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Libras

LIBRAS
Autoria:
Sávio Félix Mota
Expediente
Reitor: Ficha Técnica
Prof. Cláudio Ferreira Bastos Autoria:
Sávio Félix Mota
Pró-reitor administrativo financeiro:
Prof. Rafael Rabelo Bastos Supervisão de produção EAD:
Francisco Cleuson do Nascimento Alves
Pró-reitor de relações institucionais: Design instrucional:
Prof. Cláudio Rabelo Bastos Antonio Carlos Vieira
Pró-reitora acadêmica: Projeto gráfico e capa:
Profa. Flávia Alves de Almeida Francisco Erbínio Alves Rodrigues
Direção EAD: Diagramação e tratamento de imagens:
Prof. Ricardo Zambrano Júnior Ismael Ramos Martins
Coordenação EAD: Revisão textual:
Profa. Luciana Rodrigues Ramos Antonio Carlos Vieira

Ficha Catalográfica
Catalogação na Publicação
Biblioteca Centro Universitário Ateneu

MOTA, Sávio Félix. Libras. Sávio Félix Mota. – Fortaleza: Centro Universitário Ateneu,
2020.

164 p.
ISBN:

1. Libras. 2. História da surdez. 3. Gramática de libras. 4. Tradução e interpretação. Centro


Universitário Ateneu. II. Título.

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida, total ou parcialmente, por
quaisquer métodos ou processos, sejam eles eletrônicos, mecânicos, de cópia fotostática ou outros, sem a autoriza-
ção escrita do possuidor da propriedade literária. Os pedidos para tal autorização, especificando a extensão do que
se deseja reproduzir e o seu objetivo, deverão ser dirigidos à Reitoria.
SEJA BEM-VINDO!
Olá, caro(a) estudante!

A obra que você tem em mãos é, como qualquer outra que se pretende
didática, incompleta. Não só porque é impossível aprender novos idiomas
simplesmente lendo livros, é que todo aprendizado demanda, em algum
nível, o complemento da observação e da prática sobre a realidade. Ao trazer
contextos de fundo social, histórico, linguístico e cultural, correlacionando-os
a temas essenciais da realidade dos surdos, favorecemos o aprendizado de
Libras mais do que colecionar sinais em um grande glossário visual.

Ainda assim, buscamos ter o máximo cuidado em deixar o livro o mais


próximo possível de atender tanto suas expectativas quanto as necessidades
programáticas da disciplina. Como Libras é uma língua visual, as primeiras
folheadas logo revelam: não abrimos mão de compor teoria e visualidade
ao longo de cada unidade para que, mais do que ilustrada didaticamente, a
leitura do livro exercite de fato a sua cognição visual. Assim, privilegiamos em
glossários o uso de termos e expressões úteis às suas primeiras conversas
em Libras – que esperamos não tardarem a acontecer. Fica a dica de sempre
buscar a prática, que não é simplória, mas à medida em que se estabelece
regularmente, torna-se bem mais simples do que costumamos pensar.

Então, não descuide da disciplina, mas tampouco se feche em livros e


memorizações sem fim. Bem ao contrário! Por mais contraintuitivo que possa
ser, o melhor desfecho para cada lição é aberto e está na sua vivência com
a comunidade surda. O livro lhe traz elementos preparatórios e instrumentos
para fortalecer esse laço – cuide em praticar! Aos que anseiam aprender muito
e logo, recomendamos mergulhar ainda mais fundo nessa empreitada. Mire-
se no exemplo das crianças mais jovens: sem aulas, sem livros, mas imersas
no livre uso de uma língua, aprendem a falar com o máximo de desenvoltura
que conseguem e muito rapidamente. Com o tempo é que melhoram. O
domínio vem antes da idealizada perfeição; “não faça do ótimo inimigo do
bom”. Nós, adultos, só precisamos lembrar disso e equilibrar com os estudos
para resgatar um pouco da naturalidade em aprender novos sentidos, novos
caminhos.

Bons estudos!
Estes ícones aparecerão em sua trilha de aprendizagem e significam:

ANOTAÇÕES

CONECTE-SE

REFERÊNCIAS
SUMÁRIO
LIBRAS, UMA LÍNGUA PLENA
1. Comunicar é fazer sentido....................................... 8
1.1. Gestos e signos................................................. 9

01
1.2. Signos e códigos............................................. 10
1.3. Códigos e símbolos......................................... 13
2. De linguagem a língua........................................... 18
2.1. Linguagem é o campo do simbólico................ 19
2.2. Língua é um código (muito) especial............... 21
2.3. O que faz de uma língua uma língua.............. 26
3. Libras: uma língua plena?...................................... 31
3.1. Gestos ou sinais?............................................ 31
3.2. Afinal, Libras é código? É linguagem?
Ou o quê?............................................................... 36
Referências................................................................ 41

HISTÓRIA SOCIAL DA SURDEZ E


CONQUISTAS SURDAS
1. História social da surdez e das
línguas de sinais.................................................... 44
1.1. Do oralismo ao manualismo............................ 44

02
1.2. Ouvintismo: modernidade e
institucionalização........................................... 48
1.3. O “Despertar Surdo” nos anos 60................... 52
2. Cultura surda – e uma outra
concepção de surdez............................................. 58
2.1. Ouvintismo clínico e resistência...................... 60
2.2. As identidades surdas..................................... 63
2.3. Povo surdo e lideranças surdas...................... 68
3. A história recente dos surdos no brasil.................. 70
3.1. A FENEIS e o
Despertar Surdo tardio no Brasil..................... 71
3.2. As comunidades surdas
organizadas do Brasil...................................... 72
3.3. Conquistas: legislação e
políticas públicas............................................. 74
Referências................................................................ 81
GRAMÁTICA BÁSICA DE LIBRAS
1. Gramática formal: conceitos elementares...........84
1.1. Fonema, fonética e fonologia......................85

03
1.2. Morfema e morfologia..................................86
1.3. Sintagma e sintaxe......................................89
2. Parâmetros fonológicos da libras........................91
2.1. Configuração das mãos (CM)......................92
2.2. Ponto de articulação (PA)............................96
2.3. Movimento (M)............................................97
2.4. Orientação e direção (OD)...........................99
2.5. Expressões não manuais (ENM)...............100
3. Aspectos morfossintáticos................................104
3.1. Classes morfológicas mais básicas...........105
3.2. Morfossintaxe dos classificadores.............111
3.3. Aspectos sintáticos: concordância,
regência e ordem da oração......................116
Referências.............................................................. 120

ESCOLA BILÍNGUE,TRADUÇÃO-INTERPRETAÇÃO,
TILS E ELEMENTOS PARA A CONVERSAÇÃO

04
1. A educação de surdos.......................................... 124
1.1. Aquisição de linguagem e
modelos cognitivos....................................125
1.2. Modalidade visuoespacial x
modelos educacionais oralistas/mistos......128
1.3. Educação bilíngue para surdos.................132
2. Tradução, interpretação e o TILS profissional..... 137
2.1. Tradução, interpretação e técnicas............138
2.2. TILS: perfil e áreas de atuação..................142
2.3. Aspectos éticos globais dos TILS.............. 148
3. Exercícios de relaxamento e
percepção visual.................................................. 150
4. Prepare-se para conversar com surdos............... 155
Referências.............................................................. 163
Sávio Félix Mota

Unidade

01 Libras, uma língua plena

Apresentação
Nesta unidade inicial, entenderemos o motivo pelo qual Libras
é de fato uma língua, sem dever nada a qualquer outra falada, e qual a
importância dessa informação para o estudo e aprendizado dela. Para isso,
vamos abordar de maneira sucinta conceitos semióticos e linguísticos,
como gestos, signos e código.

Em seguida, a partir desses conteúdos, trataremos dos termos


“linguagem” e “língua” com mais profundidade. Desse modo, passaremos, no
momento seguinte, a entender a natureza do que estudamos e iniciaremos a
prática em Libras, quando, por fim, serão abordados elementos para iniciar
uma conversação com surdos, reunindo elementos teóricos e práticos
(glossário) espalhados por toda a unidade.
OBJETIVOS DE
APRENDIZAGEM
• Identificar os conceitos básicos de signo, ícone, índice e símbolo;
• Interpretar e aplicar os conceitos trabalhados nas áreas da semiótica e da
linguística, como gesto, código, linguagem e língua;
• Compreender por que Libras é propriamente uma língua;
• Iniciar a familiarização com sinais básicos para conversações em Libras.

