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A AVENTURA BRASILEIRA DO

MARXISTA CAIO PRADO JR .1

Bernardo Ricupero
Universidade de São Paulo
RESUMO
O artigo que segue procura situar Caio Prado Jr. no contexto da construção de um pensamento marxista no
Brasil, independente e desvinculado dos problemas de interpretação do País ligados ao PCB e decorrentes
das orientações das Internacionais Comunistas. E distante do PCB e próximo da Universidade que se forma
um pensamento marxista brasileiro no qual pode ser situado Caio Prado Jr., cuja preocupação essencial é
elaborar uma visão global sobre a realidade brasileira. Tal preocupação, coincidentemente, acaba se
realizando em dois momentos fundamentais, pois neles os intelectuais se voltam à compreensão do que seja
o país: os períodos entre 1933 e 1945 e entre 1955 e 1969.
PALAVRAS-CHAVE: marxismo no Brasil; PCB; Caio Prado Jr. ; pensamento político brasileiro.

I. MARXISMO E BRASIL: UMA HISTÓRIA 1981; KONDER, 1982; MORAES Filho, 1991).
QUASE INEXISTENTE Antes de 1922 também apareceram alguns
Se a história da relação do marxismo com a intelectuais socialistas, entre os quais os mais
América Latina é marcada pelo desencontro, a importantes foram Silvério Fontes e o italiano
história da relação do marxismo com o Brasil Antônio Piccarollo, que tentou esboçar uma
era até recentemente quase inexistente. Antes interpretação da realidade brasileira mais de
da fundação do PCB, em 1922, praticamente não acordo com nossas especifícidades (cf. CÂN­
havia marxismo e marxistas no Brasil2 . Podem- DIDO, 1980; CARONE, 1970 e 1979), mas o
se encontrar algumas referências esparsas a alcance de seus trabalhos foi mínimo3.
Marx em certos autores como Tobias Barreto, No movimento operário, “pequena mancha
Rui Barbosa, Clóvis Bevilacqua, Sílvio Romero urbana num oceano agrário” (FAUSTO, 1986:
e até Machado de Assis, mas mesmo aqueles 08), o predomínio anarquista era absoluto. As­
que entre nós talvez tenham chegado a uma sim, não é de estranhar que dos nove fundadores
noção mais precisa do que era o materialismo do PCB, apenas um, o alfaiate espanhol Manuel
histórico, Euclides da Cunha e Evaristo de Cendón, não tivesse tido anterior militância
Moraes, não foram muito além do comentário libertária. Esses anarquistas fundam o PCB logo
apressado (cf. CARONE, 1986; CHACON, depois do período de apogeu do movimento
operário, entre 1917-1920, quando foi realizado
o maior número de greves da história brasileira
1 Este artigo é uma versão ligeiramente modificada até o fim da II Guerra Mundial. Depois da
de um capítulo de minha Dissertação de Mestrado, derrota do movimento, procuram descobrir os
desenvolvida junto ao programa de pós-graduação
em Ciência Política da Universidade de São Paulo
(USP), e intitulada Caio Prado Jr. e a nacionalização
do marxismo no Brasil. 3 Edgard Carone resume bem a situação do marxismo
no Brasil: “o relativo desconhecimento de Marx e
2 As primeiras referências a Marx aparecem em Engels entre nós permite-nos afirmar que no Brasil
1871, com a Comuna de Paris, que toma a Associação não existem discípulos seus até a década de 1920,
Internacional dos Trabalhadores conhecida mun­ mas unicamente alguns leitores” (CARONE, 1986:
dialmente. 59).

