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LIBRAS
Autoria:
Sávio Félix Mota
Expediente
Reitor: Ficha Técnica
Prof. Cláudio Ferreira Bastos Autoria:
Sávio Félix Mota
Pró-reitor administrativo financeiro:
Prof. Rafael Rabelo Bastos Supervisão de produção EAD:
Francisco Cleuson do Nascimento Alves
Pró-reitor de relações institucionais: Design instrucional:
Prof. Cláudio Rabelo Bastos Antonio Carlos Vieira
Pró-reitora acadêmica: Projeto gráfico e capa:
Profa. Flávia Alves de Almeida Francisco Erbínio Alves Rodrigues
Direção EAD: Diagramação e tratamento de imagens:
Prof. Ricardo Zambrano Júnior Ismael Ramos Martins
Coordenação EAD: Revisão textual:
Profa. Luciana Rodrigues Ramos Antonio Carlos Vieira
Ficha Catalográfica
Catalogação na Publicação
Biblioteca Centro Universitário Ateneu
MOTA, Sávio Félix. Libras. Sávio Félix Mota. – Fortaleza: Centro Universitário Ateneu,
2020.
164 p.
ISBN:
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida, total ou parcialmente, por
quaisquer métodos ou processos, sejam eles eletrônicos, mecânicos, de cópia fotostática ou outros, sem a autoriza-
ção escrita do possuidor da propriedade literária. Os pedidos para tal autorização, especificando a extensão do que
se deseja reproduzir e o seu objetivo, deverão ser dirigidos à Reitoria.
SEJA BEM-VINDO!
Olá, caro(a) estudante!
A obra que você tem em mãos é, como qualquer outra que se pretende
didática, incompleta. Não só porque é impossível aprender novos idiomas
simplesmente lendo livros, é que todo aprendizado demanda, em algum
nível, o complemento da observação e da prática sobre a realidade. Ao trazer
contextos de fundo social, histórico, linguístico e cultural, correlacionando-os
a temas essenciais da realidade dos surdos, favorecemos o aprendizado de
Libras mais do que colecionar sinais em um grande glossário visual.
Bons estudos!
Estes ícones aparecerão em sua trilha de aprendizagem e significam:
ANOTAÇÕES
CONECTE-SE
REFERÊNCIAS
SUMÁRIO
LIBRAS, UMA LÍNGUA PLENA
1. Comunicar é fazer sentido....................................... 8
1.1. Gestos e signos................................................. 9
01
1.2. Signos e códigos............................................. 10
1.3. Códigos e símbolos......................................... 13
2. De linguagem a língua........................................... 18
2.1. Linguagem é o campo do simbólico................ 19
2.2. Língua é um código (muito) especial............... 21
2.3. O que faz de uma língua uma língua.............. 26
3. Libras: uma língua plena?...................................... 31
3.1. Gestos ou sinais?............................................ 31
3.2. Afinal, Libras é código? É linguagem?
Ou o quê?............................................................... 36
Referências................................................................ 41
02
1.2. Ouvintismo: modernidade e
institucionalização........................................... 48
1.3. O “Despertar Surdo” nos anos 60................... 52
2. Cultura surda – e uma outra
concepção de surdez............................................. 58
2.1. Ouvintismo clínico e resistência...................... 60
2.2. As identidades surdas..................................... 63
2.3. Povo surdo e lideranças surdas...................... 68
3. A história recente dos surdos no brasil.................. 70
3.1. A FENEIS e o
Despertar Surdo tardio no Brasil..................... 71
3.2. As comunidades surdas
organizadas do Brasil...................................... 72
3.3. Conquistas: legislação e
políticas públicas............................................. 74
Referências................................................................ 81
GRAMÁTICA BÁSICA DE LIBRAS
1. Gramática formal: conceitos elementares...........84
1.1. Fonema, fonética e fonologia......................85
03
1.2. Morfema e morfologia..................................86
1.3. Sintagma e sintaxe......................................89
2. Parâmetros fonológicos da libras........................91
2.1. Configuração das mãos (CM)......................92
2.2. Ponto de articulação (PA)............................96
2.3. Movimento (M)............................................97
2.4. Orientação e direção (OD)...........................99
2.5. Expressões não manuais (ENM)...............100
3. Aspectos morfossintáticos................................104
3.1. Classes morfológicas mais básicas...........105
3.2. Morfossintaxe dos classificadores.............111
3.3. Aspectos sintáticos: concordância,
regência e ordem da oração......................116
Referências.............................................................. 120
ESCOLA BILÍNGUE,TRADUÇÃO-INTERPRETAÇÃO,
TILS E ELEMENTOS PARA A CONVERSAÇÃO
04
1. A educação de surdos.......................................... 124
1.1. Aquisição de linguagem e
modelos cognitivos....................................125
1.2. Modalidade visuoespacial x
modelos educacionais oralistas/mistos......128
1.3. Educação bilíngue para surdos.................132
2. Tradução, interpretação e o TILS profissional..... 137
2.1. Tradução, interpretação e técnicas............138
2.2. TILS: perfil e áreas de atuação..................142
2.3. Aspectos éticos globais dos TILS.............. 148
3. Exercícios de relaxamento e
percepção visual.................................................. 150
4. Prepare-se para conversar com surdos............... 155
Referências.............................................................. 163
Sávio Félix Mota
Unidade
Apresentação
Nesta unidade inicial, entenderemos o motivo pelo qual Libras
é de fato uma língua, sem dever nada a qualquer outra falada, e qual a
importância dessa informação para o estudo e aprendizado dela. Para isso,
vamos abordar de maneira sucinta conceitos semióticos e linguísticos,
como gestos, signos e código.
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1.1. Gestos e signos
Responda rápido: se você precisasse se comunicar com um(a)
surdo(a) agora, como faria? Se ainda não sabe falar Libras, é bem provável
que tenha respondido que em algum momento usaria gestos. É comum e
até previsível que seja assim, afinal, já utilizamos com frequência (muitas
vezes sem perceber) gestos e expressões corporais em nosso cotidiano,
mesmo ao falar línguas totalmente orais. Mais ou menos como mímica ou
pantomima, a modalidade de brincadeira em que empenhamos parte das
nossas habilidades visuoespaciais - o que vem a ser muito útil para adquirir
fluência em Libras.
Fonte: https://bit.ly/3f2iz2m.
LIBRAS | 9
• para explicar o sentido do que corresponde a uma única
palavra, pode se levar muito tempo e esforço, sem garantia do
receptor entender (como gesticular “ato” ou “planejamento”?) - e
ainda...
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2). Seus elementos não obedecem propriamente a convenções, muito menos
formam um sistema; os gestos que usamos quase sem perceber durante
a fala oral, por exemplo, estão presentes para complementar a mensagem
falada – mas não têm o poder de as substituir de forma completa ou eficiente.
Essa falta de sistematização dos gestos que vimos até aqui é a principal
marca dos signos não-simbólicos. Um bom exemplo para contrastar com
essa característica assistemática dos gestos icônicos e indiciais é o código
Morse; voltado para a transmissão telegráfica, ele possui regras muito bem
estabelecidas para representar números e letras do alfabeto e comunicar com
exatidão a mensagem pretendida. Para tanto, representa cada um de seus
caracteres com uma sequência específica de traços e/ou pontos para compor
palavras e frases a serem transcodificados em um idioma preexistente.
LIBRAS | 11
FIQUE ATENTO
Entendemos, pois, o que são gestos em geral e códigos. Mas será que
gestos específicos podem compor códigos? Claro que sim, basta pensar na
sinalização feita por agentes de trânsito: um pequeno grupo de expressões
corporais pode indicar “pare”, “prossiga” ou “siga neste sentido”. Já no
ambiente no controle de tráfego aeronáutico, instrumentos, como luminosos
e bandeiras, podem servir para ampliar a percepção dos gestos, o que não
apenas é útil para facilitar a visualização a maiores distâncias como, com
isso, permite tornar os códigos mais complexos, com mais “caracteres”.
A P R E N D A
L S B
Fonte: https://bit.ly/3bQnwJA.
