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ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO BRASIL: O MODELO BUROCRÁTICO

A HISTÓRIA COMO NORTEADORA


No primeiro texto desta trilha, vimos que o primeiro modelo de administração pública a ser
implantado no Brasil foi o patrimonialismo. Discutimos alguns conceitos e práticas inerentes a
este modelo, bem como o contexto histórico em que se desenvolveu. Neste segundo texto,
vamos tratar do segundo modelo de administração pública: o modelo burocrático. Mas qual a
fronteira que separa os dois modelos de administração pública? O que diferencia um modelo de
outro? Pois bem, podemos dizer que o cerne desta divisão está na ideia de separação por parte
do detentor do poder daquilo que é público em relação ao que é privado. Ou seja, parte-se do
pressuposto que aquele que detém o poder não é dono dos bens públicos, e sim responsável
legal por eles. Assim, um presidente quando assume o poder não vira dono dos bens do Estado,
continua dono de seus próprios bens e o que é do Estado permanece como tal.

É claro que em teoria isso já passa acontecer a partir da Proclamação da República, porém é
apenas mais adiante com a implantação de práticas burocráticas que essa distinção fica mais
clara. Vamos detalhar melhor essa ideia a seguir sempre tendo a história como norteadora de
nossa discussão.

FALEM BEM, E FALEM DE MIM!

Finalizamos a discussão sobre o modelo patrimonialista na administração pública, quando


chega ao fim no Brasil a chamada Primeira República ou República Velha, que vai até 1930,
quando Getúlio Vargas assume o poder. Vale destacar que a própria chegada de Getúlio ao
poder é um tanto quanto conturbada, tendo em vista que ela não se dá pelas vias democráticas.
Revolução ou golpe, o fato é que Getúlio torna-se presidente do Brasil após a destituição de
Júlio Prestes, eleito presidente democraticamente, mas impedido de assumir. E se a chegada ao
poder não fora democrática, é certo que o governo também ganhara contornos não
democráticos: os governadores (interventores) passam a ser indicados pelo Presidente; o
Congresso é suspenso; o Poder Executivo, na figura do Presidente, passa a ser soberano; e parte
da imprensa contrária ao governo passa a ser censurada, apenas para citar alguns exemplos.

Como prática não democrática do período podemos citar o Decreto-Lei 1.938 de 2 de janeiro de
1940, que dentre outros aspectos taxou a importação de papel feita pela imprensa, bem como
submeteu a importação de papel à autorização feita pelo governo por meio do Departamento de
Imprensa e Propaganda. Assim, podemos perceber que tais práticas favorecem a manutenção de
características patrimonialistas na administração pública brasileira, conforme vimos no post
anterior, principalmente por meio do amplo uso de decretos-lei substituindo a atuação
legislativa do Congresso: é como se Getúlio fosse o Rei e a “música tocasse” conforme seus
mandos e desmandos.

AGORA VAI… #SQN

Por outro lado, mais especificamente em termos de gestão, temos uma pretensa mudança na
forma de conduzir a administração pública. Tal pretensão se concretiza com a criação do
Departamento Administrativo do Serviço Público – DASP, em 1938, que tinha dentre outros
objetivos implementar na administração pública brasileira os princípios da estrutura
burocrática. Dentre esses princípios destaca-se a profissionalização dos serviços, seja com o
ingresso dos funcionários nos quadros da administração pública por meio de concursos
públicos, seja por meio da substituição de critérios políticos por critérios técnicos na condução
da máquina pública. Tudo parece ótimo, certo? Pois bem, na prática as coisas não funcionaram
bem como se pretendia…

VAI SER ASSIM E DEU!

Vamos a um exemplo fictício: o Senhor Burocrata da Silva é Diretor da Gerência de Enrolação


do Ministério de Faz de Conta. O Senhor Burocrata decide que a melhor opção para desafogar
o trânsito de uma determinada capital é construir mais uma ponte de acesso à cidade. Sem mais
justificativas, além das técnicas elaboradas por ele e sua equipe a ponte é construída.
Questionado pela imprensa, o Diretor responde que as decisões foram tomadas de acordo com
estudos eminentemente técnicos de funcionários altamente especializados e conhecedores do
assunto. Nesse exemplo fica claro um traço bastante característico do período em que
prevaleceu o modelo burocrático de administração pública: o insulamento burocrático. O
próprio nome remete a um isolamento por parte de certos administradores públicos da
influência política de outros agentes da sociedade no sentido de debater com estes a melhor
decisão em relação a uma determinada ação. No caso da construção da ponte de nosso
exemplo, não houve nenhuma audiência pública ou discussão sobre qual a melhor solução para
o problema do trânsito, pois para o Senhor Burocrata não há argumentos contra uma decisão
eminentemente técnica. Foi por pensarem nesta linha que esses administradores públicos foram
denominados de tecnoburocratas.

Em suma, em nome da técnica, esses administradores justificavam suas decisões, tomadas de


ação e consequentemente o poder que detinham para tais. Isso acabava prejudicando aspectos
fundamentais que hoje nos são muito caros: o interesse público, a participação do cidadão e a
democracia (e se o senhor Burocrata decidisse que a melhor ponte do ponto de vista técnico
fosse da empreiteira do Senhor Amigo do Burocrata???).