1. Comunicar é fazer sentido


Muitas são as pessoas que revelam enorme interesse por aprender
Libras, mas raramente vão além da mera vontade. Ao se matricular nesta
disciplina, você já deu o primeiro e decisivo passo para aprender uma nova
língua. Parabéns! Caso se dedique o suficiente, pode ter iniciado aqui seu
trajeto para se tornar bilíngue, trilíngue ou poliglota. Porém, aprender uma
nova língua não acontece só por meio de prazeres, há um caminho a ser
percorrido, cheio de desafios: adquirir extenso vocabulário, repertório
simbólico e noções gramaticais, estabelecer uma prática regular e
imergir na cultura associada à língua são, como para qualquer outra língua,
alguns dos pressupostos inescapáveis para ir do mero contato à fluência
propriamente dita. A boa notícia é que, com disciplina e empenho em nossas
lições adiante, você pode aprender bem mais rápido do que imagina.

A partir de agora, abordaremos didaticamente vários conceitos em


torno da Língua Brasileira de Sinais, para além do conteúdo programático
da maioria dos cursos introdutórios de Libras que há por aí. Para isso,
vamos iniciar explorando de modo sucinto conceitos linguísticos como
gestos, signos, código, linguagem e língua. Esses fundamentos compõem
o diferencial teórico para de fato aprender e utilizar Libras, sendo vistos com
ainda mais detalhes em unidades seguintes. Ao final desta, teremos noções
teóricas fundamentais para entender a importância da Libras na vida dos
surdos – e alguns sinais básicos para você realizar sua primeira conversação
em Libras. Adiante!

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1.1. Gestos e signos
Responda rápido: se você precisasse se comunicar com um(a)
surdo(a) agora, como faria? Se ainda não sabe falar Libras, é bem provável
que tenha respondido que em algum momento usaria gestos. É comum e
até previsível que seja assim, afinal, já utilizamos com frequência (muitas
vezes sem perceber) gestos e expressões corporais em nosso cotidiano,
mesmo ao falar línguas totalmente orais. Mais ou menos como mímica ou
pantomima, a modalidade de brincadeira em que empenhamos parte das
nossas habilidades visuoespaciais - o que vem a ser muito útil para adquirir
fluência em Libras.

Figura 01: Mostra de uma pantomima, a


“guitarra invisível” (air guitar).

Fonte: https://bit.ly/3f2iz2m.

No entanto, há muitas limitações nessa forma de expressão que se


acumulam e acabam impedindo a transmissão efetiva de mensagens.
Perceba:

• Eles não são convencionados (ou seja: precisamos inventar e/


ou adivinhar o sentido a cada vez que os usamos) – logo...

• frequentemente se restringem a objetos concretos (para falar


de calor, apontamos para o Sol; para falar de amor, desenhamos
um coração no ar etc.) – por isso...

• têm repertório muito curto (como sinalizar palavras como


“também”, “porquê”, “onde”, “querer” e “azar”?) – dessa forma...

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• para explicar o sentido do que corresponde a uma única
palavra, pode se levar muito tempo e esforço, sem garantia do
receptor entender (como gesticular “ato” ou “planejamento”?) - e
ainda...

• não há como correlacionar dois ou mais sentidos com clareza,


precisão e segurança como na fala (“minha rotina de trabalho”
e “um trabalho rotineiro” têm sentidos difíceis de distinguir por
gestos, concorda?) – de modo que...

• se prejudica a formulação de sentenças e ideias mais


elaboradas (estabelecendo relações entre ideias, como
dependência, condição, simultaneidade etc.; como “minha rotina
de trabalho é não ter um trabalho rotineiro”) – e assim por diante.

Assim, uma característica dos gestos genéricos é se aproximar


em maior ou menor grau do aspecto físico ou concreto do que desejam
representar. Em termos linguísticos, dizemos que são icônicos, quando
praticamente “copiam” ou “imitam” a ação ou o objeto, ou indiciais, no caso
de apenas “sugerirem” o que representam, comumente pegando uma parte
ou efeito (tamanho, forma, cor, direção, intensidade etc.) para representar o
todo (PEREIRA, 2009, p. 49-60). Essas classificações, muito relevantes para
nosso estudo, constituem a base de toda uma ciência, a semiótica; e não
se aplica só a gestos, mas a numerosos outros elementos, como desenhos,
sons e marcações táteis, por exemplo. Chamamos todos eles de signos,
ou seja: toda forma de representação de um objeto através de outro; uma
“re-apresentação”. Afinal, para comunicar a ideia de um cachorro, não será
necessário ter um cachorro à sua frente, você pode mostrar uma foto ou
desenho do animal, apontar pegadas ou pelos que ele tenha deixado no chão
etc.

1.2. Signos e códigos


Se, então, sairmos da dimensão lúdica (a brincadeira) e utilizamos
gestos como veículo principal de comunicação, ficam ainda mais evidentes
aquelas limitações: as possibilidades de significação do mundo através
dele acabam na prática se restringindo e as dificuldades de comunicar se
acumulam. Por isso, os gestos genéricos não têm regras e não conformam
código, que para a linguística é todo sistema de sinais convencionados que
permite construir uma mensagem e estabelecer comunicação (LUFT, 2002, p.

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2). Seus elementos não obedecem propriamente a convenções, muito menos
formam um sistema; os gestos que usamos quase sem perceber durante
a fala oral, por exemplo, estão presentes para complementar a mensagem
falada – mas não têm o poder de as substituir de forma completa ou eficiente.

Assim, através de gestos icônicos ou indiciais apenas, mensagens


mais complexas (e, consequentemente, a comunicação como um todo) não
são asseguradas, sendo seu sentido apenas auxiliar, parcial. Essa é, ao
fim das contas, a graça da mímica: não se sabe se a adivinhação vai ser
possível ou quanto tempo demorará para acontecer, e quanto mais complexo
e menos previsível o sentido pretendido, maior o desafio da performance e a
satisfação de acertar a mensagem. A mímica e as competições de air guitar
usam exatamente essas características próprias a gestos em geral para
oferecer diversão aos envolvidos.

Essa falta de sistematização dos gestos que vimos até aqui é a principal
marca dos signos não-simbólicos. Um bom exemplo para contrastar com
essa característica assistemática dos gestos icônicos e indiciais é o código
Morse; voltado para a transmissão telegráfica, ele possui regras muito bem
estabelecidas para representar números e letras do alfabeto e comunicar com
exatidão a mensagem pretendida. Para tanto, representa cada um de seus
caracteres com uma sequência específica de traços e/ou pontos para compor
palavras e frases a serem transcodificados em um idioma preexistente.

Figura 02: O tradicional pedido universal de ajuda,


SOS, em código Morse.

Fonte: Elaborada pelo autor.

Outro caso relevante de código são as notações matemáticas, com


um conjunto de regras também convencionadas, porém, em quantidade e
complexidade muito maiores do que o código Morse, conformam um sistema
muito coeso e extenso. Não é preciso detalhar aqui o quanto a matemática e
seu código próprio foram e ainda são úteis e importantes em nosso dia a dia,
com aplicações que vão da conta de luz e o troco da feira aos maiores projetos
de engenharia, computação, estatística, saúde e exploração espacial, além
do resgate de náufragos até hoje.

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FIQUE ATENTO

Apesar das diferenças, todas essas são formas úteis e legítimas de


comunicação, cada qual com suas características e funções próprias. Afinal,
é bem mais rápido e fácil para a maioria das pessoas se divertir com mímica,
que é uma brincadeira de interpretação, do que, por exemplo, com notações
matemáticas. Concorda? Portanto, não há porque considerar que as formas
mais simples sejam “inferiores” ou “menos úteis” por si só. Pensar isso teria
mais a ver, de modo geral, com o ponto de vista que adotamos ao falar e julgar:
“(menos) útil pra quê?” ou “em que ocasião?” ou ainda “inferior pra quem?”.

Entendemos, pois, o que são gestos em geral e códigos. Mas será que
gestos específicos podem compor códigos? Claro que sim, basta pensar na
sinalização feita por agentes de trânsito: um pequeno grupo de expressões
corporais pode indicar “pare”, “prossiga” ou “siga neste sentido”. Já no
ambiente no controle de tráfego aeronáutico, instrumentos, como luminosos
e bandeiras, podem servir para ampliar a percepção dos gestos, o que não
apenas é útil para facilitar a visualização a maiores distâncias como, com
isso, permite tornar os códigos mais complexos, com mais “caracteres”.

Figura 03: Assim como o código Morse, a sinalização com


bandeiras feita para helicópteros e aviões
codifica letras e números de um idioma.

A P R E N D A

L S B
Fonte: https://bit.ly/3bQnwJA.

