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Barroquismos nos contos de Lezama Lima

Edelberto PAULI JÚNIOR1

Resumo: A linguagem de Lezama Lima procura traduzir a matéria do mundo e


da alma que se apresentam numa textura infinitamente esponjosa, sem vazios
ou brancos, como um tecido cheio de dobras. Partindo desse pressuposto, o
presente artigo retoma o conceito de dobra têxtil, retirado da filosofia de Gilles
Deleuze, para pensar tanto as dobras barrocas que decoram a escrita nos
contos do escritor, bem como as forças “espirituais” ou “demoníacas” que,
atuando por meio de espirais e quiasmas, submetem o corpo e moldam a alma
dos personagens, de modo a criar um campo de indeterminação entre as duas
dobras: as dobras da matéria e as dobras da alma. Resgate da dobra barroca
que permite ao escritor ampliar a fronteira do gênero no idioma espanhol.

Palavras-chave: Barroco. Dobra. Contos. Lezama Lima. Gilles Deleuze.

Nascido em Havana, Cuba, José Lezama Lima (1910-1976) é um


escritor de uma produção literária em que confluem poesia, ensaio, novela e
conto, perpassados por uma mesma intensidade verbal, questionadora dos
limites do representável. Para esboçar alguns aspectos de sua escrita,
partimos dos contos que o escritor escreveu entre 1936 e 1946,
2
particularmente “Fugados” (1936) , relatos que surgem no mesmo período em
que o realismo começa a decair em Cuba juntamente com Alejo Carpentier de
Viaje a la semilla (1944) e Virgilio Piñera que edita Poesía y prosa (1944).
É a literatura de Lezama, que culmina no romance Paradiso (1966), que
dá início à ressurreição, primeiramente cubana, do barroco gongorista na
América hispânica. Boa parte dos efeitos literários obtidos pelo escritor decorre
de apropriações de elementos da poética seiscentista, bem ambientados no
século XX, principalmente, seu pendor para o artificial, para o exuberante, para
o decorativo, elementos que seriam, segundo Lezama (1988, p. 234),
caracterizadores de uma expressão americana, de um modo de ser que seria o
do “señor barroco”, insuperável em sua “arte de disfrutar un paisaje y llenarlo

1
Departamento de Letras, UFMS, Aquiduana (MS). edpauli@cpaq.ufms.br.
2
Cinco contos compõem a contística de Lezama: “Fugados” (1936); “El patio morado” e “Juego
de las decapitaciones” (1941); “Para um final presto” (1944) e “Cangrejos, golondrinas” (1946).
de utensilios artificiales, métricos y voluptuosos” e de uma religiosidade, “la
primera religiosidad de la forma, por el amor de lo visible, pues ¿en qué forma
la voluntad iba a actuar sino sobre la visibilidad?”.
A relação de Lezama com o barroco é tão vivencial que, em qualquer
dos contos do escritor, reencontramos traços que podem facilmente ser
reinterpretados à luz dos quadros fornecidos pela poética e estilística
