Cultrix, 1974, p.482). Muito cultivado entre os séculos XVI e XVIII, o
soneto tem seu declínio no Romantismo. Resgatado gloriosamente pelo
Parnasianismo, será, no entanto, proscrito pelas vanguardas do século
XX e no Brasil pelos modernistas. O que não significa que ele tenha
sumido definitivamente. Em 1946, o poeta Ledo Ivo (1924/--) publicou
Acontecimento do soneto.

O ritmo é um dos elementos basilares do poema. Não só porque a


gênese da poesia está na música, como porque a palavra tem ritmo. O
fato mesmo de as palavras serem classificadas em oxítonas,
paroxítonas e proparoxítonas comprovam suas tonalidades (no sentido
musical). Daí o ritmo da poesia (como o da prosa, sob outra estrutura)
não resultar tão-somente de uma sucessão de sílabas átonas e sílabas
tônicas; ele está para além desta sequência porque é produto da
dialética ser humano/natureza; produto de uma geografia humana e de
uma psicologia social as quais, embora aproximem universalmente os
seres humanos com suas semelhanças e necessidades históricas, não
suprimem seus caráteres antropológicos.

No âmbito do que estamos estudando, ou seja, o ritmo, faça uma


leitura silenciosa, e depois uma leitura oral, do poema de Manuel
Bandeira (do livro Estrela da manhã):

»199
Trem de ferro

Café com pão


Café com pão
Café com pão

Virge Maria que foi isso maquinista?

Agora sim
Café com pão
Agora sim
Voa, fumaça
Corre, cerca
Ai seu foguista
Bota fogo
Na fornalha
Que eu preciso
Muita força
Muita força
Muita força

Oô...
Foge, bicho
Foge, povo
Passa ponte
Passa poste
Passa pasto
Passa boi
Passa boiada

200«
Passa galho
De ingazeira
Debruçada
No riacho
Que vontade
De cantar!

Oô...
Quando me prendero
No canaviá
Cada pé de cana
Era um oficiá
Oô...
Menina bonita
Do vestido verde
Me dá tua boca
Pra matá minha sede
Oô...
Vou mimbora vou mimbora
Não gosto daqui
Nasci no sertão
Sou de Ouricuri
Oô...

Vou depressa
Vou correndo
Vou na toda
Que só levo
Pouca gente

»201
Pouca gente
Pouca gente...

É evidente que a intenção do poeta foi imprimir, nesse poema, o


movimento de um trem.

Embora um meio de transporte presente no cenário das grandes


capitais, o trem de hoje não é o de Manuel Bandeira, ainda que este
faça parte do transporte de pequenas cidades ou sirvam também como
transporte de carga.

Para o poeta conseguir esse feito, isto é, imprimir em seu poema o


movimento de um trem, ele pode, em princípio, valer-se da métrica,
que o auxilia na criação de um ritmo desejado.

A sílaba poética não coincide com a gramatical, que é a sílaba da


palavra. A sílaba poética é a do verso o qual, subordinado a algumas
regras, divide-se em diversas sílabas. Observe, no verso de Manuel
Bandeira, Vou-me embora pra Pasárgada, o exemplo de contagem das
sílabas gramaticais:

Vou- me em bo ra pra Pa sár ga da.

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

Agora observe a contagem das sílabas métricas (sílabas métricas


porque se referem aos grupos silábicos do verso):

202«
Vou- me em bo ra pra Pa sár ga da.

1 2 3 4 5 6 7

Como você observou, a contagem da sílaba métrica vai até a última


sílaba tônica do verso a qual assinala seu fim; não se consideram as
átonas que lhe sucederem. Outro exemplo que se tem neste verso é a
regra de que quando a última sílaba de uma palavra terminar em vogal
átona e a primeira da palavra seguinte também começar por uma
vogal átona, contam-se como uma única sílaba, como ocorre em “Vou-
me em”... Se, no entanto, ocorrer o encontro de uma vogal tônica e
uma átona, ou vice-versa, nas condições descritas, contam-se
separadamente. Essas técnicas, entre outras, não só criam e
asseguram o ritmo do poema, como colaboram para a melodia
intrínseca dos versos. Na contagem da sílaba métrica, é possível,
ainda, unir as vogais de um hiato (sinérese) ou transformar um
ditongo em hiato (diérese).

Em princípio, é na sequência dessas sílabas métricas, abreviando ou


dilatando fonemas: apócope, síncope, prótese, aférese (variações
de escansão e metaplasmo), entre outras técnicas, também
conhecidas como licenças poéticas, que o poeta cria um ritmo
desejado, ou um que lhe convém.

Não nos esqueçamos, entretanto, de que o ritmo não depende da


métrica. Muito embora esta coopere, em algumas situações, para
instaurá-lo, aprendamos com a lição de Joahnnes Pfeiffer (In: Moisés,
p. 448, op.cit.), que

»203
“o metro é o exterior, o ritmo o interior; o metro é a regra
abstrata, o ritmo a vibração que confere vida; o metro é o
Sempre, o ritmo o Aqui e o Hoje, o metro é a medida
transferível, o ritmo a animação intransferível e
incomensurável”.

Registremos, no entanto, que a poesia moderna ao dispensar técnicas


canônicas, entre elas a métrica, ou fôrmas consagradas a exemplo do
soneto, da sextina, da lira, foi buscar seu ritmo nas próprias palavras
e na sua distribuição no poema, o que deixou tudo mais complexo e
belo!

Sobre o poema de Manuel Bandeira, observe que o Poeta tem a


intenção de aproximar a fala do seu trem à fala coloquial, espontânea,
dos falantes no seu dia a dia, característica, inclusive, da poesia
moderna, ou seja, a de usar a língua como é empregada pelas
pessoas, com escolaridade ou não, no seu dia a dia. Essa é mais uma
demonstração de que a poesia faz parte e se insere no cotidiano das
pessoas, manifestando suas expressões socioculturais e que, para ser
escrita, ela não se subordina, necessariamente, à chamada norma
culta da língua. Lembremo-nos de que muitos falantes sem
escolaridade, ou semianalfabetos, tendem a eliminar o /l/ final de
palavras como canavial, oficial, quartel, etc. Quanto à palavra virge,
alguns desses falantes suprimem o /r/ = vige: Vige Maria, que funciona
como uma interjeição. Quanto a matá, observa-se uma tendência de
muitos falantes eliminarem o /r/ final dos verbos no infinitivo,
especialmente na língua oral; prendero é também a forma adotada por
alguns falantes, com escolaridade ou não, para a terceira pessoa do

204«
plural do pretérito perfeito do indicativo: falaro (falaram); dissero
(disseram), etc. Vou mimbora é uma corruptela de vou-me embora.
Vou mimbora, vomimbora, vambora, bora são formas de largo uso.

Quanto à palavra Pasárgada, e ao poema Vou-me Embora pra


Pasárgada[sic], transcrevo a lição dada pelo próprio Manuel Bandeira,
de cujo conteúdo também retiramos mais uma lição de que poesia não
é só inspiração, é, também, composição:

“Vou-me Embora pra Pasárgada foi o poema de mais longa


gestação em toda a minha obra. Vi pela primeira vez esse nome
de Pasárgada quando tinha os meus dezesseis anos e foi um
autor grego. Estava certo de ter sido em Xenofonte, mas já
vasculhei duas ou três a „Ciropedia‟ e não encontrei a
passagem. O douto Frei Damião Berge informou-me que
Estrabão e Arriano, autores que li, falam na famosa cidade
fundada por Ciro, Antigo, no local preciso em que vencera a
Astíages. Ficava a sueste de Persépolis. Esse nome de
Pasárgada, que significava „campo dos persas‟ ou „tesouro dos
persas‟, suscitou na minha imaginação uma paisagem fabulosa,
um país de delícias, como o de „L‟invintation au Voyage‟ de
Baudelaire. Mais de vinte anos depois, quando eu morava só na
minha casa da Rua do Curvelo, num momento de fundo
desânimo, da mais aguda sensação de tudo o que eu não tinha
feito na minha vida por motivo da doença, saltou-me de súbito
do subconsciente esse grito estapafúrdio: „Vou-me embora pra
Pasárgada!‟ Senti na redondilha (grifo nosso) a primeira célula
de um poema, e tentei realizá-lo mas fracassei. Já nesse tempo
eu não forçava a mão. Abandonei a ideia. Alguns anos depois,

»205
em idênticas circunstâncias de desalento e tédio, me ocorreu o
mesmo desabafo de evasão de „vida besta‟. Desta vez o poema
saiu sem esforço como se já estivesse pronto dentro de mim.
Gosto desse poema porque vejo nele, em escorço, toda a minha
vida; e também porque parece que nele soube transmitir a
tantas outras pessoas a visão e promessa da minha
adolescência - essa Pasárgada onde podemos viver pelo sonho
o que a vida madrasta não nos quis dar. Não sou arquiteto,
como meu pai desejava, não fiz nenhuma casa, mas reconstruí
e „não como forma imperfeita neste mundo de aparências‟, uma
cidade ilustre, que hoje não é mais a Pasárgada de Ciro, e sim a
„minha‟ Pasárgada”.
(In: Manuel Bandeira: poesia completa e prosa. 4. ed. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 1977. p. 80).

Aqui, a transcrição do célebre poema (do livro Libertinagem) que


imortalizou, ao lado de muitos outros poemas, o Poeta
17
pernambucano :

Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada


Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

17
Você pode também ouvir Manuel Bandeira recitando Vou-me embora pra
Pasárgado no YouTube: <http://www.youtube.com/watch?v=adKtPW
A8rC0>.

206«
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconsequente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive

E como farei ginástica


Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d‟água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada
Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar

»207
E quando eu estiver mais triste
Mais triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
- Lá sou amigo do rei -
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.

4.1 O experimentalismo

Vamos considerar que, a rigor, o experimentalismo sempre compôs a


história da poesia e da prosa, muito embora, por muitos séculos, como
estudamos em Teoria da Literatura I, as poéticas tenham estabelecido
cânones para a realização da poesia. É, no entanto, a refração do
Poeta ao estabelecimento de modelos ou normas que promovem o
surgimento de novas fôrmas, as quais evidenciam não só a
necessidade do poeta de imprimir sobre seu trabalho as utopias e as
ideologias do seu tempo presente, como patenteiam a dialética
arte/sociedade. Exemplos, dentre outros, destas fôrmas, na poesia, se
representam através do soneto e do haicai; na prosa, do romance.

Este experimentalismo, no entanto, manifestar-se-á radical e vigoroso,


sobretudo, no final do século XIX:

208«
“as experiências literárias de Poe, Whitman, Baudelaire,
Lautréamont, Rimbaud e Mallarmé assinalam na poesia
ocidental os pontos de ruptura estética e temática que,
somados ou desenvolvidos, motivaram o aparecimento de
vários grupos de vanguarda na poesia europeia do início deste
século [do século XX]”.
(In: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e modernismo
brasileiro. 3. ed. Petrópolis: Vozes, p. 21, 1976).

Estas vanguardas, a exemplo, entre outras, do futurismo, do


dadaísmo, do surrealismo, do espiritonovismo, do cubismo

“arquitetavam novas teorias culturais, experimentavam


timidamente outras fórmulas expressivas, fundavam revistas e
redigiam manifestos em que as ideias expostas, imatura ou
apressadamente, seriam logo retocadas e mesmo abandonadas
nos manifestos seguintes,”
id.ib. p.33-34

muito embora seus conteúdos fossem o mesmo, isto é, o ser humano e


seus projetos históricos.

Estas vanguardas, principalmente as mencionadas acima, tiveram


papel importante na vida cultural brasileira do início do século XX, cuja
expressão ainda se mostrava substantivamente parnasiana.
Influenciados por estes experimentalismos, os modernistas da Semana
de 22 souberam retirar deles o que para nós seria útil e interessante.
Serão, sobretudo, o Prefácio interessantíssimo e A escrava que não é

»209
Isaura, de Mário de Andrade; o Manifesto Pau-Brasil e o Manifesto
antropófago, de Oswald de Andrade as grandes poéticas do
Modernismo Brasileiro, o qual, entre outros méritos, impôs, na lição de
Mário de Andrade,

“a fusão de três princípios fundamentais: o direito permanente


à pesquisa estética; a atualização da inteligência artística
brasileira e a estabilização de uma consciência criadora
nacional”.
In: Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Martins, p.: [s.d.].

Sem dúvida, são esses três princípios que favorecerão nossa poesia
chegar, por exemplo, ao experimentalismo de Cassiano Ricardo (muito
embora o próprio Cassiano assinale que em 22, o meu “defeito” era
ser excessivamente visual. Não só visual “imagístico”. A parte “visual
gráfica” nunca deixou de me interessar vivamente (In: op. cit. 1964, p.
15), a Joaquim Cardozo (1897-1978) e João Cabral de Melo Neto. Ao
Concretismo. Assim como nossa prosa chegar a Graciliano Ramos,
Clarice Lispector, Osman Lins. A Guimarães Rosa.

Como exemplo de experiências empreendidas por nossa poesia,


sobretudo a partir da segunda metade do século XX, leia de Cassiano
Ricardo:

210«
Este poema faz parte do longo poema Jeremias sem-chorar (“terei
elaborado Jeremias como se fosse, todo ele, um só poema”, informa
Cassiano Ricardo - In: Jeremias sem-chorar. 3. ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, p. X, 1976). O Poeta, ao comentar a crítica de Wilson Martins
sobre Gagárin, explica:

“[...] o certo, porém, é que o poema „sugere‟ a figura de uma


órbita circular; é uma simples representação, não uma
„demonstração‟ científica.

[...] Atente-se para a colocação das palavras (signos) em


círculos, na página, formando pequenos grupos (constelações)
separadas por vários raios que se dirigem para o centro
geométrico, onde se encontram as palavras „pato selvagem‟ e
„ave‟. Os signos desse zodíaco, simplificados, e para leitura
eclíptica, são substituídos por palavras que, por sinal,

»211
constituem, também, „signos‟ (em linguística). O „pato
selvagem‟, embora no centro geométrico (terra) não deixará,
em relação a touro, leão, caranguejo, escorpião, peixe, de ser
por sua vez, um „signo‟ – o de uma época que se inicia sob o
signo do „pato selvagem‟, diga-se, de Gagárin. Já as palavras do
semicírculo superior, „ave‟, „bela ave‟, mas também „belonave‟,
„ave bélica‟, „astronave‟, indicam a dúvida entre a maravilha e a
ameaça (um bem?, um mal?) sendo que „belo-belo‟ ( o mesmo
que bilo-bilo) que se diz às crianças quando se lhes chama a
atenção para algum objeto, que está no ar ou no céu,
representa a inocência do homem diante do espetáculo
cósmico. E por que zodíaco conota horóscopo, abre-se uma
esperança para o futuro, como se vê pelo linossigno que forma
o semicírculo inferior: „os que vão nascer te saúdam‟, ao invés
de „ave, Cesar, morituri te salutant‟. Sustenta o autor de
'Desgaste das Vanguardas‟ (título da crítica de Wilson Martins,
obs. nossa) que o „pato selvagem‟, como toda inocente criatura
do Senhor, prefere as rotas cardiais e não qualquer forma
fantasiosa de voo circular ou elíptico‟. O seu equívoco, aqui,
chega, a ser mirabolante – permita-me a expressão. Por que?
Simplesmente porque „pato selvagem‟ não é pato, o inocente
palmípede que ele pensou ser. É o que Gagárin significa em
russo, segundo o que os jornais e revistas divulgaram,
amplamente, por ocasião do primeiro voo orbital. Trata-se,
portanto, de um „pato selvagem‟ (Gagárin) que voou em órbita
(voo circular ou elíptico, pouco importa) e não do pato „pato-
mesmo‟ que prefere „as rotas cardiais‟. Naturalmente, o meu
instigante crítico pensou (direito seu) que o vocabulário „ave‟,
sotoposto a „pato selvagem‟, queria dizer „pato-mesmo‟ (o
palmípede, não Gagárin) e daí (outro equívoco), já não é ave
(pato) e sim „salve‟, do latim „ave‟. É uma interjeição, não um

212«
substantivo. Uma saudação: „Ave, Gagárin‟, não uma ave da
família dos anatídeos”.
In: Cassiano Ricardo. Coletânea organizada por Sônia Brayner. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, p. 70-71, 1979

Veja e leia o poema, sem título, de Ronaldo Azeredo:

Este poema é um clássico exemplo do que atingiu a nossa poesia


experimental, sobretudo, com o Concretismo. No Plano piloto para a
poesia concreta, três dos principais poetas concretistas: Haroldo de
Campos, Décio Pignatari e Augusto de Campos esclarecem o que é
poesia concreta. Leia alguns fragmentos desse Plano, transcritos de
acordo com a apresentação original do Manifesto:

“poesia concreta: produto de uma evolução crítica de formas.


dando por encerrado o ciclo histórico do verso (unidade rítmico-
formal), a poesia concreta começa por tomar conhecimento do
espaço gráfico como agente estrutural. espaço qualificado:

»213
estrutura espácio-temporal, em vez de desenvolvimento
meramente temporístico-linear. daí a importância da ideia de
ideograma desde o seu sentido geral de sintaxe espacial ou
visual, até o seu sentido específico (fenollosa/pound) de
método de compor baseado na justaposição direta – analógica,
não lógico-discursiva – de elementos [...].

poesia concreta: tensão de palavras-coisas no espaço-tempo.


estrutura dinâmica: multiplicidade de movimentos
concomitantes [...].

ideograma: apelo à comunicação não-verbal. o poema concreto


comunica a sua própria estrutura: estrutura conteúdo. o poema
concreto é um objeto em e por si mesmo, não um intérprete de
objetos exteriores e/ou sensações mais ou menos subjetivas.
seu material: a palavra (som, forma visual, carga semântica).
seu problema: um problema de funções-relações desse
material. fatores de proximidade e semelhança, psicologia da
gestalt. ritmo: força relacional o poema concreto, usando o
sistema fonético (dígitos) e uma sintaxe analógica, cria uma
área linguística específica – “verbivocovisual” – que participa
das vantagens da comunicação não-verbal, sem abdicar das
virtualidades da palavra. com o poema concreto ocorre o
fenômeno da metacomunicação: coincidência e simultaneidade
da comunicação verbal e não-verbal, como a nota de que se
trata de uma comunicação de formas, de uma estrutura-
conteúdo, não da usual comunicação de mensagens.

214«
a poesia concreta visa ao mínimo múltiplo comum da
linguagem, daí a sua tendência à substantivação e à
verbificação [...].

poesia concreta: uma responsabilidade integral perante a


linguagem. realismo total. contra uma poesia de expressão,
subjetiva e hedonística. criar problemas exatos e resolvê-los
em termos de linguagem sensível. uma arte geral da palavra. o
poema-produto: objeto útil”.
In: TELES, Gilberto Mendonça. Op. cit. 1976. p.344-345

Difundida no final da década de 1950, a poesia concreta estava


inserida em um contexto histórico que exigia cada vez mais o
aprimoramento das redes comunicacionais, a sofisticação de uma
engenharia industrial e computacional as quais só demonstravam a
velocidade a que o ser humano se impunha e projetava sobre sua vida
social. É neste sentido que o poema Velocidade além de ser um ícone
de interação entre a poesia concreta e a sua contemporaneidade,
patenteia o argumento de que por mais que esta poesia tenha se
centrado na forma, na metalinguagem, ou em objeto de si mesma, ela
não deixa de (res)significar o ser humano porque o tem como seu
protagonista maior. A propósito, uma lição de Philadelpho Menezes
assinala que

“os poetas do grupo Noigandres introduziram uma noção de


poesia ligada a uma cultura contemporânea dominada pelos
meios de comunicação de massa e pela cibernética, teoria
precursora do mundo da informática e das novas tecnologias.
Foram eles ainda que introduziram no país a semântica, um

»215
campo de estudos que se presta com muita adequação à análise
dos processos de fusão das diversas linguagens (palavra, som,
imagem). Esse papel de formação e fixação, de modo ao mesmo
tempo sólido, diversificado e criativo, de todo um pensamento
contemporâneo sobre a poesia, apoiado na divulgação da mais
refinada produção poética de todo o mundo, foi (e continua
sendo) uma contribuição irrefutável e definitiva dos poetas do
grupo Noigandres para a literatura e mesmo a cultura brasileira
contemporânea”.
In: Roteiro de leitura: poesia concreta e visual. São Paulo: Ática, p. 41,
1998.

Outro clássico do Concretismo é o poema Luxo, de Augusto de


Campos, que mostra a palavra “lixo” escrita com repetições da palavra
“luxo”. Como na poesia concreta é possível o conteúdo está na fôrma
do poema, fica evidente que o poeta colocou certo luxo no lixo:

A exemplo de todo movimento artístico que esboça sua


contemporaneidade, o Concretismo, para expressar seu tempo, criou
uma fôrma, que é a do poema sem verso, cuja forma se define pela
concretização dos conteúdos semânticos da palavra. Com efeito, o
Concretismo rejeitou as formas canônicas para a escritura da poesia,

216«
inclusive o verso. Atitude tão radical que uma de suas vozes parece ter
mesmo colocado no lixo o luxo do verso, considerando que, para se
escrever uma história geral da literatura no Ocidente, se poderia iniciá-
la assim: no princípio era o verso... O que, no entanto, atenção, não
quer dizer que tudo fosse poesia. Lembremo-nos da lição de
Aristóteles:

“desta maneira, se alguém compuser em verso um trabalho de


Medicina ou Física, esse será vulgarmente chamado “poeta”; na
verdade, porém, nada há de comum entre Homero e
Empédocles, a não ser a metrificação: aquele merece o nome de
“poeta”, e este o de “fisiólogo”, mais que o de poeta”.
In: Aristóteles, 1998. op.cit. p.104.

“[...] Como nenhum outro movimento, o Concretismo elegeu


como tema central de seus poemas a própria poesia, o próprio
poema. Por mais que o poema concreto fale de um ovo, de um
movimento, da coca-cola, da rua, ou de qualquer outro tema, o
que está em jogo é essencialmente o poema como tema de si
próprio. Isto é, todos os temas na verdade são metáfora do
tema central da própria poesia”.
In: Menezes, op. cit. p. 97.

Ainda no conjunto do experimentalismo da segunda metade do século


XX, a poesia brasileira apresentará, entre outras manifestações, a
Poesia-práxis, cujo mentor é o poeta Mário Chamie, o Manifesto
Neoconcreto, tendo o poeta Ferreira Gullar, inicialmente concretista,
como um de seus participantes, o Manifesto da Poesia Semiótica,
publicado por Luiz Ângelo Pinto e Décio Pignatari. Esses manifestos, no

»217
todo ou em fragmentos, constam no livro do Prof. Gilberto Mendonça
Teles (op. cit. cf. ref. bib.).

Leitura complementar

O cubismo

O modernismo ou da “avant-garde” dos franceses é aqui


apresentado sob o nome de cubismo ou, mais exatamente, de
cubismo literário. Evita-se assim o problema das “inexatidões
terminológicas”. Não importa, porém, saber se o termo, nascido
da observação de Matisse sobre um quadro de Braque, em
1908, deva ou não ser aplicado à literatura, como se, de direito,
pertencesse apenas à pintura. Uma das características das artes
neste século (século XX) é justamente a da aproximação de
todas elas, uma influenciando a outra e concorrendo todas para
a popularização de novas técnicas e linguagens. Na época dos -
ismos, pelo menos pintura, música, literatura e escultura
estiveram juntas nas pesquisas de suas novas formas de
expressão.

[...] Não existe propriamente um manifesto da poesia cubista,


mas o artigo de Apollinaire, Méditations esthétiques/Sur la
peinture, de 1913, pode ser tomado como um desses
manifestos. Apollinaire (1880-1918) é o mais importante poeta

218«
do cubismo ou da literatura francesa da primeira guerra
mundial. Em 1913, já famoso, publicou Alcools livro em que se
encontram todas as inquietações poéticas da tradição e da
vanguarda francesa, e que constitui o mais importante
documento literário da atividade poética desse período de
definições das vanguardas na Europa (In: Teles, op.cit. p.109-
110).

O espírito novo [fragmento]

Há um espírito novo: é um espírito de construção e de síntese


guiado por uma concepção clara.

Seja o que for que se pense dele, ele anima, hoje, a maior parte
da atividade humana.

Nascido de algumas fortes individualidades de século XIX –


época de inquietação – o espírito novo conduz, no presente,
todas as elites: as elites das artes e das letras, como também as
elites das ciências e da indústria. A sociedade tende, enfim, a se
organizar segundo o espírito novo.

Tal como mostra a história, as forças liberadas dos séculos de


ebulição e de desordem se conjugam um belo dia e se orientam

»219
para um esforço comum. E vemos então surgirem as grandes
épocas.

Uma grande época acaba de acontecer, porque todas as formas


de atividade humana se organizam enfim segundo o mesmo
princípio.

O espírito de construção e de síntese, de ordem e de vontade


consciente que se manifesta de novo, não é menos
indispensável do que se supõe às artes e às letras como
também às ciências puras ou aplicadas ou à filosofia.

Que seria um gênio sem espírito construtivo? Ele não poderia


realizar nada de suas inspirações! Não deixaria obras-primas
como testemunho. Passaria sem deixar traços.

Queremos, ao contrário, afirmar com força que o espírito


construtivo é tão necessário para criar um quadro ou um poema
como para construir uma ponte.

Melhor ainda: afirmamos a necessidade dos sistemas estéticos


para os criadores.

A arte, como a ciência, como a filosofia, é a ordem posta pelo


homem nas suas representações. Não há obra de arte sem
sistemas estético mais ou menos consciente, mais ou menos

220«
elaborado por aquele que a criou, como não há trabalho
científico ou filosófico que não tenha sido presidido por
concepções sistemáticas mais ou menos confessadas, hipóteses
nais ou menos liberadas. Os sistemas estéticos, científicos,
filosóficos são edifícios, construções que põem na obra
determinados materiais.

A reflexão do criador deve incidir tanto sobre a construção que


ele quer elevar como sobre os materiais que ele quer utilizar
(In: L’Esprit nouveau, Paris, nº. 1, 1920. Apud: Teles. Op. cit. p.
161-162).

O espírito novo e os poetas [fragmento]

O espírito novo, que dominará o mundo inteiro, não se


evidenciou na poesia de nenhum país como na França. A forte
disciplina intelectual que se impuseram os franceses em todos
os tempos lhes possibilitou, a eles e àqueles que a ela
pertencem espiritualmente, ter uma concepção da vida, das
Artes e das Letras que, sem ser o simples conhecimento de
Antiguidade, não é tampouco um pendão do belo cenário
romântico.

O espírito novo que se anuncia pretende antes de tudo herdar


dos clássicos um sólido bom-senso, um espírito crítico seguro,

»221
apreciação de conjunto do universo e da alma humana e o
sentido do dever que analisa os sentimentos e limita, ou antes,
contém suas manifestações. Pretende ainda herdar dos
românticos uma curiosidade que o leve a explorar todos os
campos próprios para fornecer uma matéria literária que
possibilite exaltar a vida sob qualquer forma em que ela se
apresente. Buscar a verdade, encontrá-la, tanto no domínio
étnico como, por exemplo, no da imaginação, eis os principais
caracteres deste espírito novo (Guillaume Apollinaire. In: Teles.
Op. cit. p. 149).

5. O romance, a novela, o conto, a


crônica

Naturalmente que você já conhece, assim como já leu, estas fôrmas


típicas da prosa, em cujos conteúdos, no entanto, não é incomum
encontrar poesia. Neste capítulo 5, você ampliará sua compreensão
sobre o que é o romance, a novela, o conto e a crônica ao ler e
estudar as lições introdutórias acerca destes conceitos apresentadas
pelo Prof. Massaud Moisés no seu Dicionário de termos literários, cf.
ref. bib. Amplie seus estudos sobre estes conceitos, consultando neste
mesmo Dicionário os verbetes: personagem, conteúdo, fôrma,
ação.

Como você está observando, não há neste 5º capítulo uma introdução


sobre os assuntos que ele apresenta. A estratégia é fazer o estudante
ampliar um conhecimento que ele já tem sobre a matéria através de

222«
uma pesquisa bibliográfica. É importante que você anote a sua
compreensão sobre o foi lido. Suas anotações ajudarão no debate
previsto para a Orientação deste ponto.

6. O teatro

São de Pierre-Aimé Touchard as reflexões que transcrevemos sobre o


teatro. Diz este Autor:

“Todo mundo concorda em dizer que o teatro se originou de


certos ritos religiosos ou sociais. Estes ritos, por sua vez, se
originaram da vontade de participar dos sentimentos dos
deuses e, por este meio, associar-se a seu poder. E está
provado que a prece nasceu da recusa da impotência humana,
da necessidade de, apesar de tudo, atuar sobre o
acontecimento que nos escapa. Mas isto não é suficiente para
explicar porque, de repente, a prece se faz diálogo, se não nos
lembramos de que os deuses se dividiam entre si em benévolos
e malévolos, em bons e maus. Foi, creio, desta oposição entre
os deuses bons e os deuses maus que nasceu o diálogo
propriamente dramático, o qual supõe sempre que um dos
interlocutores diga sim e o outro não, criando, assim, a
incerteza do futuro, força profunda de toda ação dramática.

Uma bela lenda hindu descreve a origem do teatro na cerimônia


que celebrava a vitória do deus Indra contra os demônios. A
esta cerimônia assistiam ao mesmo tempo os deuses e os

»223
demônios, cujas batalhas eram imitadas. Tão logo viram que o
drama representava sua derrota, os demônios se revoltaram e
se aliaram a outros pequenos deuses malignos, os „obstáculos‟,
lançando tal confusão entre os atores que estes se tornaram
incapazes de falar e se movimentar. Então, o deus Indra
levantou seu estandarte, lançou-se em cena, destruiu os
„obstáculos‟ e a maioria dos demônios. Depois foi construído um
edifício que se tornou o teatro. Para continuar a proteger os
atores contra os demônios sobreviventes, várias divindades
repartiam entre si as incumbências de proteger as diversas
partes do teatro. O Estandarte tornou-se o símbolo da proteção
dos atores.

Esta lenda me agrada porque mostra bem que o drama é uma


luta, e põe em cena os demônios que o teatro, visando libertar o
homem, tem por missão exorcizar.

[...] A Poética de Aristóteles, escrita por volta da metade do


século IV a.C., encerra algumas frases que, há dois mil anos,
vêm provocando reflexões, comentários e discussões. Trata-se
dos termos em que ele definiu a tragédia: „a tragédia é a
imitação de uma ação de caráter elevado e completo, de uma
certa extensão, numa linguagem cujo sabor é realçado por um
tempero de uma espécie particular de acordo com cada parte;
imitação essa que é feita por personagens em ação e não por
meio de uma narrativa e que, suscitando piedade e medo, opera
a purgação própria a semelhantes emoções‟.