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Assim, há inúmeros exemplos de código, das mais variadas dimensões,
complexidades e aplicações: vão de placas de trânsito e convenções de
ciência e tecnologia (pesos e medidas, elementos químicos, grandezas
e forças da física etc.) ao corpo textual das leis, códigos de conduta e as
ditas “linguagens de programação”. Perceba, no entanto, que todo código,
incluindo os que possuem gestos, utiliza signos de modo específico, de
forma muito diferente dos icônicos ou indiciais, ainda que guardem muito
próximo essa relação, traços e pontos, bandeirolas e luminosos não remetem
às letras ou ordens por representarem seu aspecto geral ou decorrerem
deles como “pistas” ou “impressões”. Falamos, portanto, de outra categoria
de signos, que veremos adiante: os símbolos.
GLOSSÁRIO EM LIBRAS
LIBRAS | 13
Haverá, então, signos que representem algo sem ser por semelhança
ou por causa e efeito? Que comunique ideia ou mensagem sem ser por copiar,
imitar, deixar rastro ou impressões? Você consegue imaginar? Ora, cada
palavra aqui escrita transmite ideias e assim se compõem mensagens que
por meio de sua leitura geram efeito em seu pensamento. Isso é comunicar
sentido, concorda? Pois então! Palavras são excelentes exemplos de
símbolos: representam algo ausente, porém, sem relação indicial (ou de
causa e efeito) com os objetos que representam, nem tampouco parecem em
nada fisicamente com estes. Aliás, as letras também são símbolos, sem se
assimilar ou terem relação direta com os fonemas (unidades de som da fala),
os representam, compondo sílabas e as próprias palavras (e daí por diante:
frases, versos, períodos, estrofes, parágrafos, textos etc.). E como isso é
possível? Esse é o pulo do gato (ou seria “do cachorro”?).
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CURIOSIDADE
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Ou seja, nem sempre um mesmo elemento representa a mesma coisa
para todo mundo. Outro exemplo: para a maioria dos brasileiros, “собака”,
“ ” e ”hond” não dizem absolutamente nada – mas para russos, árabes
e holandeses, respectivamente, significam “cachorro”. Ou seja: “significar”
pode ser explicado como “tornar ou criar signo” – e cada palavra daquelas,
por pertencer a códigos que não dominamos, soam como letras agrupadas
aleatoriamente (quando usam letras do nosso alfabeto – ou similares) ou
mesmo meros “desenhos”. Passam, para nós, a ser apenas indício de que
alguém escreveu algo em outra língua ou ícone de caracteres estranhos.
LINK WEB
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MEMORIZE
Em termos da semântica, o objeto é chamado de referente; o sujeito, de
intérprete; e o que ele percebe, de significante. Há ainda outros conceitos possí-
veis, como “significante”, “significado” e “interpretante”, mas guarde um em espe-
cial: aquele que percebe o signo e atribui sentido dentro de seu próprio contexto,
chamamos intérprete (PEREIRA, 2009, p. 43-44).
GLOSSÁRIO EM LIBRAS
PRATIQUE
1. Por que “gestos genéricos” não são tão adequados para comunicar? Quais
características dos “gestos específicos” são melhores para isso?
LIBRAS | 17
2. Em uma definição básica, o que são signos? E quais os tipos de signos, se-
gundo a semiótica? Descreva-os um a um.
4. Por que devemos considerar que um signo não é o próprio referente? Cite
uma circunstância em que essa distinção é necessária.
5. Explique como um signo pode “mudar” de tipo. Do que depende essa classifi-
cação?
2. De linguagem a língua
Todos esses conceitos que trabalhamos até agora são a base para
os conceitos que nos servirão para não só entender a natureza da Libras,
mas também refletir sobre a nossa prática. Sobretudo, nos permitem daqui
por diante desfazer preconceitos e enganos que quase invariavelmente se
veem em relação às línguas de sinais – o que, veremos na Unidade 2, reflete
na própria condição de ver e tratar os surdos. Para tanto, vamos começar a
tratar do que muito comumente chamam a Libras – de “linguagem”.