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Assim, há inúmeros exemplos de código, das mais variadas dimensões,
complexidades e aplicações: vão de placas de trânsito e convenções de
ciência e tecnologia (pesos e medidas, elementos químicos, grandezas
e forças da física etc.) ao corpo textual das leis, códigos de conduta e as
ditas “linguagens de programação”. Perceba, no entanto, que todo código,
incluindo os que possuem gestos, utiliza signos de modo específico, de
forma muito diferente dos icônicos ou indiciais, ainda que guardem muito
próximo essa relação, traços e pontos, bandeirolas e luminosos não remetem
às letras ou ordens por representarem seu aspecto geral ou decorrerem
deles como “pistas” ou “impressões”. Falamos, portanto, de outra categoria
de signos, que veremos adiante: os símbolos.

GLOSSÁRIO EM LIBRAS

Lição 1: Oi! / Prazer! / Tudo bem? / Tchau!

Fonte: Elaboradas pelo autor.

1.3. Códigos e símbolos


Como já podemos assegurar, códigos são conjuntos de signos
simbólicos, sejam ou não gestos. Mas o que os faz diferentes dos outros
signos que vimos até aqui? Voltemos à definição de cada um dos termos
anteriores para entender:
• Signo é tudo aquilo que de alguma forma “re-apresenta” algo
ausente;
• Ícone é todo signo que mantém semelhança com o representado;

• Índice é todo signo que guarda relação de indício ou causa-efeito.

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Haverá, então, signos que representem algo sem ser por semelhança
ou por causa e efeito? Que comunique ideia ou mensagem sem ser por copiar,
imitar, deixar rastro ou impressões? Você consegue imaginar? Ora, cada
palavra aqui escrita transmite ideias e assim se compõem mensagens que
por meio de sua leitura geram efeito em seu pensamento. Isso é comunicar
sentido, concorda? Pois então! Palavras são excelentes exemplos de
símbolos: representam algo ausente, porém, sem relação indicial (ou de
causa e efeito) com os objetos que representam, nem tampouco parecem em
nada fisicamente com estes. Aliás, as letras também são símbolos, sem se
assimilar ou terem relação direta com os fonemas (unidades de som da fala),
os representam, compondo sílabas e as próprias palavras (e daí por diante:
frases, versos, períodos, estrofes, parágrafos, textos etc.). E como isso é
possível? Esse é o pulo do gato (ou seria “do cachorro”?).

Figura 04: Para representar “cachorro”,


um signo pode ser ícone, índice ou símbolo.

Fonte: Elaborada pelo autor.

É possível, por exemplo, mesmo na ausência de um canino, remeter ao


sentido de “cachorro” através de diversas fotos (ícones), em circunstâncias,
ângulos ou posições diferentes ou ainda através de pegadas, pelos e sombras
nos mais variados suportes ou formas. Mas perceba que, de algum modo, para
ser referenciado, um cachorro precisou estar presente em algum momento
da produção desses signos – pois, a rigor, eles dependem fisicamente do
objeto que representam (para ser visto, memorizado, servir de modelo, deixar
uma marca ou projeção etc.).

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CURIOSIDADE

Apesar de termos relacionado didaticamente desenho e escultura entre


exemplos de signos icônicos, pois representam os animais figurativamente,
é importante ressaltar que essa classificação muda quando se trata de obras
artísticas - que podem estar ali para, por exemplo, representar outra coisa que
não o animal – valentia, selvageria, amizade, fidelidade, submissão. Essas
correlações livres nos códigos da arte e afins compõem o campo de estudo da
simbologia ao invés da linguística – e é por isso que é tão difícil tentar entender
ou “explicar” algumas obras artísticas.

Os símbolos, por sua vez, são mais específicos porque obedecem


a regras estritas que compõem o código ao qual se relacionam. Voltando
ao exemplo de letras e palavras, para que os códigos funcionem, há regras
que restringem a composição dos símbolos. Não é possível remeter à ideia
do cachorro sem usar as letras certas em sequência certa. “HJERDTA”
não significa cachorro em português; enquanto “KAXORRO”, embora
sonoramente idêntico à ortografia correta, rompe a regra da escrita e é
entendido pela gramática do português como tendo erros. Há sinônimos,
como “cão” ou “canino”, mas também obedecem à regra ortográfica, cada qual
à sua maneira. De todo modo, nenhuma dessas palavras guarda semelhança
física ou de causa e efeito com o animal em si. Não é possível intuir apenas
pela conjunção de letras em sequência específica, um contorno ou traço que
lembre a figura de um cachorro ou algo que a lembre. Para quem não sabe
ler, C-A-C-H-O-R-R-O, C-Ã-O ou C-A-N-I-N-O não são sequer letras, mas
vários desenhos sem qualquer relação com o animal. Por isso, é preciso
dominar os códigos.

Os símbolos, por sua vez, são


mais específicos porque obedecem
a regras estritas.

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Ou seja, nem sempre um mesmo elemento representa a mesma coisa
para todo mundo. Outro exemplo: para a maioria dos brasileiros, “собака”,
“ ” e ”hond” não dizem absolutamente nada – mas para russos, árabes
e holandeses, respectivamente, significam “cachorro”. Ou seja: “significar”
pode ser explicado como “tornar ou criar signo” – e cada palavra daquelas,
por pertencer a códigos que não dominamos, soam como letras agrupadas
aleatoriamente (quando usam letras do nosso alfabeto – ou similares) ou
mesmo meros “desenhos”. Passam, para nós, a ser apenas indício de que
alguém escreveu algo em outra língua ou ícone de caracteres estranhos.

LINK WEB

Interessante para crianças e adultos, há um vídeo do canal britânico


Kiddopedia que ensina a pronúncia em inglês de vários animais de estimação
(pets) – e a escrita nesta e em outras 14 línguas. Nosso amigo, o cachorro,
está entre 1:29 e 1:48. Acesse em: http://bit.ly/kaxorro.

Nada é, por definição, um tipo de signo só para todos e sempre. Em


relação ao animal fotografado, a foto de um cachorro é um ícone, mas pode
ser tomado como indício de que um cachorro mora naquele determinado
espaço fotografado – ou pode simbolizar a infância na memória de alguém.
O contexto e a relação estabelecida através da significação também são
fundamentais. É por isso que, para além dos símbolos, dizemos que todo
signo é, na verdade, um fenômeno de percepção, um sentido que resulta do
encontro entre um receptor e um estímulo percebido dentro de um contexto
no qual se relaciona ao objeto. Por isso, um signo não é o próprio objeto
representado, nem somente o que o sujeito (intérprete) percebe (significante),
mas a junção obrigatória deste com o significado, realizando a significação –
e pode representar um outro signo (quando se torna interpretante).

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MEMORIZE
Em termos da semântica, o objeto é chamado de referente; o sujeito, de
intérprete; e o que ele percebe, de significante. Há ainda outros conceitos possí-
veis, como “significante”, “significado” e “interpretante”, mas guarde um em espe-
cial: aquele que percebe o signo e atribui sentido dentro de seu próprio contexto,
chamamos intérprete (PEREIRA, 2009, p. 43-44).

GLOSSÁRIO EM LIBRAS

Lição 2: Bom dia / Boa tarde / Boa noite

Fonte: Elaboradas pelo autor.

PRATIQUE
1. Por que “gestos genéricos” não são tão adequados para comunicar? Quais
características dos “gestos específicos” são melhores para isso?

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2. Em uma definição básica, o que são signos? E quais os tipos de signos, se-
gundo a semiótica? Descreva-os um a um.

3. Códigos e símbolos mantêm uma relação próxima. Como ela se dá?

4. Por que devemos considerar que um signo não é o próprio referente? Cite
uma circunstância em que essa distinção é necessária.

5. Explique como um signo pode “mudar” de tipo. Do que depende essa classifi-
cação?

2. De linguagem a língua
Todos esses conceitos que trabalhamos até agora são a base para
os conceitos que nos servirão para não só entender a natureza da Libras,
mas também refletir sobre a nossa prática. Sobretudo, nos permitem daqui
por diante desfazer preconceitos e enganos que quase invariavelmente se
veem em relação às línguas de sinais – o que, veremos na Unidade 2, reflete
na própria condição de ver e tratar os surdos. Para tanto, vamos começar a
tratar do que muito comumente chamam a Libras – de “linguagem”.