224«
As divergências entre os teóricos nascem no momento em que
cada um tenta explicar o efeito da purgação (catharsis em
grego).

Ninguém duvida do fato de que o espetáculo de uma tragédia,


ou mesmo de uma comédia, provoca no homem reações
agradáveis e até apaziguantes.

[...] O teatro permanece uma representação, isto é, uma série


de ações cujas consequências não passam de imaginárias e o
espectador ou o intérprete que aí se entrega sob a máscara do
personagem, pode exprimir-se sem nenhum receio de
prejudicar a outrem e com um sentimento de liberdade total,
que o alivia. É este alívio que denominamos catarse, a purgação
das paixões”.
(In: O teatro e a angústia dos homens. Rio de Janeiro: Duas Cidades,
1970, p. 9,10, 35).

Essas reflexões de Touchard são importantes porque reafirmam o


teatro como expressão estética das nossas necessidades históricas e
espirituais.

No âmbito deste estudo, a presença do teatro se justifica porque como


texto ele é Literatura. Será arte cênica quando este texto se concretiza
na representação, de onde a arte dramática se desenvolveu (Bentley,
op. cit., p. 142). Sobre a personagem no teatro, você já antecipou uma
leitura teórica quando leu A personagem de ficção, Antonio Candido et.
al. Trata-se do 3º capítulo deste livro: “A personagem no teatro”, Décio
de Almeida Prado.

»225
Você ampliará sua compreensão sobre
teatro e drama ao ler e estudar as lições
introdutórias acerca destes conceitos
apresentadas pelo Prof. Massaud Moisés
no seu Dicionário de termos literários, cf.
ref. bib.

Observe que neste 6º capítulo, apesar de apresentar uma citação


acerca do teatro, usamos a mesma estratégia do 5º capítulo.

Referências

ALI, Manoel Said. Versificação portuguesa. São Paulo: Edusp, 1999.

ARISTÓTELES. Poética. Tradução, prefácio, introdução, comentário e


apêndices de Eudoro de Sousa. 5. ed. [Lisboa]: Imprensa Nacional –
Casa da Moeda, 1998.

______. Arte retórica. Tradução de Antônio Pinto de Carvalho;


introdução e notas de Jean Voilquin e Jean Capello; estudo introdutório
de Goffredo Telles Júnior. 14. ed. Rio de Janeiro; Ediouro, [19__ ].

BENTLEY, Eric. A experiência viva do teatro. Rio da Janeiro: Zahar,


1967.

BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. 6. ed. São Paulo: Nova


Fronteira, 2000.

226«
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história
literária. 7. ed. São Paulo: Nacional, 1985.

______. Na sala de aula; caderno de análise literária. 2. ed. São Paulo:


Ática, 1994.

______. Noções de análise histórico-literária. São Paulo: Humanitas,


2005.

______. et al. A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações


no Brasil. Campinas: Unicamp/Fundação Casa de Rui Barbosa. 1992.

CHOCIAY, Rogério. Teoria do verso. São Paulo: McGraw-Hill, 1974.

DELAS, Daniel, FILLIOLET, Jacques. Linguística e poética. São Paulo:


Cultrix, 1975.

DUFRENNE, Mikel. O poético. Porto Alegre: Editora Globo, 1969.

FEHÉR, Ference. O romance está morrendo? (Contribuição à teoria do


romance). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna: problemas atuais e


suas fontes. 2.ed. São Paulo: Duas Cidades, 1991.

KAYSER, Wolfgang. Análise e interpretação da obra literária;


introdução à ciência da literatura. 6. ed. Coimbra: Arménio Amado
Editor, 1976.

HUINZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. 5.


ed. São Paulo: Perspectiva, 2005.

JAKOBSON, Roman. Linguística e comunicação. São Paulo: Cultrix,


1994.

JÚNIOR, R. Magalhães. A arte do conto. 1. ed. Rio de Janeiro: Bloch


Editores, 1972.

»227
MENEZES, Philadelpho. Roteiro de leitura: poesia concreta e visual. São
Paulo: Ática, 1998.

PAZ, Octavio. A outra voz. São Paulo: Siciliano: 1993.

______. Os filhos do barro; do romantismo à vanguarda. Rio de


Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

POE, Edgar Allan. A filosofia da composição. In: O corvo. 2. ed. Rio de


Janeiro: Lacerda, 2000.

POUILLON, Jean. O tempo no romance. São Paulo: Cultrix/EDUSP,


1974.

RICARDO, Cassiano. Algumas reflexões sobre poética de vanguarda.


Rio de Janeiro: José Olympio, 1964.

Obras basilares para o curso:

ANDRADE, Carlos Drummond de et al. Crônica 5. Coleção „Para gostar


de ler‟. 14. ed. São Paulo: Ática, 2004.

ASSIS, Machado de. Missa do galo. In: Páginas recolhidas.

CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. 4. ed. São Paulo:


Associação Editorial Humanitas, 2004.

____. et al. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1970.

GOTLIB, Nádia Batella. Teoria do conto. São Paulo; Ática, 1985.

LEITE, Lígia Chiappini. O foco narrativo. São Paulo: Ática, 1985.

LIMA, Aldo de. Metáfora e cognição. Recife: Editora Universitária/UFPE,


2006.

LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela.

228«
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix,
1974.

MELO NETO, João Cabral de. Antologia poética. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira.

PAZ, Octavio. O arco e a lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

RAMOS, Graciliano. São Bernardo.

SUASSUNA, Ariano. A farsa da boa preguiça.

TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e modernismo


brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Record, 1992.

Obs.: a edição do livro de Octavio Paz, em português, O arco e a lira, está


esgotada. Existe, no entanto, uma edição em espanhol, da “Fondo de Cultura

Econômica”, e está no mercado. Esse livro é indispensável!

Leituras complementares

Leitura, estudo e análise de textos em poesia, prosa e teatro

Os livros listados a seguir devem ser lidos durante a realização do


programa. Deixar todos para o final do semestre tem-se o risco de
uma leitura superficial. Para cada um dos títulos, será realizado um
debate. A propósito, lembro-lhe aquela orientação dada em Teoria da
Literatura I, 1º ponto, aqui transcrita com pequenas modificações:

»229
“durante a operacionalização dos conteúdos e das leituras
literárias, tente construir um comentário acerca do que você
está estudando e lendo. Tome a iniciativa de convidar um ou
dois colegas para trocarem ideias sobre o que vocês estão
pensando do assunto e dos textos literários. Lembre-se de que
o grupo de estudo é importante, quando formado
rigorosamente, e tão-só, para estudar, porque, entre outros
aspectos positivos, concretiza aquela lição de Vygotsky e Paulo
Freire de que a construção do conhecimento é um ato solidário,
e não solitário, cujo conteúdo ratifica o diálogo como
instrumento basilar para a aprendizagem. À medida que os
textos forem lidos, vocês devem fazer perguntas para e entre
si, tais como: o que este texto me diz?; o que eu digo a este
texto? Não deixe também de acrescentar uma informação
sobre o texto que um colega, ao comentá-lo, não o fez. A
construção do conhecimento é necessariamente dialética, por
isso só é válida quando mais de um sujeito está envolvido em
seu processo. Não deixe de expor seus argumentos e contra-
argumentos. Possibilite que o grupo crie um ambiente onde
todos comentem as respectivas observações acerca do estudo e
das leituras realizadas. Procure também, individual ou em
grupo, desenvolver um estudo crítico-reflexivo de forma que se
chegue a uma compreensão geral de tudo o que está sendo lido,
estudado, pensado, debatido a respeito dos conteúdos e das
leituras solicitadas”.

Poesia

• “O rio” – de João Cabral de Melo Neto

230«
Prosa

• “A hora da estrela” – Clarice Lispector

• “São Bernardo” – Graciliano Ramos

• “Missa do galo” – Machado de Assis

• “Crônicas 5”. Coleção Para gostar de ler

Atenção para o ensaio de Antonio Candido sobre a crônica, A vida ao


rés-do-chão, que está no final deste livro.

Teatro

• “A farsa da boa preguiça” – Ariano Suassuna

»231
Teoria da Literatura II – Aldo de Lima

ATIVIDADES

Atividade 1

Leia e estude para aprofundamento destas anotações aqui


apresentadas:

• a Introdução do livro de Octavio Paz, “O arco e a lira”, em que o


Autor reflete sobre “poesia e poema”;

• o terceiro ponto do capítulo O poema: “verso e prosa”, do mesmo


livro de Octavio Paz.

Atividade 2

Assista, no You Tube, ao documentário Recife de dentro pra fora, de


Kátia Mesel, baseado na obra O cão sem plumas, de João Cabral de
Melo Neto

http://www.youtube.com/watch?v=AfZ-DK03C6I – Parte 1 e

http://br.youtube.com/watch?v=zySy12S4bnA - Parte 2.

232«
Atividade 3

Leia e estude para aprofundamento destas anotações aqui


apresentadas:

• Todo o capítulo do livro de Octavio Paz, O arco e a lira, “A revelação


poética”.

Atividade 4

Leia e estude para aprofundamento das anotações aqui apresentadas:

• O segundo ponto do capítulo O poema: “o ritmo”, do livro de Octavio


Paz “O arco e a lira”.

Atividade 5

Leia e estude para debate:

• A personagem de ficção, Antonio Candido et. al., cf. ref. bib. A


leitura desse livro subsidiará o debate sobre um dos principais
elementos da ficção, que é a personagem;

O foco narrativo, Lígia Chiappini Leite, cf. ref. bib. Essa leitura
subsidiará o debate sobre o narrador.

»233
Você pode, e deve, ampliar suas leituras acerca dessas fôrmas lendo e
estudando ensaios que aprofundem seus elementos característicos do
ponto de vista estético, sociohistórico-cultural. Na referência
bibliográfica, há alguns títulos que colaboram com essa leitura
complementar, a exemplo de:

CANDIDO, Antonio et al. A crônica: o gênero, sua fixação e suas


transformações no Brasil. Campinas: Unicamp/Fundação Casa de Rui
Barbosa. 1992.

FEHÉR, Ference. O romance está morrendo? (Contribuição à teoria


do romance). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

JÚNIOR, R. Magalhães. A arte do conto. 1. ed. Rio de Janeiro: Bloch


Editores, 1972.

KAYSER, Wolfgang. Análise e interpretação da obra literária:


introdução à ciência da literatura. 6. ed. Coimbra: Arménio Amado
Editor, 1976. (Especialmente o capítulo X, A estrutura do gênero).

234«
Maria José de Matos Luna

LINGUÍSTICA: FUNCIONALISMO
236«
1. O que é funcionalismo?

Caro aluno,

é provável que você tenha visto em outra(s) disciplina(s) informações


sobre os movimentos modernos denominados de estruturalismo,
funcionalismo e gerativismo. Eles constituem os principais
movimentos ou atitudes linguiísticas do século XX que deram forma a
atitudes e pressupostos atuais.

É convencional e conveniente datar o nascimento do estruturalismo a


partir do Cours de linguistique générale de Saussure em 1916. A
distinção entre os pontos de vista sincrônico e diacrônico no estudo de
línguas, ou ainda a dicotomia entre langue e parole; entre sistema
linguístico e comportamento linguístico, estão presentes neste
movimento. Dos postulados teóricos de Saussure, talvez o mais
fecundo, para a elaboração do método estrutural em Linguística, tenha
sido a dicotomia língua/fala, entendendo-se língua como entidade
coletiva e abstrata, e fala, como a realização individual e concreta.

Os termos funcionalismo e estruturalismo são frequentemente


utilizados em antropologia e sociologia para se referirem a teorias ou
métodos de análise contrastantes. Na linguística, entretanto, o
funcionalismo é mais corretamente visto como um movimento
particular dentro do estruturalismo.

»237
No funcionalismo, acredita-se que a estrutura fonológica, gramatical e
semântica das línguas é determinada pelas funções que têm que
exercer nas sociedades em que operam.

“As diferentes funções são os diferentes modos de significação


no enunciado, que conduzem à eficiência da comunicação entre
usuários de uma língua”.
Maria Helena de Moura Neve, 2004; p.14.

E é no funcionalismo linguístico contemporâneo diferentemente


das abordagens formalistas, estruturalistas e gerativistas, que
encontramos nossa base de suporte teórico desse curso – primeiro, por
conceber a linguagem como um instrumento de interação social
e segundo, porque seu interesse de investigação linguística vai além
da estrutura gramatical. A linguagem é vista como forma de ação e
deve ser analisada como atividade e não como estrutura.

É importante ainda salientar que todo uso e funcionamento significativo


da linguagem acontece em textos e discursos produzidos e recebidos
em situações enunciativas ligadas a domínios discursivos da vida
cotidiana e realizados em gêneros que circulam na sociedade.

A abordagem funcionalista procura explicar as regularidades


observadas no uso interativo da língua, analisando as condições
discursivas desse uso. O domínio da sintaxe, da semântica e da
pragmática são relacionados e interdependentes. Ao lado da descrição
sintática, cabe investigar as circunstâncias que envolvem as estruturas
linguísticas e seus contextos específicos de uso.

238«
Segundo a hipótese funcionalista, a estrutura gramatical depende do
uso que se faz da língua, ou seja, a estrutura é ativada pela
situação comunicativa. Nesse sentido, a estrutura é uma variável
dependente, pois os usos da língua, ao longo do tempo, é que dão
forma ao sistema. A necessidade de investigar a sintaxe, nos termos
da semântica e da pragmática, é comum a todas as abordagens
funcionalistas atuais.

A separação entre morfologia e sintaxe já não tem espaço, a


morfossintaxe sim, seja na análise de textos, seja na produção de
textos. A abordagem funcionalista pode auxiliar nas tarefas referidas
porque as questões relativas à morfologia e à sintaxe deixam de
representar um fim, em si mesmas, para se constituírem em pontos
cuja análise será necessária ao alcance do competente e eficiente
desempenho linguístico. Trata-se da proposta da gramática no
discurso, do reconhecimento dos recursos gramaticais como
componentes e concorrentes da tessitura textual.

Os funcionalistas foram, portanto, bastante influentes no século XX.


Vamos conhecê-los?

Nikolai Trubetzkoy (1890-1938) foi um dos seus representantes na


Escola de Praga; Roman Jakobson (1896-1982) expressou
tacitamente a teoria das funções da linguagem. Tivemos ainda a Escola
de Copenhague com Louis Hjelmslev (1889-1965), e também John
Firth (1890-1960) com a Escola de Londres. Este último sistematizou a

»239
noção de contexto de situação ratificada mais à frente por Malinowski e
tão importante nos estudos de texto ainda hoje.

Como já dissemos, esses estudiosos/linguistas europeus não se


detiveram apenas nos aspectos formais e estruturais da língua, a
exemplo de Saussure, mas avançaram para os aspectos funcionais,
situacionais e contextuais no uso da língua e com isso deram origem às
várias formas da linguística de texto e dos diversos funcionalismos.

Queremos ressaltar A. K. Halliday que amplia essas observações com


a “gramática sistêmico-funcional” cuja proposta é de um funcionalismo
baseado em formas regulares relacionando contexto social e forma
linguística com base nas funções da linguagem e na sua realização nos
mais variados gêneros textuais. Esse autor passa do texto para o
contexto, desenvolvendo reflexões sistemáticas a respeito do
funcionamento do sistema na sua relação com o contexto situacional.
Na aula seguinte, falaremos mais diretamente sobre texto, contexto e
intertexto.

2. Texto, contexto e intertexto?

Todos nós já estivemos em situações onde questionamos: isto é texto?


Isto faz sentido? Isto tem coerência? Vocês sabem por que essas
perguntas nos vêem à mente? Porque não temos clareza da noção de
texto. Para bem alcançarmos a noção de texto precisaremos identificar

240«
as concepções que temos de língua. Língua é representação do
pensamento? Língua é código? Ou Língua é interação?

O texto é visto como um produto do pensamento quando temos língua


como representação do pensamento, representação mental do autor.

Se adotarmos a concepção de que língua é código, é um instrumento


de comunicação, o texto será visto como produto da codificação de um
emissor a ser decodificado pelo leitor/ouvinte. Dessa forma, se
conhecemos o código, o texto torna-se explícito.

Na concepção interacional da língua - o texto será o próprio lugar da


interação. E aqui o sujeito deixa de ser passivo como nos casos
anteriores e passa a ser ativo, pois constrói uma relação dialógica
entre os participantes da interação.

O texto é, portanto, uma atividade


interativa de produção de sentido,
no qual o sujeito constrói essa
interação. Dessa forma, o texto é
uma atividade complexa de
produção de sentidos.

E aqui, nós gostaríamos de dizer logo onde fica a gramática nessa


história. O que o professor considera que seja a gramática da língua?
É desse conceito que decorre a delimitação do que deve ser “ensinado
ou exercitado”. Geralmente, nós vemos o ensino da gramática

»241
relacionado a dois conceitos: gramática como conjunto de regras de
bom uso, ou seja, a gramática normativa; e a gramática como
descrição das entidades da língua e suas funções, ou seja, a gramática
descritiva.

Eu quero que vocês compreendam a gramática como o próprio


sistema de regras da língua em funcionamento. E assim
entendermos as três dimensões da atividade linguística:

A DIMENSÃO A DIMENSÃO A DIMENSÃO


DISCURSIVA SEMÂNTICA SINTÁTICA OU
GRAMATICAL

Pela qual as Pela qual as expressões Pela qual se


expressões se se interpretam segundo regram
relacional com a o sistema cultural de sistematicamente
situação real de representação da as construções da
sua produção. realidade. língua.

A linguagem presta-se, portanto, a uma atividade comunicativa; a


atividade cognitiva e a um objeto de análise. Não devemos
compartimentalizar redação - atividade comunicativa; leitura e
interpretação - atividade cognitiva; e, gramática - atividade de
análise.

Então, caro aluno, trabalhar o texto é observar o espaço para reflexão


sobre os procedimentos em uso, sobre o modo de relacionamento das

242«
unidades da língua, sobre as relações mútuas entre diferentes
enunciados, sobre o propósito dos textos, sobre a relação entre os
textos e seus produtos e/ou receptores, etc. A coerência é considerada,
mesmo pelos leigos, o fator fundamental da textualidade porque
responsável pelo sentido do texto, por sua inteligibilidade. Usar o texto
como exemplo concreto para explorar qualquer conteúdo selecionado,
significa apenas que estamos usando o texto como pretexto. Mais uma
vez, não abolimos a preocupação normativa. Entendemos a gramática
como um processo de depreensão de entidades nocionais de onde
advêm as funções para as unidades depreendidas.

2.1 O que seria a unidade textual?1

Segundo Halliday e Hasan (1976, p. 296):

“A unidade que o texto tem é uma unidade de sentido em


contexto, uma estrutura que expressa o fato de que ele se
relaciona como um todo com o ambiente no qual está inserido.”

Nessa perspectiva, Rastier (1989, p. 21-37) se posiciona dizendo que

1
Retomando a noção de texto: Para Orlandi (1987:159), “texto é uma
unidade complexa de significação [...]. O que define o texto não é a sua
extensão, mas o fato de ele ser uma unidade de significação em relação à
situação [...]. Texto é o lugar, o centro comum que se faz no processo de
interação entre falante e ouvinte, autor e leitor”.
Para a existência de um texto são necessárias três qualidades: unidade,
coerência e coesão.

»243
“os textos são entendidos, fundamentalmente, como
representantes empíricos das atividades do discurso produzidos
dentro de uma prática social (os gêneros, como carta, ensaio,
etc.) e fixadas sobre um suporte qualquer (jornal impresso,
livro, etc.)”.

Essas perspectivas permitem evidenciar que o texto e o discurso, longe


de se excluírem, são complementares para esse ensaio. Ambos se
inscrevem e são atados no curso de uma prática social. Por esta visão,
o texto ganha a função de objeto de figura, interpretado como objeto
empírico de configuração tipológica e de articulação do funcionamento
dos gêneros.

Impõe-se destacar a coesão e a coerência, inerentes ao texto em


condições de grande reciprocidade. Sobre elas alguns estudiosos
postulam uma não distinção, entre essas duas propriedades do texto
(Halliday e Hasan, Charolles), por exemplo; outros (como Beaugrand,
Koch) por exemplo, por observarem que a coerência tem princípios
pragmáticos e que a coesão não se constitui condição para a existência
do texto, assumem uma posição de distinção clara entre elas. Daí
Halliday e Hasan (1976) postulam que a coesão é o modo segundo o
qual o texto está estruturado semanticamente e cuja relação de
sentido se mostra na superfície e na linearidade textual. Nesse sentido,
os enunciados e seus elementos mantêm relação de dependência,
definindo-se, assim, como UM TEXTO DE SENTIDO e não uma
sequência aleatória de frase. Seguindo-lhes os passos, Charolles
defende que a coesão é manifestação linguística da coerência, advinda
da interrelação semântica entre os elementos do discurso expressos
pela conectividade textual. Observe-se o que diz a estudiosa “A base

244«
do texto (sua representação estrutural profunda) é de natureza lógico-
semântica: os constituintes frásticos, sequenciais e textuais figuram
sob a forma de uma cadeia de representações semânticas ordenadas
de tal maneira que sejam manifestadas suas relações conectivas. As
regras de coerência agem sobre a constituição dessa cadeia, sendo que
as restrições que elas estipulam incidem, portanto, sobre traços
(lógicos) semânticos, isto é, afinal de contas, linguísticos. (1997, p.
49).

Leituras complementares:

CHARROLES, Michel. Introdução aos problemas da coerência dos


textos: abordagem teórica. In: O texto: Leitura e escrita. Galves et all
(Org.). Campinas, Ed. Pontes, 1987.

CHARROLES, Michael (1978). Fatores de coerência textual.

COSTA VAL. Maria da Graça. Redação e textualidade. São Paulo:


Martins Fontes, 1991.

KOCH, Ingedore G.V. O texto e a construção dos sentidos. São


Paulo, Contexto, 1987.

LUNA. Maria José de Matos. Produção de Texto do Profissional de


Letras: um estudo morfossintático comparativo entre a
UFPE/Brasil e a FLUP/Portugal. Tese de Doutoramento,
Porto/Portugal, 2007.

»245
2.2 Contexto

Não é fácil explicar o que é contexto. Mas observem que a leitura de


uma produção linguística ou texto leva em consideração a situação em
que foi produzida. Essa situação é conhecida como contexto.

Contexto define-se como informações que acompanham o texto. Por


isso, sua compreensão depende da compreensão do contexto.

Duas dimensões do contexto:

ESTRUTURA DE ESTRUTURA DE
SUPERFÍCIE PROFUNDIDADE

Considera os elementos do Considera a semântica das


enunciado. O leitor busca o relações sintáticas. O leitor
primeiro sentido produzido considera a visão de
pelas orações. mundo do texto.

246«
O Contexto pode ser:

IMEDIATO SITUACIONAL

Relaciona-se a elementos É formado por elementos


que seguem ou precedem exteriores ao texto. Esse
o texto imediatamente. contexto acrescenta
São os chamados informações, quer
referentes textuais. históricas, quer
geográficas, quer
sociológicas, quer
literárias, para maior
eficácia da leitura que se
imprime ao texto.

2.3 Intertexto

“O texto só ganha vida em contato com outro texto (com


contexto)”.
Bakhtin (1986, p. 162)

Um texto (enunciado) não pode ser avaliado ou compreendido


isoladamente: ele está sempre em diálogo com outros textos. Além do
contexto, a leitura deve considerar que um texto pode ser produto de

»247
relações com outros textos. Essa referência e retomada constante de
textos anteriores recebe o nome de paráfrase, paródia, estilização.

• PARÁFRASE

Pode ser:

IDEOLÓGICA ESTRUTURAL

O desvio é mínimo: varia a sintaxe, Há uma recriação do texto e


mas as idéias são as mesmas. Há do contexto. O comentário
apenas uma recriação das idéias. crítico, avaliativo, apreciativo,
Pode-se entendê-la como simples o resumo, a resenha, a
tradução de vocabulário ou recensão são formas
substituição de palavras por outras parafrásicas estruturais um
de significado equivalente. texto.

Didaticamente (grau da paráfrase):

1. Simples substituição de palavras por outras de sentido


equivalente;

2. resumo;

3. comentários;

248«
4. exposição de apreciação, de juízo de valor.

• ESTILIZAÇÃO

Exige recriação do texto, considerando, sobretudo procedimentos


estilísticos. O desvio em relação ao texto é maior do que no caso da
paráfrase.

Um exemplo de intertextualidade estilística extraímos de Koch (2007,


p. 19) que apresenta como intertexto a oração do Pai Nosso.

Oração dos Programadores

Sistema operacional que estais na memória,


Compilado seja o vosso programa,
Venham à tela os vossos comandos,
Seja executada a nossa rotina,
Assim na memória como na impressora.
Acerto nosso de cada dia, rodai hoje
Informai os nossos erros,
Assim como nós informamos o que está corrigido.
Não nos deixeis cair em looping,
Mas livrai-nos do Dump,
Amém.

• PARÓDIA

»249
Na paródia, o desvio é total; às vezes; às vezes invertem-se as idéias,
vira-se o texto do avesso. Há uma ruptura, uma deformação
propositada, tendo em vista mostrar a inocência do texto original, ou
simplesmente apresentar outras idéias que o texto original omitiu ou
se interessou em expor. A paródia tanto pode ser séria como jocosa, e,
em geral, ataca instituições e pessoas, como governo, políticos, clero,
escola.

Leitura complementar:

KOCH, Ingedore; BENTES, Anna; CAVALCANTE, Mônica.


Intertextualidade: diálogos possíveis. São Paulo: Editora Cortez,
2007.

3. Elementos estruturais do texto

Os elementos estruturais do texto são:

1. O saber partilhado; (a informação antiga, do


conhecimento da comunidade).

2. A informação nova; (caracteriza-se como a necessidade para a


existência do texto. Sem ela, não há razão para o emissor
escrever nada. Um texto só se constitui texto quando vincula
uma informação que não era do conhecimento do leitor, ou que

250«
não o era da forma como será exposta, o que implica,
naturalmente, matizes novos e, consequentemente, uma nova
maneira de ver os fatos.

3. As provas; (o saber partilhado mais a informação nova não são


suficientes para a realização de um texto. É preciso acrescentar
provas, fundamentos das afirmações expostas).

4. A conclusão.

Em síntese, todo texto trata de um assunto, a referência (do que trata


o texto?)

Além do assunto, o texto tem um tema (sob que perspectiva o texto foi
construído?).

4. Resumo

Esta é uma modalidade de texto muito solicitada pelos professores. O


resumo abrevia o tempo dos pesquisadores; difunde informações de tal
modo que pode influenciar e estimular a consulta do texto completo.

O resumo deve destacar:

• o assunto do trabalho;

»251
• o objetivo do texto;

• a articulação das ideias;

• as conclusões do autor da obra resumida.

Deve ainda:

• ser redigido em linguagem objetiva;

• não apresentar juízos críticos;

• ser inteligível por si mesmo;

• evitar a repetição de frases inteiras no original;

• respeitar a ordem em que as ideias ou fatos são apresentados.

5. Lições básicas de uma gramática


de direção funcional

Buscamos em Maria Helena Moura Neves, “Texto e Gramática”


(2006, p. 16), O QUE O FUNCIONALISMO APONTA COMO LIÇÕES
BÁSICAS DE UMA GRAMÁTICA DE DIREÇÃO FUNCIONAL?

A linguagem não é um fenômeno isolado, mas, pelo contrário,


serve a uma variedade de propósitos (Prideaux, 1987).

A língua (e a gramática) não pode ser descrita nem explicitada como


um sistema autônomo (Givón, 1995).

As formas da língua são meios para um fim, não um fim em si

252«
mesmas (Halliday, 1985).

Na gramática estão integrados os componentes sintático, semântico e


pragmático (Dik, 1978,1980,1989ª,1997; Givón, 1984; Hengevedd,
1997).

A gramática inclui o embasamento cognitivo das unidades linguísticas


no conhecimento que a comunidade tem a respeito da organização
dos eventos e de seus participantes ( Beaugrande, 1993).

Existe uma relação não-arbitrária entre a instrumentalidade do uso da


língua (o funcional) e a sistematicidade da estrutura da língua (o
gramatical) (Mackenzie, 1992).

O falante procede a escolhas, e a gramática organiza as opções em


alguns conjuntos dentro dos quais o falante faz seleções simultâneas
(Halliday 1973, 1985).

A gramática é susceptível às pressões do uso (Du Bois, 1993), ou


seja, às determinações do discurso (Givón, 1979b), visto o discurso
como a rede de eventos comunicativos relevantes (Beaugrande,
1993).

A gramática resolve-se no equilíbrio entre forças internas e externas


ao sistema (Du Bois, 1985).

O objeto da gramática funcional é a competência comunicativa


(Martinet, 1994).

São, pois, pontos centrais, numa gramática funcionalista: o uso (em


relação ao sistema); o significado (em relação à forma); o social (em

»253
relação ao individual).2

Referências

AUROUX, Sylvain. (2001) A revolução tecnológica da


gramatização. Trad. Eni Pulcinelli Orlandi. São Paulo: UNICAMP.

AZEREDO, José Carlos de.(1990). Iniciação à sintaxe do português.


Rio de Janeiro: Zahar, 1990.

BECHARA, Evanildo. (1991). Gramática funcional: natureza, funções e


tarefas. In: Maria Helena Moura NEVES (org). Descrição do
português II. Publicação do Curso de Pós-Graduação e Língua
Portuguesa. Ano V, n.1 Araraquara: UNESP.

2
Caros alunos, certamente essas são apenas algumas noções sobre o
funcionalismo. Você deverá fazer as leituras indicadas para uma melhor
compreensão dessa teoria e observar que estão no centro das investigações
funcionalistas questões como:
- relação entre discurso e gramática; liberdade organizacional do falante, dentro
das restrições construcionais, distribuição de informação e relevo informativo,
fluxo de informação e fluxo de atenção, gramaticalização e suas bases
cognitivas, motivação icônica e competição de motivações, fluidez de categorias
e prototipia.
Vocês poderão investigar também os modelos funcionalistas em Michael Halliday
na noção de função. Talmy Givón particularmente no postulado da não-
autonomia do sistema linguístico, na concepção da estruturação interna da
gramática como um organismo que unifica a sintaxe, a semântica e a
pragmática. Ou ainda Simon Dik na visão da interação verbal por via dos
usuários, preocupando-se, entretanto em valorizar o papel da expressão
linguística na comunicação. A partir daí vocês terão uma visão dos principais
temas funcionalistas já mencionados: a gramaticalização, a relação entre
gramática e cognição, a prototipia, a iconicidade, a pragmática na gramática,
discurso e gramática, funcionalismo e linguística de texto.