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2.1. Linguagem é o campo do simbólico
Já vimos que os códigos são compostos de símbolos, mas estes
não se restringem totalmente a códigos. Há a simbologia, que dentre
outras atividades é o campo de trabalho preferencial da arte, na qual com
frequência os símbolos são usados para desafiar as normas convencionais
de representação ao invés de obedecerem a elas. Por isso, fala-se de
“linguagem cinematográfica”, por exemplo; que é bastante diferente de ter
um sentido comum anterior, uma convenção previamente estruturada. É
claro que o cinema possui, como as demais artes, técnicas e mesmo códigos
que compõem e sistematizam sua atividade de produção, porém, filmes e
cenas remetem a significados apenas parcialmente estruturados, sem uma
codificação exata e inequívoca; daí o espaço da interpretação de sentidos
e livre associação – ao contrário dos códigos. Desse modo, a linguagem
claramente não se restringe a códigos. Estes até dependem inteiramente de
símbolos e regras, mas há signos convencionados que vão além deles. Ou
seja: símbolos compõem toda forma de linguagem, seja ela estruturada
(objeto da linguística) ou não (objeto da simbologia). Assim, para a linguística,
linguagem é a “faculdade de (re)criar e manipular sistemas de comunicação”,
ao estabelecer pensamentos (função interna) e se expressar (função externa)
(LUFT, 2002, p. 1).
MEMORIZE
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Perceba que, tais quais ícones e índices, as linguagens abstratas
não atenderiam de maneira suficiente à miríade de necessidades de
comunicação dos seres humanos em nosso dia a dia. No contexto certo, a
riqueza da simbologia cumpre um papel especial e insubstituível na ampliação
de nossas percepções e sensibilidade, mas não ajuda muito a conferir o troco
do pão, por exemplo. As características técnicas de um quadro (dimensões,
figuras ou traços, cores e referências estéticas etc.) podem representar um
ânimo, mas não uma mensagem unívoca. Não há, só com simbologia, como
se entender a contento com outras pessoas em todo e qualquer contexto
prático. De alguma forma, porém, essa comunicação ocorre e parece persistir.
Por quê? Ocorre que as nossas necessidades práticas vão muito além das
possibilidades de comunicação de códigos comuns: não seria adequado
declamar uma poesia e dialogar em código Morse, muito menos tentar
convencer os amigos para lhe acompanhar em uma festa sem usar palavras,
só a escrita de raízes quadradas, exponenciações e cálculos infinitesimais!
FIQUE ATENTO
A maioria dos códigos que usamos no cotidiano depende sempre em al-
gum nível de palavras pertencentes a uma língua preexistente, como o portu-
guês; são feitos de símbolos que remetem a outras convenções de símbolos;
não diretamente a referentes do mundo. São “signos interpretantes”.
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2.2. Língua é um código (muito) especial
O exercício de estabelecer sentido por meio de palavras, seja no meio
interior ou exterior, é chamado de comunicação verbal; e é por ela que
estruturamos nosso pensamento e nosso discurso. O comportamento verbal
específico associado ao uso exterior das palavras é um processo chamado
de fala ou verbalização. É importante, aliás, não a confundir com “oralizar”, o
ato motor de articular as palavras – “fala” aqui tem mais a ver com a forma do
discurso particular de uma pessoa ou grupo, “refere-se à linguagem em ação,
à produção linguística do falante no discurso” (SLOMSKI, 2011, p. 45, grifo
do autor). Desse modo, se a linguagem é a capacidade mental de organizar
os signos simbólicos (como as palavras) e estabelecer sentido, o conjunto
pensamento-e-fala é o que vai concretizar isso em termos de comunicação
verbal – que precisa, então, de regras para reger as palavras de um código.
LIBRAS | 21
CURIOSIDADE
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Figura 05: A língua pode se associar a toda e
qualquer forma de significação.