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2.1. Linguagem é o campo do simbólico
Já vimos que os códigos são compostos de símbolos, mas estes
não se restringem totalmente a códigos. Há a simbologia, que dentre
outras atividades é o campo de trabalho preferencial da arte, na qual com
frequência os símbolos são usados para desafiar as normas convencionais
de representação ao invés de obedecerem a elas. Por isso, fala-se de
“linguagem cinematográfica”, por exemplo; que é bastante diferente de ter
um sentido comum anterior, uma convenção previamente estruturada. É
claro que o cinema possui, como as demais artes, técnicas e mesmo códigos
que compõem e sistematizam sua atividade de produção, porém, filmes e
cenas remetem a significados apenas parcialmente estruturados, sem uma
codificação exata e inequívoca; daí o espaço da interpretação de sentidos
e livre associação – ao contrário dos códigos. Desse modo, a linguagem
claramente não se restringe a códigos. Estes até dependem inteiramente de
símbolos e regras, mas há signos convencionados que vão além deles. Ou
seja: símbolos compõem toda forma de linguagem, seja ela estruturada
(objeto da linguística) ou não (objeto da simbologia). Assim, para a linguística,
linguagem é a “faculdade de (re)criar e manipular sistemas de comunicação”,
ao estabelecer pensamentos (função interna) e se expressar (função externa)
(LUFT, 2002, p. 1).

MEMORIZE

Linguagem é outro termo empregado de muitas formas diferentes:


é comum em ambientes não acadêmicos utilizá-lo também para descrever
códigos, como em “linguagem de programação”, “linguagem técnica” ou
“linguagem das ruas”. Não são aplicações totalmente erradas, mas podem
confundir por serem abrangentes demais. Como ocorre com vários conceitos
que trabalhamos até aqui, é preciso estar sempre ciente da possibilidade de
polissemia (quando uma palavra tem vários sentidos possíveis) de modo que o
significado de um termo depende muito do contexto em que este se encontra.

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Perceba que, tais quais ícones e índices, as linguagens abstratas
não atenderiam de maneira suficiente à miríade de necessidades de
comunicação dos seres humanos em nosso dia a dia. No contexto certo, a
riqueza da simbologia cumpre um papel especial e insubstituível na ampliação
de nossas percepções e sensibilidade, mas não ajuda muito a conferir o troco
do pão, por exemplo. As características técnicas de um quadro (dimensões,
figuras ou traços, cores e referências estéticas etc.) podem representar um
ânimo, mas não uma mensagem unívoca. Não há, só com simbologia, como
se entender a contento com outras pessoas em todo e qualquer contexto
prático. De alguma forma, porém, essa comunicação ocorre e parece persistir.
Por quê? Ocorre que as nossas necessidades práticas vão muito além das
possibilidades de comunicação de códigos comuns: não seria adequado
declamar uma poesia e dialogar em código Morse, muito menos tentar
convencer os amigos para lhe acompanhar em uma festa sem usar palavras,
só a escrita de raízes quadradas, exponenciações e cálculos infinitesimais!

FIQUE ATENTO
A maioria dos códigos que usamos no cotidiano depende sempre em al-
gum nível de palavras pertencentes a uma língua preexistente, como o portu-
guês; são feitos de símbolos que remetem a outras convenções de símbolos;
não diretamente a referentes do mundo. São “signos interpretantes”.

Há aqueles códigos que “escondem” essa relação com as palavras ao


adicionar camadas de natureza não-verbal de comunicação. A exemplo,
os códigos de programação, que na base remetem à lógica binária dos
computadores, formada convencionalmente por alternância entre longas
sequências de 0 e 1 (que já são uma outra convenção de marcações de estados
mecânicos distintos). Já grande parte das placas de sinalização utilizam
símbolos visuais, como setas e representações icônicas. Mas em ambos os
casos, para se tornarem instrumentos inteligíveis e úteis ao ser humano,
acabam sendo convencionadas, descritas e (re)interpretadas em “frases”
estruturadas (que para a informática se chamam “pseudolinguagens”) e/
ou regulamentações (as normas e códigos de trânsito) baseadas em outro
código. Desse modo, para serem viáveis, os códigos “comuns” (técnicos,
científicos, telegráficos, jurídicos...) tendem a se converter em interpretantes
ao manter relações fortes de dependência com as palavras.

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2.2. Língua é um código (muito) especial
O exercício de estabelecer sentido por meio de palavras, seja no meio
interior ou exterior, é chamado de comunicação verbal; e é por ela que
estruturamos nosso pensamento e nosso discurso. O comportamento verbal
específico associado ao uso exterior das palavras é um processo chamado
de fala ou verbalização. É importante, aliás, não a confundir com “oralizar”, o
ato motor de articular as palavras – “fala” aqui tem mais a ver com a forma do
discurso particular de uma pessoa ou grupo, “refere-se à linguagem em ação,
à produção linguística do falante no discurso” (SLOMSKI, 2011, p. 45, grifo
do autor). Desse modo, se a linguagem é a capacidade mental de organizar
os signos simbólicos (como as palavras) e estabelecer sentido, o conjunto
pensamento-e-fala é o que vai concretizar isso em termos de comunicação
verbal – que precisa, então, de regras para reger as palavras de um código.

Há uma categoria especial de comunicação verbal que se diferencia


significativamente de outros similares em relação à ampliação de significados
e importância para os seres humanos de forma geral: as línguas. Afinal, elas
são também códigos, portanto, sistemas de regras e representação simbólica
que permitem a comunicação de mensagens – mas partem dessa definição
para a condição de recurso central da nossa própria experiência humana e dos
significados que damos ao mundo. Mas... que salto! Como isso é possível?
Por conta de toda língua ser mais extensa do que os outros códigos e ter uma
aquisição muito peculiar. Repare bem: em certa fase do início da vida, não
é preciso “decorar” ou entender logicamente suas regras e convenções para
aprender qualquer língua; as crianças em especial possuem a mais extrema
capacidade de adquirir linguagem; bebês vão a aulas de gramática, estes
a assimilam e falam simplesmente por ouvir as pessoas à sua volta falando.

Tanto assim que estudiosos de diversas áreas (semiótica, linguística,


psicologia, biologia, antropologia, neurociências etc.) investigam há décadas
quando ou como essa capacidade extraordinária emergiu em nossa
evolução. Descobrir tal processo evolutivo seria provavelmente desvendar o
nascimento da consciência como a conhecemos, aspecto definidor da própria
condição humana. Desde que nos tornamos o que somos, ao estruturar a
cognição, a língua torna-se, diante de tantos interpretantes, um “interpretado
universal”, presente em pelo menos um dos extremos da decodificação de
todos os outros códigos com que lidamos. Só depois de aprender um idioma
se está apto a aprender outros códigos: de leitura, escrita, convenções etc.

LIBRAS | 21
CURIOSIDADE

Em alguns filmes, e por vezes notícias, ocorre, de vez em quando, uma


referência a animais “aprendendo língua de sinais”. Muito cuidado nessa hora!
Sem menosprezar o feito, todos os casos relevantes documentados até hoje
focam o tamanho do repertório vocabular e a associação estímulo-resposta,
apenas. Assim, ver um chimpanzé fazer sinais para receber comida não é o
mesmo que dizer que ele é capaz de decodificar e entender os sentidos em
frases mais complexas. Veremos adiante que, para isso, teria que adquirir
linguagem da forma comunitária, tornando-se capaz de dominar, idealizar e
raciocinar como nós, humanos. Na verdade, aquele indivíduo deve ter recebido
um bom treinamento repetitivo específico e, provavelmente, usa elementos de
uma língua como um código comum, não linguístico.

Essa “onipresença” ou ubiquidade é bem evidente. Placas de trânsito,


por exemplo: muito embora seja feita para a imediata identificação, a aparência
sintética dos símbolos que apresentam exige o complemento de um texto,
o chamado Código de Trânsito, para regular uma mensagem coerente e
unívoca do sistema – e ele é baseado no nosso idioma. Da mesma forma
acontece com a notação matemática: tremendamente funcional para o seu
propósito específico, mas carente de completude e gramática própria para
representar adequadamente mensagens e raciocínios. Sem uma língua para
lhes dar suporte, os cálculos mais básicos, como soma e divisão, seriam
incompreensíveis, pois não haveria palavras que expressassem quantidades,
operadores e outros elementos matemáticos. E assim é sempre para todos
os demais códigos ditos “comuns”, não linguísticos, feitos de seres humanos
para si ou para outros seres (sejam vivos ou máquinas): a língua está
lá, presente, se não na origem do próprio código, ao menos como último
interpretado ao começo ou fim de toda codificação possível.

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Figura 05: A língua pode se associar a toda e
qualquer forma de significação.

“É proibido “atenção”
fumar”
“estou na festa à
“quatrocentros e fantasia e participo
cinquenta e seis” da brincadeira”
“eu aprovo algo “perigo
relacionado iminente!”
a este vídeo”
“sou um faraó”
“uma sombra projetada
que se aproxima
“Curtir” furtivamente”

Fonte: Elaborada pelo autor.