254«
______. (1998) Problemas de descrição linguística e sua aplicação no
ensino de gramática. In: VALENTE, A. Língua, linguística e
literatura. Rio de Janeiro: Lucerna.

CARONE, Flávia Barros (1988). Subordinação e coordenação:


confronto e contrastes. São Paulo; Ática.

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semântica e sintática. In: Maria Angélica FURTADO CUNHA; Mariângela
rios de OLIVEIRA e Mario Eduardo MARTELOTTA(Orgs.) Linguística
funcional: teoria e prática. Rio de Janeiro: FAPERJ/DP&A.

CRHISTIANO, Maria Elizabeth A. ROSA E SILVA Camilo, DA HORA


Dermeval (Orgs) (2004). Funcionalismo e Gramaticalização: teoria,
análise ensino. Idéia Editora LTDA, João Pessoa.

HALLIDAY, M. A . K. (1976). Estrutura e função da linguagem. IN:


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»255
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Anais do VII Encontro Nacional da ANPOLL, vol. 2 – Linguística.
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português falado III: As abordagens. Campinas: Ed.
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______. Entrevista: O ensino da gramática. Linha d’água, 10. São


Paulo, 1996d. pp. 9-17.

______. Entrevista: Uma gramática funcional. Macunaíma. 8.


Araraquara, 1996e. pp.6-7.

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______. A gramática funcional. (1997) São Paulo: Martins Fontes.

______. Gramática de usos do Português. (1999)São Paulo,


UNESP.

______. A polissemia dos verbos modais ou: falando de


ambiguidades. (2000). São Paulo: Alfa.

»257
Linguística: Funcionalismo – Maria José de Matos Luna

ATIVIDADES

Atividade 1

Reflita e explique o que se quer dizer com funcionalismo considerando


a sua visão pedagógica para o ensino de morfologia e sintaxe. Como
você as vê: juntas ou separadas? Por quê?

Você pode complementar suas informações com a seguinte leitura:

NEVES, Maria Helena de Moura Neves. Uma introdução ao


funcionalismo: proposições, escolas, temas e rumos. In: CHRISTIANO,
M. E. A.; SILVA, C. R.; HORA, D. (Org.). Funcionalismo e
gramaticalização: teoria, análise e ensino. João Pessoa: Idéia, 2004,
p.13-28.

Idéia Editora LTDA – Fone (83) 222–5986: www.ideiaeditora.com.br

Atividade 2

Leia o texto abaixo e faça uma análise com base nas três qualidades do
texto.

258«
O carnaval carioca é uma beleza, mas mascara, com o seu luxo,
a miséria social, o caos político, o desequilíbrio que se
estabelece entre o morro e a Sapucaí.

Embora todos possam reconhecer os méritos de artistas


plásticos que ali trabalham, o povo samba na avenida como
herói de uma grande jornada. E acrescente-se: há manifestação
em prol de processos judiciais contra costumes que ofendem a
moral e agridem a religiosidade popular. O carnaval carioca,
porque se afasta de sua tradição, está tornado-se desgracioso,
disforme, feio.

Atividade 3

Agora, saindo do conhecimento das teorias linguísticas (Funcionalismo)


e partindo para a sua aplicação na prática, vamos fazer uma paráfrase
estrutural do seguinte texto:

Garçom, procura-se

Urariano Mota

Há um restaurante que eu frequento há mais de trinta anos no


bairro de Brasília Teimosa, no Recife. Na semana passada
cheguei lá e não encontrei o garçom que sempre me atendeu.
Perguntei ao gerente e descobri que ele conseguiu uma bolsa

»259
para ele e outra para o filho e desistiu de trabalhar. Esse é um
retrato do Bolsa Família.

Brasília Teimosa é um bairro do Recife que sempre lembrou


paradoxos. Nascida na Zona Sul da cidade, em terras
valorizadas, foi construída por invasões de pescadores, sem
teto e demais pessoas pobres. Tendo o nome de Brasília,
adaptou a sua arquitetura pelo adjetivo, Teimosa, porque
jamais seus casebres foram as linhas curvas de Niemeyer.
Eram, antes, linhas de fuga, para que os moradores fugissem
das prisões da polícia. Hoje, a Brasília Teimosa está
urbanizada, tem a praia repleta de beleza e restaurantes.
Antigos moradores que moravam em palafitas, a realizar o ciclo
de Josué de Castro, caranguejo comido pelo homem vira fezes
que alimentam caranguejo, estão agora em conjuntos
habitacionais. Mas Brasilia Teimosa continua a ser mãe e pátria
de paradoxais caranguejos.

O último deles foi a entrevista do senador Jarbas Vasconcelos


ao semanário onde o Brasil é uma pauta. Nela, na entrevista, na
revista e pauta, foi mencionado um garçom que de posse de
duas Bolsas Família desistira de trabalhar. Isso porque, é claro,
estaria em melhor situação, como se estivesse a cantar em
redes ao balanço, “pois vivo na malandragem, e vida melhor
não há”. Com o breque: não sei o que será. Então por isso fui.
Fui a campo, ao mangue, à praia, a Brasília Teimosa, ao vizinho
bairro do Pina, à procura dos bares frequentados pelo senador
nos “últimos 30 anos”.

260«
A lógica era primária. Antes do garçom, havia que localizar o
restaurante em Brasília Teimosa, onde antes de se balançar em
redes, a cantarolar sambas, ele trabalhava. Acreditem, no
bairro e vizinhança fui aos seis maiores restaurantes, lugares
de assento do senador. Insatisfeito, fui a mais dois médios,
onde ele nos últimos tempos poderia ter passado. E a dois
próximos de restaurantes médios, onde ele, talvez quem sabe,
num lapso pudesse ter acenado de passagem. Não lhes posso
dizer os nomes – não me autorizaram – mas bem posso lhes
adiantar a experiência vivida em três horas da missão “procura-
se o garçom de Jarbas Vasconcelos”.

Manda a experiência, que antes de chegar ao local do crime o


repórter pesquise, pergunte às pessoas invisíveis, mas que
tudo veem. Por isso antes de entrar no primeiro, perguntei a
duas senhoras idosas, uma delas moradora do bairro há mais de
40 anos. Ou seja, 10 antes de Jarbas Vasconcelos começar a
beber e comer nas redondezas.

- Boa tarde. Me diga por favor: esse restaurante aí é


frequentado por Jarbas?

- Jarbas?!

- Jarbas Vasconcelos, o senador.

»261
- (Com pena do repórter) Hen-hen... Só se ele vem escondido,
de madrugada. Eu passo o dia todinho aqui, sentada, olhando o
movimento. A não ser que ele vá em outro. Mas pergunte aos
empregados, eles sabem. O senhor é pastor?

Como não é comum evangélico de barbas grisalhas, imagino


que a bondosa senhora me confunde com algum fundador de
igreja nova. Nego a honra, agradeço e continuo. O garçom é
meu guia.

Pergunto ao flanelinha por Jarbas, que Jarbas?, nada. Entro no


restaurante. E pergunto, como se uma resposta positiva fosse
uma valorização, que me faria escolher o lugar para comer. É
uma hora da tarde.

- Jarbas Vasconcelos vem sempre aqui?

- O senador?! Olhe, faz muito tempo que não. Eu trabalho aqui


há mais de um ano.

Nem lhe pergunto pelo garçom. Pois o felizardo deve ser, ou


ter sido do concorrente. Ao próximo. Pergunto ao flanelinha,
nada. Pergunto ao colega do boa-vida, nada. Dirijo-me ao dono.

- Jarbas Vasconcelos vem sempre aqui?

262«
- Antes ele vinha, há muito tempo. Quem veio agora foi Dilma.

- A ministra?

Confirma e manda me servir, sob protestos frágeis do repórter,


um maravilhoso caldinho de peixe com uma cachaça curtida.
Que peixe, que cana, que pena. Não posso viver na
malandragem, e por isso tenho que ir até o próximo
restaurante.

O próximo, onde se escondia o garçom, fica em local de acesso


complicado, de caminho estreitíssimo, que exige bons pneus e
perícia ao volante. Acredito que não fosse a esperteza de álcool
acendida, eu teria voado sobre os arrecifes, rumo ao mar. Um
caminhão de repente surgiu em uma curva sobre a pista
estreita. Nós dois não poderíamos ali coexistir. Ora co, nem
mesmo existir. Por isso joguei o carro à direita, para os lados da
brisa do oceano. Mas o motorista súbito, com inesperada
gentileza, desceu meio sobre uma encosta. Fui salvo. Para quê?

- Jarbas Vasconcelos vem sempre aqui?

O garçom que não procuro sorri. Ou ele duvida de minha


sanidade, ou das barbas mal postas, ou de minha cara de susto,
que guarda a nítida lembrança da pista. Por onde tenho que
voltar, com redobrada cautela. Então eu volto, vou até o
próximo lugar que o senador Jarbas Vasconcelos frequenta há

»263
mais de 30 anos. Pergunto ao flanelinha, “Jarbas, etc., etc.?”.
Acreditem, o flanelinha tem pena do repórter. Ele não me faz
perder a esperança. Não me cobra nada pela vaga e sugere,
com enorme educação e solidariedade, que eu vá aos garçons.
“Aos colegas do bon vivant”, eu me digo, a esta altura suado e
escolado. Que lugar agradável ! Eu não acredito que um homem
troque o trabalho aqui por qualquer paraíso do lar, doce lar.
Música suave, mpb, gente bonita, cheiro bom de todas as
coisas, de crustáceos, com vista do mar, e aquele ar de
distinção nos clientes, que os garçons sabem ser anúncio de
gorjeta boa. Ele jamais poderia ter deixado este lugar. Mas o
dever obriga:

- Jarbas Vasconcelos vem sempre aqui?

O gerente me olha, complacente, piedoso, e responde com um


ar que pode significar “por que você não pergunta se aqui vêm
o presidente Lula, Hugo Chávez e Obama?”. Dá um toque na
campainha para anunciar o prato pedido. Entendo. Por isso
evito a visão das patas largas do guaiamum, abertas,
convidativas, obscenas, e sigo até o próximo.

Devo dizer que a esta altura a raiva invadia o repórter. Estava


começando a cansar dos restaurantes onde Jarbas ia há mais de
30 anos. Melhor dizendo: estava cansando de ir aos
restaurantes de Brasília Teimosa onde Jarbas não punha os pés
há mais de 10 anos. Perguntava a motoristas de táxi, a
pedintes, a soldados da PM, a flanelinhas, a frentistas nos

264«
postos, a seguranças, a moradores vizinhos, a gerentes, até a
mim mesmo, “Jarbas vem sempre etc.?”.

Sapoti da Japaranduba (15/03/2009)

(Texto completo na revista Carta Capital nº 537)

Atividade 4

Para uma boa compreensão de um texto, devem-se considerar três


aspectos: o pragmático, que se refere ao seu funcionamento enquanto
interação informacional e comunicativa; o semântico-conceitual,
relativo à sua coerência; e o formal, concernente à sua coesão. Dois
deles, as noções de coerência e coesão, foram privilegiados na
investigação do texto, na última década do século XX. A visão
reducionista que fragmenta o texto com ênfase para a classificação de
orações e análise de seus termos, continua em xeque, como
permanece a dúvida do professor de como trabalhar com o texto. Essa
nova abordagem encontrou suporte na Linguística Textual (LT) e na
Análise do Discurso (AD).

Leia o texto abaixo e apresente situações de como trabalhar o texto.

»265
A REVOLTA DAS PALAVRAS3

Adair Pimentel Palácio

Língua Portuguesa convocou todas as palavras para uma Assembléia


Geral. O motivo foi o veemente apelo que lhe fizeram alguns de seus
súditos mais fiéis que se vangloriam de conhecê-la por dentro e por
fora.

Ela ia passando faceira em seu gingado natural, engordando uns


quilinhos aqui, ao ingerir palavrinhas novas, e emagrecendo acolá,
como sói acontecer às línguas, que, sendo gulosas por natureza,
alimentam-se de gregos e troianos. Mas os súditos fiéis interromperam
sua marcha normal para reclamar a deformação que vinha sofrendo
sua bela figura, causada, principalmente, por estrangeirismos
abomináveis. A mui fremosa senhora, que é muito vaidosa, concordou
com a idéia.

O planejamento do conclave ficou a cargo dos seus Ministros: os


advérbios de Tempo, Modo e Lugar. Lugar determinou que a reunião
realizar-se-ia na Mansão Verde-Amarelo, por ser a maior de suas casas
e, assim, poder acomodar todo mundo. O advérbio de Tempo
determinou que a Assembléia seria agora. Como advérbio de Modo,
que muito mente, disse que estava doente, a forma do conclave ficou
meio indefinida.

3
Este texto foi publicado na página 16 do Jornal Universitário da UFPE em
outubro de 1982.

266«
Houve convocação compulsória para os formadores da estrutura
gramatical como os artigos, as preposições, as conjunções, as flexões,
os verbos auxiliares e outros, todos soldadinhos pequeninos, mas de
tal eficiência que constituem a guarda de Sua Majestade.

As flexões, como se sabe, por serem sufixos só têm um braço, o


esquerdo. As interjeições, coitadas, formam uma classe marginalizada.
Ficou determinado que elas se encarregariam dos ohs! e ahs! durante
a sessão.

As demais palavras foram convidadas, mas não estavam obrigadas a


comparecer. Assim, ao arcaísmos decidiram não ir por serem muito
velhos.

No momento fixado foram chegando os convocados e convidados.

Os prefixos, gregos e latinos, todos manetas, chegaram vestidos a


caráter. Os gregos, com túnicas brancas e leves, um ombro
descoberto, usavam sandálias com tiras cruzadas nas pernas. Os
latinos, muito romanos, usavam bracelete no braço que lhes resta, o
direito, e à cabeça traziam coroas de louros. Eles tinham o ar de
superioridade que só o poder consente.

Como são altivos esses prefixos – todos metidos a besta e muito


unissex. Tele- mantinha um ar distante; o A- grego, tudo negava; e o
latino, ora aproximava-se, ora afastava-se e , às vezes, também

»267
negava. Anti- e Ante- chegaram juntos, este últimio precedendo o
primeiro, que, como o A- grego acima descrito, também é da oposição.

No momento certo todos tomaram seus lugares. A tribuna de honra


fora reservada para a nobreza. Latinos e gregos ocuparam-na.

As palavras de origem latina constituíam a maior parte do plenário. As


eruditas setaram-se logo na frente; depois sentaram-se as populares.
Em seguida sentaram-se as multinacionais: empréstimos franceses,
muito perfumados por Dior; ingleses, usando sua melhor gabardina;
italianos, quase todos muito musicais; e alemães, todos muito
marciais. Os africanos de diversas regiões cheiravam à comida gostosa
e coloriam o ambiente com símbolos religiosos. Eu quase esquecia de
dizer que, a um canto, estavam Açúcar, Alcatifa e outros árabes de
turbante, alguns dos quais representantes da OPEP.

Lá em cima, na galeria, instalaram-se os neologismos, as siglas, as


abreviações famosas. Nos corredores e escadas, sentadas pelo chão,
estavam as gírias, bem “hippies”, mal comportadas como elas só -
assobiando, conversando, comendo pipoca, mascando chicletes,
fumando e botando cinza no chão.

Finalmente foi aberta a sessão. Como Língua Portuguesa não havia tido
a devida assessoria de seu Ministro, advérbio de Modo, não sabia bem
como encaminhar os trabalhos. Um pouco titubeante, ela começou
solicitando que, quem não fosse completamente brasileiro, se retirasse.
Foi um alvoroço. Levantou-se todo mundo. Só ficaram sentadas uma
meia dúzia de palavras que, embora nuas, estavam revestidas de

268«
muita brasilidade. Eram as de origem indígena. Jacaré cutucou
Jaguar e ambos riram da mancada da bela senhora.

Percebendo sua precipitação Língua Portuguesa pigarreou, pediu ordem


no plenário e reformulou suas palavras convidando a retirarem-se as
palavras que não fossem legitimamente vernáculas.

Novamente deu confusão pela profusão de elementos que se


levantaram, uns conformados, outros protestando veementemente.
Alguns até alegaram pertencer à terceira ou quarta geração de
aportuguesados e ter compatriotas com muito “status”, ocupando altos
cargos governamentais e políticos e com poder econômico
incontestável.

Língua Portuguesa pensou: “assim não dá”, e resolveu pedir que se


apresentassem uma a uma as palavras estrangeiras para contar sua
história. Assim, ela teria condições de julgar.

A primeira a apresentar-se foi Xícara que disse ser uma Nauatl pura,
mas não sabia bem se do México ou da América Central (palavras não
conhecem fronteiras). Disse que vivia bem em seu rincão natal,
quando um espanhol dela usou e abusou. O mesmo fizeram muitos de
seus compatriotas que por ela se apaixonaram. Então ela saiu de casa
para viver com os espanhóis. Mas esses latinos volúveis logo se
cansaram de sua beleza. Como estava longe de casa, ela entrou pela
porta do Brasil, onde foi muito bem recebida, e assim foi ficando por
aqui. Lembrou até que causou confusão na Academia Brasileira de
Letras, quando discutiram sua grafia com x ou ch. Então ela disse:

»269
“Andei, virei, mexi e parei aqui.

Sou tão vernácula quanto vocês.

Sou um símbolo nacional.

Quem me rejeitar, xicrinha de café

não vai mais tomar”.

Língua Portuguesa ficou perplexa. Não havia se dado conta de tão


grande verdade. Concedeu imediatamente verlaculania à palavra. A
aclamação foi geral.

Quem sabe, talvez devêssemos tomar café em xícara com ch.

Aí... Futebol, sempre com a bola no pé, deu com o “foot” na “ball” e
pediu a palavra. Levantou-se muito britânico, posudo, com o respaldo
do Banco de Londres e da Rainha, e com a aquiescência da Seleção,
reivindicando que já tinha grafia própria. Que mais lhe faltava? Disse
que se fosse banido não mais se faria jogo no Brasil.

A gleba de tricampeões explodiu.

Nesse momento Ludopédio interveio

“Vieste de longe, oh inglês,

usurpar o meu lugar,

270«
tal qual fizeste às Malvinas.

E eu, como é que vou ficar?”

Mas ninguém deu bola pra ele.

Língua Portuguesa, perdendo a postura e compostura, quase perdeu


também o rebolado. Ficou nervosa. Em menos de um momento
concedeu vernaculania à palavra.

O triunfo desses itens lexicais estimulou outros tantos. Piano


levantou-se, liderando seus compatriotas, alguns bem famosos como
ciau e pizza, e reivindicou para os italianos o direito à vernaculania.

O tumulto que se seguiu foi geral. Saionara, sputnick, garçon e


muitas outras palavras, cada qual liderando um contingente de
compatriotas, gritaram por greve.

Língua Portuguesa ficou atordoada. Viu-se diante de uma guerra


sonora tão calamitosa que, se não fosse controlada
rapidamente,desencadearia uma mudez continental. Muito doidona,
enfurecida pela pressão dos súditos fiéis, e vencida pelos argumentos
incontestáveis dos componentes de seu próprio corpo, nomeou a
Linguística por interventora. Esta, embora sob protesto, deu fim à
baderna. Pôs os pontos nos is explicando à mui fremosa senhora toda a
complexidade de sua estrutura. Ela compreendeu. Sorriu, deu de
ombros e, assumindo sua própria natureza, dissolveu a Assembléia. Os

»271
súditos mais fiéis ficaram a ver navios e a Língua evoluiu, entrando por
uma perna de pinto e saindo por uma perna de pato...

Atividade 5

Com base no texto da questão anterior, responda:

- O que significa usar o texto como pretexto?

- Há intertextualidade no texto “A revolta das palavras”? Mostre que


entendeu e apresente situações de intertextualidade.

Atividade 6

Já sabemos parafrasear, vamos mostrar que sabemos também


resumir. Faça um resumo do texto abaixo.

O arcebispo da Inquisição

Urariano Mota

Todo o mundo soube que Dom José Cardoso Sobrinho,


arcebispo de Olinda e Recife, excomungou os médicos que
praticaram um aborto em uma criança de nove anos. Mas
quase ninguém soube que o aborto não se fez onde a menina
estivera internada, no IMIP, porque o arcebispo ameaçou

272«
romper o contrato que esse hospital mantém com a Santa Casa.
De fato e de direito, para evitar a santa ira, os médicos
cumpriram com o dever na Maternidade da Encruzilhada, em
outra terra e contrato.

E mais não se disse, porque na notícia é comum a expulsão da


história. Vê-se o fato – e peço perdão por não resistir à
tentação do trocadilho – vê-se o feto, mas se esquecem os
antecedentes. O arcebispo que ganhou o mundo há muito
anunciou os seus sinais, quando assumiu a direção das almas
católicas em Olinda e no Recife.

Pois Dom José Cardoso tem uma sombra. Ela se chama Dom
Hélder Câmara. Há correspondências que ajudam a semelhança,
que se casam nesse estranho conúbio e associação. A começar
pela altura, física. Dom José Cardoso e Dom Hélder Câmara têm
ambos a mesma estatura. À vista desarmada, dir-se-ia que os
dois medem os mesmos 1 metro e 58, se muito. Ambos são
nordestinos, Hélder, do Ceará, José, de Pernambuco. Ambos se
encontraram na Arquidiocese de Olinda e Recife. Mas aqui
terminam as semelhanças.

Nas diferenças, bem mais cresce a sombra que o ser atual na


Arquidiocese. O vigor da sombra Dom Hélder Câmara é de tal
monta que mais vale esclarecer quem é Dom José Cardoso
Sobrinho. Vejamos o que dele dizem as suas ovelhas.

»273
Das realizações do atual arcebispo, o jornal Igreja Nova, criado
pelo Grupo de Leigos Católicos IGREJA NOVA, denuncia um
desmonte implacável da Igreja semeada por Dom Hélder
Câmara. Da posse em 15 de julho de 1985 até a condenação
sem direito à defesa do padre João Carlos Santana da Costa,
expulso da paróquia do bairro de Água Fria, a memória conta
inúmeras perseguições e abusos.

Em 2001 o Diário de Pernambuco publicou escândalo


envolvendo imóveis da arquidiocese: o Dr. Rui João Marques em
testamento havia deixado uma casa “para obras caritativas da
paróquia” e um apartamento, “para formação de seminaristas
verdadeiramente vocacionados”. A arquidiocese tomou
conhecimento do legado em 1995, mas não tomou posse, e
revendeu os imóveis a terceiros, sem respeitar a vontade do
falecido.

Os paroquianos se revoltaram, reagiram, colocaram na


imprensa, fizeram abaixo-assinado, mas nada conseguiram. O
pároco, pressionado pela comunidade, requereu o valor do
imóvel, onde pretendia fazer uma casa “para a educação de
crianças pobres”, segundo a vontade do morto em testamento.
Foi advertido pelo arcebispo, ameaçado de expulsão, a menos
que assinasse um documento que havia recebido o dinheiro.
Mesmo assim, meses depois foi expulso e saiu teoricamente
como “ladrão”.

274«
E como melhor lembrou o Jornal Igreja Nova:

"Dom José Cardoso, o sucessor de Dom Hélder na Arquidiocese


de Olinda e Recife, será lembrado como um senhor bispo, ou um
bispo senhor, no sentido do procurador romano, ou como lídimo
representante de uma hierarquia gendarme, que executa, com
o código de direito canônico na mão, as determinações do poder
central. Como alguém que veio com a triste e árdua tarefa de
desmontar e desfazer até nos alicerces o modelo de Igreja
preconizado pelo Concílio Vaticano II e ensaiado por Dom
Hélder". (Jornal Igreja Nova, http://www.igrejanova.jor.br/
edabr00.htm)

Ou no mesmo jornal, nesta magnífica e santa passagem:

"No dia 6 de agosto de 2004, durante a concelebração


eucarística de encerramento das festas do padroeiro de Olinda,
São Salvador do Mundo, Dom Cardoso enviou recado à Prefeita
de Olinda, Luciana: que ela se retirasse da fila da comunhão
(que era a que ele distribuía), porque ela pertencia a um
partido político ateu (Partido Comunista do Brasil). Ao mesmo
tempo, numa atitude covarde, trocou sua fila com a de Dom
Fernando Saburido (bispo Auxiliar)".

O arcebispo que excomunga médicos é o mesmo que condena,


persegue e expulsa padres e freiras desde 1985. Expulsa sem
direito à defesa dos condenados e perseguidos. Mas expulsar
adultos por delito de consciência não é o mesmo que expulsar

»275
fetos. Quem expulsa homens salva o evangelho. Quem expulsa
fetos comete um crime. Desde os tempos da Santa Inquisição.

12/03/2009

(Também no Direto da Redação,


http://www.diretodaredacao.com/)

276«
Siane Gois Cavalcanti Rodrigues

MAIS UMA INCURSÃO NOS


ESTUDOS FUNCIONALISTAS
278«
1. Introdução

A história do desenvolvimento dos estudos funcionalistas remonta ao


final do século XIX e há, naturalmente, uma diversidade tamanha de
teóricos e de abordagens que torna a heterogeneidade conceptual
uma de suas principais características. Nesse contexto, o presente
texto não poderia ter como objetivo esgotar o tema ou fornecer aos
estudantes um material que desse conta de toda essa vastidão de
perspectivas. O objetivo é simplesmente, em consonância com a
abordagem feita pela Professora Maria José de Matos Luna, no capítulo
anterior, tecer considerações introdutórias sobre o funcionalismo e
suas implicações para os estudos linguísticos e o ensino de língua. Tais
considerações poderão dar subsídios para a leitura dos demais textos
teóricos da disciplina.

Para iniciar a nossa conversa, vejamos (ainda que de forma bastante


simplista a princípio), o que se quer dizer com o termo funcionalismo.
Bem, embora exista uma diversidade significativa de maneiras de
interpretar o termo, diz-se correntemente entre os especialistas que o
funcionalismo é uma perspectiva de estudo dos fenômenos linguísticos
que tem como objeto de estudo a linguagem em uso. Destaquei a
última expressão do período anterior para mostrar que ela traz em seu
bojo algumas questões de grande importância, dentre as quais
destacamos aquela que consideramos mais evidente: esse termo
carrega consigo a informação implícita1 de que há uma outra forma de

1
Como as expressões “informação implícita” e “pressuposto” aparecerão em
alguns segmentos deste texto, achamos por bem fazer uma rápida explicitação
da forma como as concebemos. Todo texto tem dois tipos de informação:

»279
estudar a linguagem, a qual não leva em conta o uso. Essa
pressuposição é absolutamente certa, porquanto o funcionalismo
surgiu em oposição ao formalismo (o que não significa, como veremos
adiante, que aquela escola seja mais recente que esta), corrente de
estudo cujo objeto é a língua em si, independente dos usuários e da
situação de comunicação. Não podemos, pois, falar de uma abordagem
sem fazer referência à outra, sob pena de darmos um tratamento
descontextualizado à questão. Comecemos, pois, tecendo as
2
considerações sobre o Formalismo que, por ora, julgamos necessárias
para atingirmos o nosso objetivo.

2. O Formalismo: algumas
considerações introdutórias

Dizer que uma determinada gramática é do tipo formalista, significa,


como o próprio termo sugere, que o seu objetivo é estudar a maneira
como se estruturam, internamente, as formas da língua. O formalismo
é, pois, uma perspectiva teórica que desconsidera, em suas análises,
os usuários e tudo o que é externo à língua (a situação de
comunicação, o contexto, o tempo, o espaço etc.), a qual é estudada

aquela que aparece na linearidade textual, que é a informação explícita, e


aquela que está nas entrelinhas, a informação implícita. Esta última pode estar
marcada por alguma expressão no texto e constituir um pressuposto, ou não
apresentar marca linguística e, neste caso, temos um subentendido. Se uma
pessoa afirma: “Eu continuo estudando bastante”, o verbo continuar materializa
a informação implícita de que o enunciador estudara bastante em um momento
anterior. Neste caso, há um pressuposto. O pressuposto é, pois, uma
informação implícita que está materializada linguisticamente no texto.
2
O capítulo 4 deste livro, que tem como título “Linguística: Uma incursão no
Formalismo” destina-se ao aprofundamento dessa perspectiva teórica.

280«
como algo descontextualizado. A preocupação recai exclusivamente
sobre o estudo da relação que os constituintes linguísticos mantêm
entre si. Nesse ínterim, a gramática passa a ser a forma legítima de
manifestação da língua, sendo esta última considerada como um
“conjunto de orações”. Sendo assim, ela não é tida como algo real, que
está diretamente relacionada às necessidades dos falantes, mas como
um sistema abstrato. A gramática, então, volta-se para o estudo de
sentenças idealizadas, com regras sintáticas fixas, as quais têm
primazia em relação à semântica e à pragmática, além de serem
independentes delas. Disso resulta que a expressão do pensamento é
considerada como a função elementar da língua. Tal consideração tem
implicações epistemológicas determinantes na maneira como se
concebe a relação dos sujeitos com a língua. Segundo Koch (2006, p.
9-10)

“Trata-se de um sujeito visto como um ego que constrói uma


representação mental e deseja que esta seja „captada‟ pelo
interlocutor da maneira como foi mentalizada. Nessa concepção
de língua [...], o texto é visto como um produto – lógico – do
pensamento [...], nada mais cabendo ao leitor senão „captar‟
essa representação mental”.

O foco, em outros termos, não é a interação e, consequentemente, não


são levadas em conta a forças externas à língua (as quais, segundo o
Funcionalismo, determinam os usos). Essa concepção remonta aos
estudos sincrônicos que, inspirados em Saussure, foram desenvolvidos
intensamente na primeira metade do século passado. Segundo o
teórico, a única maneira de estudar cientificamente a língua era
dissociando-a dos seus usuários, o que significa que não era

»281
considerada a parte social naturalmente implicada no fenômeno
linguístico. Assim, ele empenhou-se na criação de uma representação
abstrata da língua, a qual era o objeto de estudo dos teóricos. O
derradeiro parágrafo de sua obra póstuma, o clássico “Curso de
Linguística Geral” traduz a essência de tal perspectiva:

“Das incursões que acabamos de fazer nos domínios limítrofes


de nossa ciência, se depreende um ensinamento inteiramente
negativo, mas tanto mais interessante quanto concorda com a
idéia fundamental deste curso: a Linguística tem por único e
verdadeiro objeto a língua considerada em si mesma e por si
mesma”. (SAUSSURE, 2006, p. 271)

Saussure funda, pois, uma corrente de estudo, registrada em sua única


obra (publicada originalmente no ano de 1916), a qual foi
primeiramente difundida em três memoráveis encontros de estudos
linguísticos: o Primeiro Congresso Internacional de Linguística, que
ocorreu no ano de 1928, em Haia; O Primeiro Congresso dos Filósofos
Eslavos, sediado por Praga, no ano de 1929, e a Primeira Reunião
Fonológica Internacional, que também ocorreu em Praga, no ano de
1930.