“É proibido “atenção”
fumar”
“estou na festa à
“quatrocentros e fantasia e participo
cinquenta e seis” da brincadeira”
“eu aprovo algo “perigo
relacionado iminente!”
a este vídeo”
“sou um faraó”
“uma sombra projetada
que se aproxima
“Curtir” furtivamente”
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• eles são convencionados (não é preciso inventar ou adivinhar o
sentido dos signos a cada vez que os usamos) – logo...
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FIQUE ATENTO
LIBRAS | 25
GLOSSÁRIO EM LIBRAS
Lição 3: Com licença / Obrigado / De nada
CURIOSIDADE
Entende-se por língua natural aquela que se desenvolve primeiramente
através do uso cotidiano por via da fala em um grupo social (a chamada co-
munidade linguística), sendo só após esse desenvolvimento depreendidas e
formalizadas as suas normas gramaticais. A absoluta maioria das línguas orais
que conhecemos se enquadra nessa categoria. A língua artificial, por sua vez, é
aquela que foi idealizada e teve suas regras convencionadas antes do pleno uso
comunitário. É o caso do Esperanto (uma língua franca que se pretende tornar
universal) e das línguas ficcionais como o klingon (de Jornada nas Estrelas), o
sindarin e o quenya (línguas élficas na saga fantástica O Senhor dos Anéis).
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Uma língua precisa ter, em algum momento, uma comunidade coesa
que a pratique de maneira contínua, recorrente, pois as formas de dar sentido
ao mundo se relacionam profundamente com o contexto cultural, a vivência
cotidiana e a história da comunidade linguística correspondente. Por isso,
é discutível categorizar as línguas ficcionais enquanto línguas plenas, pois
não têm entre seus fundamentos uma comunidade que a pratique de modo
corrente. Se não há grupo que a use sempre e a renove com novas gerações,
qualquer código, especialmente línguas, perde sua evolução própria e se
esvai; se nunca houve tal grupo, apenas códigos complexos inventados por
mentes criativas, ela nunca foi língua propriamente.
CURIOSIDADE
Por isso, de modo análogo se fala hoje que o latim é uma “língua
morta”, apesar de ter contribuído enormemente para dezenas de línguas
atuais. Por certo há religiosos e estudiosos que mantém seu uso com certa
recorrência, alguns dos quais até são versados nela desde a infância, mas não
em comunidades conviviais nativas desta língua. E há hoje outras milhares de
línguas sob risco real de desaparecer completamente, em geral associadas
a povos e culturas que perderam grandes volumes populacionais, seja por
perda de vidas ou por aculturação. Essas e o latim, no entanto, não deixarão
de ser conceitualmente línguas se se perderem para sempre no tempo, pois,
em algum momento, foram praticadas de fato por comunidades linguísticas.
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Outra mostra do quanto uma língua depende de uma comunidade
de uso para manter seu repertório simbólico são os conflitos de sentido
diante das figuras de linguagem originadas em outras línguas. “Tiradas”
em sitcoms norte-americanas e referências a elementos que desconhecemos
podem inicialmente nos parecerem estranhas e sem graça, mas fazem todo
sentido para quem tem o repertório simbólico comum à cultura originária
dessas mensagens e o usa com frequência cotidiana. Lembra quando
perguntamos se “não será o pulo do cachorro ao invés de o pulo do gato”?
Eis uma expressão idiomática, que exige repertório cultural associado ao
português do Brasil – e você provavelmente “pegou” o trocadilho “no ar”, mas
um americano sem contato com o português não pegaria. Por outro lado,
“abanar o cachorro” (ao invés do rabo) é um ditado dos Estados Unidos que
mal dá para entender aqui. Sob tal perspectiva, todo humor tende a ser um
pouco “piada interna”.
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FIQUE ATENTO
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• Produtividade: pode-se falar tudo com um número limitado de
palavras;
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GLOSSÁRIO EM LIBRAS
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Figura 06: O alfabeto manual e os números em
línguas de sinais (“datilologia”)
Fonte: https://bit.ly/3iTRcJl.
