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A incorporação de Hegel, Marx e Freud pala Teoria Crítica

Ricardo Dal Forno

1) Retomando o problema da dialética como o método da Teoria Crítica

- Na aula passada analisamos a questão da dialética como o método que garante a


universalidade dos enunciados da Teoria Crítica. Partimos do pressuposto de que as críticas
da ideologia feitas pelos autores da T.C. não pretendiam ser redutíveis a uma simples crítica
da cultura ou apenas uma complexa visão do mundo. Suas teses pretendiam ter uma eficácia
interpretativa sobre a realidade social, e por isso sua crítica deve apresentar condições que
garantem uma racionalidade e uma universalidade. Por isso a Teoria Crítica, através de
Adorno, precisou se armar com o método dialético em sua versão negativa.

- Vimos também que a intenção da T.C. não era apenas interpretar a sociedade. Estava
suposta em sua proposta a noção marxiana de interpretar para transformar a realidade social.
Portanto, era parte de sua intenção básica mudar a sociedade existente. A diferença com o
marxismo tradicional é que essa mudança de sociedade não implicava necessariamente o
socialismo. Na verdade, se o socialismo viesse depois da mudança da ordem social era uma
questão secundária para esse grupo de autores de Frankfurt. A T.C. preferiu o marxismo
textual (aquele que mostra os limites do sistema capitalista e mostra que o capitalismo não é
impossível de ser mudado) e não o marxismo histórico e real em sua versão lenista na União
Soviética. Do marxismo como um texto, foi tirada a exigência de se pensar a realidade para
transformá-la e transformar a realidade para poder pensa-la. Vejamos essa citação de
Marcuse:

- “Se a repressão das pulsões, mesmo segundo a hipótese de Freud, não resulta de uma
sociedade natural, mas pelo menos tanto quanto e, talvez, essencialmente decorra do interesse
da dominação e da manutenção de uma dominação despótica; e se o princípio de realidade
não é apenas resultado da razão social, sem a qual nenhum progresso seria possível, mas além
disso provém de uma determinada organização histórica de dominação – então de fato
precisamos fazer uma correção importante na teoria de Freud. Pois se a modificação
repressiva das pulsões, que forma até hoje psicologicamente o conteúdo essencial do conceito
de progresso não é natural nem historicamente inalterável, então ela mesma possui um limite
bem determinado” (A noção do progresso à luz da psicanálise, 2001, p. 105).
- Mas isso implicava necessariamente a questão: mudar para o que? Ou melhor: para quem?
Para que tipo de ser humano se deve mudar a sociedade? As concepções de ser humano
fornecidas pela história da filosofia foram todas recusadas pela T.C. em razão de seu viés
metafísico. Assim como a sua dialética é negativa, também a antropologia suposta pela Teoria
Crítica é negativa: apenas negativamente ela se arriscava a falar do ser humano. Isso significa
falar do ser humano quase sempre de forma negativa e aporética.

- Como podemos ver na citação de Marcuse, sempre esteve no horizonte da Teoria Crítica a
questão: é possível uma supressão das alienações histórico-sociais e tal maneira que isso
provoque uma sociedade em que a libertação do ser humano fosse possível? Ou: a dominação
do homem pelo homem é sempre uma dominação que passa pela conquista da natureza
através do trabalho? É possível uma sociedade que se dê um tipo de conciliação entre ser
humano e história?

- Resolvida essa questão (relação do homem e a história) estaria resolvido o problema da


emancipação do homem e, no fundo, o problema de para qual sociedade demos mudar. Essa
questão da conciliação entre homem e sua história em uma possível sociedade não alienante é
sem dúvida a grande ambiguidade da T.C. Por um lado, esses autores precisam de alguma
noção de ser humano, mas, por outro lado, eles não poderiam introduzir um conceito
metafísico de natureza humana se quisessem manter-se coerentes ao plano teórico em que se
moviam. Qual foi então a solução? A solução foi falar do ser humano sempre daquela maneira
negativa, sempre através de aporias e da filosofia da história. Cada autor da T.C. vai elaborar
uma filosofia da história para tentar falar do ser humano de uma forma não metafísica.

2) Da dialética hegeliana para a dialética negativa

- Vimos também na aula passa como, ao reduzir a ontologia à pergunta pelas condições de
possibilidade da experiência, Kant encerrou-se no âmbito do conhecimento humano finito,
inviabilizando a metafísica como ciência. Hegel, assumindo partes da crítica kantiana, vai
procurar reconstruir a metafísica a partir de uma posição idealista. Eliminando o conceito de
coisa-em-si, Hegel parte do Absoluto como identidade do pensar e do ser. Assim a “Ideia”,
constitui a unidade do conceito e da realidade, sendo o conceito realizado numa totalidade.