A ideia era dissociar um sistema abstrato de regras (a langue) e da


realidade social, fundada efetivamente nos usos (a parole). Segundo
essa perspectiva, a sintaxe é autônoma e volta-se para o estudo de
sentenças idealizadas, desvinculadas das situações reais de
comunicação. No Curso de Linguística Geral há segmentos em que
Saussure faz referência ao caráter social da língua, entretanto, isso não
significa que ele assuma esse pressuposto na sua proposta de estudo,

282«
já que somente fazendo a referida separação entre sistema e uso seria
possível dar um tratamento realmente científico às investigações
linguísticas. A esse respeito, Calvet (2002, p.15) afirma:

“(...) as passagens em que Saussure declara que a língua “é a


parte social da linguagem” ou que “a língua é uma instituição
social” chocam por sua indefinição teórica. Para ele o fato de
ser a língua uma instituição social é simplesmente um princípio
geral, uma espécie de exortação que muitos linguistas
estruturalistas retomarão depois dele, sem nunca prover os
meios heurísticos para assumir essa afirmação”.

Esses estudos, que foram amplamente difundidos no século XX,


opõem-se às pesquisas do final do século XIX, das quais Whitney, Von
der Gabelentz e Hermann Paul são representantes, que consideravam
ser imprescindível à compreensão da estrutura linguística (sincronia) a
referência à história (diacronia). Oliveira (2007), fazendo referência a
DeLancey (2001), afirma que o funcionalismo como conhecemos hoje
é, na verdade, uma retomada de princípios teóricos anteriores ao
estruturalismo Saussuriano.

Tais mudanças de ponto de vista das mais diferentes perspectivas


teóricas são naturais no desenvolvimento científico, de forma que
consideramos equivocadas as considerações que tendem a atribuir
importância a uma em detrimento de outra. Elas têm, como ficou claro
em nossas considerações até o momento, objetivos e objetos de
estudo distintos. Isso já é suficiente para refutarmos qualquer tentativa
de minimizar o relevo de uma ou de outra na história da ciência
linguística.

»283
3. Quanto ao Funcionalismo

São muitos os estudiosos que têm se dedicado ao estudo da


problemática do funcionalismo em sua heterogeneidade conceitual.
Percebe-se, entre eles, algo comum: assim como não há uma
homogeneidade nos tipos de função que são objeto de estudo do
funcionalismo, não há unanimidade na interpretação dessa corrente
linguística. Para Pezatti (2007, p. 167),

“(...) o termo „funcional‟ tem sido vinculado a uma variedade


tão grande de modelos teóricos que se torna impossível a
existência de uma teoria monolítica que seja compartilhada por
todos os que se identificam com a corrente funcionalista‟.”

Para Neves (1997, p. 7), ainda que, nos estudos da Escola Linguística
de Praga, seja recorrente o uso dos termos função e funcional, não há
uma unicidade de interpretação dos mesmos, pois, nas obras dessa
Escola, eles não são suficientemente esclarecidos, além de serem
aplicados “a variados domínios e fenômenos da linguagem”. A essas
questões, ela acrescenta a diversidade de posição entre os autores e a
vaguidão do uso dos termos.

Se, na teoria estruturalista, a ideia de função da linguagem limitava-se


à função referencial (ligada à representação do mundo), já nos idos
anos vinte do século passado, Roman Jakobson ampliou tal noção para
outras funções que pressupõem, necessariamente, a participação dos

284«
usuários de uma língua. São elas: a emotiva, através da qual o emissor
da mensagem (o centro da função) expressa avaliações, exclamações,
interjeições etc; a conativa, que tem como centro o destinatário; a
fática, que se centra no canal de comunicação; a poética, cujo foco é a
mensagem, e a metalinguística, que dá ao usuário a possibilidade de
usar o código linguístico para falar deste.

A Escola Linguística de Praga3, que tem em Jakobson um dos mais


notáveis representantes, também se debruçou sobre o ponto de vista
funcional e criou uma teoria que considerava ser a função primordial
dos enunciados a veiculação de informações novas. É a perspectiva
funcional da frase, a qual “(...) estuda os constituintes de um texto
considerando o que trazem de novo para a informação, a divisão
dinâmica do dado e do novo (CHARAUDEAU e MAINGUENEAU, 2004, p.
246).

Nesse sentido, é levando em conta as expectativas que um falante vai,


no fluxo da interação, construindo sobre os conhecimentos prévios de
seu interlocutor que ele distribui a informação, de forma que exista um
equilíbrio entre o dado (a informação velha, que é de conhecimento de
ambos) e o novo (a informação nova, que os interlocutores se dispõem
a introduzir). Tal questão deixa claro o pressuposto de que é comum às
mais diferentes correntes funcionalistas: no estudo dos fenômenos
interacionais, o aspecto discursivo determina as escolhas sintático-
semânticas. Com o objetivo de ilustrarmos a relação dado-novo,
tomemos, como exemplo, o texto abaixo:

3
Ver a esse respeito o capítulo 2 – “Introdução à Linguística” – do volume 1
dessa coleção.

»285
Era uma vez, numa terra muito distante, uma princesa linda,
independente e cheia de autoestima. Ela se deparou com uma
rã enquanto contemplava a natureza e pensava em como o
maravilhoso lago do seu castelo era relaxante e ecológico...
Então, a rã pulou para o seu colo e disse: linda princesa, eu já
fui um príncipe muito bonito. Uma bruxa má lançou-me um
encanto e transformei-me nesta rã asquerosa.
Um beijo teu, no entanto, há de me transformar de novo num
belo príncipe e poderemos casar e constituir lar feliz no teu
lindo castelo.

A tua mãe poderia vir morar conosco e tu poderias preparar o


meu jantar, lavar as minhas roupas, criar os nossos filhos e
seríamos felizes para sempre...

Naquela noite, enquanto saboreava pernas de rã sautée,


acompanhadas de um cremoso molho acebolado e de um
finíssimo vinho branco, a princesa sorria, pensando consigo
mesma: - Eu, hein?... nem morta!

Luís Fernando Veríssimo

Ao construir a sua versão de um conhecido conto infantil, o autor usou


informações que ele pressupõe serem do conhecimento dos seus
interlocutores, resgatando, no início do texto, a narrativa original.
Entretanto, ele começa a introduzir informações novas quando insere a
palavra “ecológico” (a qual remete a uma preocupação social ulterior à
escrita do conto original), e a expectativa do leitor é quebrada. Essa

286«
sensação é reforçada com o desfecho da história, em que o autor põe
em xeque um certo padrão de felicidade corrente nas sociedades de
diferentes épocas e lugares. Esse novo rumo que ele dá à história
constitui, pois, a informação nova, que não era do conhecimento do
seu interlocutor. Isso significa que, sempre que produzimos um texto,
seja ele oral ou escrito, fazemos uma previsão do nosso interlocutor e
procuramos, ainda que sem nos darmos conta, equilibrar o novo e o
velho.

Ao entrar em contato com o discurso do falante/escritor, o


ouvinte/leitor não é, pois, desprovido de um discurso interior. Ou
seja, o ouvinte já tem toda uma bagagem de conhecimentos
acumulada. Tal bagagem contribuirá para que ele interprete a
mensagem. Por sua vez, o falante pode, no fluxo da interação,
optar por não verbalizar inteiramente o que havia planejado, se ele
perceber que o ouvinte já compreendeu a mensagem, justamente
porque ativou em sua memória os conhecimentos necessários para
isso. Para ilustrar essa questão, tomemos como exemplo os
gêneros publicitários. Uma de suas principais características é a
extensão: são textos geralmente curtos. Sendo assim, o emissor
não precisa dizer explicitamente tudo, uma vez que, fazendo uma
previsão de quem seja o seu destinatário, ele não é totalmente
explícito, pois sabe que o interlocutor tem o conhecimento do
mundo necessário para fazer as inferências e compreender a
mensagem.

Mas retomando a questão da diversidade de abordagens funcionalistas,


afirmamos anteriormente que os mais diversos estudiosos que se
debruçam sobre a problemática do funcionalismo são unânimes ao
afirmar que há uma heterogeneidade tamanha de definições que se
torna bastante complexa a definição da disciplina. Neste texto,

»287
adotamos a apresentação que Neves (2004), com base em Nichols
(1984) e em Van Valin (1990), faz dos principais modelos
funcionalistas. Há, segundo essa perspectiva, três classificações do
funcionalismo: o conservador, o moderado e o extremado. Os
autores que se enquadram no primeiro tipo (dentre os quais Neves cita
Susumo Kumo) são contrários tanto ao estruturalismo quanto ao
formalismo e não elaboram uma proposta de análise da estrutura. O
funcionalismo extremado, em que estão Sandra Thompson, como texto
That-deletion from a discourse perspective, Paul Hopper, com a
Emergent Gramar, de 1987, Givón, com On Understanding Grammar,
de 1987, e Érica Garcia, com Discourse without Syntax, 1979,
considera as regras no seu aspecto funcional, o que significa não
haverem “restrições sintáticas”, uma vez que o sistema, que está à
disposição dos interlocutores nos mais distintos propósitos
comunicativos, abarca todas as possibilidades de uso. O terceiro
modelo de funcionalismo é o denominado de moderado. Assim como o
conservador, ele se opõe ao estruturalismo e ao formalismo4, mas não
se limita a isso, associando análise funcionalista e estrutura da língua.
Nele estariam Dik, Halliday, o próprio Van Valin e Givón, em sua
produção mais recente.

“Essa corrente enfatiza a importância da semântica e da


pragmática para a análise da estrutura linguística, mas,
admitindo que a noção de estrutura é central para o
entendimento das língua naturais, propõe uma consideração de
estrutura linguística distinta da proposta pelos formalistas.”
(NEVES, 2004, p. 56)

4
O que difere uma perspectiva da outra é abordado no capítulo 4 – “Linguística:
Uma incursão no Formalismo” – por Dilma Tavares Luciano.

288«
Halliday considera ser a gramática funcional constitutivamente natural,
porquanto não há forma de uso da língua que não possa ser explicada.
Nesse sentido, os usos da língua constituem o objeto de análise
primeiro, já que são eles que determinam o sistema linguístico. Os
significados são, nesse ínterim, essencialmente funcionais e o teórico
(apud NEVES, op. cit.) postula que, no que diz respeito ao significado,
as línguas naturais têm, em seu modo de funcionar, significados que
lhes são comuns, considerados pelo autor como principais (o ideacional
e o interpessoal) e são por ele denominados de metafunções, que

“(...) são as manifestações, no sistema linguístico, dos dois


propósitos mais gerais que fundamentam todos os usos da
linguagem: o entender o ambiente (ideacional) e influir sobre
os outros (interpessoal). Associado a esses, o terceiro
componente metafuncional, o „textual‟, lhes confere
relevância”. (NEVES, 2004, p. 62)

Tais considerações têm implicações diretas na maneira como se


concebe o texto, a língua e a gramática. O texto é “a maior unidade de
funcionamento” e é o estudo das formas como nele se configura o
sentido o foco de atenção. Sendo o texto a materialidade da língua,
esta é concebida, então, como um “sistema semântico” por natureza. A
gramática, por sua vez, tem como função “codificar o significado”. É
justamente por isso que ela o toma como base de análise.

A questão central de tal concepção é que a linguagem depende dos


sujeitos que a utilizam, conforme as suas necessidades de
comunicação. Não é o uso que precisa adequar-se a um sistema
inflexível e abstrato. Esse sistema, ao contrário, oferece aos sujeitos

»289
uma gama de possibilidades de usos. Ora, mas se ele existe para
atender às mais distintas necessidades de comunicação dos grupos
sociais e se as relações que se estabelecem entre esses grupos são
constitutivamente flexíveis (seja graças ao caráter dinâmico da
comunicação ou à influência que as normas linguísticas exercem umas
sobre outras), a função dos interlocutores nas situações de interação,
as características sociais de sua comunidade de fala e as
especificidades são de fundamental importância para a análise
linguística.

A Sintaxe, que no formalismo restringe-se aos limites das sentenças


idealizadas, segundo tal perspectiva, vai além dela, porquanto está em
direta relação com as questões semânticas, pragmáticas e discursivas.
Nesse sentido, para a compreensão das escolhas linguísticas de um
falante em uma situação de comunicação específica, urge dar relevo às
especificidades dessa situação de comunicação, ou seja, ao contexto,
ao extralinguístico, o qual é considerado como determinante para as
escolhas dos usuários (a gramaticalização, como veremos adiante).
Para ilustrar o que até agora foi dito sobre as duas principais formas de
estudos linguísticos, fizemos uma adaptação de uma situação de
ensino idealizadas por Mendonça (2006):

Vejamos, por exemplo, um professor que precise dar uma aula


sobre Orações Coordenadas e Subordinadas. Se a sua opção for
a abordagem formalista, ele terá como objetivo ensinar aos
alunos a identificar os diferentes tipos de oração em situações
descontextualizadas. Se, por outro lado, ele opte por trabalhar
conjuntamente a semântica a sintaxe e a pragmática, ao
trabalhar o mesmo conteúdo, o seu foco poderia ser, por

290«
exemplo, o trabalho com os operadores argumentativos, os
quais levariam os alunos a entender, por exemplo, a intenção
do autor do texto, o seu papel social etc. Para tanto, ele tomaria
o texto como objeto de estudo e poderia estabelecer relações
entre diferentes textos.

Neves (2006) aborda algumas temáticas de grande relevância5 para a


compreensão da maneira como, no funcionalismo, se estuda o
fenômeno linguístico. Elencamos, abaixo, três delas (a
gramaticalização, a relação entre gramática e cognição e pragmática
na gramática), com o objetivo de procurar tornar mais claras
determinadas relações (as forças internas e externas ao sistema, as
variações na maneira como os diferentes usuários codificam os
eventos, a interdependência da sintaxe, da semântica e da pragmática)
imprescindíveis para a compreensão do funcionalismo.

3.1 A Gramaticalização

No processo de construção de sentidos inerente à produção discursiva,


há forças de origens distintas que atuam e se relacionam
constantemente. Uma, interna ao sistema, é da ordem do repetível, é
um repertório de formas que está disponível para qualquer usuário de
uma língua específica. Isso significa que toda língua natural tem uma
gramática, sistema que abarca uma grande diversidade de
possibilidades. A outra força é externa e leva em conta questões que,

5
Veja-se, também, no capítulo 4 – “Linguística: Funcionalismo” –, de LUNA, a
relação entre funcionalismo e linguística de texto.

»291
ainda que não sejam linguísticas, determinam os usos, as escolhas dos
usuários, tais como o contexto sócio-histórico, a intenção dos
interlocutores, a especificidade da situação comunicativa. A relação
entre essas forças é denominada “gramaticalização”.

Como afirma Neves (2006), o termo foi utilizado pela primeira vez por
Antoine Meillet6, ainda que alguns estudiosos que lhe antecederam
tenham pesquisado o fenômeno. Para o autor, gramaticalização
significa “a atribuição de um caráter gramatical a uma palavra
anteriormente autônoma” (MEILLET apud NEVES, 2004, p. 113).
Segundo essa perspectiva, as formas gramaticais são, sempre,
provenientes de palavras lexicais. Entre os estudiosos que se debruçam
sobre a temática, a definição da expressão varia bastante, mas

“(...) pode-se dizer que o termo se refere à parte da teoria da


linguagem que tem por objeto a interdependência entre
„langue‟ e „parole‟, entre o categorial e o menos categorial,
entre o fixo e o menos fixo da língua. O estudo da
gramaticalização, portanto, põe em evidência a tensão entre a
expressão lexical, relativamente livre de restrições, e a
codificação morfossintática, mais sujeita a restrições”. (op cit.
p. 115).

6
Meillet (1866-1936) foi um linguista francês contemporâneo de Saussure que,
embora tenha sido apresentado durante algum temo como seu seguidor,
marcou forte oposição à distinção saussuriana entre sincronia e diacronia, na
resenha que fez do Curso de Linguística Geral.

292«
3.2 A relação entre gramática e
cognição

O funcionalismo relaciona gramática e cognição e, assim como ocorre


com a gramaticalização, não é uniforme a maneira como tal relação é
concebida pelos teóricos. Neves (2006) distingue duas principais
abordagens: a de Givón, e a de Hengeveld. Para Givón, devido à
variedade de recursos que as diferentes línguas oferecem aos falantes,
existem mudanças nas formas através das quais um mesmo evento é
codificado estruturalmente. Entretanto, esse fato não pressupõe, para
o autor, “diferenças profundas na cognição do evento” (p.21). Nesse
sentido, há estreita relação entre a bagagem cognitiva dos falantes, ou
seja, o conhecimento que eles acumulam durante as suas vidas (o
empacotamento cognitivo) e os saberes relativos à sua competência
gramatical (o empacotamento gramatical). Tais questões,
naturalmente, não dizem respeito apenas à gramática formal (a que é
ensinada nas instituições de ensino), mas, e principalmente, à
gramática internalizada (aquela que qualquer falante,
independentemente de seu nível de escolaridade, domina).

Hengeveld (apud NEVES, 2006), por seu turno, considera ser o


componente conceptual algo que, embora não seja parte integrante da
gramática, está por trás dela. O componente cognitivo, para o autor, é
o conhecimento que os falantes acumulam no decorrer de suas vidas,
no qual se inserem tanto a sua competência comunicativa quanto a
linguística. É esse componente que permite, por exemplo, a interação
entre os falantes de uma determinada comunidade linguística. Para

»293
ilustrar tal questão, tomemos, como exemplo, as composições de Luiz
Gonzaga. Ainda que elas sejam conhecidas em todas as regiões do
Brasil, o uso recorrente de expressões regionais faz com que apenas as
pessoas que conhecem a cultura nordestina tenham subsídios
suficientes para o necessário processo de construção de sentidos de
tais textos.

O modelo cognitivista de gramática tem como pressuposto que a teoria


gramatical tem a propriedade de estabelecer relações entre as
categorias linguísticas e as cognitivas. Nesse ínterim, determinados
teóricos defendem que a motivação cognitiva está limitada
especialmente ao conhecimento do léxico. Para outros, entretanto, a
motivação cognitiva relaciona-se à gramática como um todo.

No segundo grupo, desça-se Lakoff, que considera a gramática como


“(...) uma categoria radial de construções gramaticais” (NEVES, 2004,
p. 100). A categoria radial pressupõe a existência do que ele denomina
de “centro categorial” e de “membros não centrais”. Para ilustrar essa
questão, a autora toma, como exemplo, a palavra mãe (que seria o
centro categorial), que tem extensões (a diversidade de tipos de mãe)
a quais se ligam à palavra central e, ao mesmo tempo, a diferentes
modelos cognitivos que se relacionam com esse centro (mãe de
aluguel, mãe de leite, mãe natural etc.)

294«
3.3 A pragmática na gramática

Até o momento, um aspecto central da teoria funcionalista vem sendo


destacado: a influência de motivações externas na gramática. Tal
consideração tem implicações diretas na maneira como se concebe a
relação entre a sintaxe, a semântica e a pragmática. O pressuposto de
que tais disciplinas estão intrinsecamente relacionadas nos estudos
linguísticos remonta a um momento específico da história da teoria
linguística.

A Pragmática é uma área que trata de uma grande diversidade de


temas e, por isso mesmo, é marcada por uma enorme variedade de
concepções teóricas. O fato de a Análise da Conversação, a Etnografia
da Comunicação e a Sociolinguística, até o final da década de 1970,
terem feito parte dos estudos pragmáticos e terem se tornado áreas
autônomas somente a partir da década de 1980 ilustra bem tal
diversidade. Ainda assim, é possível delinear as três maiores linhas da
disciplina: o pragmatismo americano de Peirce, os estudos de atos de
fala, de Austin e Searle e os estudos da comunicação, de Grice.

Em 1878, Charles S. Peirce (que era um filósofo alemão) cunhou o


termo pragmatics, no seu artigo How to make our ideas clear. Seus
estudos influenciaram sobremaneira diversos estudiosos de sua área,
grupo representado especialmente por William James e Charles W.
Morris. Em contato com o círculo de filósofos de Viena, Morris toma
conhecimento da proposta de Rudolf Carnap acerca da divisão dos
estudos linguísticos em três áreas distintas: a Sintaxe, cujo objeto era

»295
a relação entre as expressões; a Semântica, que se ocuparia da
relação entre expressões e seus significados; e a Pragmática, que
traria para a cena os locutores e se ocuparia da relação entre eles e as
expressões. Tal divisão tem direta relação com o que propusera Peirce
anteriormente. É justamente por conta de tal semelhança que, em
1938, Morris passa a defender a doutrina pragmática de Peirce e,
naturalmente, a combater a separação entre as três disciplinas.
Todavia, posteriormente, o estudioso direciona seus estudos para
caminhos distintos.

Na outra corrente, estão Austin, Ryle e Strawson e os estudos dos atos


de fala. Austin criou a Teoria dos Atos de Fala, segundo a qual a
linguagem não tem como objetivo simplesmente descrever o mundo,
mas constitui, efetivamente, uma forma de ação sobre outrem. Tal
concepção, que foi, depois, desenvolvida por Searle, teve origem com
a publicação da obra de Austin, que tem como título How to do things
with words (1962). O filósofo inglês classificou os enunciados em tipos
distintos, conforme as ações pretendidas pelo enunciador.

“Todos os enunciados, para Austin, realizam três tipos de atos,


denominados, respectivamente, „locutórios‟ (atos de „dizer
qualquer coisa‟), „ilocutórios (atos efetuados „ao dizer qualquer
coisa) e perlocutórios (atos efetuados „pelo fato de dizer
qualquer coisa‟)”. (CHARAUDEAU e MAINGUENEAU, 2004, p.73)

Searle, a seguir, retoma e ressignifica tais noções, propondo a


distinção de cinco tipos de atos de linguagem (os declarativos, os
diretivos, os promissores, os assertivos e os expressivos), centrando

296«
sua atenção na diversidade de formas através dos quais eles se
realizam.

Fica claro, então, que tais posições implicam na imprescindível relação


entre a Sintaxe, a Semântica e a Pragmática. A separação dessas
disciplinas é, certamente, um dos motivos que levam muitos alunos a
concluírem a educação básica afirmando que não sabem gramática, ou,
pior, que “português é muito difícil”. Segundo Antunes (2003, p. 19)

“Um exame mais cuidadoso de como o estudo da língua


portuguesa acontece, desde o Ensino Fundamental, revela a
persistência de uma prática pedagógica que, em muitos
aspectos, ainda mantém a perspectiva reducionista do estudo
da palavra e da frase descontextualizadas. Nesses limites, ficam
reduzidos, naturalmente, os objetivos que uma compreensão
mais relevante da linguagem poderia suscitar.”

Pesquisas têm mostrado que há, ainda, um predomínio da abordagem


tradicional em nossas escolas. Diante disso, urge que nós, estudantes,
professores, pesquisadores da área, reunamos os nossos esforços no
sentido de promover um ensino mais inclusivo.

4. Algumas considerações finais

Do que foi discutido até aqui, fica clara uma questão essencial para a
compreensão do que representam, para a ciência linguística, as duas

»297
grandes correntes de estudos linguísticos: elas têm objetos de estudo e
objetivos distintos. Assim sendo, consideramos equivocadas as
abordagens que consideram uma ou outra mais importante na história
da ciência linguística. Entretanto, em se tratando do ensino de língua
nas escolas, a opção por uma ou por outra perspectiva tem implicações
determinantes na forma como, no imaginário coletivo, se concebe a
língua. Por julgarmos essa reflexão importante para você, futuro
professor de língua materna, pedimos licença para a abertura de um
parêntese, a fim de tratarmos rapidamente dessa questão. Durante
muito tempo, o ensino de língua nas escolas fundamentou-se na
perspectiva formalista e isso teve (e ainda tem) implicações
metodológicas de grande relevo na maneira como os alunos avaliam o
seu desempenho em língua materna.

Você já deve ter ouvido muitas pessoas do seu convívio afirmando que
não sabem português, ou que português é muito difícil. E, geralmente,
sempre que alguém faz uma afirmação dessa natureza, conta com o
apoio de uma outra pessoa, que se solidariza com o “problema” da
primeira. Considerações desse tipo são comuns, inclusive, entre
indivíduos que já concluíram a Educação Básica. Para comprovar o que
ora afirmamos, é suficiente que você faça, sem maiores rigores
metodológicos, uma rápida pesquisa. Escolha, aleatoriamente, dez
pessoas na comunidade onde você mora, que já tenham concluído o
Ensino Médio e faça a seguinte pergunta: “Como foi a sua relação com
a disciplina Língua Portuguesa, na Educação Básica?”. Infelizmente, é
grande a possibilidade de um percentual significativo de sujeitos dar
respostas similares as que elencamos acima. Tal resultado, ainda que
previsível, continua a proporcionar a um determinado grupo de
pessoas envolvidas com o ensino de língua materna um sentimento de
pesar, afinal, não é fácil ouvir falantes nativos dizerem que não

298«
dominam a sua língua materna. Você já se perguntou quais as causas
desse problema? O que será que leva um falante nativo a ter uma
visão tão equivocada de sua proficiência linguística?

Essa questão remonta, inevitavelmente, a um ponto crucial em nossas


escolas: a maneira como se concebe, nesse espaço, o objeto de ensino
de língua (seja ela materna ou estrangeira). Como se sabe, a
Geografia, a História, a Matemática, enfim, todas as disciplinas têm um
objeto de ensino. E tal objeto tem direta relação com a forma como se
abordam os conteúdos em sala de aula. Nesse espaço, no que diz
respeito ao ensino de língua, forma e função devem estar interligadas
e ser o foco de atenção dos professores, sob pena de continuarmos
perdendo a oportunidade de desenvolver competências linguísticas de
suma importância para a vida em sociedade.

A mudança de abordagem (da que preconiza a autonomia do sistema


linguístico para a que associa aspectos internos e externos à língua e
dá relevo à enunciação e, portanto, ao papel dos usuários) não deve
significar, portanto, a negação da importância da perspectiva
formalista para os estudos da linguagem. Mas significa, em se tratando
do trabalho do professor da área, uma mudança de perspectiva que
precisa ocorrer. Boa parte dos discentes (pelos mais diferentes
motivos) continua insistindo num modelo de ensino que, está claro,
não atende às reais necessidades de comunicação dos alunos. Tal fato
tem sido continuamente comprovado pelas diversas avaliações
institucionais aplicadas pelo governo federal (a exemplo do ENEM e do
SAEB) e por organismos internacionais (a exemplo da avaliação do
PISA). Como resultado, muitos recém-egressos da educação básica
afirmam veementemente que “não sabem português”, justamente

»299
porque a escola não os preparou para enfrentar situações
comunicativas que fazem parte de sua vida e que exigem um
determinado desempenho linguístico.

Cabe, pois, à escola procurar trabalhar a língua de forma inclusiva.


Isso somente será possível se a língua com a qual os alunos têm
contato na escola aproximar-se daquela que eles usam fora dela. Para
isso, urge que sejam levados em conta os saberes linguísticos deles,
que a variação linguística seja considerada como algo inerente ao
fenômeno linguístico, que sejam integrados os processos sintáticos aos
semânticos e pragmáticos. Significa, outrossim, ir de encontro a uma
forma de trabalhar uma língua distante dos alunos, idealizada,
inatingível. Significa dar-lhes a oportunidade de participar ativamente
da sociedade, atuando como sujeitos das inúmeras situações de
interação extraescolares com que se deparam diariamente.

Referências

ANTUNES, Irandé. Aula de Português: Encontro e Interação. São


Paulo: Parábola, 2003.

CALVET, Louis-Jean. Sociolinguística: uma introdução crítica. Trad.


Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola, 2002.

CHARAUDEAU, Patrick e MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de


Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2004.

FARACO, Carlos Alberto. Estudos Pré-Saussurianos. In MUSSALIN,


Fernanda e BENTES, Anna Cristina (orgs). Introdução à linguística –

300«
fundamentos epistemológicos. Volume 3.ed. São Paulo: Cortez,
2007.

MENDONÇA, Márcia. Análise linguística no Ensino Médio: um novo


olhar, um outro objeto. IN BUNZEN, Clécio e MENDONÇA, Márcia
(orgs). Português no Ensino Médio e formação do professor. São
Paulo: Parábola, 2006.

NEVES, Maria Helena de Moura. A gramática funcional. São Paulo:


Martins Fontes, 2004.

_____. Texto e Gramática. São Paulo: Contexto, 2006

OLIVEIRA, Roberta Pires de. Formalismos em Linguística: uma reflexão


crítica. In MUSSALIN, Fernanda e BENTES, Anna Cristina (orgs).
Introdução à linguística – fundamentos epistemológicos. Volume
3.ed. São Paulo: Cortez, 2007.

PEZATTI, Goreti Erotilde. Funcionalismo em Linguística. In MUSSALIN,


Fernanda e BENTES, Anna Cristina (orgs). Introdução à linguística –
fundamentos epistemológicos. Volume 3.ed. São Paulo: Cortez,
2007.

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. São Paulo:


Cultrix, 2006.

»301
302«
Dilma Tavares Luciano
Maria Lúcia Barbosa

METODOLOGIA I
304»
1. “Transver”1 a prática de ensino

“Que a proa e a popa da nossa didática sejam:


buscar e encontrar um método
para que os docentes ensinem menos
e os discentes aprendam mais;
que nas escolas haja menos conversa,
menos enfado e trabalhos inúteis,
mais tempo livre, mais alegria e mais proveito”
Comenius2

A transformação de práticas pedagógicas no ensino de Português


decorre dos conceitos de língua e de literatura subjacentes às ações
didáticas em sala de aula, como já amplamente discutido por
pesquisadores e professores nos cursos de formação de professor e por

1
O neologismo foi tomado de empréstimo do tema-título do 17º. Congresso de
Leitura do Brasil, 20 a 24 de julho de 2009, inspirado em Manoel de Barros: “O
olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê. É preciso transver o
mundo.”
(BARROS, Manoel de. “As lições de R.Q.” In Livro Sobre Nada. Rio de Janeiro:
Record, 2000, p. 75)
2
“Jan Amos Komenský (em latim, Comenius; em português, Comênio) foi
um professor, cientista e escritor checo, considerado o fundador da Didáctica
Moderna. Propôs um sistema articulado de ensino, reconhecendo o igual direito
de todos os homens ao saber. O maior educador e pedagogo do século XVII
produziu obra fecunda e sistemática, cujo principal livro é a Didática Magna. São
suas propostas: a educação realista e permanente; método pedagógico rápido,
econômico e sem fadiga; ensinamento a partir de experiências quotidianas;
conhecimento de todas as ciências e de todas as artes; ensino unificado”.
(Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Comenius>. Acessado em: 17 de
dez. de 2010)

»305
técnicos educacionais em situações de avaliação das propostas de
aprendizagem.