EU SEI, TU NÃO SABES, ELE NÃO SABE… NÓS SABEMOS, VÓS NÃO SABEIS, ELES
NÃO SABEM…

O insulamento burocrático se mostrou presente em outros momentos da administração pública,


como no governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961), por ocasião da criação do Conselho de
Desenvolvimento para colocar em prática seu Plano de Metas; e durante o Regime Militar
(1964-1985) com o fortalecimento da chamada Administração Pública Indireta, que
possibilitou a criação de várias agências que não contavam com a participação e o controle da
sociedade.

IMPRESSIONANTE COMO TODO MUNDO SE DAVA TÃO BEM (RSRSRS…)

Outro aspecto que se mostrou presente durante o chamado modelo burocrático da


administração pública, também iniciado durante a Era Vargas foi o corporativismo, uma forma
de o Estado intermediar os interesses da classe trabalhadora de um lado e da classe empresarial
de outro com o objetivo de evitar conflitos. Isso impedia a paralisação das atividades industriais
(bom para os empresários!), tão importantes para o desenvolvimento econômico do país (bom
para o Estado!) e ao mesmo tempo garantia direitos aos trabalhadores, por meio da legislação
trabalhista (bom para os trabalhadores!).

O que precisa ser mencionado, no entanto, é que muitas vezes essa inexistência de conflitos era
falsa. Os conflitos existiam sim, porém eles eram reprimidos pelo governo, que perseguia
aqueles que não se alinhavam ao espírito corporativista. Com o tempo, a ideia de
corporativismo foi se transformando e passou a ser entendida também como uma forma de
determinado grupo profissional defender seus próprios interesses. Ou seja, o Estado deixa de
ser protagonista e muitas vezes passa a ser visto até mesmo como antagonista, seja pela classe
empresarial, seja pela classe dos trabalhadores. Na prática da administração pública, isso vai se
configurar muitas vezes em ações ilícitas por parte de alguns funcionários públicos em relação
a seus próprios colegas, como: encobrir faltas, arquivar processos de sindicância, fazer vistas
grossas por irregularidades cometidas, etc (vai um dedo de silicone para bater o ponto?)

ONDE VOCÊ ESTIVER, NÃO SE ESQUEÇA DE MIM…

O clientelismo (lembram dele no primeiro post?) também perdurou durante o modelo


burocrático da administração pública. Uma das diferenças é que agora ele se dá dentro de
instituições formais, ou seja, muitos daqueles que atuam na máquina estatal passam a se utilizar
das facilidades inerentes a seus cargos (acesso a informações, conhecimento dos processos,
relacionamentos, etc.) para favorecer certas pessoas ou grupos em troca de manutenção no
poder. Samuel Wainer, dono do Jornal Última Hora (UH), fundado na década de 1950, por
exemplo, tinha um excelente relacionamento e proximidade com políticos de sua época,
incluindo aí ex-presidentes.
Em uma entrevista concedida à jornalista e professora Ana Paula Goulart Ribeiro em 1999, o
ex-diretor do referido jornal, Theodoro Barros faz uma narrativa que demonstra bem como essa
característica se fazia presente na década de 1960: era enorme o prestígio de Samuel junto aos
governantes (“era tão importante quanto um ministro de estado”) e que, como consequência,
formava-se em torno dele uma teia de relações de poder baseada em complicados laços de
compadrio e vassalagem: “Talvez o único que tivesse tido esse poder fosse o Chateaubriand, o
Rei do Brasil. Eu me lembro que, como diretor da UH, eu recebia telefonema do Roberto
Silveira pedindo para eu interceder junto ao Samuel, para o Samuel falar com o Jango para
recebê-lo. Negócio de louco. Quer dizer o governador do Estado do Rio tinha quer falar com o
diretorzinho da UH, para falar com o diretorzão, para falar com o presidente da República”.

MAS NÃO ME ALTERE O SAMBA TANTO ASSIM…

Durante o Regime Militar, que finaliza na segunda metade da década de 1980, houve uma série
de tentativas de se modernizar a administração pública brasileira, como foi o caso da edição do
Decreto-Lei nº 200 de 1967, que trata da Reforma Administrativa do Estado, que estabeleceu
como princípios fundamentais da Administração Federal: o planejamento, a coordenação, a
descentralização, a delegação de competência e o controle. A grande ressalva que se faz em
relação à administração pública no período diz respeito ao retrocesso político com a instauração
de um regime autoritário de governo, repressão aos adversários e às correntes político-
ideológicas contrárias às daqueles que detinham o poder. Por consequência, as ações e medidas
durante o Regime Militar traziam à tona, ainda que de forma implícita, muitas características
observadas durante a prevalência do modelo patrimonialista de administração pública, quando a
vontade do soberano era a lei.
Vimos, portanto, que uma série de iniciativas foram tomadas pelos governos que se sucederam
a partir da República Nova no sentido de modernizar a administração pública brasileira. O
objetivo era dar conta das transformações pelas quais o país atravessou ao longo do século XX
em busca do desenvolvimento econômico, tendo o Estado como principal indutor. Por esse
motivo a estrutura da administração pública cresceu, porém em desalinho com práticas
eficientes e eficazes de gestão e principalmente que garantissem o atendimento das demandas
dos cidadãos.

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