- A revolução copernicana de Kant, que afirma a espontaneidade do eu transcendental e o


reconhecimento da necessidade de se fazer filosofia partindo da análise do homem, supera o
dogmatismo das metafísicas ontoteologicas tradicionais. Hegel vai aprofundar essa questão da
soberania do sujeito frente a objeto. Este eu torna-se em Hegel autônomo e se converte em um
eu absoluto e do qual deve partir toda reflexão filosófica. O eu transcendental em Hegel torna-
se o estatuto do conhecimento e não se reduz apenas ao trabalho de fundamentação do
conhecimento científico. Assim o autor consegue recolocar dentro do seu sistema os grandes
temas da metafísica: Deus, homem e mundo passam a assumir, novamente, um lugar de
destaque no pensamento filosófico.

- Hegel vai além do pensamento da finitude de Kant, e para isso ele precisou reassumir aquilo
que Kant havia expulsada da filosofia como atividade humana. Hegel aceita que a filosofia
seja uma atividade humana, realizada por um ser humano finito, mas amplia suas perspectivas
até o infinito, ao combinar o pensamento grego com todo o mundo histórico do cristianismo.
Portanto, Hegel continua aceitando a revolução kantiana (a hegemonia do sujeito e a
transcendentalidade continuam determinando a sua obra), no entanto o autor vai bem mais
além de Kant.

- Hegel não queria parar em Kant. Ele não podia aceitar o fragmentário e a negação do
sistema kantiano. O verdadeiro precisa ser o todo. Sua filosofa não pode suportar a separação,
e por isso é sua tarefa apanhar a realidade do que acontece. A forma como Hegel superar
aquilo que em Kant fica fragmentário e negativo é através de um sistema do saber absoluto.
Na Fenomenologia do Espírito, o autor pretende conhecer o espírito enquanto absoluto. É
para esse absoluto que deve caminhar o pensamento, no caminho da história e da natureza.

- Em seu fascínio pela unidade e pelo absoluto, Hegel faz da filosofia uma ciência do saber
absoluto, que deve externar-se e explicitar-se através do espírito. Ou seja, a filosofia como
sistema não pode terminar no como se, como foi em Kant. O pensamento filosófico deve ser
capaz de suprimir todas as aporias e todas as oposições. A filosofia precisa ser a participação
na totalidade do absoluto.

- Partindo da finitude e dos limites postos por Kant, Hegel para construir seu sistema absoluto
que afirma um grande movimento do logos ao telo. Ou seja, o espirito finito se desenvolve
dentro da grande marcha da razão até encontrar sua plenitude unitária no final do processo.
Foi assim que Hegel pretendeu apanhar tudo num grande movimento dialético. O processo
dialético de tese-antese-síntese garante a unidade total da história e da filosofia.

- Partindo da dialética e do projeto hegeliano, podemos perguntar: Por que Adorno precisou
escrever a Dialética Negativa? A dialética negativa de Adorno se constitui um diálogo com
Hegel e ao mesmo tempo uma contraposição à dialética idealista. Em Hegel, a negação é a
mediação fundamental na passagem de um momento para outro do conhecimento. Porém,
Hegel busca a unidade total e não pretendia ficar na negação. Adorno, pelo contrário, pretende
permanecer na negatividade e assim adiar a síntese por tempo indeterminado. Na conferência
A atualidade da filosofia, o autor diz o seguinte:

- “Quem hoje escolher por ofício o trabalho filosófico, deve renunciar desde o começo à
ilusão com a qual antes partiam os projetos filosóficos: a que seria possível compreender a
totalidade do real pela força do pensamento. Nenhuma razão legitimadora poderia reencontrar
a si mesma em uma realidade cuja ordem e configuração derrota qualquer pretensão da razão;
a quem busca conhecê-la, só se apresenta como realidade total enquanto objeto de polêmica,
enquanto unicamente em vestígios e escombros perdura a esperança de alguma vez chegue a
ser uma realidade correta e justa”. (ADORNO, 1997, p.73)

- Hegel diz no prefácio da Fenomenologia do espírito que a verdade é o todo. Adorno vai
dizer que a verdade é o não todo. Possuir um ponto de vista da totalidade é impossível para o
filósofo. Mais do que isso, fazer isso seria um procedimento sempre autoritário. Assim, não é
possível um sistema que nos dê a resposta definitiva. Quando Adorno diz que o todo não é a
verdade, ele está querendo dizer que o todo implica ideologia e repressão. Quando se afirma o
todo, se produz um discurso que silencia.