seiscentistas, como por exemplo: o desbordamento estrutural pela acumulação
de elementos secundários à ação, também a afirmação esquemática das
dualidades pelo uso de antíteses e inversões, os círculos de luz e sombra, e no
aspecto sintático e figurativo os efeitos de panejamento – véus ou dobras –
muito utilizados na escultura de Bernini, por exemplo, ou na decoração dos
cenários barrocos.
E é justamente no modo têxtil, nos tecidos, nos panejamentos da
ornamentação e do vestuário nos cenários barrocos que Gilles Deleuze (1989,
p. 181) identifica no livro A dobra: Leibniz e o barroco, o modo operatório mais
importante do estilo seiscentista, o mecanismo da dobra, pelo qual se
reconhece o sentido da dobra que vai até o infinito. Há dois pontos relevantes
que podemos relacionar à dobra têxtil em Lezama. O primeiro é o aspecto
decorativo, como se disse, que identificamos a um traço representativo de sua
escrita e o segundo se refere às inversões ou quiasmas que operam
narrativamente ao desdobrarem o plano figurativo dos relatos em pelo menos,
dois momentos, em que o segundo altera o primeiro, prendendo substituí-lo,
embora tenha sido engendrado por ele.
Como um colorista e um músico da escrita, Lezama faz uso do
dispositivo da dobra ao decorar a linguagem, ao revesti-la como a um corpo, ao
adorná-la com os ornamentos lingüísticos (metáforas, metonímias, associações
e símbolos), dando, por seu efeito plástico, sonoro e corporal, textura à língua,
transformando-a em uma superfície de turbulência e embelezamento, de
ritmos, brilhos e cores. E ao se comparar as figuras de linguagem ao adorno ou
à roupagem de um corpo, a interpretação de textos que empregam esses
procedimentos assemelha-se à ação de despir, com tudo que a atividade pode
comportar de prazeroso, de lúdico, de erótico.
Por meio da dobra têxtil se busca a transmutação da língua: apresentar
a coisa sob a forma de algo experimentado. O escritor, assim, tenta captar não
tanto o próprio objeto, mas o efeito que ele produz, seus gestos, de modo a
tratar a língua como cor, como música, como matéria sensível, enfim3. De
modo que podemos dizer que Lezama é um homem de teatro, um decorador
que faz uso do dispositivo da dobra ao apresentar não tanto fatos ou estados
de coisas ou objetos em movimento, mas a mímica do movimento mesmo, para
descrever as coisas em “ato”, como na metáfora dos botões do traje de Luis
Keller em “Fugados”, que encena o movimento das ondas, levando as palavras
a figurarem um devir-onda dos botões:
Ya no esperaba la próxima ola, sino la cambiante atracción de los
botones azulosos, iguales, desiguales, aparecían, se sumergían. La
ola que se tendía, después la fijeza de uno de los botones, el otro era
4
tan improbable (LEZAMA LIMA, 1984, p. 20) .