As mudanças são visíveis, especialmente nos últimos vinte anos,


consequência do desenvolvimento dos estudos linguísticos e teórico-
literários, bem como do campo da Didática. De um lado, a Linguística
contribuiu para a solução de problemas pedagógicos decorrentes da
ausência de reflexão sobre os fenômenos da linguagem oral, ajustando
o foco às dificuldades dos alunos pela interferência mesmo de uma
prática de ensino alheia às relações entre fala e escrita. De outro, o
campo da Teoria da Literatura destaca a necessidade de discussão
acerca da definição de “fenômenos literários” objetos das práticas
vigentes. Em ambas, as análises põem em evidência o modo como os
manuais didáticos apresentam os fenômenos a ser estudados, exigindo
dos professores um estado de alerta para evitar que se faça da
linguagem um objeto simbólico inferior a sua própria natureza:

“A linguagem não é simples emissão de sons, nem simples


sistema convencional, como quer um certo POSITIVISMO3, nem
tampouco tradução imperfeita do pensamento, vestimenta de
ideias mudas e verdadeiras, como a concebe um PENSAMENTO

3
“Positivismo é a designação da doutrina criada por Comte, fundada na
extrema valorização do método científico das ciências positivas (baseadas nos
fatos e na experiência) e na recusa das discussões metafísicas. O termo
positivismo foi adotado pelo próprio Comte, definindo toda uma diretriz para a
sua filosofia, de culto da ciência e sacralização do método científico. O
positivismo se caracteriza por um tom geral de confiança na industrialização,
bem como por um otimismo com relação ao progresso capitalista, guiado pela
técnica e pela ciência. [...] o homem torna-se capaz de prever os fenômenos
naturais, podendo agir sobre a realidade. Ver para prever é o lema da ciência
positiva.”(COTRIM, 2006, p.160)

306»
IDEALISTA4. Pelo contrário, é criação de sentido, encarnação de
significação e, como tal, ela dá origem à comunicação”.
Lígia Chiappini de Moraes Leite. Gramática e Literatura: Desencontros e
Esperanças. São Paulo: Editora Ática, 1997, 22-23.

É importante reconhecer nossos posicionamentos teóricos sobre a


língua sem, contudo, assumir uma rigidez de formalização fruto da
crença em uma preensão teórica homogênea e modeladora da prática
de ensino.

Por outro lado,

“Não vamos, entretanto, abrir mão da plasticidade da


linguagem, dessa sua natureza múltipla, pois acreditamos que a
linguagem é tudo isso e, ao mesmo tempo, pode não ser coisa
alguma. Tampouco reconhecemos uma distância tão categórica
entre o geômetra e o poeta”.
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Discurso e leitura. São Paulo: Cortez;
Campinas, SP: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 2000, p.
16. (Coleção passando a limpo).

Objetivamos conduzir nossos “diálogos” para a reflexão sobre


metodologia de ensino por um caminho de participação ativa na análise
dos fenômenos de linguagem, sejam linguísticos, sejam literários, de

4
“[...] uma doutrina é idealista quando concebe que o sujeito tem um papel
mais determinante que o objeto no processo de conhecimento. Em
consequência, tudo o que o sujeito são suas ideias, suas representações do
mundo, sua consciência.” (COTRIM, 2006, p.179). Os principais representantes
da doutrina idealista são: Platão (teoria das ideias, na Antiguidade), Decartes
(sua célebre frase “penso, logo existo”) e Kant (Crítica da Razão Pura, “das
coisas só conhecemos a priori aquilo que nós mesmos colocamos nelas”).

»307
modo a desenvolver em cada um de vocês, alunos e alunas do curso
de “formação de professor”, a capacidade de avaliação dos recursos
didáticos disponíveis à prática docente e de observação/identificação
precisa das dificuldades de seus alunos no futuro.

Se usar a língua é inserir-se em um complexo processo de atribuição


de sentidos, ensinar a língua deve ser desenvolver no aprendiz/falante
do idioma a habilidade de desvelar assim como de produzir sentidos
capazes de assegurar o sucesso da comunicação. Assim é que durante
sua formação, o aprendiz/professor do idioma deverá conhecer a fundo
cada um dos componentes do sistema linguístico, das teorias de base
para explicação desse sistema, bem como daquelas que dizem respeito
à estética da criação verbal na e da literatura.

E é assim, dialeticamente, que entendemos ser possível compreender


porque, ao longo de nossas vidas, somos capazes de reconhecer quão
didáticos são ou não uns e outros professores.

O que isso significa, precisamente?!

Vejamos o que disse um pedagogo do século XVI:

“Didática significa arte de ensinar: de não muito tempo a esta


parte homens ilustres têm-se empenhado em estudar essa arte

308»
por sentirem compaixão do trabalho de Sísifo5 realisado pelos
escolares; diferentes as tentativas, diferentes os resultados.”

2. Alguns saíram em busca de compêndios para ensinar mais


facilmente apenas esta ou aquela língua; outros tentaram
caminhos mais rápidos para poder ensinar esta ou aquela
ciência ou arte. Outros buscaram outras coisas. Quase todos
obraram com observações extrínsecas, extraídas de uma
prática demasiado superficial, ou, como se diz, a posteriori.

3. Nós ousamos prometer uma Didática Magna, ou seja, uma


arte universal de ensinar tudo a todos: de ensinar de modo
certo, para obter resultados; de ensinar de modo fácil, portanto
sem que docentes e discentes se molestem ou enfadem, mas,
ao contrário, tenham grande alegria; de ensinar de modo sólido,
não superficialmente, de qualquer maneira, mas para conduzir
à verdadeira cultura, aos bons costumes, a uma piedade mais
profunda. Finalmente, demonstramos essas coisas a priori,
partindo da própria natureza imutável das coisas, como se
fizéssemos brotar de uma fonte viva regatos perenes, que se
unissem depois num único rio para constituir uma arte
universal, a fim de fundar escolas universais.

5
“De maneira semelhante a Prometeu, Sísifo encarnava na mitologia grega a
astúcia e a rebeldia do homem frente aos desígnios divinos. Sua audácia, no
entanto, motivou exemplar castigo final de Zeus, que o condenou a empurrar
eternamente, ladeira acima, uma pedra que rolava de novo ao atingir o topo de
uma colina, conforme se narra na Odisséia”. (Disponível em:
<http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/mitologia/sisifo.php>. Acessado
em 17 de dez. de 2010)

»309
4. Portanto, são grandes as coisas prometidas, que devem ser
ardentemente desejadas: no entanto, prevejo com clareza que a
alguns parecerão sonhos, e não exposições de fatos concretos.
Suspende o juízo, sejas tu quem fores, enquanto não souberes
como são realmente as coisas: estarás então livre não só para
formular juízo, mas também para expressá-lo. Não desejo, nem
quero, persuadir ninguém à força, de tal modo que consiga
assentimento para uma coisa pouco examinada: mas com todas
as minhas forças aconselho, exorto, esconjuro todos os que se
interessem por este nosso trabalho a utilizar toda a agudeza de
seus sentidos não ofuscados pelo fascínio das opiniões.

5. Sem dúvida a empresa é muito séria e, assim como deve ser


desejada, também deve ser ponderada pelo juízo de todos, e
todos em conjunto devem levá-la adiante, pois ela diz respeito
à salvação comum do gênero humano. “Que dádiva maior e
melhor podemos oferecer ao Estado senão educar e cultivar a
juventude? Sobretudo em tempos e costumes tais, nos quais ela
avançou tanto que precisa ser freada e controlada pela ação de
todos”: é o que diz Cícero6. Melanchton, por sua vez, escreveu
que “dar uma formação correta à juventude é mais fácil que
expugnar Tróia”7. [...] ou seja, “a arte das artes está em formar
o homem, o mais versátil e mais complexo dos animais”8.

6
No original: “CÍCERO, De divinatione, II, 2, 4”. (p.382)
7
No original: “MELANCHTON, a Camerarius, 19 de setembro de 1544 (CORPUS
REFORMATORUM, V, 481). (p.382)
8
No original: “GREGÓRIO DE NAZIANZO, Oratio II apologética, 16 (MIGNE, PG,
XXXV, 425)”. (p.382)

310»
6. Ensinar a arte das artes é, portanto, tarefa árdua que requer
o juízo atento não de um só homem, mas de muitos, porque
ninguém pode ser tão atilado que não lhe escapem muitas
coisas.
COMENIUS, 1592-1670. Didática magna / Comenius; aparelho crítico
Marta Fattori; tradução Ivone Castilho Benedetti. – 3ª. ed. – São Paulo:
Martins Fontes, 2006. – (Paidéia) (p.13-15)

A disciplina Metodologia 1 não pode ter essa pretensão, a de ensinar “a


arte de ensinar”, mas a de aguçar os seus sentidos, você leitor e aluno
ou aluna do E-Letras, ou de qualquer outro curso de Licenciatura em
Letras que tiver se envolvido com a leitura do que aqui propomos à
reflexão.

Relembramos que no primeiro período de nosso curso de Letras a


distância, a disciplina Prática de Ensino e Pesquisa deu início às nossas
“conversas” sobre a arte de ensinar para que, nesse momento,
pensemos nesse conteúdo elaborado para a execução de Metodologia
1, como um “tear” que vai urdindo os “fios” propostos em cada
disciplina até esse ponto do curso, e de modo especial, daquelas
referentes à língua portuguesa e à literatura.

Nosso propósito é o desenvolvimento de uma atitude metodológica


fértil, porque educativa e em constante atualização, já que se distancia
do paradigma da prática de ensino unicamente ritualística, tão
questionada por ter na transmissão de conteúdos o ponto fulcral
unicamente da ação docente.

»311
O enfoque aqui proposto pressupõe sensibilidade para manifestação de
uma atitude científica madura para o planejamento, a organização e
aplicação de métodos e técnicas adequados ao contexto do ensino a
vivenciar. Atitude sem radicalismos ingênuos ou descasos
inconsequentes de uma docência capaz de tratar o novo sem
obstáculos, atenta à necessidade constante de adaptações nos
currículos, porque ancoradas no potencial formativo das teorias
disponíveis à perscrutação.

A consequência dessa postura?

A construção conjunta, numa experiência pedagógica que reaproxime o


pesquisador do professor, visando à competência metodológica para se
enfrentar os problemas reais presentes em qualquer situação de
ensino-aprendizagem.

E, de modo específico para o ensino de Português, a competência


linguística stricto sensu dos alunos da rede pública do ensino
fundamental, bem como o baixo desempenho desses estudantes nos
testes de compreensão textual revelados pelos institutos nacionais de
pesquisa educacional9 servem para enfatizar a responsabilidade de
todos nós que respondemos pela formação de professores.

Fazemos nossas as palavras do professor-pesquisador RODOLFO ILARI


(1997:109):

9
Os testes de compreensão para avaliação da escola pública compreendidos
pelo Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica – SAEB – e pelo
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – Inep.

312»
“Pode-se tratar a queda de uma telha como um problema
acadêmico de dinâmica, formulando hipóteses teóricas
alternativas e debatendo a adequação descritiva destas últimas.
É uma abordagem legítima, mas não é a melhor para quem está
embaixo. No caso do ensino, todos nós estamos”.
ILARI, Rodolfo. A Linguística e o Ensino da Língua Portuguesa. São
Paulo: Martins Fontes, 1997.

E é com esse sentido de responsabilidade pelos resultados


preocupantes das avaliações de aprendizagem no ensino público que
esperamos dar nossa contribuição.

1.1 O que significa “metodologia”

“A teoria é fácil e breve, e proporciona apenas deleite;


a prática, ao contrário, é árdua e demorada,
mas de grande utilidade”
Vives10

O que significa “metodologia” quando pensamos na arte de ensinar?

Comecemos nossa reflexão observando diferentes definições para a


palavra método:

10
Apud Comenius 2006, p.388.

»313
MÉTODO s.m.

In: Ferreira, Aurélio 1. Procedimento organizado que


Buarque de Holanda. conduz a um certo resultado.
Miniaurélio: o dicionário
2. Processo ou técnica de ensino.
da língua portuguesa. 6.

ed. Curitiba: Positivo,


3. Modo de agir, de proceder.

2005. 4. Regularidade e coerência na ação.

MÉTODO sm. (lat methodu)

In: MICHAELIS. Moderno 1. Conjunto dos meios dispostos


Dicionário da Língua convenientemente para alcançar um fim
Portuguesa. São Paulo: e especialmente para chegar a um
Companhia Melhoramentos, conhecimento científico ou comunicá-lo
1998. aos outros.

2. Ordem ou sistema que se segue no


estudo ou no ensino de qualquer
disciplina.

MÉTODO s.m.

In: DICIONÁRIO Aurélio Maneira de dizer, de fazer, de ensinar


online. Disponível em: uma coisa, segundo certos princípios e
<http://www.dicionariodoau em determinada ordem.
relio.com/dicionario.php?P=
Maneira de agir.
Metodo>. Acesso em: 04 de

abr. de 2009.
Obra que reúne de maneira lógica os
elementos de uma ciência, de uma arte
etc.

Botânica. Modo de classificar as espécies


vegetais. /

314»
Filosofia. Marcha natural e racional do
espírito para a verdade: método
cartesiano.

MÉTODO “Método é a forma de proceder ao longo


de um caminho. Na ciência os métodos
In: TRUJILO FERRARI,
constituem os instrumentos básicos, que
Alfonso. Metodologia da
ordenam de início o pensamento em
ciência. 2ª ed. Rio de
sistemas, traçam de modo ordenado a
Janeiro: Kennedy, 1974, p.
forma de proceder do cientista ao longo
24.
de um percurso para alcançar um
objetivo”.

E também as diferentes definições para a palavra metodologia:

METODOLOGIA sf.

In: Ferreira, Aurélio Conjunto de métodos, regras e


Buarque de Holanda. postulados utilizados em
Miniaurélio: o dicionário determinada disciplina, e sua
da língua portuguesa. 6. aplicação.
ed. Curitiba: Positivo,

2005.

METODOLOGIA sf.

In: MICHAELIS. Moderno 1. Estudo científico dos métodos.


Dicionário da Língua
2. Arte de guiar o espírito na
Portuguesa. São Paulo:

»315
Companhia Melhoramentos, investigação da verdade.
1998.

METODOLOGIA s.f.

In: DICIONÁRIO Aurélio Parte de uma ciência que estuda os


online. Disponível em: métodos aos quais ela se liga ou de que
<http://www.dicionariodoau se utiliza: metodologia linguística.
relio.com/dicionario.php?P=

Metodologia>. Acesso em:

04 de abr. de 2009.

Ao observarmos os dois conceitos exemplificados acima, verificamos


que está presente em ambos a ideia de processo, já que compreendem
um conhecimento procedimental para se alcançar um fim.

Uma disciplina como essa de que tratamos aqui pretende desenvolver


no formando em Letras a capacidade reflexiva que conduza a uma
atitude adequada ao combate do reconhecido fracasso escolar, há mais
de duas décadas, e alvo de pesquisas em diversas áreas.

E o combate eficaz deve ter por diretrizes três ordens de ação:


planejamento, organização e aplicação de métodos e técnicas
educacionais específicos aos campos de atuação do professor. Para a
área de Português serão essas palavras de ordem durante a prática de
ensino da língua materna em tempos de intensa demanda
comunicacional cotidianamente.

316»
Quando na segunda parte do capítulo Prática de Ensino e Pesquisa,
intitulada Concepções de língua e teoria linguística: o diálogo
possível11, foi apresentada a noção de competência comunicativa
como sendo o objetivo do ensino de Português na atualidade,
pressupõe-se no trabalho docente a ação – metodologia – voltada para
a construção de conhecimentos a serem mobilizados pelo aluno
durante sua formação e também fora da escola, portanto em situações
reais de comunicação, conhecimentos esses que o habilitam a produzir
textos orais e escritos, bem como ampliam sua capacidade
interpretativa nas escutas de textos orais ou na leitura individual
silenciosa.

A metodologia de ensino, em síntese, é a organização de situações


ditas didáticas, que possibilitem o desenvolvimento pelos alunos dos
procedimentos adequados para as práticas discursivas existentes na
sociedade de que fazem parte, portanto, o desenvolvimento de
competências. Desse modo, cabe ao professor “criar condições, nas
escolas, que permitam aos nossos jovens ter acesso ao conjunto de
conhecimentos socialmente elaborados e reconhecidos como
12
necessários ao exercício da cidadania” .

Veja, agora, o que diz Perrenoud (1999) nos dois exemplos a seguir,
em sua obra em torno da noção de competências a serem
desenvolvidas na escola:

11
Volume 1 dessa coleção, Dimensão Transdisciplinar na Formação do
Professor.
12
Parâmetros Curriculares Nacionais – Terceiro e Quarto Ciclos do Ensino
Fundamental – Língua Portuguesa.

»317
EXEMPLO 1:

“(...) a escola sempre tende a organizar os programas por


campos nocionais ou teóricos, o que, inevitavelmente, confere
às competências propostas diante dos conhecimentos um
estatuto próximo dos exemplos e das ilustrações mais ligadas à
tradição pedagógica. Construir uma competência significa
aprender a identificar e a encontrar os conhecimentos
pertinentes. Estando já presentes, organizados e designados
pelo contexto, fica escamoteada essa parte essencial da
transferência e da mobilização.”

EXEMPLO 2:

“Os programas da primeira série do ensino médio prescrevem o


ensino de elementos de gramática da frase13, do texto e do
discurso enunciados: “Conhecera função dos sinais de
pontuação, estudar as formas de conectivos espaço-temporais,
definir os componentes de uma situação de comunicação”.
Novamente, esses conhecimentos, indispensáveis para a
construção de competências, não podem ser mobilizados de
maneira automática. Para torná-los, de alguma maneira,
“operatórios”, o ensino deveria propor múltiplas situações nas
quais serão recursos, em primeiro lugar, necessários para o
sucesso da tarefa e que, em segundo lugar, não são designados

13
O autor refere-se ao ensino de língua francesa nas escolas.

318»
pelas instruções. Por exemplo, a partir de um corpo de breves
trechos (alguns parágrafos) fora de seu contexto e sem
nenhuma indicação sobre seu autor, título, destinatário, tipo de
texto (narrativo, teórico, etc.), a tarefa consistiria em elaborar
e justificar hipóteses sobre o estatuto do enunciado. O que,
então, era um conhecimento declarativo, por exemplo, a
correlação entre um tipo de texto e certos conectivos ou
organizadores textuais, iria tornar-se ferramenta, permitindo
identificar as diferenças significativas e guiar uma classificação.

Se tais atividades multiplicarem-se, contribuirão para


implementar verdadeiros esquemas de mobilização de
conhecimentos. Se forem mais ocasionais, permitirão ver um
modo possível de mobilização, sem formar realmente
competências, talvez induzindo uma outra relação com o saber,
ao incitar os alunos a adotarem uma postura ativa, a
considerarem os conhecimentos como chaves para fechaduras
desconhecidas, cuja descoberta pode ser esperada um dia ou
outro.
PERRENOUD, Philippe. Construir as competências desde a escola.
Tradução Bruno Charles Magne. Porto Alegre: Artmed, 199p. (pp. 22-
23)

No EXEMPLO (1), Perrenoud faz-nos pensar em quantas vezes os


grilhões da tradição nos impedem de perceber em que momento de
nossa metodologia de ensino estamos ainda presos ao instrucionismo e
transformamos nossos encontros pedagógicos em monólogos
instrucionais, mesmo que preparados à apresentação de
conhecimentos pertinentes à discussão na atualidade, do ponto de

»319
vista do desenvolvimento teórico científico. A segurança gerada pela
exposição aos conceitos com os quais se pretende mobilizar o aluno à
prática esconde o que tem de mais negativa, metodologicamente
falando: não há conhecimento a ser mobilizado pelo aluno, já que sua
ação diz respeito ao mero “reconhecimento” do modelo a ser repetido
na etapa destinada à ação do aluno, após a exposição, logo, à prática
propriamente dita.

Em outras palavras, no caso do ensino de Português, de que nos


adianta conhecer profundamente o fenômeno da variação linguística,
por exemplo, se não sabemos precisar qual a metodologia adequada ao
seu tratamento nas aulas de Fonologia ou de Morfologia, sendo esses
campos da linguagem mais diretamente afetados por tal fenômeno
quando os alunos são falantes do não-padrão linguístico? E mais,
quando os alunos são entendidos como usuários da língua padrão,
tratar desse tema pode provocar reações perigosas, como o reforço ao
preconceito linguístico ou mesmo a consolidação da ideia também
equivocada de não compromisso com o uso da norma.

No EXEMPLO (2), chamando a atenção para os programas de ensino,


Perrenoud defende a abordagem sociointeracionista discursiva de
tratamento dos fenômenos de linguagem ao afirmar que “o ensino
deveria propor múltiplas situações” de comunicação como forma mais
adequada para o ensino da língua, porque tal metodologia viria a
contribuir efetivamente para o desenvolvimento pelo aluno de
“esquemas de mobilização de conhecimentos”, portanto, de postura
verdadeiramente ativa no processo de aprendizagem, por serem
capazes de considerar “os conhecimentos como chaves para

320»
fechaduras desconhecidas”, quando forem desafiados a revelar
competências de comunicação em situações reais de interação.

Em ambos os exemplos e ao longo de toda a obra mencionada,


Perrenoud sabiamente nos lembra que “para formar competências à
altura das situações da vida, o mais sábio é não fazer como se as
conhecêssemos. Melhor seria adotar um processo de investigação,
para ter uma ideia das situações com as quais as pessoas confrontam-
se ou irão confrontar-se em sua vida – no trabalho, fora do trabalho ou
entre dois empregos.” (op.cit. p.74).

Para finalizar essa seção, tenhamos em mente que a metodologia de


ensino adotada em qualquer disciplina estará refletida na resposta ao
quê e como ensinar. Para o licenciando em Letras, elas devem servir
de diretrizes durante o percurso de sua formação de professor, em um
exercício constante de busca de relação com a realidade fora da
universidade, com base em três pontos centrais:

• Quais os conhecimentos específicos sobre a língua ou sobre a


Literatura adquiridos no curso de formação docente que devem
versar no programa de aprendizagem do ensino básico?

• Como os livros e manuais didáticos abordam esses


conhecimentos?

• Como esses conhecimentos devem ser tratados enquanto


objetos do ensino de Português?

»321
Esse posicionamento reflexivo-crítico deve sobremaneira caracterizar a
postura acadêmica do licenciando em Letras especialmente nos
momentos destinados à metodologia.

Afinal,

“Enfrentar situações diversas requer competências também


diversas, e estas não serão constituídas pela simples
transferência de esquemas gerais de raciocínio, análise,
argumentação e cisão. A escola só pode preparar para a
diversidade do mundo trabalhando-a explicitamente, aliando
conhecimentos e savoir-faire a propósito de múltiplas situações
da vida de todos os dias. Transformar uma casa, conceber um
habitat agrupado, criar uma associação, encontrar e seguir um
regime alimentar, comprar mobília, dar a volta na Europa com
pouco dinheiro, proteger-se da Aids sem encerrar-se em casa,
encontrar ajuda em caso de conflito ou depressão, estar na
moda sem estar alienado... e outros tantos problemas diante
dos quais os indivíduos encontram-se desprevenidos, por falta
de conhecimentos e, sobretudo, de métodos, de treinamento na
resolução de problemas, na negociação, no planejamento ou
simplesmente na procura de informações e de conhecimentos
pertinentes”.
PERRENOUD, Philippe. Construir as competências desde a escola.
Tradução Bruno Charles Magne. Porto Alegre: Artmed, 1999.

322»
1.2 Nós somos o que fazemos

A seção anterior tratou do sentido da palavra metodologia ao mesmo


tempo em que a aproximou do objetivo do ensino de Português,
voltado para a noção de competência comunicativa a ser adquirida pelo
aluno no processo de ensino-aprendizagem. Por ser “aquisição de
conhecimento”, manifestamos, agora, a relação de natureza intrínseca
– como deve ser assim concebida – entre o SER e o FAZER da
perspectiva do ensinar.

O professor, em sua historicidade, aprendeu a “ser professor”


observando extrinsecamente o conhecimento por ele adquirido em
etapa anterior ao exercício da docência, vivenciando, em situação
ulterior, suas decisões sobre “o que fazer” para ensinar um
conhecimento específico de determinado campo conceitual.

Desse modo, distanciam-se o ser e o fazer quando não há consciência


de que a forma como concebemos o nosso objeto de trabalho – no
caso do ensino de Português, a língua materna – determinará o
enfoque dado aos fenômenos de linguagem estabelecidos nos
programas escolares, os quais devem atender ao sistema de regulação
nacional da educação.

Outrossim, é dever do Estado garantir o acesso à educação formativa


que se desenvolve nas instituições de ensino, sendo a União
responsável pela coordenação da política nacional para esse fim:

»323
LEI № 9.394, de 20 de dezembro de 1996

Estabelece as diretrizes e bases da educação

DO DIREITO À EDUCAÇÃO E DO DEVER DE EDUCAR

Art. 8º. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios


organizarão, em regime de colaboração, os respectivos
sistemas de ensino.

§ 1º. Caberá à União a coordenação da política nacional de


educação, articulando os diferentes níveis e sistemas e
exercendo função normativa, redistributiva e subjetiva em
relação às demais instâncias educacionais.

(Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/sesu/arquivos/pdf/lei9394.


pdf>. Acessado em 11 de dez. de 2010)

Mas somos, ao mesmo tempo, indivíduo e coletivo, sendo indiscutível a


necessidade de coerência e sintonia entre essas duas dimensões do
SER PROFESSOR, única forma razoável de perceber descompassos que
o não equilíbrio entre essas duas dimensões pode gerar no FAZER
pedagógico.

324»
A metodologia de ensino reflete essa historicidade porque é capaz de
desvelar concomitantemente o indivíduo professor, no que “aprendeu”
sobre seu objeto de trabalho, e a qual grupo de indivíduos professores
que “aprenderam” a “fazer de determinada forma” ele pertence,
porque faz parte da história de um coletivo.

Observe:

“ ...toda e qualquer metodologia de ensino articula uma opção


política – que envolve uma teoria de compreensão e
interpretação da realidade – com os mecanismos utilizados em
sala de aula.

Assim, os conteúdos ensinados, o enfoque que se dá a eles, as


estratégias de trabalho com os alunos, a bibliografia utilizada, o
sistema de avaliação, o relacionamento com os alunos, tudo
corresponderá, nas nossas atividades concretas de sala de aula,
ao caminho por que optamos”.
GERALDI, 1997, p. 40.

O trecho acima destaca essa dupla relação quando menciona a


articulação entre a “opção política” e os “mecanismos” utilizados em
sala de aula.

Como sujeito histórico, o professor “aprende” sobre a língua, no caso


específico de que trata esse volume produzido para o E-Letras, o que

»325
a(s) teoria(s) escolhida(s) pelos autores de cada capítulo for
apresentando. Essa “opção política” é necessária, pois sem recortes
não há como tratar o “todo”, especialmente quando esse todo diz
respeito a um fenômeno tão amplo e inesgotável como a língua que se
faz linguagem, dando existência à comunicação.

Tudo são escolhas. Caminhos por que optamos conduzir nossos alunos,
cujos limites são determinados pelo Estado, para que não deixemos de
pertencer à Nação.

Por outro lado, ao lermos esse trecho acima, também não resistimos
ao desejo incontrolável de simplificação (típico dos humanos, afinal) e
afirmamos: o professor que somos é resultado do que fazemos, e só
podemos fazer aquilo que nossa compreensão nos permite “conceber”.

Simplificando ainda mais, temos como aspectos de que trata o


“ensinar”, segundo aquele autor, como sendo a possibilidade de
escolha:

• De conteúdos específicos;

• Do enfoque aos conteúdos;

• Das estratégias para abordar/trabalhar esses conteúdos com


os nossos alunos;

• Da bibliografia inspiradora e fundadora do tratamento dos


conteúdos;

326»
• Do como avaliar a percepção/apropriação desses mesmos
conteúdos por nossos alunos.

Essa simplificação faz-nos pensar que os descompassos metodológicos,


ousamos assim dizes, são fruto do descompasso de nossas concepções
– conhecimento outrora adquirido – com o conhecimento novo
oferecido pelos resultados de pesquisas voltadas para a solução de
problemas reais no processo de ensino/aprendizagem.

Postulamos, por isso, a sistematicidade da formação continuada como


movimento real para o combate efetivo aos problemas de ensino e
única forma de garantir educação de qualidade.

1.3 Fazemos como concebemos

A explicitação da relação intrínseca entre a prática de ensino e a


concepção de língua que lhe subjaz remonta há pouco mais de duas
décadas, precisamente após as reflexões sobre a existência de
“padrões de comportamento comunicativo”, que permitiram pensar a
interdependência entre linguagem e cultura. E na cultura do ensino-
aprendizagem, a noção de competência comunicativa representa um
marco histórico para o ensino da Língua Portuguesa, quando passou a
considerar os objetivos comunicativos das produções de linguagem.

»327
Nesse sentido, é possível distinguir 3 momentos no ensino de
Português14, decorrentes da percepção de que a competência
15
comunicativa resulta :

da faculdade humana de usar a língua – sistema abstrato –


para expressão das ideias (a língua como espelho do
pensamento);

da habilidade humana em fazer uso do sistema simbólico


criado pelo próprio homem para atender às suas necessidades
comunicativas (a língua como instrumento de comunicação);

além do mencionado, da necessidade de agir sobre o outro


para o êxito de seus objetivos comunicacionais (a língua como
forma de ação inter-subjetiva).

14
Consulte seus professores de Linguística e de Língua Portuguesa e sua
biblioteca para compreender melhor o escopo dessa afirmativa.
15
“O reconhecimento da dualidade constitutiva da linguagem, isto é, do seu
caráter ao mesmo tempo formal e atravessado por entradas subjetivas e
sociais, provoca um deslocamento nos estudos linguísticos até então balizados
pela problemática colocada pela oposição língua/fala que impôs uma linguística
da língua. Estudiosos passam a buscar uma compreensão do fenômeno da
linguagem não mais centrado apenas na língua, sistema ideologicamente
neutro, mas num nível situado fora desse polo da dicotomia saussureana. E
essa instância da linguagem é o discurso. Ela possibilitará operar a ligação
necessária entre o nível propriamente linguístico e o extralinguístico a partir do
momento em que se sentiu que „o liame que liga as significações‟ (HAROCHE, C.
ET alii, 1971:98). O ponto de articulação dos processos ideológicos e dos
fenômenos linguísticos é, portanto, o discurso.
A linguagem enquanto discurso não constitui um universo de signos que serve
apenas como instrumento de comunicação ou suporte do pensamento; a
linguagem enquanto discurso é interação, e um modo de produção social; ela
não é neutra, inocente (na medida em que está engajada numa
intencionalidade) e nem natural, por isso o lugar privilegiado de manifestação
da ideologia.”
(BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à análise do discurso.
Campinas, SP. Editora da UNICAMP, 1996. p.11-12.)