- O todo, dessa forma – por isso Marx e Freud são tão importantes para Adorno – implica o
discurso ideológico e o discurso da repressão. Implica ideologia e repressão porque dentro do
todo o indivíduo é obrigado a assumir um discurso sobre si mesmo e um comportamento que
ele não é capaz de elaborar e assimilar totalmente. A consequência é que isso vai gerar no
indivíduo frustração e perturbação, o que vai implicar que ele sempre reprima alguma coisa.
O todo, portanto, acaba resultando em um processo de repressão e de recalcamento, gerando
um sentimento de que a vida está em parte errada, mas que se deve aceitar pois o todo diz que
se vive bem. Para dizer em poucas palavras, o todo não pode ser verdade por duas razões: 1)
implica um processo ideológico e 2) implica um processo repressivo.

- Por essa razão a dialética negativa precisa ser sempre uma dialética não hegeliana, uma
dialética, de certa forma, castrada. Na dialética hegeliana existe a afirmação, a negação e a
negação da negação (isto é, a identidade, a não identidade e a identidade da identidade com a
não identidade). Em Adorno a dialética para na negação. Ela possui apenas a identidade e a
não identidade (sem a identidade da identidade com a não identidade). Adorno e a Teoria
Crítica no geral param antes da síntese. Eles não dão o passo seguinte que levaria até uma
identidade e uma forma de dizer o todo. A dialética negativa é essa espécie de dialética do
protesto, um tipo de teimosia em manter o pé no negativo, já que o positivo implica ideologia
e repressão.

- Por isso que os conceitos da Teoria Crítica vão ser conceitos de resistência, conceitos de
autores marginais. O que interessa é a crítica pelo negativo e não possíveis diagnósticos de
transformação. Há essa resistência da Escola de Frankfurt em propor a síntese e a resposta
final. Por isso ela não sabe para qual sociedade devemos mudar, em uma interpretação
radicalmente diferente da do marxismo tradicional (que ainda era um tipo de dialética da
totalidade).

3) A combinação de Marx e Freud

- Precisamos, para terminar, fazer algumas observações sobre a forma com que a Teoria
Crítica combina elementos do marxismo com elementos da psicanálise. Certamente que de
Marx interessou para os autores de Frankfurt principalmente a ideia de alienação do homem
na sociedade e a questão do fetiche da mercadoria. Dessas noções vai surgir a ideia
frankfurtiana de uma emancipação da alienação (mesmo que não se saiba em qual sociedade
se dará essa emancipação). Essa ideia já aparece no jovem Marx, como o processo em que o
homem enquanto espécie recupera sua essência (de maneira social) através da produção dos
bens. Existe em Marx essa ideia coletiva de ser humano, de alienação da espécie humana e de
redenção através do trabalho. Era isso que falta para a Teoria Crítica, que possui apenas uma
antropologia negativa, como já vimos.

- A combinação de Marx e Freud pela Teoria Crítica se dá porque os dois autores podem
funcionar como uma crítica ao modelo tradicional do conhecimento. A Teoria Tradicional
está ligada por uma busca de pureza, na medida em que a mente funcionaria como um espelho
capaz de refletir e representar o mundo. A Teoria Tradicional se recusaria a reconhecer nossa
razão também como um processo histórico e como dimensão dos processos impulsionais e
inconscientes.

- Os frankfurtianos querem introduzir a ideia de que nossa mente não é transparente e a


autoconsciência não é pura. A T.C vai procurar por autores que afirmem que nossa mente não
é toda-poderosa. Marx vai dizer que nossa mente é determinada por razões materiais, e por
isso produzimos ideologias e justificamos o conhecimento levados por essas ideologias.
Freud, por sua vez, vai dizer que a mente, enquanto consciência, é apenas uma olha que flutua
no oceano de pulsões. Ou seja, o marxismo e a psicanálise servem para a Teoria Crítica para
mostrar as limitações da consciência humana.

REFERÊNCIAS

MARCUSE, Herbert. Cultura e psicanálise. Trad. Wolfgang Leo Maar, Robespierre de


Oliveira e Isabel Loureiro. São Paulo: Paz e Guerra, 2001.
ADORNO, Theodor W. Dialética Negativa. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
ADORNO, Theodor. Actualidad em La filosofia. Trad. José Luis Arantegui Tamayo.
Barcelona, Espanha: Ediciones Altaya, 1997. Grandes obras Del Pensamiento; 45.

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