32 | LIBRAS
Libras, a tendência é usar os gestos como pantomima, mímica. É assim
que a pergunta desse tópico, feita de modo aberto, traz implicitamente um
dos preconceitos-chave com relação à Libras: a de que é uma forma de
comunicação menor, aleatória, desarticulada. E se a resposta for também
aberta, dada imediatamente, sem pensar nem contextualizar, pode levar ao
reforço desse preconceito, pois ao se falar de “gestos” é improvável que as
pessoas escapem do senso comum da mímica e tenham em mente todas
as considerações sobre o campo da linguagem que agora você é capaz de
fazer.
O que vemos nas mãozinhas são gestos, sim, mas gestos simbólicos
– e, como em geral as pessoas não têm noção do que é ícone, índice ou
símbolo, ou de como diferenciar esses gestos, é melhor chamá-los de sinais.
Portanto, tratá-los como “gestos e só” não é suficiente para considerar o
que está em jogo quando se lida com símbolos: as múltiplas possibilidades
de representar ideias complexas e abstratas, de, a partir delas, formar
sentido, conformar culturas em comunidades de convívio contínuo, explorar
contextos e compartilhar valores, tudo o que estudamos até aqui, afinal!
FIQUE ATENTO
LIBRAS | 33
Então, a rigor, não seria errado dizer que são gestos, tanto que em
Portugal se fala de “Língua Gestual”; mas a depender do contexto, pode soar
incompleto e inoportuno. Assim, se confirmamos para alguém suas ideias
prévias de gestos, perdemos a oportunidade de enriquecer o diálogo ou
nosso interlocutor com uma outra perspectiva do que está sendo discutido.
E a necessidade de perceber isso não é mero “preciosismo politicamente
correto”: o uso ou não de palavras e suas relações com as outras não só têm
impacto no sentido imediato das mensagens que transmitem, mas também
conforma em diversas “camadas” como se entende o contexto relacionado à
mensagem e, em última análise, à própria realidade ao nosso redor, levando
nossa forma de se comportar a um ou outro resultado.
34 | LIBRAS
CURIOSIDADE
Mas há ainda outro sentido muito mais sutil que complementa esse
argumento, só que, sem o devido conhecimento, confunde ainda mais as
coisas: não só os gestos simbólicos podem ser confundidos com “mímica”,
mas também há nas línguas de sinais gestos icônicos e indiciais durante
sua expressão (fala). Claro que não são os sinais de que tratamos até aqui.
São ações posturais, faciais, de membros e/ou cabeça que indicam direção,
intensidade, metáfora, sarcasmo etc. São símbolos que compõem sentido
de maneira muitas vezes complementar - mas em certas ocasiões decisiva
ao atenuar, reforçar, alterar e até contrariar completamente a ideia que seria
transmitida por uma determinada palavra ou frase.
Mas, lembre: já falamos que isso ocorre também com línguas orais!
Numa conversa de bar, no banco da praça ou na sala de espera de um
consultório facilmente se observa o quanto as pessoas ouvintes gesticulam
enquanto oralizam – para apontar uma direção, demonstrar o estado de ânimo
ou reforçar o sentido do que dizem. São parte da comunicação não verbal
(ou “linguagem corporal”) que usamos com naturalidade, sem perceber, com
maior ou menor impacto no “sentido final” da mensagem.
LIBRAS | 35
GLOSSÁRIO EM LIBRAS
Antes de continuar, é preciso uma reflexão breve: pelo que você viu
até aqui nos glossários, o que pode depreender em comparação aos sinais
datilológicos: são os mesmos sinais? São próximos? Derivados uns dos
outros? É provável que você já tenha percebido o quanto estes sinais da
datilologia são parecidos ou diferentes dos outros sinais. Se não, você já
reparou nos sinais dos surdos fluentes se comunicando entre si? Não são
mímica, mas será que são datilologia pura?
36 | LIBRAS
LINK WEB
Se ainda estiver em dúvida, dê uma pausa e veja um vídeo produzido
e interpretado por surdos do canal no YouTube “Visurdo”. O tema também é
muito interessante e válido para nosso aprendizado: o que cansa os surdos no
comportamento dos ouvintes? Não deixe de se concentrar na forma como eles
sinalizam – e aproveite para tentar ver o que entende, já é um treino! Acesse:
http://bit.ly/CansamOsSurdos.