De fato, não é por acaso que só no século XVII, o verbo decorar adquire
o sentido moderno de adornar externamente algo. Este verbo, nesta acepção,
afirma Luisa López Grigera (1986, p. 31), procedia de um dos conceitos
retóricos e poéticos da mais alta dignidade: o de decoro. Decoro era a virtude
da composição ou da disposição conveniente, adequada, decente, equilibrada
das partes do discurso. Por conveniência aos lugares de amplificação do
discurso, ou seja, aos vários modos de engrandecer a narração (pensamentos,
comentários, elogios, afetos, descrições, entre outras digressões), as
circunstâncias se foram desenvolvendo até se encobrir excessivamente de
elementos acidentais. E isso se chamou desde então “decorar”. “Así es cómo
un concepto de orden y mesura se convierte en la simiente de la que nace el
arte ornamental y recargado del barroco, que a fuerza de seguir decorando
acabará en rococó” (LÓPEZ GRIGERA, 1986, p. 31).
Arte de produzir adornos, amplificações, desvios na efetuação do telos
narrativo. Como nos romances e contos de Lezama em que a narração deixa
de ter como meta prática o desenvolvimento dos personagens e o desenlace
da fábula, para se tornar um percurso, embora mais digressivo, deleitável e
sensual pela variedade de ornamentos lingüísticos, e pela composição de um
cenário sempre rico em elementos sedutores, de itens raros, de superfícies
3
Recorre-se aqui à idéia de Jean Cohen (1987, p. 132), que foi retirada do pensamento critico
de Mallarmé: “pintar não a coisa, mas o efeito que ela produz”. Para Cohen, nisto reside o
sentido de símbolo em Mallarmé.
4
No artigo, todos os trechos que servirão de referência pra a leitura dos contos serão retirados
da edição espanhola Juego de las decapitaciones (LEZAMA LIMA, 1984).
atraentes, de uma variedade brilhante de lugares, objetos e personagens.
O aspecto ornamental desta prosa também se deve ao fato de que
Lezama Lima chega ao conto e posteriormente ao romance por meio da
poesia. Existe aí uma confluência entre os dois gêneros. Tomemos como
exemplo os protagonistas dos seus relatos que são todos, indistintamente,
atravessados pela mesma paixão metafórica do narrador. Censurar o escritor
por isso seria o mesmo que acusar a Gôngora de dignificar com a elocução
culta a humildes lavradores em Soledades ou censurar Fernando de Rojas pela
erudição greco-latina de sua alcoviteira Celestina.
É essa re-apropriação do estilo ornamental do barroco que trará aos
contos de Lezama Lima princípios que ampliarão a fronteira do gênero no
idioma espanhol: a atenção concedida à narração, mais do que ao narrado, em
narrativas de impressões e de digressões, mais do que acontecimentos.
Deferindo da tradição poética do conto moderno que se centrou na precisão da
linguagem, na concisão narrativa, na economia da exposição e na armação
sólida da trama, elementos que tanto defenderam Poe, Quiroga e Cortázar, a
tradição barroca, mais próxima do escritor cubano, é aficionada por símbolos,
descrições, aderências, adornos, e resiste a que o relato atinja seu telos,
chegue ao fim.
Paradigmático de tal proceder é “Fugados”, conto já citado, em que o
envolvimento num universo aquático (chuvas, ondas, algas) é atingido graças
ao recurso figurativo da comparação que constrói um estilo poroso,
extraordinariamente ornamentado, até conseguir que os personagens infantis
do início se apaguem e se percam no arabesco da tapeçaria. Em “Fugados”,
como indica o próprio título, tudo parece estar em fuga: as coisas, os
personagens, os rostos, formando uma superfície de incessante deslocar, lugar
como ação, tanto no nível temático (Luis e Armando fogem da escola), como
no plano mais geral da representação, procedimento que tende a encerrar num
mesmo bloco indiscernível os protagonistas, seus trajetos e a ambiência da
narrativa.
A temática do conto se centra na formação de Luis Keeler. No caso, o
processo de aprendizagem do personagem, semelhante ao de José Cemí em
Paradiso, envolve a sua estréia em ambientes desconhecidos, amores e
descobertas poéticas. Em resumo, se relata no conto o encontro de Luis Keeler
e Armando Sotomayor, dois possíveis amigos que decidem fugir da escola para
passear a beira-mar em um dia chuvoso. Tal aventura será interrompida com a
chegada de Carlos, que solicita a presença de Armando. Com a ausência do
amigo, Luis sentirá o drama da perda. Apesar do vocabulário metafórico de
Lezama, percebemos que o vazio deixado por Armando será preenchido por
arriscadas experiências amorosas, que misturarão orgias, espiritualidade e dor.
E após vivenciar esse processo de despersonalização e sofrimento, o
personagem será comparado a um rubi ou granate, pedra que funciona nos
contos de Lezama como um emblema da beleza e da complexidade de sua
escrita.
Após fugirem da escola, Armando tenta impressionar poeticamente o
colega Luis, descrevendo a contemplação de um café com leite, sendo esta
digressão mais uma das inúmeras “fugas” que atravessam o conto:
La contemplación del café con leche mañanero produce una
voluptuosidad dividida que se convierte en poca cosa cuando los
garzones van penetrando en las academias. Un sabor espeso va
penetrando por cada uno de los poros que se resisten, una paloma
muere al chocar con la columna de humo de un cigarro, las aguas
algosas van alzando un cadáver de un marinero ciego que deja caer
pesadamente las manos, ostentando en las narices tatuadas el
esfuerzo por querer sobrevivir en aquellas aguas espesadas por las
salivas y por los papeles mojados (LEZAMA LIMA, 1984, p. 18).