Lembremos que a linguagem (no singular) é um conceito mais


abrangente e que língua, por outro lado, tem restrições que aquela não tem
– como as regras de ortografia, sintaxe etc. Isso poderia parecer um ponto a
favor das linguagens não estruturadas (simbologia), mas ocorre que enquanto
esta demanda uma interpretação mais demorada, toda forma de raciocínio
(pensamento) exige rapidez e se aproveita da convenção intuitiva das línguas.
Isso só é possível com as características que decorrem da convenção própria
aos símbolos; que, no caso de línguas, ganham insuperável amplidão.

Nasce daí, em conjunção com a habilidade de aprendermos nossa


língua nativa sem nem perceber, a possibilidade de falar sobre tudo no
mundo. Ao contrair em palavras diversos significados possíveis (polissemia),
ao mesmo tempo em que permite encadeamento coerente das ideias e
torna a percepção de seus signos instantânea, a língua se torna um aspecto
insuperável de significação da realidade. Podemos, virtualmente, construir
infinitas mensagens com um número finito de palavras. De saída, todas
aquelas características que anteriormente associamos a gestos genéricos
(signos icônicos ou indiciais) como evidência de suas limitações, invertem-se
agora para os gestos linguísticos específicos (signos simbólicos):

LIBRAS | 23
• eles são convencionados (não é preciso inventar ou adivinhar o
sentido dos signos a cada vez que os usamos) – logo...

• podem se referir mais livremente a abstrações (conceitos e


qualidades, modos, relações, altas quantidades etc.) – por isso...

• têm repertório muito mais amplo (conceitos como “também”,


“porquê”, “onde” e “querer” são viáveis e usados) – dessa forma...

• o sentido da maioria dos referentes se relaciona a uma única


palavra que é bem delimitada pelas convenções, o que leva
a se perder muito pouco tempo e esforço para o receptor
entender ( “ato” ou “planejar” têm ortografia correta) - e ainda...

• é plenamente possível correlacionar dois ou mais sentidos


com clareza, precisão e segurança como na fala (“uma rotina de
trabalho” e “um trabalho rotineiro” têm sentidos plenos e distintos
por meio de palavras muito próximas) – de modo que...

• se viabiliza a formulação de sentenças e ideias mais elaboradas


(estabelecendo relações entre ideias: dependência, condição,
simultaneidade etc.; como “minha rotina de trabalho é não ter um
trabalho rotineiro”) – e assim por diante.

Assim, se os códigos comuns trazem possibilidades comunicacionais


ampliadas e mais funcionais em relação a gestos e outras formas não verbais
de expressão, as línguas “redobram” isso com relação aos demais códigos.
E, por isso, a principal e decisiva diferença está no fato de que as línguas,
mais do que qualquer outro código, permitem entender e nos expressarmos
sobre qualquer coisa no mundo, concreta ou abstrata. Através de suas regras
e de vocabulário, somos capazes de raciocinar e elaborar qualquer sentido,
seja em poucas palavras ou em discursos extensos. Exploram-se a contento
todas as funções da linguagem a partir disso: a emotiva, a conativa, a
denotativa, a metalinguística, a fática e a poética.

...línguas, mais do que qualquer


outro código, permitem entender e nos
expressarmos sobre qualquer coisa no
mundo, concreta ou abstrata.

24 | LIBRAS
FIQUE ATENTO

As funções da linguagem são maneiras distintas de evidenciar um dos


elementos da comunicação, que vão além de emissor, mensagem e receptor:
há ainda referente, canal e código (modelo consagrado de Roman Jakobson).
A depender de como falamos, portanto, estamos enfatizando as relações com
um ou outro desses aspectos básicos da comunicação, quando os chamamos
de funções emotiva (quando se volta para o emissor), conativa (para o receptor),
denotativa (para o referente), metalinguística (para a própria mensagem), fática
(para o canal) ou poética (para o código).

Mesmo que em alguns casos seja difícil transmitir a mensagem com


exatidão e sucintamente, os meios de organizar ideias em palavras são
para cada língua impossíveis de contar, sem restrições de extensão como
em outros códigos. Apenas imagine quantos textos diferentes seria possível
escrever com todas as palavras do dicionário: junte tudo o que já foi escrito
de original até hoje em toda a história da humanidade – e, com tradução,
isso não teria esgotado nenhuma língua. É dessa forma que uma língua
se distingue de todos os demais códigos: sendo completa, nossa base
cognitiva. Tomando “linguagens” (no plural) como códigos, da língua pode-
se dizer que:

[...] há algo que a coloca como coroa de todas as demais lingua-


gens: a possibilidade de usá-la como interpretante de todas as
outras linguagens. O que nos seduz na língua é o fato de po-
dermos refletir sobre a língua e falar da língua usando a própria
língua. Com a língua podemos falar de quaisquer linguagens,
inclusive dela mesma. E isso é uma característica muito peculiar
à nossa humanidade, à nossa condição humana: o fato de esta-
belecermos reflexões, diálogos e relações na/pela/com a língua.
(RODRIGUES; QUADROS, 2015, p. 75)

LIBRAS | 25
GLOSSÁRIO EM LIBRAS
Lição 3: Com licença / Obrigado / De nada

Fonte: Elaboradas pelo autor.

2.3. O que faz de uma língua uma língua


Se toda língua é alicerce para construir a cognição dos sujeitos que a
utilizam, já que “é pela linguagem que o pensamento humano se organiza e se
desenvolve” (SLOMSKI, 2011, p. 45), ela é também base para coletividades.
Uma convenção, afinal, se estabelece e se consolida (independente de
formalização) na partilha de mensagens – o que exige mais de uma pessoa.
Por extensão, podemos dizer que nossa própria percepção simbólica e o
modo de pensar tomam uma ou outra forma a depender de quanto de uma
língua se domina – e o domínio, a fluência, se faz com prática. Daí, não
basta a um código ser extenso e complexo para ser considerado uma língua,
seja ela artificial ou mesmo natural.

CURIOSIDADE
Entende-se por língua natural aquela que se desenvolve primeiramente
através do uso cotidiano por via da fala em um grupo social (a chamada co-
munidade linguística), sendo só após esse desenvolvimento depreendidas e
formalizadas as suas normas gramaticais. A absoluta maioria das línguas orais
que conhecemos se enquadra nessa categoria. A língua artificial, por sua vez, é
aquela que foi idealizada e teve suas regras convencionadas antes do pleno uso
comunitário. É o caso do Esperanto (uma língua franca que se pretende tornar
universal) e das línguas ficcionais como o klingon (de Jornada nas Estrelas), o
sindarin e o quenya (línguas élficas na saga fantástica O Senhor dos Anéis).

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Uma língua precisa ter, em algum momento, uma comunidade coesa
que a pratique de maneira contínua, recorrente, pois as formas de dar sentido
ao mundo se relacionam profundamente com o contexto cultural, a vivência
cotidiana e a história da comunidade linguística correspondente. Por isso,
é discutível categorizar as línguas ficcionais enquanto línguas plenas, pois
não têm entre seus fundamentos uma comunidade que a pratique de modo
corrente. Se não há grupo que a use sempre e a renove com novas gerações,
qualquer código, especialmente línguas, perde sua evolução própria e se
esvai; se nunca houve tal grupo, apenas códigos complexos inventados por
mentes criativas, ela nunca foi língua propriamente.

CURIOSIDADE

Até há notícias de fãs praticantes de klingon que se esforçam


notavelmente em promover a língua, realizando grandes encontros anuais
e procurando exercitá-la trocando mensagens a distância no intervalo entre
eles. Mas eles não formam uma comunidade coesa e solidária com cotidiano
baseado nessa língua; não há crianças (ao menos não em número suficiente)
nascendo e sendo ensinadas nativamente em klingon; seu uso, enfim, volta-se
sobretudo para o momento dos encontros periódicos, quando falar nessa língua
ajuda na imersão lúdica em atividades relacionadas ao mundo fantástico da
série. Desse modo, suas formas de perceber e pensar permanecem baseadas
em suas línguas nativas originais.

Por isso, de modo análogo se fala hoje que o latim é uma “língua
morta”, apesar de ter contribuído enormemente para dezenas de línguas
atuais. Por certo há religiosos e estudiosos que mantém seu uso com certa
recorrência, alguns dos quais até são versados nela desde a infância, mas não
em comunidades conviviais nativas desta língua. E há hoje outras milhares de
línguas sob risco real de desaparecer completamente, em geral associadas
a povos e culturas que perderam grandes volumes populacionais, seja por
perda de vidas ou por aculturação. Essas e o latim, no entanto, não deixarão
de ser conceitualmente línguas se se perderem para sempre no tempo, pois,
em algum momento, foram praticadas de fato por comunidades linguísticas.