328»
Como destacou GERALDI (1997:41) “essas três concepções
correspondem às três grandes correntes dos estudos linguísticos: (i) a
gramática tradicional; (ii) o estruturalismo e o transformacionalismo; e
(iii) a linguística da enunciação”.

A esse respeito, a Linguística tem contribuído sobremaneira para a


metodologia de ensino de Língua Portuguesa, ajustando o foco para a
compreensão de problemas antigos de aprendizagem, como na
contribuição à prática de produção textual, por exemplo.

Não podemos deixar de salientar que foi sob a influência da Linguística


que os PCNs apresentam uma concepção de língua favorável ao trabalho
de construção de competências comunicativas desde a escola, ao
determinar o uso da língua materna em situações didáticas que
possibilitem o desenvolvimento de procedimentos adequados às práticas
discursivas necessárias ao exercício pleno da cidadania, onde ação-
reflexão-ação representam a tríade constitutiva da metodologia de
ensino.

“Pode-se dizer que, apesar de ainda imperar no tecido social


uma atitude “corretiva”e preconceituosa em relação às formas
não canônicas de expressão linguística, as propostas de
transformação do ensino de Língua Portuguesa consolidaram-se
em práticas de ensino em que tanto o ponto de partida quanto o
ponto de chegada é o uso da linguagem. pode-se dizer que hoje
é praticamente consensual que as práticas devem partir do uso
possível aos alunos para permitir a conquista de novas

»329
habilidades linguísticas, particularmente daquelas associadas
aos padrões da escrita, sempre considerando que:

A razão de ser das propostas de leitura e escuta é a


compreensão ativa e não a decodificação e o silêncio;

• A razão de ser das propostas de uso da fala e da escrita é a


interlocução efetiva, e não a produção de textos para serem
objetos de correção;

• As situações didáticas têm como objetivo levar os alunos a


pensar sobre a linguagem para poder compreendê-la e utilizá-la
apropriadamente às situações e aos propósitos definidos.
PCNs, 1997, pp. 18-19.

Estamos, pois, mais uma vez defendendo que vejamos na Linguística


Aplicada ao Ensino a possibilidade de reconhecimento de que muito do
fracasso nas aulas de Português não deve ser atribuído ao desempenho
do professor, sem a consideração dos aspectos sociohistóricos que
compõem o quadro global do insucesso.

Acreditamos que o desenvolvimento da ciência Linguística e sua


aplicação indireta ao ensino, através dos cursos de formação de
professor como este, que ora vivenciamos, representa o caminho mais
seguro de construção do conhecimento cabedal do professor de
Português do século XXI, capaz de ver a língua nos seus
“transmundos”.

330»
2. Um pouco da história do
Português como disciplina escolar

Nesse momento do curso percebemos que é preciso por em discussão


mais pontualmente os diferentes fatores intervenientes no ensino da
Língua Portuguesa em nossas escolas. Esse ensino, cujo objeto a ser
aprendido é a nossa língua em suas modalidades – oral e escrita,
resulta de um conjunto de fatores que, como nos mostra Soares
(1998), precisam ser conhecidos por todos os responsáveis pelo
processo ensino-aprendizagem, com vistas à capacitação para a
transposição didática nos eixos de ensino da oralidade, da leitura, da
escrita e da gramática (ou da análise linguística, na terminologia
atual).

Que importância tem para a formação dos graduandos em Letras


conhecer e refletir sobre as circunstâncias sócio-históricas do currículo
de Língua Portuguesa? Uma primeira razão para que conheçamos e
reflitamos sobre o contexto sócio-histórico da disciplina que estudamos
e/ou lecionamos é que fazemos parte dele. E como parte que somos,
agimos movidos por concepções, sobre as quais nem sempre estamos
conscientes de que são as mais pertinentes para nós e para os outros.

No caso do ensino de língua materna, consciente ou


inconscientemente, somos movidos por uma, ou mais de uma
concepção de língua. A disciplina de Metodologia do ensino da Língua
Portuguesa é um espaço construído por professores e alunos com
vistas também à reflexão sobre as diferentes concepções de língua

»331
subjacentes ao ensino (já mencionadas anteriormente), com ênfase
para as relações entre linguagem e sociedade, bem como para a
responsabilidade social que assumimos quando nos propomos a ser
professores e professoras de Língua Portuguesa.

Cabe, então, a indagação a nós mesmos sobre que professores de


Língua Portuguesa desejamos formar/ser?

A partir do final da década de 80 e início da década de 90, como nos


mostra Soares (1998), passamos a adotar uma concepção de língua
como discurso, pautados nos movimentos das ciências do domínio da
linguagem como a Linguística, a Sociolinguística, a Psicolinguística, a
Linguística Textual, a Pragmática, a Análise do Discurso, cujas
mudanças no nosso modo de ver a língua nos possibilitaram pensar um
currículo para o ensino de Língua Portuguesa que vislumbrasse a
linguagem como instrumento de inserção social e como constituinte de
identidades sociais.

A par desse novo quadro, o papel da disciplina Metodologia do ensino


de língua é, pois, formar um professor reflexivo, capaz de questionar
sua prática em sala de aula a partir de suas próprias concepções de
língua e de ensino da língua materna, não mais reduzindo o fazer
docente ao trabalho sistemático com a gramática descontextualizada.
Nessa perspectiva, o trabalho do docente volta-se à linguagem como
atividade discursiva e, sendo assim, deve considerar o que acontece
com a língua na vida de seus usuários.

332»
Muitas são as necessidades de uma sociedade que vivencia intensas
mudanças e a Escola é parte também desse mundo em permanente
transformação. Nada mais justo do que todos os atores sociais que
fabricam o cotidiano da escola reclamarem por condições materiais
efetivas ao sucesso escolar, sobretudo pelo subsídio das novas
tecnologias de ensino. Mas de nada adianta, para nós professores e
professoras de Língua Portuguesa, dotar as nossas escolas de bens
tecnológicos da sociedade da informação, se não avançarmos em
relação às nossas concepções, se continuarmos presos à visão da
gramática tradicional alheios à diversidade linguística do nosso povo,
se permanecermos apáticos diante da importância da leitura das
produções culturais hodiernas, verbais e não verbais, de nossos
escritores e artistas eruditos ou populares.

Em síntese, o contexto sociohistórico no qual se insere a proposta


curricular para o ensino de Língua Portuguesa deve ser parte
fundamental na formação dos professores dessa disciplina, porque
auxilia a compreensão de alguns aspectos do fracasso escolar ainda
existente nos dias atuais.

Os quadros, a seguir, oferecem uma breve visão histórica da escola e


do ensino da língua, no Brasil.

Brasil colônia A função do ensino de LP era o


até meados do
século XVIII reconhecimento das normas da língua
portuguesa, cujo nível de ensino restringia-
se à alfabetização para, depois, os
privilegiados prosseguirem a sua

»333
escolarização através do latim – gramática
da língua latina, da retórica e da poética.

• Ensino de LP obrigatório (Portugal e Brasil)

• Ensino mantido na tradição do latim.


Reforma
Pombalina • Definiu-se e realizou-se como estudo de
(1759) gramática do português paralelamente ao ensino
da retórica e da poética, até fins do século XIX.

• Estudo da gramática e da leitura: compreensão


e imitação de autores brasileiros.

• Os manuais didáticos (até os anos 40) – uma


gramática e uma antologia.

• Algumas gramáticas perduraram até a década


de 60/70, com várias reedições.

• Nos anos 50 e 60: gramática e antologia


passam a constituir um só livro, inicialmente
como partes independentes. Em seguida,
gramática e textos integrados.

• Os textos a serviço da gramática.

• Acesso à escola pelos mais privilegiados.

• Usuários da “norma padrão culta”.

• Norma usada e mantida pela escola.

• Função do Ensino de LP: o reconhecimento das


normas/regras de funcionamento do dialeto de
prestígio.
Anos 50
• Ensino de Gramática. A respeito da língua.

334»
• Textos literários: desenvolvimento de
habilidades de leitura e escrita.

• Os manuais didáticos (até os anos 40) – uma


gramática e uma antologia.

• Uma concepção de língua como sistema.

• Princípio do ensino: ensinar e reconhecer o


sistema linguístico, ou apresentando e fazendo
aprender a gramática da língua, ou usando
textos para buscar neles estruturas linguísticas
que eram submetidos à análise gramatical.

• Uma nova concepção de língua para ensino do


português articulada a novas condições
sociopolíticas.

• Consolidação da democratização da escola


Anos 60
iniciada na década anterior.

• Acesso das camadas populares à escola.

• Presença de novos padrões culturais e


linguísticos.

• Condições sociopolíticas: Regime militar que


buscava a expansão do capitalismo industrial.

• Demandas para a escola: recursos humanos


para a expansão.

• Objetivo do ensino de 1 e 2 graus: introdução


da qualificação para o mercado de trabalho.

• Os conteúdos curriculares do ensino de Língua


Anos 60 e 70 Portuguesa e seus objetivos: sentido

»335
fundamentalmente instrumental.

• As denominações desse ensino: ao invés de


Português ou Língua Portuguesa, Comunicação e
Expressão (1 grau); Comunicação em Língua
Portuguesa (nas quatro últimas séries do 1
grau); no 2 grau, manteve-se Língua Portuguesa
acrescida de Literatura Brasileira.

• Lei que instituiu o novo ensino: n 5692/71 –


língua nacional “como instrumento de
comunicação” e como expressão da cultura
brasileira (ênfase acrescentada).

• Caráter instrumental e utilitário do ensino da


língua.

• Quadro referencial do ensino: Teoria da


Comunicação.

• Concepção de língua: língua como instrumento


de comunicação.

• Ao invés de os objetivos do ensino-


aprendizagem da Língua Portuguesa enfatizarem
a gramática e o texto – o bem falar e o bem
escrever -, passam a enfatizar objetivos
pragmáticos e utilitários.

• Para desenvolver e aperfeiçoar


comportamentos dos alunos como emissor-
codificador; recebedor/decodificador de
Anos 70
mensagens.

• O saber a respeito da língua é substituído pelo


uso instrumental da língua – expressar e

336»
compreender mensagens.

• Presença nos manuais didáticos além dos


textos literários, e talvez sobretudo: textos
informativos, textos jornalísticos, publicitários e
não só de textos verbais, mas também de textos
não verbais: cartazes de publicidade e
propaganda, charges, histórias e quadrinho,
símbolos.

• Ênfase em desenvolvimento de expressão oral


– exercícios de língua oral em seus usos
cotidianos.

• Desprestígio da gramática: a concepção de


língua vigente relega a segundo plano a
aprendizagem da estrutura e funcionamento da
língua como sistema.

• Instauração da polêmica: ensinar ou não


ensinar gramática no Ensino Fundamental.

• Ênfase nos elementos do processo de


comunicação.

• Substituição da gramática pela Teoria da


Comunicação, que perdurou até os anos 70 e os
primeiros anos da década de 80.

Anos 80 • Crise do quadro referencial anterior: segunda


metade de 80.

• Eliminação das denominações Comunicação e


Expressão e Comunicação em Língua Portuguesa

»337
Final dos anos e recuperação da denominação Português.
80 e anos 90
• Defesa da volta do ensino tradicional / Crítica à
ineficiência da língua.

• Contexto político e ideológico:


redemocratização do país.

• Novas referências teóricas para o ensino de


Final dos anos língua materna: Linguística, Sociolinguística,
80 e anos 90 Psicolinguística, Linguística Textual, Pragmática,
(cont.)
Análise do Discurso.

• Nova concepção de gramática – gramática da


língua falada e da língua escrita.

• Nova concepção de texto. Gramática do texto


– que ultrapassa o nível da palavra e da frase,
com nova orientação para o ensino de leitura e
da produção de texto.

• Uma nova concepção de língua: língua como


enunciação, discurso, não apenas como
comunicação.

• Consideração dos falantes e produtores de


textos – suas relações com a língua oral e
escrita. As relações da língua com o contexto de
uso, com as condições sócio-históricas..

• Mudanças no ensino de leitura e escrita:


processos de interação autor-texto-leitor, em
determinadas circunstâncias de enunciação e no

338»
quadro das práticas socioculturais
contemporâneas de uso da escrita.

• Alteração das atividades de desenvolvimento


da linguagem oral – sentidos produzidos em
situações discursivas específicas.

• Crítica à teoria associacionista da Psicologia até


então vigente no quadro teórico.

• Teoria Genética e Psicolinguística nesta


fundamentada: novo marco teórico a partir da
segunda metade da década de 80.

• Essas novas teorias da aprendizagem somam-


se às novas concepções de língua, de gramática
e de texto e alteram o ensino de língua.

• O aluno: de sujeito passivo, dependente de


estímulos externos, (associacionismo psicológico)
passa a sujeito ativo que produz textos orais e
escritos em situações de interação com os outros
e com a língua, nas práticas discursivas. Constrói
conhecimentos e habilidades linguísticos.

• Científica – recorte para a constituição de


uma disciplina curricular.

• Psicológica – considera os processos de


aprendizagem de um conteúdo específico.
PERSPECTIVAS
DO ENSINO • Política – pressupostos ideológicos, que
instituem certo conteúdo em disciplina curricular,
que subjazem aos objetivos e procedimentos de
ensino.

»339
• Social – considera as condições de produção
de um conhecimento específico, condições sociais
dos alunos e professores, papéis atribuídos à
escola.

• Cultural – relaciona a disciplina e seu


conteúdo a aspectos socioculturais do grupo a
quem se destina: características, expectativas...

• Histórica – reconstrói o processo de histórico


de configuração de certo conhecimento em saber
escolar e de sua constituição em disciplina
escolar.

Ao invés de dissertarmos sobre os tópicos ilustrados nos quadros


acima, sugerimos a Atividade 1, proposta à página xxxxxx, após
leitura atenta dos tópicos acima destacados, bem como pesquisa
complementar para informação adicional necessária à contextualização
mais apropriada dos fatos históricos mencionados.

2.1 Da Lei 5.692 à Lei 9.394

Resgatando a história da escolarização do nosso idioma, é possível


observar que a escolha dos objetivos de ensino que são fixados
oficialmente reflete o movimento histórico da sociedade no que diz
respeito à construção das políticas públicas educacionais, pois essa
história nos mostra que não são as pessoas comuns quem escolhe este
ou aquele conteúdo de Língua Portuguesa a ser ensinado na escola.

340»
Somente o poder público tem força para legitimar os objetivos de
ensino nos diferentes níveis – Educação Infantil, Ensino Fundamental,
Ensino Médio, Ensino Superior, assim como o fez a lei 5692/71 ao
eleger o objetivo de ensinar a língua nacional como “instrumento de
comunicação” e “expressão do pensamento” da cultura brasileira e
como o fizeram recentemente os Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCN) - documento oficial que diz o que precisamos ensinar, como
precisamos ensinar, com que objetivos devemos ensinar, pautando-se
na concepção de Língua como interação.

Observe o trecho da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional,


refletindo sobre dois aspectos, de modo especial:

»341
O Artigo 1º. Estabelece como objetivo geral que o ensino proporcione
ao educando “a formação necessária ao desenvolvimento de suas

342»
potencialidades”, as quais promovam “qualificação para o trabalho e
preparo para o exercício consciente da cidadania”.

Ao pensarmos no ensino de Português, devemos, assim, perceber a


importância e o escopo da noção de competência comunicativa de que
já tratamos (vide seção 1.1) e remetemos você, leitor, ao que foi visto
no primeiro período do curso a distância (E-Letras) na disciplina Prática
de Ensino e Pesquisa (volume 1), que destaca a necessidade de que as
aulas de Português devem atender às demandas impostas pelas
práticas comunicativas da sociedade atual.

O plano de curso proposto para o ensino do idioma materno deverá,


portanto, contemplar aspectos da língua imprescindíveis ao
desenvolvimento de habilidades próprias dessas práticas comunicativas
da atualidade.

Tais diretrizes exigiram uma mudança de paradigma nas práticas de


ensino, o que depende também de um movimento nas políticas
públicas nacionais, no sentido de estabelecer os parâmetros a serem
seguidos, de modo a garantir o sucesso do objetivo geral do ensino,
estabelecido pela Lei 5.692 mencionada.

Nesse paradigma, ler e escrever são, assim, duas habilidades


linguístico-cognitivas bem mais complexas do que a capacidade de
codificação e decodificação na língua materna resultante do processo
de alfabetização porque passam os indivíduos escolarizados.

»343
A Lei 5.692, de 11 de agosto de 1971, fixou diretrizes e bases para o
ensino de 1º e 2ª graus, tendo sido revogada pela Lei 9.394, de 20 de
dezembro de 1996 (confira em <http://portal.mec.gov.br/setec/
arquivos/pdf1/proejalei9394.pdf>), a qual passou a estabelecer
redirecionamento para as diretrizes e as bases da educação Nacional e
encontra-se em vigor até hoje com o documento denominado
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN).

Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN – Língua Portuguesa)


redefinem os objetivos do ensino da língua, passando a instruir para a
perspectiva da interação.

O trecho a seguir expressa claramente em que aspectos a mudança de


abordagem deve acontecer, a qual compreende a dimensão discursiva
da linguagem, que tem o “texto” por unidade básica da comunicação. A
metodologia de ensino da língua, a partir de então, deve se pautar na
criação de situações didáticas voltadas para o desenvolvimento de
habilidades comunicativas identificadas em usos possíveis de
linguagem em suas duas modalidades, fala e escrita, bem como da
efetiva compreensão textual.

Após a leitura do trecho dos PCN a seguir, sugerimos ao leitor a


realização da Atividade 2, página bbbb

“Interagir pela linguagem significa realizar uma atividade


discursiva: dizer alguma coisa a alguém, de uma determinada
forma, num determinado contexto histórico e em determinada

344»
forma, num determinado contexto histórico e em determinadas
circunstâncias de interlocução. [...]

Tomando-se a linguagem como atividade discursiva, o texto


como unidade de ensino e a noção de gramática como relativa
ao conhecimento que o falante tem de sua linguagem, as
atividades curriculares em LP correspondem, principalmente, a
atividades discursivas: uma prática constante de escuta de
textos orais e escritos, que devem permitir, por meio da análise
e reflexão sobre os múltiplos aspectos envolvidos, a expansão e
construção de instrumentos que permitam ao aluno,
progressivamente, ampliar sua competência discursiva. Deve-se
ter em mente que tal ampliação não pode ficar reduzida apenas
ao trabalho sistemático com a matéria gramatical. Aprender a
pensar e falar sobre a própria linguagem, realizar uma atividade
de natureza reflexiva, uma atividade de análise linguística
supõe o planejamento de situações didáticas que possibilitem a
reflexão não apenas sobre os diferentes recursos expressivos
utilizados pelo autor do texto, mas também sobre a forma pela
qual a seleção de tais recursos reflete as condições de produção
do discurso e as restrições impostas pelo gênero e pelo suporte.
Supõe, também, tomar como objeto de reflexão os
procedimentos de planejamento, de elaboração e de refacção16
dos textos.
PCN – Língua Portuguesa (pp.20; 27-28). <http://portal.mec.gov.br/
index.php?option=com_content&view=article&id=12598%3Apublicoes
&Itemid=859>.

16
No original: “Por refacção se entendem, mais do que o ajuste do texto aos
padrões normativos, os movimentos do sujeito para reelaborar o próprio texto:
apagando, acrescentando, excluindo, redigindo outra vez determinadas
passagens de seu texto original, para ajustá-lo à sua finalidade”.

»345
3. Objetivos do ensino

Como vimos, no final do século XX, os Parâmetros Curriculares


Nacionais redefiniram o objetivo do ensino de Português, causando um
verdadeiro “reboliço” nas escolas. Sobre o lastro da concepção de
linguagem como ação intersubjetiva, a prática de ensino então exigiu a
focalização das atividades de leitura e de escrita voltadas para o
desenvolvimento de competências de uso da língua, devolvendo ao
aluno a posição de sujeito do processo de aprendizagem.

Com base no exposto até esse ponto, temos, assim, o ensino de Língua
e Literatura como o espaço de “ocupações pedagógicas” capazes de e
responsáveis por formar cidadãos que se apropriaram da linguagem
verbal de modo a asseverar a liberdade de expressão e, ao mesmo
tempo, fugir à alienação, quando a aprendizagem resultar no
desenvolvimento da capacidade reflexiva

Para tanto, o ensino não pode ficar restrito ao sistema linguístico,


conjunto de regras gramaticais, objetivando a produção correta de
enunciados construídos nos padrões da norma culta. Também não
pode o ensino de Literatura se restringir à identificação do sistema de
obras e de seus autores, ou confundir-se com a história literária
unicamente.

Ambas, Língua e Literatura devem substanciar uma prática pedagógica


crítica e transformadora, que transcenda a tradição dominante da
crença no domínio técnico sobre a existência humana. Defendemos a

346»
dimensão polissêmica da palavra como direito à ação intencional do
fazer sentido, para si e para o outro.

Os PCN destinados ao ensino de língua materna claramente estabelece


as mudanças de concepção que afetam a metodologia, como pode ser
visto nos trechos a seguir:

“O caráter sociointeracionista das linguagens verbal aponta


para uma opção metodológica de verificação do saber
linguístico do aluno, como ponto de partida para a decisão
daquilo que será desenvolvido, tendo como referência o valor
da linguagem nas diferentes esferas sociais.

A unidade básica da linguagem verbal é o texto, compreendido


como a fala e o discurso que se produz e a função comunicativa,
o principal eixo de sua atualização e a razão do ato linguístico.

O aluno deve ser considerado como produtor de textos, aquele


que pode ser entendido pelos textos que produz e que o
constituem como ser humano.o texto só existe na sociedade e é
produto de uma história social e cultural”.

(PCN – Língua Portuguesa (pp.18). <http://portal.mec.gov.br/


index.php?option=com_content&view=article&id=12598%3Apublicoes
&Itemid=859>)

»347
Para finalizar essa secao, sugerimos a Atividade 3 xxxx, (página xxx)
para discussão dos trechos ilustrados.

4. O aprendiz

“Nas situações vividas cotidianamente nas escolas,


Em cada classe, em cada aula, em cada atividade realizada,
São múltiplas as formas de aceitação, de resistência ou de
indiferença ao ensino,
Manifestadas de distintas maneiras pelos diferentes alunos.”
Jaime Cordeiro 17

Muitas são as razões que levam o aprendiz à indiferença ou mesmo à


resistência às atividades propostas em situações formais de
aprendizagem.

Diferentemente do que acontece com a língua estrangeira, estudar o


Português tem como ponto de partida um aspecto fatalmente
estimulante à indiferença do aluno que sabe ser a disciplina o seu
próprio idioma, aquela mesma língua do cafezinho com bolo de fubá ou
seria do hot dog com coca-cola?!

Essa situação negativa manifesta-se como pré-condição à interlocução


que acontece entre docente e aprendiz: de um lado, aquele
acreditando poder oferecer, numa experiência pedagógica prazerosa e

17
Jaime Cordeiro, em livro intitulado Didática, 2009, p.21.

348»
cheia de descobertas, o idioma comum aos dois, professor e aluno; do
outro lado, este último, quando usuário do não-padrão linguístico,
experimentando um processo de auto-conscientização de que o
“Português são dois!” (como brilhantemente definiu o poeta
Drummond) e, quando é o aluno usuário mais proximamente do
padrão linguístico, esses “encontros” funcionam como um dispositivo
acionador de sua consciência revelando que “não sabe Português, essa
língua difícil de aprender!”

Ao destacar esse cenário pretendemos realçar a importância da


“experiência pedagógica” naquilo que ela tem de mais subjetivo, qual
seja, a subjetividade humana.

4.1 O aprendiz/falante do idioma


materno

Propomos, agora, que observemos a indiferença ou mesmo a


resistência do aluno ao estudo do idioma materno como resultado de
uma metodologia de ensino que insiste em se manter distante não só
da atualização conceitual propiciada pelo desenvolvimento da
Linguística Aplicada, mas também indiferente aos alertas feitos há mais
de uma década pelos pesquisadores.

Observe o que disse Geraldi, em 1997:

“Acredita-se ainda que o processo de ensinar está em definir.


Tal orientação claramente privilegia o aprendizado da

»349
metalinguagem da língua ou, quando muito, o aprendizado de
exercícios estruturais de aplicação de noções e categorias.
Privilegia o raciocínio sobre a abstração e consequentemente
sobre o aspecto formal, universal, uno e regular da língua em
detrimento do raciocínio sobre o concreto, o historicamente
definido, o aspecto múltiplo e contraditório da língua enquanto
discurso e enunciação. Que o ensino da língua não se confunde
com o ensino da gramática, não é lícito contestar. Porque uma
coisa é saber a língua, isto é, dominar as habilidades de uso da
língua em situações concretas de interação, entendendo e
produzindo enunciados, percebendo as diferenças entre uma
forma de expressão e outra. Outra coisa é saber analisar uma
língua dominando conceitos e metalinguagens a partir dos
quais se fala sobre a língua.

No entanto, é de definições, de classificações, de preceitos


dogmáticos que se entretece todo este ensino. Em todo esse
longo e penoso curso de trabalhos que nos consomem o melhor
do tempo nos primeiros anos de estudo regular, não se sente,
não há, não passa o mais leve movimento de vida. Só línguas
mortas são retratáveis num corpus fechado de regras. Desta
falsíssima preocupação de ensinar a língua viva do nosso berço
como os idiomas extintos, dos quais só pelos livros se pode
adquirir o cabedal, procede esse monstruoso sistema, que,
torturando a puerícia, não lhe deixa no entendimento uma
infinitésima partícula sequer de saber útil.

Confunde-se estudar a língua com estudar Gramática, e a


gramática, tal qual de ordinário se cursa nas escolas, não só

350»
não interessa à infância, não só, enquanto aos benefícios que se
lhe atribuem, se reduz a uma influência totalmente negativa,
senão que onde atua positivamente, é como elemento de
antagonismo ao desenvolvimento intelectual do aluno.

Todo o menino que vem sentar-se nos bancos de uma escola


traz consigo, sem consciência de tal, o conhecimento prático
dos princípios da linguagem, o uso dos gêneros, dos números,
das conjugações, e, sem sentir, distingue as várias espécies de
palavras. É a gramática natural, o sistema de regras que
formam a estrutura da língua, e que os falantes interiorizam
ouvindo e falando.

De duas perspectivas diferentes pode ser encarada, então, uma


língua: ou ela é vista como instrumento de comunicação, como
meio de troca de mensagens entre as pessoas, ou é ela tomada
como objeto de estudo, como um sistema cujos mecanismos
estruturais se procura identificar e descrever. Resultam daí dois
objetivos bem diferentes a que se pode propor um professor no
ensino de uma língua: ou o objetivo será desenvolver no aluno
as habilidades de expressão e compreensão de mensagens – o
uso da língua – ou o objetivo será o conhecimento do sistema
linguístico – o saber a respeito da língua.

(GERALDI, João Wanderley. Portos de passagem. 4.ed. São Paulo:

Martins Fontes, 1997. p. 118-119)

Contudo, o objetivo do ensino de Português não pode ficar esquecido


diante do entusiasmo que palavras como essas, do professor Geraldi,
provocam em qualquer professor ocupado e preocupado com o aluno

»351
em primeiro lugar. Pois desenvolver competências é aliar/conjugar
conhecimento teórico a conhecimento procedimental única forma
favorável ao aprender.

4.2 Aprendendo com a Literatura

Em Teoria da Literatura I e II, você, futuro professor de Literatura no


Ensino Médio, entra em contato com autores diversos para refletir
sobre a Literatura. E quais discussões o referido campo teórico de
conhecimento quer fomentar? Com qual objetivo? Quanto dessa
discussão será objeto de ensino na escola?

Imagine, agora, que ao entrar na adolescência o jovem se vê diante de


uma nova disciplina no seu currículo escolar, pois é ao ingressar no
Ensino Médio que lá estão o professor de literatura e a Literatura,
declarada como disciplina do currículo escolar, com o mesmo status de
qualquer outra e separada do tratamento à língua portuguesa.

Perder de vista a trilha deixada pela abordagem sociointeracionista


discursiva no momento de ensinar Literatura é desprezar a importância
da inserção do jovem no universo literário com a descoberta da
literariedade. Quando compreendemos a Literatura como instrumento
valioso para ampliação da percepção de mundo do aprendiz,
assumimos que é preciso “letrar” o indivíduo, mobilizando-o a
desenvolver sua competência leitora, despertada para a densa,
múltipla e complexa rede de sentidos do texto literário.

352»
“A palavra serve para comunicar e interagir. E também para
criar literatura, isto é, criar arte, provocar emoções, produzir
efeitos estéticos. Estudar literatura implica apropriar-se de
alguns de seus conceitos básicos, mas também deixar o espírito
leve e solto, pronto para saltos, voos e decolagens”.
CEREJA, William Roberto e MAGALHÃES, Thereza Cochar. Literatura
brasileira: ensino médio. São Paulo: Atual, 2005.

Vejamos o que diz Ilari (1997) a respeito dos estudos literários no


ensino básico:

“A utilização de modelos linguísticos na análise literária e a


crença de que eles possam levar a uma descrição “mais
científica” das obras poéticas constitui um dos mitos mais
fortemente arraigados na prática crítica atual. A força dessa
opinião não se deve apenas ao sucesso com que o
estruturalismo europeu divulgou a imagem da Linguística como
campo interdisciplinar por excelência, mas ainda a uma
concepção de origem menos linguística do que literária,
segundo a qual a obra resulta da manipulação consciente de
material verbal, oferecendo em primeira instância ao leitor e ao
crítico um objeto construído e não um veículo de informações. A
convergência dessas duas teses teve consequências óbvias: se
a literatura é a arte dos objetos verbais, é na Linguística,
ciência do verbal, que devemos procurar os meios de um
conhecimento efetivo desses objetos: e todas as liberdades de
análise parecem abrir-se ao estudante e ao crítico que se
sujeita a uma rápida e prévia ascese linguística.

»353
[...]