Na cena, a escrita se faz por pregas, ritmos e sensações: o líquido se


reparte em massas, ganha uma textura infinitamente esponjosa, sem vazio,
uma dobra na dobra, uma caverna em outra caverna ao infinito. O regime das
dobras desorganiza as unidades, a pureza das coisas e forma um entre-dois,
uma velocidade que se faz pela interpenetração e resistência das substâncias,
que encerram todo um mundo de misturas e sensualidade, de “aguas algosas”,
“café con leche mañanero”, “narices tatuadas”5. São elementos que se
desdobram em fluxo e refluxo como um “sabor espeso” que penetra nos “poros
que se resisten” e que só findam com a deriva do corpo de um marinheiro que
é atravessado pelas “aguas espesadas por las salivas y por los papeles
mojados”. E nesse devir da matéria, as dobras se direcionam no sentido do
movimento circular que se vai espiralando verticalmente, de modo a
impulsionar o marinheiro cada vez mais para baixo, sensação de espessura e
5
“Há ritmo desde que haja passagem transcodificada de um para outro meio, comunicação
entre meios, coordenação de espaços-tempos heterogêneos” (DELEUZE E GUATTARI, v.04,
1997, p. 119).
afogamento que é reforçada pela constância das vogais abertas.

As dobras da alma

Mas não é apenas na composição de frases longas, retorcidas e


revestidas que identificamos o mecanismo da dobra têxtil. A noção de dobra
como tecido também nos conduz ao interior dos personagens, às dobras da
alma. Essas seriam os impulsos, os sentimentos, as idéias que se enroscam
em espiral ou se desdobram como um novelo. Existiria um emaranhado de
dobras dentro de nós, como lá fora; sendo esses os dois andares da casa
barroca: as dobras da alma, e as redobras do mundo. Como lembra Deleuze,
utilizando-se da imagem dos veios de mármore para comentar a propósito da
correspondência entre os dois andares:
E a mesma imagem, a das veias de mármore, aplica-se às duas
[dobras], sob condições diferentes: ora as veias são as redobras de
matéria que rodeiam os viventes agarrados na massa, de modo que a
placa de mármore é como um lago ondulante cheio de peixes, ora as
veias são as idéias inatas na alma, como as figuras dobradas ou as
estátuas em potência presas no bloco de mármore. A matéria é
marmoreada e a alma é marmoreada, mas de duas maneiras
diferentes (DELEUZE, 1991, p. 15).

Retornando ao conto, no interior de Luis Keeler enroscam-se hesitações


e inseguranças decorrentes do amor homoerótico; ele é simultaneamente
atravessado por forças dicotômicas que se dividem temporalmente em um
tarde demais para voltar atrás em relação ao que sente por Armando e um
cedo demais para admiti-lo, situando-o entre a experiência da crise já
instaurada e o desejo reprimido: “Las huidas del colegio son el grito interior de
una crisis, de algo que abandonamos, de una piel que ya no nos disculpa”
(LEZAMA LIMA, 1984, p. 19)6. Claro exemplo de que, no conto, a alma se
veste de “incessantes dobras e formas turbulentas” que partem do exterior, no
caso da paixão por Armando, de uma “piel” que “ya no nos desculpa”, e
mostram as tensões interiores.
No exemplo, a contigüidade (corpo/alma) nos remete a luta das forças
repressivas e de desejo que afetam o corpo e também moldam a alma, para
6
Situação que lembra o Aion: “O Aion é o tempo indefinido do acontecimento, a linha flutuante
que só conhece velocidades, e ao mesmo tempo não para de dividir o que acontece num já-aí
e um ainda-não-aí, um tarde-demais e um cedo-demais simultâneos, um algo que ao mesmo
tempo vai se passar e acaba de se passar” (DELEUZE E GUATTARI, 1997, v.4, p. 48-9).
submetê-la. Como se verá mais adiante, tais forças se entrelaçam com as
forças espirituais no decorrer do relato, procedimento que corrobora com a
explicação deleuziana sobre as esculturas barrocas:
Em todos os casos as dobras das vestimentas ganham autonomia,
amplitude, e não apenas por um simples cuidado de decoração, para
exprimir a intensidade de uma força espiritual que se exerce sobre o
corpo, seja para revertê-lo, seja para restabelecê-lo ou para elevá-lo,
mas sempre para revolvê-lo e moldar seu interior (DELEUZE, 1991, p.
203) (grifos do autor).