LIBRAS | 27
Outra mostra do quanto uma língua depende de uma comunidade
de uso para manter seu repertório simbólico são os conflitos de sentido
diante das figuras de linguagem originadas em outras línguas. “Tiradas”
em sitcoms norte-americanas e referências a elementos que desconhecemos
podem inicialmente nos parecerem estranhas e sem graça, mas fazem todo
sentido para quem tem o repertório simbólico comum à cultura originária
dessas mensagens e o usa com frequência cotidiana. Lembra quando
perguntamos se “não será o pulo do cachorro ao invés de o pulo do gato”?
Eis uma expressão idiomática, que exige repertório cultural associado ao
português do Brasil – e você provavelmente “pegou” o trocadilho “no ar”, mas
um americano sem contato com o português não pegaria. Por outro lado,
“abanar o cachorro” (ao invés do rabo) é um ditado dos Estados Unidos que
mal dá para entender aqui. Sob tal perspectiva, todo humor tende a ser um
pouco “piada interna”.

Os valores e símbolos partilhados por cada cultura evoluem no meio


social e levam a língua junto, que se transforma e é também uma força
transformadora permeada nos mais diversos graus por processos dinâmicos
variados. Estes vêm do contato com outras comunidades linguísticas e seus
símbolos sob a forma de empréstimos de termos, derivações, vulgarizações,
sofisticações, subversão de normas, resistências e regionalizações etc.

Portanto, conformam não apenas os indivíduos, mas alcançam a


cultura e a autopercepção da comunidade ou povo que partilha uma língua
– e vai produzindo mais símbolos distintivos ao longo da evolução histórica a
ponto de formar uma identidade. A exemplo, há quem diga que o português
é uma das línguas mais difíceis e belas do mundo, que seria mais “musical”
e “literária” que outras, como evidenciaria a palavra “saudade”, exclusiva e
quase impossível de se traduzir conceitualmente para outras línguas orais.
Isso talvez explicasse parte de nosso comportamento social, afetuoso,
expressivo e melodramático. Por outro lado, a fama que alguns povos
asiáticos têm de grande desempenho em matemática, enquanto gregos e
alemães teriam em filosofia, pode ter explicação nas características de suas
línguas, que por terem vocábulos mais simples e/ou regulares para números
e conceitos, facilitariam respectivamente as operações matemáticas e a
análise de conceitos.

28 | LIBRAS
FIQUE ATENTO

Essas tendências não devem ser reduzidas a poucos aspectos: há


muitos outros fatores contribuindo para o fenômeno, especialmente históricas e
socioeconômicas. E ao ignorar isso, ficaríamos sob risco de cometer distorções
e até reforçar preconceitos, como quando acreditamos que uma língua (ou
povo) é superior a outro. Por exemplo: o inglês, que é considerado por muitos
“mais prático” em relação ao português, tem pelo menos sete palavras distintas
(point, dot, spot, stop, score, period e stitches) para o nosso “ponto” – o que
pode ser ou não uma dificuldade, mas não é “menos complicado”.

Finalmente, com esse aspecto comunitário, contemplamos todas as


condições que atendem ao status de uma língua, diferenciando-as de outros
códigos. Não lembra? É que já abordamos anteriormente, porém sem citar:

• Sistematização: códigos linguísticos vão além de poucas normas,


são sistemas simbólicos complexos (o português é mais elaborado
e versátil do que o código Morse ou o Sistema Internacional de
Unidades);

• Processamento: há no uso da língua processos mentais


localizados em áreas específicas na produção de pensamento e
fala (padrão que não ocorre com outros códigos);

• Arbitrariedade: as línguas trabalham com símbolos, que são


signos com relação convencionada com o referente (a sequência
de letras C-A-C-H-O-R-R-O não sugere nem “imita” a figura do
animal, certo?);

• Contraste: alterar letras ou sequência em uma palavra implica


erro ou mudança do símbolo (exemplo: C-A-C-H-O-R-R-O 
C-A-C-H-I-M-B-O);x

LIBRAS | 29
• Produtividade: pode-se falar tudo com um número limitado de
palavras;

• Aquisição da linguagem: os indivíduos que adquirem uma língua


em momento (idade) e contexto (cultura) propícios estruturam sua
forma de pensar e se comportar de acordo com a língua de uso (em
geral, nativos brasileiros falam português com mais desenvoltura
do que os “gringos”);

• Funções da linguagem: as palavras permitem explorar ênfases


em todos os seis elementos do modelo de comunicação de
Jakobson (com uma língua dá para se ler e produzir, entre outras
possibilidades, lirismo, ciência, argumentos, códigos de teste,
poesia e falar da própria língua);

• Evolução: as línguas são dinâmicas e se alteram de acordo com


a cultura à qual se associa (o português europeu, a exemplo,
derivou-se em especial do latim vulgar em mistura com línguas
locais lusitanas e contribuições mouras; e sua variante brasileira
descende do português brasileiro com grandes contribuições de
línguas africanas e indígenas);

• Comunidade: as línguas dependem de um grupo de praticantes


nativos e usuais, a sua comunidade linguística (sem isso permanece
apenas um código e não desenvolve as outras marcas próprias de
uma língua).

Notemos, por fim, que, em maior ou menor grau, essas características


todas só são possíveis dadas as naturezas simbólicas específicas dos signos
linguísticos e das regras que os regem. Cada uma dessas características
acima citadas só se torna possível por haver convenções que por um lado
limitam a relação do símbolo com o que representam, mas por outro tornam
inumeráveis as possibilidades de arranjo significativo em infinitas mensagens.
Sem essa combinação de fatores, um código não tem as bases suficientes
para alcançar o status e desempenhar o papel de língua.

Agora, tomados os preceitos que dão contornos claros às línguas,


podemos, enfim, começar a adentrar nosso principal foco de estudo – a
Libras!

30 | LIBRAS
GLOSSÁRIO EM LIBRAS

Lição 4: Eu / Você / Nós / Nós dois

Fonte: Elaboradas pelo autor.

3. Libras: uma língua plena?


Iniciamos essa unidade falando de gestos e chegamos à língua
de sinais. Nesse trajeto, entendemos que há comunicação verbal e não
verbal, distintas entre si pelo foco em palavras (verbal) ou ideias abstratas
(não verbal). E também que a linguagem é uma faculdade e a fala o
processo de expressão próprio da comunicação verbal. Vimos que os gestos
que usamos cotidianamente são símbolos, mas não formam código por si
sós, podendo remeter ou não a uma palavra (como na mímica). Verificamos
que para serem código é preciso que os símbolos integrem um conjunto
sistematizado e convencionado de regras de uso. Além disso, vimos que em
contextos fora dos estudos linguísticos esses são muitas vezes chamados
de “linguagem”– como em “linguagem de programação” ou “linguagem de
sinais”. Veja: gestos, comunicação não verbal, mímica, código e “linguagem
de sinais” são várias das formas com que costumamos ver os ouvintes se
referirem a Libras, como se fossem sinônimos exatos - o que já sabemos não
ser verdade. É hora, então, de aplicar nosso aprendizado para valer sobre
nosso maior interesse na disciplina: vamos começar a entender a Libras!

3.1. Gestos ou sinais?


O que ou quanto você já conhece de Libras? Talvez bastante, em
especial se tiver convívio próximo com surdos. É mais provável, entretanto,
que seu contato seja pequeno, baseado em poucos encontros, curiosidade
e muita vontade de aprender. Para a maioria de nós, a primeira imagem que
vem à mente ao se falar de Libras é o alfabeto manual (o “Abecedário da
Xuxa”).

LIBRAS | 31
Figura 06: O alfabeto manual e os números em
línguas de sinais (“datilologia”)

Fonte: https://bit.ly/3iTRcJl.

Será que cada uma dessas mãozinhas representa gestos? Já tratamos


desse conceito no início da unidade, dividindo-os entre simbólicos e não
simbólicos; isso talvez ajude a responder. Caso ainda assim não consiga,
lembre o que diferencia ícone, índice e símbolo. Se você sente que já tinha
entendido bem esses conceitos, mas agora, por algum motivo, está em
dúvida para responder, pode ser o melhor sinal de que você realmente captou
algo precioso do nosso estudo. Acontece que, em se tratando do campo da
linguagem e dos sentidos, tudo vai depender muito do contexto, a forma
como o signo se relaciona com seu entorno. Não é diferente com a ideia
de gesto: a resposta mais simplória é “sim, são gestos”, mas, pensando em
como isso poderia impactar a relação com os surdos, seria mais proveitoso
dizer “temos tempo para a gente se entender antes de eu responder?”.