Ao incluirmos a Linguística nesta lista aberta de recursos


heurísticos relativizamos historicamente sua contribuição: ela
nos permite descrever alguns aspectos e efeitos do fenômeno
literário, mas seria gratuito esperar que os explique, ou que
eles sejam os únicos dignos de nota. Em face do texto literário,
depois de dois mil anos de “ciência de literatura”, é provável
que estejamos tão desamparados como os cegos da parábola
que, pela primeira vez, encontram o elefante nas ruas de Jericó;
um elefante não é igual à soma de suas presas, orelhas,
ilhargas, pernas, tromba e cauda, mas se identifica ainda menos
com cada uma dessas partes, e, se os seis cegos de Jericó, em
vez de defenderem cada um seu ponto de vista pessoal (se é
que se pode falar em ponto de vista de um cego) tivessem
procurado montar juntos uma imagem global, teriam
provavelmente ganho a consciência de complexidade do objeto
e da sua própria cegueira. Um texto literário não é apenas
projeção psicológica, representação social ou constante
estatística, mas também não se limita ao mero jogo de
palavras; é por perderem de vista esta verdade banal que
muitos críticos reduzem sua tarefa a um paciente trabalho de
relojoaria, cujos resultados eram previsíveis de antemão, quer
se trate da identificação, no objeto, da grille segundo a qual foi
examinado, quer se trate da constatação de que a grille não é o
texto, e que alguns fatores peculiares deste foram perdidos nas
malhas da rede...”.
ILARI, Rodolfo. A linguística e o ensino da língua portuguesa. 4.ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1997. P. 111 – 112; 115-116)

354»
No viés da estreita relação entre literatura e imaginação, o professor
pode oferecer aos seus alunos e alunas a possibilidade de escolha de
sentidos, das leituras possíveis, do usufruto da “arte” cumprindo o seu
papel de proporcionar prazer ou mesmo aliviar as tensões da alma
humana, como nos provoca Veríssimo:

As funções da Literatura

“Lembro-me de que certa noite – eu teria uns quatorze anos,


quando muito – encarregaram-se de segurar uma lâmpada
elétrica à cabeceira da mesa de operações, enquanto um
médico fazia os primeiros curativos num pobre-diabo que
soldados da Polícia Municipal haviam “carneado” [...] Apesar do
horror e da náusea, continuei firme onde estava, talvez
pensando assim: se esse caboclo pode aguentar tudo isso sem
gemer, por que não hei de ficar segurando esta lâmpada para
ajudar o doutor a costurar esses talhos e salvar essa vida? [...]

Desde que, adulto, comecei a escrever romances, tem-me


animado até hoje a ideia de que o menos que o escritor pode
fazer, numa época de atrocidades e injustiças como a nossa, é
acender a sua lâmpada, fazer luz sobre a realidade de seu
mundo, evitando que sobre ele caia a escuridão, propícia aos
ladrões, aos assassinos e aos tiranos. Sim, segurar a lâmpada, a
despeito da náusea e do horror. Se não tivermos uma lâmpada
elétrica, acendamos o nosso toco de vela ou, em último caso,

»355
risquemos fósforos repetidamente, como um sinal de que não
desertamos nosso posto”.
VERÍSSIMO, Érico. Solo de clarineta. Porto Alegre: Globo, 1978. v.1.
(Fragmento), retirado de ABAURRE, Maria Luiza M. Literatura Brasileira:
tempos, leitores e leituras. volume único. São Paulo: Moderna, 2005. p.
14-15.

Nas palavras de Veríssimo, a Literatura representa uma instância


política e social insubstituível, que transforma autor e professor em
aliados.

E assim, ao professor de Literatura cabe desvelar as funções dessa


arte, na sociedade, provocando a reflexão sobre as inquietações dos
seres humanos.

5. Unidades básicas do ensino

No final do século XX, os Parâmetros Curriculares Nacionais


redefiniram o objetivo do ensino de Português, causando um
verdadeiro “reboliço” nas escolas. Sobre o lastro da concepção de
linguagem como ação intersubjetiva, a prática de ensino então exigiu a
focalização das atividades de leitura e de escrita voltadas para o
desenvolvimento da “competência comunicativa” do aluno, devolvendo
a este a posição de sujeito do processo de aprendizagem.

Assim, a metodologia do ensino de Português redimensionou suas


unidades básicas enquanto práticas efetivas de leitura, escrita e análise

356»
linguística (ou gramatical), sem perder de vista as necessidades
comunicativas do cidadão, para além dos muros da Escola18.

Essa nova orientação alça a leitura a um patamar privilegiado e


distante daquele constituído pela concepção mentalista de linguagem
(a língua como espelho do pensamento), uma vez que compreende o
papel do professor de língua e literatura na construção do leitor
capaz de apreender criticamente a realidade. Há, portanto, um
redimensionamento epistemológico da atividade de compreensão
textual.

Sobre a prática de análise linguística, ensimesmada por tradição, os


novos parâmetros sugerem a sua integração à pratica de produção
textual, ao passo que desvela fenômenos da oralidade interferentes na
escrita. A atividade de reescrita é, pois, o liame entre essas duas
unidades: produção textual e análise linguística.

18
Visite os endereços na internet listados abaixo, objetivando não só conhecer
os PCN, mas também identificar as orientações específicas para o ensino de
Português e de Literatura.
• Ministério da Educação e Cultura
<http://portal.mec.gov.br>;
• Parâmetros Curriculares Nacionais em Ação 1ª a 4ª séries
<http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id
=12640%3Aparametros-curriculares-nacionais1o-a-4o-series&catid=195%
3Aseb->;
• Parâmetros Curriculares Nacionais em Ação 5ª a 8ª séries
<http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id
=12657%3Aparametros-curriculares-nacionais-5oa8oseries&catid=195%
3Aseb-educacao-basica&Itemid=859 educacao-basica&Itemid=859>;

• Parâmetros Curriculares Nacionais em Ação Ensino Médio


<http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id
=12598%3Apublicacoes&Itemid=859>.

»357
Para o ensino da Literatura, o propósito é fazer acontecer a
interlocução autor-texto-leitor, capaz de conduzir o aprendiz na
identificação do universo social de cada obra, ao mesmo tempo em que
desenvolve a percepção da realidade.

Ao se fundar nas noções de domínios discursivos e competência


comunicativa, a metodologia de ensino redimensiona a ação
pedagógica que para ser eficaz deve mobilizar todos os sujeitos
participantes do processo de ensino-aprendizagem.

Nas palavras da professora-pesquisadora Beth Marcuschi (2010),


temos:

“Em função das práticas sociais em que se acham inseridos e


que os constituem, os domínios discursivos acabam construindo
para o produtor de texto condições de elaboração textual
diferenciadas e, consequentemente, dele exigem um uso não
homogêneo de estratégias discursivas no encaminhamento da
elaboração escrita. Esse encaminhamento deve considerar o
gênero textual focalizado, o leitor presumido, o objetivo da
produção, o registro e o suporte em que o texto irá circular no
espaço social, entre outras características de natureza
discursiva. Este conjunto de condições acaba também
repercutindo nas decisões a serem tomadas pelo escritor
quanto aos mecanismos de gestão textual (planejamento,
avaliação, revisão, reescrita) e ao tratamento dispensado ao
tema. [...]

358»
Essas condições colocadas pelas práticas sociais à
aprendizagem do gênero textual impõem desafios, como
analisam Marcuschi, B. e Costa Val (2010) que precisam ser
enfrentados pela escola e pelo livro didático (sobretudo se for
levado em conta o espaço que o LDLP ocupa na sala de aula).
Na efetivação de um ensino que trate a escrita como um
processo de interlocução entre leitor, texto e autor, e, por este
caminho, posicione o trabalho com a produção textual em seu
universo de uso social, a inserção do estudo dos gêneros
textuais em práticas discursivas se impõe. Esses desafios
crescem em significado quando se sabe que as atividades de
escrita de texto desenvolvidas na escola sempre terão um
caráter mimético, pois suas propostas sugerem a imitação de
gêneros de circulação social, sem todavia conseguir preservar a
função sociocomunicativa do espaço de circulação original, que
é substituída pela função pedagógica (MARCUSCHI, B. e
CAVALCANTE, M.).

Com isso, se está afirmando, que o texto produzido na sala de


aula pelos alunos no âmbito da aprendizagem da escrita se
caracteriza como híbrido, pois é realizado à moda de um gênero
textual que circula nas práticas do contexto extraescolar (uma
reportagem, por exemplo) e, ao mesmo tempo, preserva as
características sociocomunicativas de natureza pedagógica do
gênero redação escolar.
(MARCUSCHI, Beth. Gêneros do domínio literário e midiático no livro
didático: aspectos da produção textual. In.: MOURA, Vera;
DAMIANOVIC, Maria Cristina; LEAL, Virgínia. O ensino de línguas:
concepções & práticas universitárias. Recife: Ed. Universitária da UFPE,
2010. p.63; 65-66)

»359
6. Penúltimas palavras

Quando, no primeiro momento do curso (tópico 1), pensamos o que


significa “transver” a prática de ensino em busca da compreensão de
que o que fazemos na sala de aula na verdade é resultado das nossas
concepções – sobre o ensino, sobre a língua, sobre os fenômenos de
linguagem objeto do ensino – buscamos construir condições
necessárias de compreensão dos “objetivos”e das “unidades básicas”do
ensino, apresentados nos tópicos 3 e 5 de nossa exposição, já que são
estes aspectos essenciais ao planejamento de curso de todo e qualquer
professor.

Em “História do Português como disciplina escolar” (tópico 2, de nosso


conteúdo), você pode observar os caminhos que levaram a prática de
ensino de língua materna às condições atuais, pelo entendimento das
determinações políticas necessárias às transformações metodológicas a
par dos desenvolvimentos teóricos capazes de lançar luz sobre os
problemas reais existentes no dia-a-dia da sala de aula.

A compreensão desses aspectos são etapas fundamentais à formação


do professor, a qual deve estar perpassada pelos conteúdos teóricos
substanciais para qualquer profissionalização. Pensando assim,
observem que o tópico 4 completa a tríade indispensável à qualquer
proposta de ensino:

360»
Vejam, a seguir, uma sinopse do que esperamos de cada um de vocês,
alunos e alunas do E-Letras ou professores em formação, como
“movimento de/ou para a aprendizagem”:

• De quais conhecimentos específicos sobre a língua portuguesa ou


sobre a literatura já nos apropriamos até esse momento, enquanto
refletimos sobre a prática docente? Deve ser esta uma pergunta
constante em nossas vidas como profissionais da linguagem verbal.

• Toda metodologia de ensino articula uma opção política com os


mecanismos utilizados em sala de aula. É preciso estar consciente dos
nossos próprios posicionamentos teóricos e de seus rebatimentos em
nossa metodologia de ensino.

»361
• Opção política: envolve uma teoria de compreensão e interpretação
da realidade. Revela o universo de conhecimentos e crenças do
professor.

• Passos metodológicos (tópico 1.2), Geraldi (1997, p.40): conteúdos


definidos, enfoque que se dá a ele (teoria de base), estratégias de
trabalho com o aluno, bibliografia, sistema de avaliação,
relacionamento com os alunos.

• Objetivos comunicativos das produções de linguagem (tópico 1.3),


Brandão (1996, p. 11-12): “a linguagem enquanto discurso não
constitui um universo de signos apenas como instrumento de
comunicação ou suporte do pensamento; a linguagem enquanto
discurso é interação, e um modo de produção social; ela não é neutra
inocente (na medida em que está engajada numa intencionalidade) e
nem natural, por isso o lugar privilegiado de manifestação da
ideologia”(em “Introdução à análise do discurso”, São Paulo,
Campinas, Editora da Unicamp).

• As ciências da linguagem – Linguística, Sociolinguística,


Psicolonguística, Linguística Textual, Pragmática, Análise do Discurso –
nos possibilitaram pensar um currículo para o ensino de língua materna
que vislumbrasse a linguagem verbal (fala e escrita) como instrumento
de inserção social e como constituinte de identidades sociais.

• 1997: ano em que os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN)


redefinem os objetivos do ensino, instruindo-o na perspectiva da
interação.

362»
• A perspectiva histórica de observação da metodologia do ensino de
Português identifica 6 (seis) etapas marcantes: (i) Brasil Colônia até
meados do século XVIII, (ii) Reforma Pombalina, (iii) anos 50, (iv)
anos 60, (v) anos 80 e 90, e (vi) década de 90 à atualidade.

Para encerrar nossa conversa sobre o universo da metodologia de


ensino, reforçamos o alerta acerca da necessidade de se ter
conhecimento dos movimentos sociopolíticos aliados ao
desenvolvimento das teorias subjacentes ao fazer pedagógico,
aguçando nossa capacidade de percepção numa perspectiva
transdisciplinar, única forma de acompanhar a dinâmica da sociedade
sem ser confundido por ela.

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366»
Metodologia I
Dilma Tavares Luciano
Maria Lúcia Barbosa

ATIVIDADES

Atividade 1

Com base na leitura dos tópicos da seção 2, intitulada “Uma pouco de


história do Português como disciplina escolar”, responda ao que
se pede:

(i) No Brasil, durante 3 séculos, o ensino de Português foi


sinônimo de alfabetizar, para um público muito restrito e
privilegiado (Brasil Colônia até meados do século XVIII).
Que conhecimento sobre a língua e com qual objetivo
caracterizava-se o ensino de Português nessa época?

(ii) A reforma Pombalina – 1759 – representou um momento


de três mudanças no ensino de Português: uma delas de
natureza essencialmente política e as duas outras de
natureza metodológica. Identifique-as e comente sobre
cada uma.

(iii) Dois séculos se passaram da Reforma Pombalina para que


em apenas três décadas houvesse transformações

»367
significativas no ensino de Português no Brasil, com
interferências na organização política, nos objetivos e
conteúdos curriculares e mesmo na proposta metodológica
em sentido estrito. Identifique esses aspectos procurando
relacioná-los às diferentes concepções de língua no ensino
de Português, tratadas à luz da Linguística.

(iv) Toda crise gera oportunidade. É assim que pensamos no


ensino de Português, no final da década de 70. Comente.

(v) Em apenas duas décadas os diversos ramos da Linguística


provocaram mudanças significativas no ensino da língua
portuguesa, que abrangem praticamente todos os aspectos
da metodologia de ensino da língua: o quê, como, por que
e para que ensinar. Essa é a herança do século XX sobre a
qual ainda não nos apropriamos satisfatoriamente.
Identifique as mudanças e relacione à discussão ainda
atual sobre a “crise no ensino de Português”.

Atividade 2

Identifique no trecho dos PCN ilustrado à p. 41 e 42, a que “atividades


discursivas” o texto se refere e destaque qual o alerta apresentado
acerca do ensino de gramática.

368»
Atividade 3

Faça uma síntese do trecho dos PCN ilustrado à página 44.

Atividade 4

Algumas leituras devem ser consideradas imprescindíveis à discussão


bem abalizada sobre o que mudou no ensino de Português, no último
quarto de século. Sugerimos, então, os seguintes textos para reflexão
e recomendamos que se faça resumo dos mesmos:

TEXTO1: “Concepções de Linguagem e Ensino de Português”, de JOÃO


WANDERLEY GERALDI, em O texto na sala de aula, do mesmo autor,
São Paulo, Ática, 1997, p. 39-46.

TEXTO 2: MAGDA SOARES intitulado “Concepções de linguagem e o


ensino da Língua Portuguesa”, em NEUSA BARBOSA BASTOS (1998),
História, Perspectivas, Ensino. São Paulo: EDUC., pp 53-60.

TEXTO 3: A junção das duas leituras anteriores (Geraldi e Soares).

TEXTO 4: RODOLFO ILARI, no capítulo que se intitula “Aspectos do


Ensino do Vocabulário”, de seu livro A Linguística e o Ensino da
Língua Portuguesa, São Paulo, Martins Fontes, 1997 (p. 45-68).

TEXTO 5: LUIZ PERCIVAL LEME BRITTO, no texto “Em terra de


surdos-mudos (um estudo sobre as condições de produção de textos

»369
escolares)", em JOÃO WANDERLEY GERALDI (ORG.), no livro O Texto
na Sala de Aula, São Paulo, Ática, 1997 (pp 117-131).

Atividade 5

Em um breve texto de no máximo 15 linhas, responda: O que devemos


ensinar nas aulas de Português e de Literatura de modo a garantir que
estamos preparando o indivíduo ao exercício da cidadania?

Atividade 6

Como assegurar o compromisso de todos os envolvidos com a


Educação na “formação continuada”, para além do limite temporal
estabelecida com o final do curso de graduação?

Atividade 7

Leia o texto abaixo destacado e responda ao que se pede em seguida:

A importância da palavra para a literatura

“Amo tanto as palavras... As inesperadas... As que avidamente


a gente espera, espreita até que de repente caem... Vocábulos
amados... Brilham como pedras coloridas, saltam como peixes
de prata, são espuma, fio, metal, orvalho... Perigoso algumas
palavras... São tão belas que quero colocá-las todas em meu

370»
poema... Agarro-as no voo, quando vão zumbindo, e capturo-as,
limpo-as, aparo-as, preparo-me diante do prato, sinto-as
cristalinas, vibrantes, ebúrneas, vegetais, oleosas, como frutas,
como algas, como ágatas, como azeitonas... [...] Tudo está na
palavra... Uma ideia inteira muda porque uma palavra mudou
de lugar ou porque outra se sentou como uma rainha dentro de
uma frase que não a esperava e que a obedeceu ...”
NERUDA, Pablo. Confesso que vivi. Tradução: Olga Savary. Rio de
Janeiro: Difel, 1978. (Fragmento). Disponível em:
<http://www.releituras.com/pneruda_menu.asp. Acesso em: 24 ago.
2004>., retirado de ABAURRE, Maria Luiza M. Literatura Brasileira:
tempos, leitores e leituras. volume único. São Paulo: Moderna, 2005. p.
25.

Atividade 8

Passemos à observação de livros didáticos, com base na leitura dos


Parametros Curriculares Nacionais - Língua Portuguesa, (5ª. a 8ª.
série):

(i) escolha uma coleção de livros didáticos de Português e


identifique a organização das unidades básicas do ensino
quanto ao vocábulo e ao tratamento da poesia;

(ii) identifique a concepção de ensino e de língua subjacentes.

»371
372»
Ana Cláudia Tavares

FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO
374«
1. Introdução à Filosofia e História
da Educação

1.1 Antiguidade grega: a Paidéia

A educação grega estava centrada na formação integral – corpo e


espírito -, não obstante, de fato, a ênfase se deslocasse ora para o
preparo militar (Esparta), ora para o debate intelectual (Atenas). De
acordo com Franco Cambi (1999), um historiador da educação,

até seus ideais e modelos educativos se caracterizavam de


maneira oposta pela perspectiva militar de formação de
cidadãos-guerreiros, homogêneos à ideologia de uma sociedade
fechada e compacta, ou por um tipo de formação cultural e
aberta, que valorizava o indivíduo e suas capacidades de
construção do próprio mundo interior e social. Esparta e Atenas
deram vida a dois ideais de educação: um baseado no
conformismo e no estatismo, outro na concepção de paidéia, de
formação humana livre e nutrida de experiência diversas,
sociais mas também culturais e antropológicas.

Essa ênfase dada à formação integral deu origem a um conceito de


complexa definição – paidéia – palavra que teria surgido do século V
a.C., mas que exprimia um ideal de formação constante no mundo

»375
grego. O helenista Werner Jaeger, que escreveu uma obra intitulada
Paidéia, afirma:

não se pode evitar o emprego de expressões modernas como


civilização, cultura, tradição, literatura ou educação; nenhuma
delas, porém, coincide realmente com o que os gregos
entendiam por paidéia. Cada um daqueles termos se limita a
exprimir um aspecto daquele conceito global e, para abranger o
campo total do conceito grego, teríamos de emprega-los todos
de uma só vez.

Ao discutir os fins da paidéia, os gregos esboçaram as primeiras linhas


conscientes da ação pedagógica e assim influenciaram por séculos a
cultura ocidental. Questões como - o que é melhor ensinar?; como é
melhor ensinar?; para que ensinar – enriqueceram as reflexões dos
filósofos e marcaram diversas tendências pedagógicas.

Vale lembrar que a divisão clássica da filosofia grega está centralizada


na figura de Sócrates, pensador que veremos a seguir.

1.2 Sócrates e os sofistas

A palavra sofista, em sua etimologia, vem de sophos (sábio). Por isso,


em sua significação quer dizer “professor de sabedoria”. De forma
pejorativa, passou a designar quem faz uso de sofismas, ou seja, quem
emprega raciocínio capcioso, de má-fé, com intenção de enganar. Essa

376«
caracterização se deve às críticas de Sócrates e Platão à atitude
intelectual dos sofistas e ao costume solicitarem retorno financeiro por
suas aulas. Recentemente esse modo de pensar depreciativo foi
atenuado, redimensionando-se a importância da sofística para a
educação democrática.

Os sofistas foram os criadores da educação intelectual. Além disso,


estenderam a noção de paidéia: de simples educação da criança,
estendeu-se à formação contínua do adulto, capaz então de repensar
por si mesmo a cultura do seu tempo. Outra obra importante dos
sofistas refere-se à sistematização do ensino, por terem eles iniciado
os estudos de gramática, além de darem ênfase à retórica e à dialética.

Sócrates (469-399 a.C.) é um pensador emblemático na história da


filosofia. Comenta que a sabedoria começa pelo reconhecimento da
ignorância. Ele passava horas discutindo nos locais públicos de Atenas,
como praças e ginásios, onde interpelava os transeuntes, com
perguntas aos que julgavam entender determinado assunto. Mas
geralmente os deixava sem argumentos e obrigados a reconhecer o
não-saber.

O primeiro momento desse procedimento socrático denomina-se ironia


(do grego eironeia, “perguntar, fingindo ignorar”), processo negativo e
destrutivo de descoberta da própria ignorância. O segundo momento, a
maiêutica (de maieutiké, “relativo ao parto), é construtiva e consiste
“em dar à luz novas ideias”.

»377
Toda essa discussão, no entanto, não visa a um objetivo puramente
intelectual. O que Sócrates pretende é o reto conhecimento das
virtudes humanas. Ele busca o “intelectualismo ético”, isto é, a
identificação do sábio e do virtuoso, concomitantemente.

Desse princípio derivam diversas consequências para a educação, tais


como: o conhecimento tem por fim tornar a vida moral; o processo
para adquirir o saber é o diálogo; nenhum conhecimento pode ser dado
dogmaticamente, mas como condição para desenvolver a capacidade
de pensar; toda educação é essencialmente ativa e, por ser auto-
educação, leva ao conhecimento de si mesmo.

1.3 A Utopia de Platão

Diversamente de Sócrates, que era filho do povo, Platão nasceu em


Atenas (428-347 a.C.), assim apelidado talvez por possuir ombros
largos. Filho de pais aristocráticos e abastados. Temperamento artístico
e dialético – manifestação característica e suma do gênio grego – deu,
na mocidade, livre curso ao seu talento poético, que o acompanhou
durante a vida toda, manifestando-se na expressão estética de seus
escritos.

Aos vinte anos, Platão travou relações com Sócrates – mais velho do
que ele quarenta anos – e gozou por oito anos do ensinamento e da
amizade do mestre. Quando discípulo de Sócrates e ainda depois,
Platão estudou também os maiores pré-socráticos. Depois da morte do
mestre, Platão retirou-se com outros socráticos para junto de Euclides,
em Mégara.

378«
Daí deu início a suas viagens: visitou o Egito, de que admirou a
veneranda antiguidade e estabilidade política; a Itália meridional, onde
teve ocasião de travar relações com os pitagóricos (tal contato será
fecundo para o desenvolvimento do seu pensamento); a Sicília, onde
conheceu Dionísio, tirano de Siracusa. Caído, porém, na desgraça do
tirano pela sua fraqueza, foi vendido como escravo. Libertado graças a
um amigo, voltou a Atenas.

Em Atenas, pelo ano de 387 a.C., Platão fundava um dos ginásios de


ensino superior da cidade, a Academia. Adquiriu uma herdade, onde
levantou um templo às Musas, que se tornou propriedade coletiva da
escola e foi por ela conservada durante quase um milênio, até o tempo
do imperador Justiniano (529 d.C.).

Platão, ao contrário de Sócrates, interessou-se vivamente pela política


e pela filosofia política. Dedicou-se inteiramente à especulação
metafísica, ao ensino filosófico e à redação de suas obras, atividade
que não foi interrompida a não ser pela morte. Esta veio opera aquela
libertação definitiva do cárcere do corpo, da qual a filosofia – como
lemos no Fédon – não é senão uma assídua preparação e realização no
tempo. Morre Platão em 348 ou 347 a.C., com oitenta anos de idade.

Platão é o primeiro filósofo antigo de quem possuímos as obras


completas. A forma dos escritos platônicos é o diálogo, transição
espontânea entre o ensinamento oral e fragmentário de Sócrates e o
método estritamente didático de Aristóteles.

»379
No âmbito da educação, desenvolveu ideias avançadas para seu
tempo: o Estado assume a educação; a educação da mulher é
semelhante a do homem; valorização da educação intelectual, coroada
pelo estudo das ciências (com especial destaque para a matemática) e
pela dialética, processo que eleva a alma das aparências sensíveis às
ideias.

1.4 Aristóteles e o seu Realismo

Aristóteles (384-332 a.C.) nasceu na cidade de Estagira, ao norte da


Grécia. Dirigindo a Atenas, foi discípulo de Platão. Ele foi um expoente
da Escola Socrática. Como já vimos, esta por sua vez foi fundada por
Sócrates e era contrária aos sofistas. Inicialmente, a escola defendia
que a reflexão e a virtude eram fundamentais à vida. A Escola
Socrática continuou com Platão, que defendia a virtude e preservava os
ideais de bondade, beleza e justiça. Para ele, cada fenômeno terrestre
era reflexo do mundo das idéias, por isso foi considerado o “filósofo
ideal”. Enquanto, para Platão, as coisas concretas, em constante
movimento, são simples aparências, sombras da verdadeira realidade
do mundo das idéias, do mundo imóvel dos conceitos. Aristóteles
critica o idealismo do mestre e desenvolve uma teoria realista,
segundo a qual a imutabilidade do conceito e o movimento das coisas
podem ser compreendidos a partir das coisas mesmas, recusando,
portanto, o artifício do mundo das idéias.

Aristóteles se concentrava no estudo das mutações do mundo


material, ou seja, nascimento, transformação e destruição. Para ele, o

380«
real existia independentemente das idéias e para conhecê-lo era
necessário desenvolver a lógica. Partiu da observação de que, na nossa
experiência, não existem objetos ideais; quem existe e sofre
transformações são as coisas ou os viventes (chamados “entes”). Os
entes são o ponto de partida da metafísica Aristotélica em seu caminho
até o ser. Aristóteles utilizava a lógica para alcançar a precisão e
propunha restabelecer a unidade do homem consigo mesmo e com o
mundo.

Aristóteles, filho de Nicômaco, um médico famoso que atendia ao rei


Filipe da Macedônia, ficou órfão muito jovem e foi educado por
Proxeno, um amigo de família, logo mostrou interesse pela pesquisa
científica como o pai.

Aristóteles e Platão se encontraram e o entendimento entre ambos foi


tão grande que, aos dezessete anos, ele entrou para a Academia.
Permanecendo até a morte do mestre. Dizia Platão:

minha academia se compõe de duas partes: o corpo dos


estudantes e o cérebro de Aristóteles.

A influência de seu pai e a formação marcada pela Biologia fizeram


com que Aristóteles desenvolvesse um espírito agudo de observação.
Para o filósofo, a observação era justamente o primeiro passo para a
investigação da natureza. Agrupou os animais e plantas segundo suas
características principais (que chamou de substância), distinguido-as
das diferenças secundárias (a que denominou acidentes). Por fazer da
lógica a essência do seu trabalho, desenvolveu uma linguagem

»381
rigorosa, mais apropriada ao desenvolvimento das ciências da natureza
e bem distante das imagens e narrativas místicas de Platão.

Com a morte de Platão, Aristóteles saiu de Atenas e foi para Assos,


onde fundou com Hérmias a filial de uma Academia. Em Assos, casou-
se com Pýntia. Foi preceptor de Alexandre, filho de Filipe, o rei da
Macedônia, na época, Alexandre tinha 13 anos.

Após a morte de Filipe, Aristóteles voltou a Atenas. Fundou sua própria


escola – o Liceu. Dedicou-se ao estudo da Biologia, Física, Metafísica,
Ética e Política. Contando com professores especializados, o Liceu era
como um centro de estudo moderno.

O estagirista investiu no conhecimento da natureza e nela deteve-se


maravilhado diante do ser humano e de sua característica principal: a
racionalidade. Se a virtude é viver conforme a razão, cabe a esta
disciplinar os sentimentos e os instintos.

Nesse sentido, diferente de Sócrates, que relacionava saber e virtude,


Aristóteles enfatiza a ação da vontade, exercitada pela repetição, que
conduz ao hábito: só é virtuoso quem tem o hábito da virtude. Daí a
imitação ser o instrumento por excelência desse processo, segundo o
qual a criança se educa repetindo os atos de vida dos adultos,
adquirindo hábitos que vão formar uma “segunda natureza”. Vale
ressaltar, ainda, que até os nossos tempos, sempre foi marcante sua
influência na filosofia ocidental.

382«
1.5 Séculos XV e XVI – Renascimento,
Humanismo e Reforma

Contexto histórico

A Renascença européia compreende a retomada dos valores greco-


romanos, instituindo uma nova imagem do homem e do mundo, em
contraposição às concepções teológicas da Idade Média (caracterizada
como a “idade das trevas” ou “a grande noite de mil anos”). O retorno
às fontes da cultura greco-latina, sem a intermediação dos
comentadores medievais, é um procedimento que visa a secularização
do saber. O olhar do homem desvia-se do céu para a terra, para as
questões do cotidiano.

• Modelo Heliocêntrico (Copérnico);

• Desenvolvimento da Medicina (dissecação de cadáveres);

• Ênfase nas Artes (pintura, arquitetura, escultura e literatura);

• Descobertas: pólvora, imprensa, bússola, caminha para as


Índias, conquista da América.

Ideal da Formação

O gentil-homem: homem culto mundano que nega o ascetismo


medieval e busca os prazeres e alegrias do mundo, desde o luxo na
corte, o gosto pela indumentária cuidadosa, até os amenos deleites da
vida familiar.

»383
Busca da individualidade, caracterizada pela confiança no
poder da razão;

Ascensão da burguesia (Revolução Comercial) e


fortalecimento das Monarquias Absolutas.