Para figurar a ação das forças, Lezama faz uso recorrente de dois
procedimentos nos seus contos: as inversões e a espiral barroca. A espiral leva
o personagem a oscilar entre o “céu” e a “terra”, e as inversões, ao colocarem
em questão categorias, como as de sujeito e objeto, sonho e vigília, morte e
vida, engendram um plano extraordinário que pretende, com seu campo de
força, superar ou substituir o plano ordinário em que se situam os protagonistas
da narrativa. Os dois procedimentos surgem em “Fugados” no momento em
que, ao ser abandonado por Armando, Luis Keeler sente o drama da perda e
acaba num redemoinho, em que, de forma entrelaçada ou invertida, as coisas
ganham autonomia na medida em que o personagem perde a sua própria:
Siguió [Luis] con la mirada la curva de los paredones que parecían
inútiles, pues las olas desmemoriadas se detenían en un punto
prefijado, trazado en el vértice de la ola y de la gaviota. Vio también
como su brazo giraba, se perdía, hasta que adormecido lentamente
se iba curvando, obligado por el girar de las gaviotas que trazaban
círculos invisibles, no tan invisibles, pues al querer extender el brazo
sentía las picadas de los peces-arañas, y al alzar los ojos veía a la
gaviota esconderse en un punto geométrico, o entrar como flecha
7
albina en un gran globo de cristal soplado . Ya no podía aislar el
recuerdo de los peces-arañas, ni el brazo lentamente curvado de la
mansa compasión de las gaviotas. No podía aislar en su cajita de
níquel cromo los fósforos de las agujas. Ni el libro de las preguntas de
las respuestas madreselvas, de los grupos de corales, de las más
podridas anémonas (LEZAMA LIMA, 1984, p. 22).

No trecho, todo o cenário se contorce nos círculos concêntricos de uma


espiral (muros, ondas, gaivotas, braços, etc) e suas dobras fazem homologia
com o emaranhado das dobras da alma do personagem. O entrelaço cria um
espaço de indeterminação, que junta, num mesmo plano extraordinário,
“mítico”, animais díspares como “peces-arañas”. Mas essa fusão também

7
Em “Fugados”, Lezama usa a palavra globo como sinônimo de onda, como também acontecia
em alguns versos de Gôngora (1973, p. 147) como, por exemplo, este pequeno trecho retirado
da Fábula de polifeno y galatea: “cuando, entre globos de agua entregar veo a las arenas
ligurina haya (nave genovesa)”.
simboliza a sexualidade do personagem que, por sua vez, também tende para
o híbrido do masculino e do feminino, peixe e aranha?8 A propósito, essa
inépcia de Luis é produtora de multiplicidades, sendo ela a responsável pela
eficácia da narrativa, eficácia “deficiente”, já que se torna mais produtiva
quando o protagonista se dissolve, permitindo, dessa maneira, a dissolução do
próprio narrador que, como um verdadeiro ourives, desdobra sua linguagem
cristalina, com “su cajita de níquel cromo” e com seus “fósforos de las agujas”.
Em meio à sonsice e à inversão do quiasma, Luis busca a última palavra
ou o logos divino, e chega até mesmo a vislumbrar o paraíso por alguns
instantes: “En su afán de buscar la última palabra y el nivel del sueño la
codorniz tiraba desesperadamente de los labios [de Luis]. En el paraíso el agua
corría de nuevo y se fabrica el cielo (LEZAMA LIMA, 1984, p. 23). A propósito,
essa atmosfera de ressonância “mítica” e poética, mais do que ordenação,
arrasta o personagem cada vez mais para o caótico, a ponto de sua alma se
confundir com o espaço exterior.
Depois do fragmento destacado, que acima foi citado, em que as coisas
ganham autonomia enquanto Luis perde a sua, podemos notar a continuação
da transferência das propriedades do espaço para os personagens, de modo
que todas as coisas se tornam cada vez mais indistintas, como no último trecho
do conto em que os expectadores de um cinema, em que se encontram Carlos
e Armando, serão comparados a algas e, ao final Luís terá o seu interior
comparado a uma pedra rubi ou granate:
Puesto ya de pie, todas las algas huidas y borrado el límite de los
paredones, la noche le empapaba las entrañas, creciendo como un
árbol que sacude la tinta de sus ramas. Hubiera sido decoroso dar un
grito, pero en aquel momento se vaciaba la jaula de los cines y de la
vida clamante de las algas había surgido un absoluto sistema de
iluminación. Dar un grito le hubiera costado partirse un pie o adivinar
los últimos cabeceos de las algas o como circula la sangre en los
granates (LEZAMA LIMA, 1984, p. 24-25).