Afinal, você se recorda do momento no texto em que começamos


a falar de gestos? Não estávamos falando de línguas de sinais, mas de
como é comum pensar em ou recorrer a eles caso se precise falar com
surdos. Mas quando não temos repertório nem conhecemos a natureza da

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Libras, a tendência é usar os gestos como pantomima, mímica. É assim
que a pergunta desse tópico, feita de modo aberto, traz implicitamente um
dos preconceitos-chave com relação à Libras: a de que é uma forma de
comunicação menor, aleatória, desarticulada. E se a resposta for também
aberta, dada imediatamente, sem pensar nem contextualizar, pode levar ao
reforço desse preconceito, pois ao se falar de “gestos” é improvável que as
pessoas escapem do senso comum da mímica e tenham em mente todas
as considerações sobre o campo da linguagem que agora você é capaz de
fazer.

O que vemos nas mãozinhas são gestos, sim, mas gestos simbólicos
– e, como em geral as pessoas não têm noção do que é ícone, índice ou
símbolo, ou de como diferenciar esses gestos, é melhor chamá-los de sinais.
Portanto, tratá-los como “gestos e só” não é suficiente para considerar o
que está em jogo quando se lida com símbolos: as múltiplas possibilidades
de representar ideias complexas e abstratas, de, a partir delas, formar
sentido, conformar culturas em comunidades de convívio contínuo, explorar
contextos e compartilhar valores, tudo o que estudamos até aqui, afinal!

FIQUE ATENTO

Lembra que falávamos também de repertório - ou seja, conhecer


diversas palavras e circunstâncias de aplicação dentro de um código? Ter
esse conhecimento ajuda a dar contexto às mensagens e elaborar ou perceber
melhor seus sentidos. Por exemplo: a primeira foto desta unidade, com um
sujeito tocando air guitar, pode não ser mais do que isso mesmo para eu
e você – um senhor qualquer fingindo tocar guitarra. Mas quem gosta de
rock internacional pode ter reconhecido (ou ao menos ter desconfiado) de
que se tratava de Ian Gillan, vocalista e compositor (mas não guitarrista) da
banda Deep Purple. Ou seja, um mesmo significante faz sentido diferente
para pessoas diferentes a depender de seu conhecimento prévio com outros
símbolos com os quais ele se relaciona.

LIBRAS | 33
Então, a rigor, não seria errado dizer que são gestos, tanto que em
Portugal se fala de “Língua Gestual”; mas a depender do contexto, pode soar
incompleto e inoportuno. Assim, se confirmamos para alguém suas ideias
prévias de gestos, perdemos a oportunidade de enriquecer o diálogo ou
nosso interlocutor com uma outra perspectiva do que está sendo discutido.
E a necessidade de perceber isso não é mero “preciosismo politicamente
correto”: o uso ou não de palavras e suas relações com as outras não só têm
impacto no sentido imediato das mensagens que transmitem, mas também
conforma em diversas “camadas” como se entende o contexto relacionado à
mensagem e, em última análise, à própria realidade ao nosso redor, levando
nossa forma de se comportar a um ou outro resultado.

Se acreditamos, já de início, que os surdos têm uma forma menor


de se comunicar, sem nem entender a sua realidade de fato, a tendência é
trata-los de forma menor, como seres limitados, inferiores e sem capacidade
de entender plenamente o mundo – quando as dificuldades podem estar (e
mais provavelmente estão) em nós mesmos, ouvintes. Infelizmente, por mais
errada que seja (como temos estudado), esta é uma situação muito comum
e até fácil de constatar, inclusive entre quem convive com surdos. Mesmo
quando não causa danos claros e diretos a um indivíduo, é sem dúvida
um preconceito que atinge todos os surdos, pois “pré-conceito” é definir o
sentido de uma ideia antes de lidar com a realidade representada – ou seja,
falar sem conhecer.

Ok, então, ao menos o que se vê na datilologia são sinais. São gestos


simbólicos: afinal, não há relações muito fortes de iconicidade ou indicialidade
entre cada movimento e posição de mãos e dedos e a letra que cada sinal
representa. Pode-se pensar que, entre muitas outras, as formas datilológicas
do “M” e do “N” são icônicas, pois usam as pontas dos dedos na mesma
quantidade de “pernas” na parte inferior da letra – respectivamente três e
duas. Podemos dizer que de fato são “mais icônicas” do que o “P” e o “S”, por
exemplo; mas essa relação figurativa, além de ser apenas parcial, não é de
imitação nem para “M” e “N”, pois o sinal não muda procurando acompanhar a
escrita em letras cursiva, de forma ou em tipografias especiais, por exemplo;
é sempre o mesmo sinal. A relação não é figurativa, mas arbitrária, fruto de
convenção – um “acordo de regras” (implícito) praticado entre as pessoas
que utilizam e partilham seu uso para que continuem se entendendo sobre
qual letra se representa com aquele sinal.

34 | LIBRAS
CURIOSIDADE

É bem provável que as próprias letras (símbolos) tenham derivado ao


menos em algum grau de figuras (ícones e índices). Há muito estudiosos
especulam que as letras fenícias que deram origem aos alfabetos grego e
latino (além de vários outros, orientais) evoluíram da estilização de desenhos
ao longo de séculos.

Mas há ainda outro sentido muito mais sutil que complementa esse
argumento, só que, sem o devido conhecimento, confunde ainda mais as
coisas: não só os gestos simbólicos podem ser confundidos com “mímica”,
mas também há nas línguas de sinais gestos icônicos e indiciais durante
sua expressão (fala). Claro que não são os sinais de que tratamos até aqui.
São ações posturais, faciais, de membros e/ou cabeça que indicam direção,
intensidade, metáfora, sarcasmo etc. São símbolos que compõem sentido
de maneira muitas vezes complementar - mas em certas ocasiões decisiva
ao atenuar, reforçar, alterar e até contrariar completamente a ideia que seria
transmitida por uma determinada palavra ou frase.

Mas, lembre: já falamos que isso ocorre também com línguas orais!
Numa conversa de bar, no banco da praça ou na sala de espera de um
consultório facilmente se observa o quanto as pessoas ouvintes gesticulam
enquanto oralizam – para apontar uma direção, demonstrar o estado de ânimo
ou reforçar o sentido do que dizem. São parte da comunicação não verbal
(ou “linguagem corporal”) que usamos com naturalidade, sem perceber, com
maior ou menor impacto no “sentido final” da mensagem.

Portanto, o fato de haver signos icônicos e indiciais em português


não difere em nada de Libras. Entre ouvintes e surdos isso também não é
diferente. Insistir que sinais são “só gestos”, como mera imitação ou mímica,
seria tão absurdo quanto reduzir o português (ou qualquer língua oral) a
onomatopeias: vocalizações na tentativa de imitar sons brutos do mundo
concreto – de porta batendo, piso estalando, piados de aves ou turbulência
dos ventos, totalmente limitado, nada representativo do que é uma língua
plena.

LIBRAS | 35
GLOSSÁRIO EM LIBRAS

Lição 5: Nome e sinal / Ouvinte / Surdo

Fonte: Elaboradas pelo autor.

3.2. Afinal, Libras é código?


É linguagem? Ou o quê?
Entendemos que Libras não é feita de “gestos” em sentido genérico,
do senso comum, como se fosse mímica – é feita de sinais. Sinais são
signos convencionados, portanto símbolos. Como se submetem a regras
específicas para construir mensagem e sentido, não caem no campo da
simbologia, das convenções abertas ou subvertidas. Portanto, até aqui são
signos linguísticos. Mas poderia ser um “código comum”? A datilologia,
afinal, é muito similar ao código Morse, cada símbolo representa uma letra;
e se letras compõe palavras, e estas compõem frases, a conclusão lógica
parece ser que Libras é um código. Mas será só isso?!

Antes de continuar, é preciso uma reflexão breve: pelo que você viu
até aqui nos glossários, o que pode depreender em comparação aos sinais
datilológicos: são os mesmos sinais? São próximos? Derivados uns dos
outros? É provável que você já tenha percebido o quanto estes sinais da
datilologia são parecidos ou diferentes dos outros sinais. Se não, você já
reparou nos sinais dos surdos fluentes se comunicando entre si? Não são
mímica, mas será que são datilologia pura?

36 | LIBRAS
LINK WEB
Se ainda estiver em dúvida, dê uma pausa e veja um vídeo produzido
e interpretado por surdos do canal no YouTube “Visurdo”. O tema também é
muito interessante e válido para nosso aprendizado: o que cansa os surdos no
comportamento dos ouvintes? Não deixe de se concentrar na forma como eles
sinalizam – e aproveite para tentar ver o que entende, já é um treino! Acesse:
http://bit.ly/CansamOsSurdos.