Reforma

Manifestação religiosa do espírito do Renascimento. Luteranismo,


Calvinismo e Anglicanismo questionam a estrutura hierárquica e
decadente da Igreja. Contrariando as restrições católicas aos negócios
e aos juros, os protestantes vêem no enriquecimento um sinal do
favorecimento divino. Propõe a consulta direta do texto bíblico, sem a
intermediação da tradição, daí a necessidade de oferecer condições a
todos os homens da leitura e interpretação da Bíblia.

Antecedentes: o Cisma Grego (séc. XI) instituindo as igrejas


Romana e Ortodoxa, o Grande Cisma (séc. XIV)
entronizando dois papas, um na França, e outro em Roma;

Substrato: as heresias (séc. XII) que disseminaram pela


Europa com o renascimento das cidades.

Contra-Reforma

Diretrizes tomadas no Concílio de Trento (1545-1563), que reafirma os


princípios da fé e a supremacia papal. Para combater o protestantismo
incentiva-se a criação de ordens religiosas. Em 1534, é criada a mais
famosa delas, a Companhia de Jesus, por Inácio de Loyola (militar
espanhol que tornou-se “soldado de Cristo”). Com uma hierarquia

384«
especial, a Ordem estabelece rígida disciplina militar e tem por objetivo
inicial a luta contra os infiéis e os heréticos.

• Centraliza sua ação na “conquista das almas jovens”,


criando os colégios jesuítas que hegemonizaram o campo
educacional por mais de 200 anos;

• Sua eficiência deve-se ao cuidado com o preparo rigoroso do


mestre (formação de professores) e com a uniformização da
sua ação pedagógica (Ratio Studiorum).

A Pedagogia e a Secularização do Pensamento

Ainda não há aqui, uma “filosofia da educação”, ou seja, um sistema


de pensamento organizado de teoria da educação (Erasmo, Rabelais,
Montaigne) e utopias pedagógicas (Morus e Campanella). Há,
entretanto, uma busca das “bases naturais”, não religiosas, da
educação. Proliferam também os colégios e manuais para alunos e
professores, pois a educação se tornou uma “questão de moda”,
segundo a nova concepção de homem.

• Surge uma “nova imagem da infância” (sentimento).

»385
1.6 Século XVII – Idade Moderna e
Pedagogia Realista

Contexto Histórico

Intensifica-se o comércio, a colonização assume características


empresariais, e a Europa é inundada pelas riquezas extraídas da
América. Aliança entre reis e burgueses (absolutismo monárquico). Os
artesãos de produção doméstica perdem espaço para os capitalistas e,
reúnem-se em galpões onde nascem as futuras fábricas.

• Surgem as sementes do liberalismo clássico, enquanto


expressão ideológica dos interesses burguesia, que terá um
impacto direto na reflexão sobre a educação;

• Preocupação com o sujeito do conhecimento e com os


procedimentos (metodológicos) da razão na investigação da
verdade.

O Pensamento Moderno

Descartes, pai da Filosofia Moderna, inicia a derrocada final da


Escolástica, mediante o recurso da “dúvida metódica”. Diz ele, se
duvido, penso. Penso, logo existo (argumento do cogito). Trata-se,
aqui, da crença na autonomia do pensamento, a idéia de que a razão,
bem dirigida, é suficiente para encontrar a verdade, dispensando a
autoridade livresca e os dogmas.

386«
• Bacon, pai da Ciência Moderna, desenvolve a concepção
empirista do conhecimento, afirmando que nada está no
espírito que não tenha passado primeiro pelos sentidos. Ele
privilegia, assim, a experiência no processo de
conhecimento (indutivismo).

A Crise da Consciência Européia

O interesse pelo conhecimento e pelo método, na verdade, foi iniciado


por Galileu Galilei que fez coincidir a experimentação com a
matemática, a ciência com a técnica. Ao opor à ciência contemplativa
um saber ativo, o homem deseja ”saber para transformar”, provocando
uma intensa “revolução espiritual”.

• Configura-se também o processo de formação da família


nuclear, típica da sociedade burguesa.

O Realismo na Educação

Nesse contexto, os educadores passaram a se interessar pelos


métodos, a fim de tornar a educação mais agradável e ao mesmo
tempo eficaz na vida prática. Ser realista (do latim res, coisa) significa
privilegiar a experiência, as coisas do mundo e a atenção aos
problemas da época. Prefere-se o rigor das ciências da natureza e
busca-se superar a tendência literária e estética do renascimento
humanista.

• A língua materna se sobrepõe ao latim, apesar de persistir o


ideal enciclopédico;

»387
• A Pedagogia Moderna está em busca de uma Nova Didática.

Comenius: “ensinar tudo a todos”

Se há um método para conhecer corretamente, deve haver um


também para ensinar de forma mais rápida e segura. Esse é o objetivo
de toda a vida de Amós Comenius, o maior pedagogo do século XVII,
cujo principal livro chama-se “Didática Magna”. Para ele, o ponto de
partida do ensino é sempre o conhecido, indo do simples para o
complexo, do concreto ao abstrato. O ensino deve ser feito pela ação,
pois só fazendo, aprendemos a fazer. As escolas são espécies de
oficinas da humanidade.

• Uma “febre” da época é a criação de “manuais” que


detalham o procedimento do mestre, segundo gradação das
dificuldades e num ritmo adequado à capacidade de
assimilação dos alunos;

• Outras influências do período: Jonh Locke e Fénelon.

1.7 Séculos XVIII e XIX – O Século


das Luzes e o Ideal Liberal da Educação

Contexto Histórico

Transformações radicais abalam a Europa. A burguesia, secundária na


estrutura social aristocrática, assume a centralidade da cena histórica.
Enriquecida pelos resultados da Revolução Comercial encontra-se, no

388«
entanto, sufocada com a carga de impostos e a falta de legitimidade
social (status) de sua posição: os nobres levavam uma vida parasitária
na corte, com isenção de impostos e os benefícios de serem julgados por
leis próprias. Explodem as revoluções burguesas: 1) A Revolução
Gloriosa (1688) que destrona a dinastia dos Stuarts; 2) Revolução
Francesa (1789) que depõe os Bourbons e defendo os princípios de
igualdade, liberdade e fraternidade.

• A máquina a vapor marca o inicio da Revolução Industrial,


mecanizando a indústria e alterando radicalmente as relações
sociais.

Ideias e Ideais Iluministas

O Século das Luzes (Ilustração ou Aufklãrung) institui o poder da


Razão humana de interpretar e reorganizar o mundo. Um período rico
em reflexões pedagógicas, sobretudo na pedagogia política: tornar a
escola leiga e função do Estado. O ensino (esclarecimento) torna-se
um veículo importante das luzes da razão no combate às superstições
e ao obscurantismo religioso (enciclopedismo).

• Na economia: o liberalismo;

• Na política: o despotismo esclarecido;

• Na moral: naturalização do comportamento humano.

»389
O Naturalismo de Rousseau

Natural de Genebra (Suíça), Rousseau provocou uma revolução copernicana


na educação, centralizando os interesses pedagógicos no aluno e não mais
no professor. Mais que isso: ele ressalta a especialidade da criança, que não
deve ser encarada como um adulto em miniatura. Seu pensamento
pedagógico não se separa de seu pensamento político. Para Rousseau, o
homem em estado de natureza é bom, mas se corrompe na sociedade que
destrói sua liberdade. Por isso, a educação deve ser afastada do
artificialismo das convenções sociais. Ele recusa ainda o intelectualismo,
insistindo em uma educação inicialmente “negativa”.

• O “Emílio” é relato romanceado da educação de um jovem,


acompanhado por um preceptor ideal e afastado da sociedade
contemporânea.

Kant e a Pedagogia Idealista

No contexto histórico do Iluminismo, não faz mais sentido atrelar a


educação à religião, desencandeando-se uma crítica feroz à Companhia
de Jesus, denunciada como a representação da escolástica dogmática
decadente. A escola deveria ser leiga (não religiosa) e livre
(independente dos privilégios de classe); deveria estar ao encargo do
Estado (obrigatoriedade e gratuidade); deveria ser nacionalista (ênfase
nas línguas vernáculas); e deveria ter uma orientação prática (ciências
técnicas e ofícios).

• Kant redefine, com o seu “Sapere Aude”, toda relação


pedagógica, reforçando a atividade do aluno, que deve
aprender a “pensar por si mesmo”.

390«
Iluminismo e Educação

Se há um método para conhecer corretamente, deve haver um


também para ensinar de forma mais rápida e segura. Esse é o objetivo
de toda a vida de Amós Comenius, o maior pedagogo do século XVII,
cujo principal livro chama-se “Didática Magna”. Para ele, o ponto de
partida do ensino é sempre o conhecido, indo do simples para o
complexo, do concreto ao abstrato. O ensino deve ser feito pela ação,
pois só fazendo, aprendemos a fazer. As escolas são espécies de
oficinas da humanidade.

• A Companhia de Jesus foi extinta, pelo Papa Clemente IV,


em 1773, desestabilizando os sistemas escolares do mundo
inteiro.

1.8 Séculos XX e XXI – A Educação


para a Democracia

Contexto Histórico

O capitalismo monopolista acentua as desigualdades, concentrando a


renda e aumentando as disparidades sociais. Os choques entre as
potencias culminam no conflito armado da 1ª Guerra Mundial (1914-
1918). Outro fato abala o mundo: a Revolução Russa de 1917, instaura
o primeiro governo socialista inspirado no marxismo. O capital
americano penetra, no pós-guerra, na Europa. Daí o impacto mundial
da crise gerada pela quebra da Bolsa de Nova Iorque em 1929, seguida
de falências, retração de mercado e desemprego em massa.

»391
Nos dias atuais, não estamos diante de uma simples encruzilhada, que
pede desvios de percurso ou pequenas mudanças de rota, como
acontece em situações de crise. Estamos agora diante de um
“labirinto”. O momento exige, portanto, invenção, com ousadia da
imaginação para criar o novo. É preciso detectar com urgência os
sintomas do mundo que emerge, o que não é fácil, pois estamos
mergulhado nele, e nem sempre temos clareza para compreender os
principais sinais da mudança.

• A gravidade da situação impõe modificação no modo de


acumulação capitalista. Emerge o Estado de Bem-Estar
Social que implanta medidas de controle da economia,
estimula a produção e tenta garantir a distribuição de bens
e serviços sociais.

O Pós-Segunda Guerra (1939-1945)

• Após a Segunda Guerra, os EUA assumem definitivamente


uma posição hegemônica na economia mundial
(americanismo e fordismo);

• No outro pólo, a antiga URSS expande sua zona de


influência, desencadeando a corrida armamentista (Guerra
Fria);

• Outro acontecimento importante é a gradativa


descolonização da África e da Ásia, o que faz com o
imperialismo assuma uma outra forma (empresas
multinacionais e laços de dependência);

• Em 1945 é criada a ONU;

392«
• O choque do petróleo em 1973 e 1979 faz ressurgir, nos
países de economia capitalista, o neoliberalismo (Hayeck e
Friedman) que pretende retirar do Estado as funções
assistencialistas assumidas na década de 30;

• A sociedade contemporânea é um show permanente:


espetáculos virtuais simulam o real com formas hiper-reais,
convertendo os cidadãos em espectadores silenciosos.

O Paradigma da Modernidade

Essas mudanças provocam não apenas “conflito de gerações”, mas


inconsurabilidade de maneiras de pensar, sentir e agir.

Nó da questão: os elementos da emancipação (razão, ciência, técnica,


escolarização) se tornaram as principais forças da regulação opressiva
extrema. A razão instrumental, ao visar à dominação da natureza para
fins utilitários e lucrativos, introduziu uma irracionalidade no modo de
vida contemporâneo.

Os fins humanos da existência foram esquecidos ou secundarizados


pelo mundo despoetizado, desencantado.

O Paradigma Emergente

• Educação no século XX: Psicologismo x Sociologismo –


Teorias: Pragmatismo (escolanovismo dos métodos e do
trabalho); Neomarxismos (Gramsci, Teoria Crítica, Críticos-
reprodutivistas); Construtivismo (Piaget, Vygotsky).

»393
• Parâmetros da educação atual: perplexidade e
desorientação.

• Os educadores padecem de um “pânico moral” face aos


desvios cada vez mais como “alienígenas”, isto é, seres de
um outro mundo (não humano): monstros, cyborgs e clones
– os novos fantasmas da Educação.

Desafios da Educação

O surgimento de um novo homem depende da construção de novas


formas de conhecimento e poder, de uma subjetividade autônoma;
exige, portanto intencionalidade e recusa do espontaneísmo da/na
ação.

2. Teorias Sociológicas da
Educação

Estimativas relativas a 1970 apontavam para o índice em que 50% dos


alunos deixavam as escolas primárias em condições de
semianalfabetismo ou de analfabetismo potencial na maioria dos países
da América Latina (TEDESCO, 1981).

A escola no contexto brasileiro em 1989, tendo por base os anos de


estudo, cada 100 brasileiros, demais de 10 anos, estavam distribuídos
dessa forma:

394«
Esses mesmos 100 brasileiros, tendo por base a sua renda, estavam
distribuídos dessa forma:

»395
Vamos juntar as informações:

Anos de Sem rendimento De 3 a 10 Mais de 10


Estudo e até 3 sm sm sm

Sem instrução 64% 36% 16%


e até 4 anos

De 5 a 8 anos 23% 25% 15%

9 anos ou mais 13% 39% 69%

Total (70%) (22%) (8%)

Como interpretar esses dados? Como explicá-los? Como as teorias da


educação se posiconam diante da situação?

Podemos classificá-las em três grupos:

a) as que entendem b) as teorias que c) compreendem a


ser a educação um entendem ser a educação como
instrumento de educação um uma instância
equalização social instrumento de mediadora de uma
discriminação social forma de entender
e viver a sociedade

Percebe-se que essas teorias explicam os sentidos, conceitos,


valores e finalidades da educação a partir do próprio sentido e
valor da educação na e para a sociedade.

396«
Assim, para os teóricos O segundo grupo E já um terceiro
da primeira concepção a entende que a grupo de teóricos da
educação é educação reproduz educação que
responsável pela a sociedade como compreendem a
direção da sociedade, ela está: dependente educação como
emerge como um da estrutura social uma instância
instrumento de correção produtora da mediadora de uma
das distorções do dominação e forma de viver e
fenômeno educativo. legitimadora da entender a
marginalização. sociedade.

TEORIAS TEORIAS CRÍTICO- TEORIAS


NÃO-CRÍTICAS REPRODUTIVISTAS CRÍTICAS

2.1 Teorias não-críticas (pedagogia


liberal ou educação como redenção da
sociedade)

Concebem a sociedade como um conjunto de seres humanos que


vivem e sobrevivem num todo orgânico e harmonioso, com desvios de
grupos e indivíduos que ficam à margem desse todo. Para isso, os
indivíduos precisam aprender a adaptar-se aos valores e às normas
vigentes na sociedade de classes. Importa manter e conservar a
sociedade. Assim, a educação seria uma estância que tem por
significado e finalidade a adaptação do indivíduo à sociedade, deve
reforçar os laços sociais, promover a coesão social integrando os
indivíduos no todo social.

»397
Embora difunda a idéia de igualdade de oportunidades, não leva em
conta a desigualdade de condições. A educação é concebida com uma
ampla margem de autonomia em relação à sociedade, emergindo como
um instrumento de correção das distorções e curando-a de suas
“mazelas”. O limite de sua função é a superação do problema da
marginalidade.

Constituem as TEORIAS NÃO-CRÍTICAS, as seguintes concepções


pedagógicas:

Acumular conhecimentos científicos e


culturais/adquirir maior número de informações.

A figura do professor é central (enciclopédia):

PEDAGOGIA “como as iniciativas cabiam ao professor, o

TRADICIONAL essencial era contar com um professor


razoavelmente bem preparado” (SAVIANI, 2000).

O aluno ouve em silêncio (folha em branco/tabula


rasa); a aprendizagem é receptiva e mecânica.

Aulas expositivas.

Ensinar a produzir conhecimentos; não se enfatiza


a memorização de informações, mas a
PEDAGOGIA
descoberta.
NOVA

O professor é um orientador/estimulador cuja


iniciativa principal caberia aos próprios alunos.

398«
O aluno é um participante ativo; o importante não
é aprender, mas aprender a aprender – é mais
importante o processo de aquisição do saber do
que o saber propriamente dito.

Elaboração de pesquisas em grupo.

A aprendizagem seria uma decorrência espontânea


do ambiente estimulante e da relação viva que se
estabeleceria entre os alunos e o professor.

Implicava custos bem mais elevados do que a


escola tradicional.

Os parâmetros humanistas foram deslocados


pelos requerimentos da racionalidade econômica.

A intenção era harmonizar o sistema educativo


com a industrialização acelerada, mediante a
preparação de recursos qualificados.
PEDAGOGIA
TECNICISTA Buscou-se vincular o planejamento educacional ao
planejamento econômico, criando-se inclusive uma
nova teoria: a economia da educação, que ficou
mais conhecida como “teoria do capital humano”
cujo principal postulado é: capacitar-se
profissionalmente é um investimento que se faz em
si próprio, em vista de retornos econômico futuros.

Elaborar estímulos (informações) e programas de


ensino.

»399
O professor é um instrutor da máquina de ensino
(treina e adestra o aluno).

Recursos audiovisuais, textos programados, livros


didáticos.

2.2 Teorias crítico-reprodutivistas


(pedagogia progressista ou educação como
reprodução da sociedade)

De acordo com as concepções crítico-reprodutivistas, a escola é


determinada socialmente. A sociedade em que vivemos, fundada no
modo de produção capitalista, é dividida em classes com interesses
opostos.

O papel da educação na sociedade é o que afirma que a educação faz,


integralmente, parte da sociedade e a reproduz. Nesse sentido, a
escola tem funcionado como legitimadora do sistema capitalista,
mantendo a reprodução de classes. Como aparelho legitimador, utiliza
mecanismos de exclusão e seleção de alunos. Essa exclusão
progressiva é funcional e necessária dentro do modelo capitalista.

As TEORIAS CRÍTICO-REPRODUTIVISTAS não se traduzem numa


pedagogia, ou seja, não estabelecem um modo de agir para a
educação. Pretendem apenas demonstrar como atua a educação dentro
da sociedade e não como ela deve atuar.

400«
As teorias que tiveram maior repercussão e alcançaram um maior nível
de elaboração foram as seguintes:

Toma como ponto de partida que toda e


qualquer sociedade estrutura-se como um
sistema de relações de força material entre
grupos ou classes.

Sobre a base da força material e sob sua


determinação erige-se um sistema de relações
de força simbólica cujo papel é reforçar, por
dissimulação, as relações de força material.
“TEORIA DO
SISTEMA DE
Busca explicitar a Ação Pedagógica como
ENSINO
imposição arbitrária da cultura dos grupos ou
ENQUANTO
classes dominantes aos grupos ou classes
VIOLÊNCIA
dominados, produzindo uma formação durável,
SIMBÓLICA”
ou seja, um habitus como “produto de
interiorização dos princípios de um arbitrário
cultural capaz de perpetuar-se após a cessação

(Bourdieu e da ação pedagógica (...)” (Bourdieu & Passeron,

Passeron, 1975).

1975) “A professora está explicando aos alunos:

P – Os jesuítas foram expulsos das Missões e não

conseguiram levar todo o gado. Então vieram os

açorianos e começaram a usar o gado para tirar a pele

e o couro.

A – Professora, o meu avô trabalhava numa fazenda e

»401
tinha um monte de ovelhas e fazia pelegos.

P – Outra coisa que eu quero que vocês saibam é que,

além do couro, eles utilizavam a carne. Mas como

durava a carne se não tinha refrigerador?

A – O meu tio faz charque, tem açougue e...

P – Tá, deixa eu continuar (...).”

Estudo sobre o papel da escola como um dos


aparelhos do Estado, como uma das instâncias
da sociedade que veicula a sua ideologia
dominante, para reproduzi-la.

Para isso, a escola toma a si todas as crianças


“TEORIA DA
de todas as classes sociais e lhes inculca durante
ESCOLA
anos a fio de audiência obrigatória “saberes
ENQUANTO
práticos” envolvidos na ideologia dominante.
APARELHO
Como demonstra o exemplo abaixo:
IDEOLÓGICO
DE ESTADO “2) Completa conforme o modelo:

(AIE)” A – Deves ser obediente e não desobediente

B – Deves ser animado e não _________

(Althusser) C – Deves ser agradável e não ________

D - Deves ser atencioso e não ________”

A escolarização adequa-se aos diferentes lugares


da produção:

• Operários e camponeses: acesso apenas à


escolaridade básica.

402«
• Pequenos burgueses: o avanço na
escolarização lhes permitem os quadros médios.

• Pequena parte da sociedade: tornam-se os


agentes de exploração, agentes de repressão e
profissionais da ideologia.

Ela admite a existência da ideologia do


proletariado. Considera, porém, que tal ideologia
tem origem e existência fora da escola, isto é,
“TEORIA DA nas massas operárias e em suas organizações.
ESCOLA
DUALISTA” A escola tem por missão impedir o
desenvolvimento da ideologia do proletariado e

(Baudelot & a luta revolucionária, concluindo-se assim que

Establet) ela é duplamente fator de marginalização: não


apenas por referência à cultura burguesa, mas
também em relação ao próprio movimento
proletário.

2.3 Teorias Críticas (ou educação como


transformação da sociedade)

Considerando-se que a classe dominante não tem interesse na transformação


histórica da escola, segue-se que uma teoria crítica só poderá ser formulada do
ponto de vista dos interesses dominados (SAVIANI, 2000).

»403
Uma teoria assim enunciada se impõe a tarefa tanto de superar o poder ilusório
(que se caracteriza com as teorias não-críticas) como a impotência (decorrente
das teorias crítico-reprodutivistas). Em ambos os casos, a organização da
sociedade é tida como “natural” e a-histórica (LUCKESI, 1991).

Os teóricos dessa tendência (entre eles Saviani, Luckesi, Libâneo), nem negam
que a educação tem papel ativo na sociedade, nem recusam reconhecer os
seus condicionantes histórico-sociais. Ao contrário, consideram a possibilidade
de agir a partir dos próprios condicionantes históricos.

Tem por perspectiva compreender a educação como mediação de um projeto


social. Ou seja, importa interpretar a educação como uma instância dialética
que serve a um projeto, a um modelo, a um ideal de sociedade.

Não será simples à educação e aos educadores que a realizam efetivar esse
processo dentro da sociedade capitalista; é necessário avançar no sentido de
captar a natureza específica da educação, o que nos levará à compreensão das
complexas mediações pelas quais se dá sua inserção contraditória na sociedade
capitalista.

Assim, nos indica a necessidade de cuidar daquilo que é específico da escola;


propõe-se compreender a educação dentro de seus condicionantes e agir
estrategicamente para sua transformação; propõe-se desvendar e utilizar-se
das próprias contradições da sociedade, para trabalhar criticamente pela sua
transformação.

404«
Trata-se de retomar vigorosamente a luta contra a seletividade, a discriminação
e o rebaixamento do ensino das camadas populares. O papel de uma teoria
crítica da educação é dar substância concreta a essa bandeira de luta, de modo
a evitar que ela seja apropriada e articulada com os interesses dominantes
(SAVIANI, 2000).

Referências

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. História da Educação e da


Pedagogia: geral e Brasil. 3ª Ed. São Paulo: Moderna, 2006.

BRANDÃO, Carlos R. O que é educação. Brasiliense, 2001.

DURKHEIM, Emile. Educação e Sociologia. RJ: Melhoramentos, 1978.

GADOTTI, Moacir. Concepção Dialética da Educação. SP: Cortez,


1988.

PONCE, Anibal. Educação e Luta de Classes. SP: Cortez, 1981.

ROMANELLI, Otaíza. História da Educação no Brasil. Petrópolis:


Vozes, 1998.

SAVIANNI, Dermeval. Escola e Democracia. SP: Cortez, 1984.

Leitura obrigatória:

POMPÉIA, Raul. O Ateneu.

»405
Fundamentos da Educação – Ana Cláudia Tavares

ATIVIDADES

Atividade 1

“Lecionar em uma escola de periferia! Você está


completamente louco, pois arruinará sua carreira. Será rotulado
de professor da escola pública e depois de ser „marcado‟ é o
fim. Seja esperto – saia antes de entrar”.

No capítulo intitulado “As fronteiras do desespero”, do livro “A vida nas


escolas”, o professor Peter MacLaren relata vários fatos ocorridos nos
seus quatro anos de professor na escola de um dos subúrbios da
periferia de Toronto (Canadá). Vejamos um deles:

Segunda-feira, 3 de janeiro. No primeiro dia, comecei minha


lição inicial sobre „As pessoas e a sociedade‟ perguntando aos
garotos o que eles queriam e esperavam do curso.

Silêncio.

„Ok‟, continuei sem desanimar, „vamos tentar de outro jeito.


Quantos de vocês estão interessados no que acontece no
mundo de hoje: os problemas, a política, o meio ambiente, a
mídia, o mercado de trabalho, essas coisas?‟

406«
Nada. Olhares vazios.

„Bem‟, continuei com determinação e um pouco de arrogância,


„eu estou dando a vocês garotos a chance de escolher o assunto
vocês mesmos. Vocês conseguem me ouvir lá atrás? O que
será? Poluição? Guerra? Mais direitos às crianças? O que dizem
sobre as idéias e projetos que têm?

Nada de vivas ou vaias. Nem mesmo um bocejo.

Agora eu já estava quase gritando de frustração. „O que há com


vocês? Se vocês não podem pensar sozinhos, então alistem-se
no exército, onde há muitas ordens e poucas decisões‟.

Nada.

Legal, disse a mim mesmo. Isso não vai levar a lugar algum.
Talvez eu esteja esperando demais. Exatamente quando pensei
que todos tinham feito uma conspiração de silêncio, um garoto
ergueu sua mão. Quis abraçá-lo, e esperei ansiosamente sua
pergunta.

Ele queria saber porque eu usava barba.

A experiência educacional brasileira não está muito distante do que é


descrito por MacLaren em seu livro. O relato aproxima-se mesmo

»407
daquilo que os professores, no Brasil, tendem a chamar de a
“realidade” da prática pedagógica que, por sua vez, estaria “muito
distante” das teorias “propagandeadas” nos cursos de licenciatura.

A questão que proponho para discussão é a seguinte: O que você


espera ao estudar fundamentos filosóficos, históricos e sociológicos da
educação? Ou, em outras palavras: qual a função dessa disciplina em
um curso de formação de educadores numa época de “sonhos
despedaçados” e “falsas promessas do discurso educacional” em um
tempo histórico de declínio e desilusões?

Atividade 2

“Eu sou semelhante ao torpedo [peixe elétrico], quando


aturdido, posso produzir nos outros o mesmo aturdimento, pois
não se trata de que eu esteja certo e semeie dúvidas na cabeça
alheia, mas de que, por estar eu mesmo mais cheio de dúvidas
do que qualquer pessoa, faço duvidar também os outros.”

Com base na citação, que se refere a uma fala de Sócrates no diálogo


de Platão, Ménon, responda às questões:

a) Em que consiste o método socrático?

b) Em que medida a afirmação de Sócrates ainda hoje pode ter valor


para a educação?

408«
Atividade 3

Iniciar a leitura do livro “O Ateneu”, de Raul Pompéia.

Atividade 4

Na perspectiva das teorias não-críticas, apresenta-se como um dos


representantes o sociólogo francês Emile Durkheim. Pesquisem sobre o
seu texto “A Educação como Processo Socializador: Função
Homogeneizadora e Função Diferenciadora”, e respondam as
seguintes questões:

1º) Por que para Durkheim a ação dos membros de uma mesma
geração, uns sobre os outros, difere da que os adultos exercem sobre
as crianças e os adolescentes?

2º) Qual a principal crítica de Durkheim à definição de educação de


Kant e dos utilitaristas (James Mill)?

3º) Por que razão Durkheim afirma que “é uma ilusão acreditar que
podemos educar nossos filhos como queremos”?

4º) Explique o caráter uno e múltiplo da educação segundo Durkheim.

5º) Explique por que para Durkheim nós temos dois seres: um ser
individual e um ser social? E o que ele chama de “virtude criadora” da
educação?

»409
6º) Como Durkheim rebate a crítica de que sua teoria transforma a
vida social em uma forma de tirania?

Atividade 5

Em O Ateneu, romance naturalista publicado em 1888, por Raul


Pompéia, encontramos o personagem Sérgio recordando suas
experiências durante a vida de estudante no internato dirigido por
Aristarco de Ramos. Na sua convivência com os colegas de internato,
Sérgio refaz sua visão da vida e do mundo. Problematiza sua relação
com a família (especialmente sua mãe); suas imagens da escola antes
e depois de matricular-se no Ateneu; o funcionamento do processo de
aprovação e sucesso escolar; os sistemas de normas implícitas e
explicitas da instituição; enfim, ele refaz o papel da escola na sua vida,
questionando o que ela poderia oferecer a sociedade. Ele vai assim
relatando suas lembranças, naquele ambiente agressivo e sensual, até
o momento em que o Ateneu começa a se destruído por um incêndio.

A formação dos indivíduos através da instituição

O interesse dos educadores em O Ateneu reside no fato dele trazer à


tona o problema da formação dos indivíduos através da instituição
escolar. Nesse sentido, analise a transformação sofrida pelos
personagens principais dessa obra, argumentando se essa
transformação pode ser interpretada como sendo fruto de uma
educação (bem ou mal sucedida) e/ou se ela pode ser vista como
resultado de uma aprendizagem/formação da personalidade centrada
na vontade autônoma do sujeito. Enfoque o seu texto, sobretudo, o

410«
entrelaçamento dos indivíduos com a instituição, a fragilidade ou a
capacidade de resistência dos primeiros com relação a esta,
examinando o ponto de interseção do indivíduo com a sociedade. Você
tem várias possibilidades de fazer isso:

• Selecionando os dois personagens centrais (Sérgio e Aristarco), que


ocupam pólos contrários (educador-educando, adulto-criança),
examinando se a instituição escolar foi ou não capaz de moldar esses
dois atores, inculcando-lhes os papeis socais prescritos pela sociedade,
ou se foi a instituição escolar que sofreu influências desses atores;

• Problematizando a função social do Ateneu, a partir das relações de


“consenso” (integração, interiorização das normas) e “conflito”
(resistência, lutas) entre atores, entre atores e instituição, entre
atores, instituição e sociedade;

• Avaliando, a partir das metamorfoses de Sergio e Aristarco, o papel


social da escola em termos de expectativas “otimistas” ou “negativas”,
ou seja, refletindo se a educação “forma” ou “deforma” durante o
processo de socialização escolar.

»411
Revisão| as autoras
Editoração|: Paula Mendes Costa
Capa| Carolina Leal Pires

Dimensão transdisciplinar na formação do professor Vol. 2

21 x 29,7 cm

Tipografia
Verdana

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