É, portanto, o quiasma ou entrelaço, que, ao encenar as forças


espirituais, engendra uma realidade “mítica” que, por sua vez, força a diluição
das unidades imaginária e corporal do personagem. É ainda essa inversão que
opera o trânsito entre (corpo/alma/escrita), já que reveste a alma do
personagem de dobras, moldando-a feito uma pérola irregular barroca, um rubi

8
Sobre a simbologia e a construção figurativa nos contos de Lezama, ver : A arte da figura nos
contos de Lezama Lima (PAULI, 1995).
ou granate, granulada de luzes e sombras. E a escrita, por sua vez, com o
processo de despersonalização, faz homologia com a alma tecida de dobras ao
torna-se cada vez mais irregular e fulgurante como o brilho que emana de uma
pedra preciosa.

Retórica do quiasmo

Entretanto, para que essa passagem do ordinário para o extraordinário,


provocada pelo quiasma, não seja abrupta, sem nexo narrativo, sempre há nos
contos duas inversões, em que a primeira prepara a realização da segunda. No
caso de “Fugados”, a primeira se dá por meio das inversões espaciais,
produzidas pelo reflexo da água da chuva e pela invasão de elementos
marítimos que suprimem gradativamente as delimitações entre o “céu”, o “mar”
e “terra”, como nesta descrição do olhar de Luis: “La mirada humedecida
alargaba peces asfaltados. Era como si una grulla, ave blanda, fuese absorbida
por el asfalto exigente que podía lucir así su nueva marca de grulla asfaltada”
(LEZAMA LIMA, 1984, p. 21).
São esses tipos de inversão espacial que pululam por todo o texto e que
terão a função de preparar o leitor para que o delírio de Luis se transforme em
um mundo às avessas, formado pela deformação que produz no imaginário do
personagem o contato com a realidade “mítica”. Logo é o reflexo da água que
culmina na possibilidade de uma realidade que, a princípio, parecia
impossibilitar enquanto mero reflexo. Com efeito, é o reflexo da água que opera
de forma retórica ao possibilitar o surgimento narrativo de uma sobreposição
figural suplementar, que inverte a relação entre sujeito e objeto, inversão que
recebe seu sentido do ato de superação ou de desconstrução da estrutura
anterior.
As inversões compõem uma estrutura figurativa complexa que possibilita
uma transação de contextos, do ordinário para o extraordinário. Tal
procedimento se repete nos contos de Lezama: em “Juego de las
decapitaciones”, o espelho do mago Wang Lung produzirá a ilusão da morte no
jogo da decapitação. Mas essa passagem da vida para a morte dá lugar a outra
inversão que pretende superar a primeira ao final do relato, já que dos
cadáveres do mago e do casal imperial So Ling e Wen Chiu saíram estranhas
figuras que giram em espiral.
Em “El pátio morado”, a acústica das paredes do pátio, como um
instrumento musical, molda a alma dos personagens ao transferirem para o seu
interior pensamentos e imagens, gerados pela velocidade dos passos nos
corredores do lugar. Com a invasão do local por garotos, o pátio se transforma
em um coro de rochas da perspectiva do papagaio, protagonista do conto, que,
por sua vez, perde o aspecto áureo de suas penas e é comparado a um
carbúnculo - meio rubi e meio furúnculos -, de acordo com duas possíveis
acepções para essa palavra9.
O esquema se repete em “Cangrejos, golondrinas”. Aqui, a perna de rês
e uma bola operam a inversão do sujeito/objeto ao provocarem o câncer no
momento em que entram em contato com a mulher do ferreiro que, por sua
vez, será comparada a um fibroma. Se, por um lado, tais objetos se tornam
veículos de afetos diabólicos, por outro, a sombra de uma pomba, que
simboliza as forças divinas, permitindo uma última inversão, trará a cura para a
personagem.
Já no conto “Para un final presto”, os estóicos suicidas serão
confundidos pela guarda real com os conspiradores chineses. Essa primeira
confusão culmina na inversão da relação entre causa e efeito, já que a morte
dos estóicos não será causada pelas balas dos soldados, como eles
acreditarão, mas pelo vinho envenenado.
Essa breve exposição do funcionamento do quiasma permite notar que o
paradigma de todos os relatos de Lezama, sua contribuição para a arte poética
do conto, consiste num sistema de figuras que se desdobra na conduta dos
personagens, em lugares como um pátio ou ainda em objetos comuns,
facilmente identificáveis, como um espelho, uma bola ou um pedaço de carne.
Mas esse modelo, por sua vez, engendra uma estrutura suplementar, que
recebe seu sentido do ato de superação ou de desconstrução da estrutura
anterior, como se demonstrou na análise de “Fugados”. E essa segunda
inversão, ao concentrar forças “espirituais” ou “demoníacas”, molda o interior
dos personagens que, ao serem comparados a pedras preciosas ou a