Com tudo que já vimos, fica até fácil intuir que a datilologia não atende
completamente às necessidades comunicacionais dos surdos, ainda mais
se você já conversou e chegou a entendimento com um surdo através das
“letrinhas nas mãos”. Se conseguiu mesmo se comunicar, parabéns pela
paciência – para você e para o surdo com quem conversou! No entanto, isso
não é tudo que existe em Libras, nem de longe! Do mesmo jeito que falar
soletrando não resulta na língua portuguesa, ninguém trocaria mensagens
por muito tempo falando cada letra de uma palavra separadamente (C-A-C-H-
O-R-R-O) ao invés de simplesmente falar a palavra de uma vez (“cachorro”)
– ou o sinal! Quanto mais frases inteiras, textos, discursos, conhecimentos
elaborados! Seria uma espécie de código Morse, mesmo – e não por acaso
esse código se confinou com o tempo à transmissão de mensagens muito
curtas e importantes (como o resgate de acidentes) a longas distâncias.

Pode parecer exagero, mas não é: muita gente ainda acha que os
principais sinais em Libras são os que se vê no alfabeto manual. Já imaginou
o quanto seria trabalhoso falar tudo por datilologia? Lento, difícil de manter
a linha de raciocínio, sem desenvolver conversas mais longas... Fica fácil
perceber como os ouvintes menos informados podem acreditar que surdos
são intelectualmente inferiores. Mas isso é ignorância de quem não conhece
a realidade dos surdos, de quem estabelece pré-conceito. Se você reparou
bem nos surdos sinalizando entre si, viu que a datilologia aparece só de
vez em quando, aqui e ali (às vezes, até sem termos certeza) – e logo é
“devorada” por uma entusiasmada e frenética sequência de novos sinais.
Há muitos outros sinais além dos datilológicos que realmente dão riqueza,
complexidade e profundidade à Libras, sem dever a qualquer língua oral -
tantos quanto é possível à capacidade humana produzir mensagem e sentido.

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MEMORIZE

A datilologia tem especial importância nas trocas necessárias entre


Libras e português, especialmente quando necessário usar nomes próprios ou
termos que não possuem (ou dos quais não se conhecem) sinais. Por isso, é
essencial para o aprendiz de Libras dominar a datilologia completa.

Então, falamos de um código especial, e assim como “há gestos e


gestos”, “códigos e códigos”, há linguagens e linguagens! Em sentido mais
conceitual, sabemos que Libras não é propriamente uma linguagem, pois esta
é a capacidade intelectual associada à comunicação, seja ela verbal ou não.
Em sentido mais restrito, como sinônimo de um “código comum”, também
já vimos que não – mas infelizmente, a respeito de Libras, “linguagem” é o
termo errado campeão para fazer confusão entre os ouvintes: em todo lugar
é fácil ler ou ouvir “linguagem de sinais”, “linguagem manual” ou “linguagem
gestual”. Novamente, diante de tudo o que vimos, acatar essa terminologia
seria equiparar leigamente Libras a “linguagem das abelhas”, “linguagem do
futebol”, “linguagem da emoção”.

Logo, Libras é gesto, é código e é linguagem – mas não é nada disso


segundo o senso comum que se estabelece tão facilmente. É preciso ter
muito cuidado com a forma como nos expressamos - enfim, o que e como se
diz têm efeito considerável a partir dos sentidos e do contexto que se explora
na comunicação. O impacto de dizer entusiasmado à família apenas “ganhei
na loteria!” dificilmente despertará em todos a cautela e a ponderação como
primeira opção. É bem mais provável que houvesse grande alegria, primeiro,
e depois frustração se você em seguida emendasse que não ganhou o prêmio
principal, mas o prêmio com o mínimo de dezenas, recebendo alguns trocados
apenas; tecnicamente, você ganhou na loteria mesmo, mas não é muito. Do
mesmo modo, chamar alguém a esmo de “animal” é biologicamente preciso,
mas tende a armar uma enorme confusão (ou ao menos estranhamento) na
maioria dos contextos. As palavras têm poder!

38 | LIBRAS
Claro, desde o início da unidade poderíamos responder a essa questão
simplesmente remetendo ao nome da disciplina – Língua Brasileira de Sinais.
Mas tomamos o caminho mais longo para assegurar que saibamos do que
se fala quando se refere a uma língua. Um segundo momento relevante para
perceber por que Libras é uma língua plena será estudado na Unidade 3,
ao considerar de maneira aplicada e mais aprofundada quais características
e funções especiais podemos identificar em Libras para definir sua natureza.
Mas, antes, entre outros aprendizados, continuaremos na Unidade 2 a
explorar o peso social dos símbolos e de seus sentidos, associado agora
à história da surdez e do tratamento da maioria de ouvintes às pessoas
surdas, pelo lado bom e pelo ruim. Ou seja, se foi necessário desmistificar o
que é “língua”, agora, entenderemos a relevância dessa desmistificação na
prática – mas faremos isso de outro modo, menos teórico e mais observador,
ressignificando conceitos como “fala”, “escuta”, “deficiência”, “BSL”, “LSB” – e
inclusive até “o que” (ou quem) é o surdo!

PRATIQUE
6. “Polissemia” é o mesmo que um termo representando vários sentidos. De que
forma podemos entender de que sentido se trata cada uso?

7. Como a convenção de regras que limita a conformação de signos simbólicos


pode explicar a rica natureza das línguas?

8. Por que uma comunidade linguística é tão importante para um código se esta-
belecer como língua? Sob esse mesmo critério, qual o “problema” conceitual
das línguas artificiais?

LIBRAS | 39
9. Cite ao menos três características particulares das línguas que as tornam es-
peciais diante de outros códigos.

10. “Gestos”, “código” e “linguagem” são termos comuns para descrever Libras.
Por que é indesejável ou inoportuno usá-los para se referir a ela?

RELEMBRE

Nesta unidade, investigamos em detalhes alguns fundamentos da


semiótica e da linguística para iniciar nosso entendimento sobre Libras. Vimos
a partir da ideia de “gestos” os conceitos de signo, tipificando-o entre ícones,
índices e símbolos. A partir da diferença entre esses, vimos também o que
são comunicação verbal, polissemia, código e linguagem.
Desdobramos ainda os conceitos de referente, significante, significado,
intérprete, interpretante e interpretado – úteis para compreender a complexidade
dos símbolos que compõem um código linguístico ou uma língua.
Passamos, então, a explorar com mais afinco esse conceito, sobre
o qual levantamos desdobramentos como “línguas naturais”, “artificiais” e
“francas”; bem como suas características singulares. No arremate desta
unidade, retomamos em forma de perguntas as categorias discutidas no início
da unidade – gestos, códigos e linguagem – para desfazer as confusões em
torno de Libras que cada um desses termos acaba representando, para, então,
afirmar que Libras é uma língua sem qualquer falta em relação às línguas orais.

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REFERÊNCIAS

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Enciclopédico Trilíngue da Língua de Sinais Brasileira. Volume I:
Sinais de A a L. Ilustrações: Silvana Marques. 2. ed. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2001.

CAPOVILLA, Fernando César; DUARTE, Walkiria Raphael (edit.). Dicionário


Enciclopédico Trilíngue da Língua de Sinais Brasileira. Volume II:
Sinais de M a Z. Ilustrações: Silvana Marques. 2.ed. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2001.

FALCÃO, Luiz Albérico. Surdez, Cognição Visual e Libras: estabelecendo


novos diálogos. 3. ed. revisada e ampliada. Recife: Ed. do Autor, 2012.

LUFT, Celso Pedro. Moderna Gramática Brasileira. 15. ed. São Paulo:
Globo, 2002.

MOTA, S. F. Dizer-se surdo – identidade e povo: uma perspectiva afirmativa


da diferença a partir da cultura surda (e uma provocação metacrítica). In: III
ENCONTRO BRASILEIRO DE PESQUISA EM CULTURA, 21 (Teorias da
Cultura), 2015, Crato. Anais (online). p. 49-59. Disponível em: https://drive.
google.com/file/d/0B5xa65vwjsTJZXF6dzRFc2lsZEk/view. Acesso em: 15
mar. 2019.

PEREIRA, José Haroldo. Curso Básico de Teoria da Comunicação. 5 ed.


Rio de Janeiro: Quartet, 2009.

RODRIGUES, Carlos H.; QUADROS, Ronice M. de. Diferenças e Linguagens:


a visibilidade dos ganhos surdos na atualidade. Revista Teias, v. 16, n. 40,
p. 72-88, 2015. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/
revistateias/issue/view/1337. Acesso em: 30 dez. 2018.

SLOMSKI, Vilma Geni. Educação bilíngue para surdos: concepções e


implicações práticas. Curitiba: Juruá, 2011.

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ANOTAÇÕES

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