Com tudo que já vimos, fica até fácil intuir que a datilologia não atende
completamente às necessidades comunicacionais dos surdos, ainda mais
se você já conversou e chegou a entendimento com um surdo através das
“letrinhas nas mãos”. Se conseguiu mesmo se comunicar, parabéns pela
paciência – para você e para o surdo com quem conversou! No entanto, isso
não é tudo que existe em Libras, nem de longe! Do mesmo jeito que falar
soletrando não resulta na língua portuguesa, ninguém trocaria mensagens
por muito tempo falando cada letra de uma palavra separadamente (C-A-C-H-
O-R-R-O) ao invés de simplesmente falar a palavra de uma vez (“cachorro”)
– ou o sinal! Quanto mais frases inteiras, textos, discursos, conhecimentos
elaborados! Seria uma espécie de código Morse, mesmo – e não por acaso
esse código se confinou com o tempo à transmissão de mensagens muito
curtas e importantes (como o resgate de acidentes) a longas distâncias.
Pode parecer exagero, mas não é: muita gente ainda acha que os
principais sinais em Libras são os que se vê no alfabeto manual. Já imaginou
o quanto seria trabalhoso falar tudo por datilologia? Lento, difícil de manter
a linha de raciocínio, sem desenvolver conversas mais longas... Fica fácil
perceber como os ouvintes menos informados podem acreditar que surdos
são intelectualmente inferiores. Mas isso é ignorância de quem não conhece
a realidade dos surdos, de quem estabelece pré-conceito. Se você reparou
bem nos surdos sinalizando entre si, viu que a datilologia aparece só de
vez em quando, aqui e ali (às vezes, até sem termos certeza) – e logo é
“devorada” por uma entusiasmada e frenética sequência de novos sinais.
Há muitos outros sinais além dos datilológicos que realmente dão riqueza,
complexidade e profundidade à Libras, sem dever a qualquer língua oral -
tantos quanto é possível à capacidade humana produzir mensagem e sentido.
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MEMORIZE
38 | LIBRAS
Claro, desde o início da unidade poderíamos responder a essa questão
simplesmente remetendo ao nome da disciplina – Língua Brasileira de Sinais.
Mas tomamos o caminho mais longo para assegurar que saibamos do que
se fala quando se refere a uma língua. Um segundo momento relevante para
perceber por que Libras é uma língua plena será estudado na Unidade 3,
ao considerar de maneira aplicada e mais aprofundada quais características
e funções especiais podemos identificar em Libras para definir sua natureza.
Mas, antes, entre outros aprendizados, continuaremos na Unidade 2 a
explorar o peso social dos símbolos e de seus sentidos, associado agora
à história da surdez e do tratamento da maioria de ouvintes às pessoas
surdas, pelo lado bom e pelo ruim. Ou seja, se foi necessário desmistificar o
que é “língua”, agora, entenderemos a relevância dessa desmistificação na
prática – mas faremos isso de outro modo, menos teórico e mais observador,
ressignificando conceitos como “fala”, “escuta”, “deficiência”, “BSL”, “LSB” – e
inclusive até “o que” (ou quem) é o surdo!
PRATIQUE
6. “Polissemia” é o mesmo que um termo representando vários sentidos. De que
forma podemos entender de que sentido se trata cada uso?
8. Por que uma comunidade linguística é tão importante para um código se esta-
belecer como língua? Sob esse mesmo critério, qual o “problema” conceitual
das línguas artificiais?
LIBRAS | 39
9. Cite ao menos três características particulares das línguas que as tornam es-
peciais diante de outros códigos.
10. “Gestos”, “código” e “linguagem” são termos comuns para descrever Libras.
Por que é indesejável ou inoportuno usá-los para se referir a ela?
RELEMBRE
40 | LIBRAS
REFERÊNCIAS
LUFT, Celso Pedro. Moderna Gramática Brasileira. 15. ed. São Paulo:
Globo, 2002.
LIBRAS | 41
ANOTAÇÕES
42 | LIBRAS
www.UniATENEU.edu.br