9
A propósito, em Gôngora (1982) no texto da “Primera Soledad”, o “carbunclo” se refere a uma
pedra luminosa que, presa à cabeça de um animal amigo da noite, parece um brilhante carro
de sol noturno que funcionará como uma espécie de bússola para o peregrino, jovem náufrago
protagonista da história.
enfermidades como furúnculos e fibroma, aludem simbolicamente a certos
aspectos do estilo barroco do escritor cubano, à sua maneira de escrever que
procura traduzir essa matéria do mundo e da alma que se apresenta numa
textura infinitamente esponjosa, sem brancos ou vazios, como um tecido cheio
de dobras, o minúsculo corpo contendo em si outro corpo, e assim
interminavelmente.

Resumen: El lenguaje de Lezama Lima busca traducir la materia del mundo y


del alma que se presentan en una textura infinitamente esponjosa, sin vacíos o
blancos, como una tela llena de pliegues. A partir de ese presupuesto, el
artículo rescata el concepto de pliegue de la filosofía de Gilles Deleuze para
pensar los pliegues barrocos que decoran la escrita en los cuentos del escritor,
y también las fuerzas “espirituales” o “demoníacas” que, actuando por medio de
espirales y quiasmos, someten el cuerpo y moldean el alma de los personajes,
y de este modo producen un campo de indeterminación entre los dos pliegues:
los pliegues de la materia y los pliegues del alma. Rescate del pliegue barroco
que permite al escritor ampliar la frontera del género en el idioma español.

Palabras-clave: Barroco. Pliegue. Cuentos. Lezama Lima. Gilles Deleuze.

Referências:

COHEN, Jean. A plenitude da linguagem (teoria da poeticidade). Trad. José


Carlos Seabra Pereira. Coimbra: Almedina, 1987.

DELEUZE, Gilles. A dobra. Leibniz e o barroco. Trad. Luiz B. L Orlandi.


Campinas: Papirus, 1991.

DELEUZE, Gilles. Mil platôs (capitalismo e esquizofrenia). Coord. da


Tradução. Ana Lúcia de Oliveira. Rio de Janeiro: 34, v.1 e 2, 1995, v.3, 1996,
v.4, 1997.

GÓNGORA, Luis de. Fábula de polifemo y galatea. Buenos Aires: Plus Ultra,
1973.

GÓNGORA, Luis de. Soledades. Madri: Alianza: 1982.

LEZAMA LIMA, José. “La curiosidad barroca”. In: Confluencias. Ensaios


organizados por Abel Prieto. Havana: Letras Cubanas, 1988, p. 229-246.

LEZAMA LIMA, José. Juego de las decapitaciones. Barcelona: Montesinos,


1984.

LÓPEZ GRIGERA, Luisa. Teoría de la lengua y de la literatura. Madrid: La


Muralla, 1986.
PAULI JÚNIOR, Edelberto. A arte da figura nos contos de Lezama Lima.
Dissertação (Mestrado em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e
Hispano-americana), Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.

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