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motivos de seu fracasso e encontram na Rússia, socialistas fortes e reflexão marxista no Brasil5.
onde um partido disciplinado acabara de realizar Assim, além da hegemonia que a partir de 1917
uma das primeiras revoluções socialistas o bolchevismo passa a exercer no movimento
vitoriosas da história4, um exemplo e tanto. socialista internacional, a ausência de tradição
Mas a passagem do anarquismo para o marxista anterior à fundação do PCB em 1922
marxismo, ou melhor, para o marxismo- contribui no Brasil para que marxismo e mar-
leninismo, não parece ter sido o produto de uma xismo-leninismo sejam encarados como quase
reflexão mais aprofundada por parte desses sinônimos.
antigos anarquistas que, por sinal, não tinham É por isso que a primeira tentativa de expli­
maior formação teórica. O que naturalmente cação marxista do Brasil aparece apenas em
também contribuiu para que esse marxismo- 1926, com o livro Agrarismo e industrialismo ,
leninismo fosse bastante tosco. As condições em de Fritz Mayer, na verdade, do dirigente comu­
que se processou essa transição são ilustradas nista Octavio Brandão. Para realizar sua análise,
de forma exemplar num episódio narrado por Brandão se baseia numa interpretação particular­
John W. F. Dulles e protagonizado pelo ainda mente mecanicista da dialética, que eqüivale à
anarquista José Oiticica e os recém-convertidos tríade: tese, antítese e síntese. A partir desses
ao comunismo Astrojildo Pereira e José Elias “pressupostos metodológicos”, tenta explicar a
da Silva: “dias depois Oiticica voltou à União revolta tenentista do General Isidoro Dias Lopes
dos Empregados em Padarias e encontrou de 1924, não sendo por acaso que o subtítulo do
Astrojildo à cabeceira da mesa, dirigindo-se aos livro seja “ensaio marxista sobre a revolta de
presentes ‘com sua costumeira tranqüilidade’. São Paulo e a guerra de classes no Brasil”.
José Elias da Silva perguntou: cGildo, você não Como diz o próprio Brandão sobre suas in­
acha melhor dizer ao Oiticica o que se passa?’ tenções: “os que acreditam no Ser, no Absoluto,
Astrojildo concordou e Elias, na sua linguagem só vêem na revolta de 1924 um motim secun­
de ex-embarcadiço, explicou-lhe: ‘Oiticica, dário, localizado, mumificado, uma espécie de
conosco agora é na exata’. ‘Já sei, vocês são quisto social, sem relação com o ambiente, sem
bolchevistas”’ (DULLES, 1977: 142). significação de espécie alguma. Nós, porém, que
O fato a reter desse episódio é como a só admitimos o Devenir, a transformação
passagem do anarquismo para o comunismo se contínua, vemos nessa revolta um processo, a
dá de forma abrupta, sem maiores preparativos. elaboração de alguma coisa nova que quer surgir
Como vimos, basicamente é o refluxo do sem poder ainda: a vitória do industrialismo
movimento operário e o fascínio com a sobre o agrarismo; a vitória da burguesia indus­
Revolução de Outubro que explicam essa trial sobre a burguesia agrária; a vitória da bur­
transição. Portanto, o início do marxismo no guesia progressista sobre a burguesia rotineira”
Brasil não é resultado de um processo (MAYER, 1926: 61). Brandão identifica, assim,
cumulativo, mas quase de episódios fortuitos. o presidente Arthur Bernardes com a tese (o
Esse marxismo, além do mais, é praticamente agrarismo feudal); Isidoro Dias Lopes com a
todo ele marxista-leninista, já que anteriormente antítese (a pequena-burguesia rebelada, por trás
à Revolução de Outubro nunca houve partidos da qual está o capital industrial); e a revolução
proletária, ainda por ocorrer, com a síntese.
Aplica então a “dialética” para explicar a história
do movimento operário brasileiro, a história do
4 Antes da Revolução de Outubro houve a experiên­ Brasil (dividida em dez ciclos) e a história de
cia da Comuna de Paris. Entretanto, o período de
governo socialista foi muito limitado em 1871. Lênin
e seus camaradas tinham tão pouca certeza de que 5 O que é diferente mesmo de certos casos latino-a­
triunfariam, que chegaram inclusive a comemorar mericanos, como o argentino, que contou com o forte
quando o governo dos sovietes de operários, Partido Socialista de Justo, e o chileno, onde os mi­
camponeses e soldados ultrapassou os dois meses neiros, liderados por Recabaarren, tinham fundado
da Comuna. em 1906 o Partido Obrero Socialista.

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Roma (dividida em oito ciclos). ocorre com as frentes populares — a qual a
Apesar da pobreza da interpretação de experiência da ANL antecipa — de forma geral,
Agrarismo e industrialismo , o livro servirá de como nota Claudin (1985), mesmo quando os
referência teórica para a política do PCB durante partidos comunistas se tomam atores políticos
os anos vinte, com o então secretário-geral, importantes, eles não se enraízam nas suas res­
Astrojildo Pereira, tendo se baseado nele para pectivas realidades nacionais, enquanto o segun­
redigir o informe ao III Congresso do partido. do período parece refletir principalmente o gran­
de prestígio de que goza a União Soviética logo
A partir de 1928, entretanto, com a realização depois da derrota do nazi-fascismo, sem ter
do VI Congresso da III Internacional e a adoção maiores conseqüências.
da política de “classe contra classe”, perdem A reflexão teórica do PCB se modifica par­
espaço mesmo tímidas tentativas de explicar a cialmente, porém, com a “Resolução Política
realidade brasileira a partir do marxismo, como do IV Congresso”, de 1954, onde há uma certa
o livro pioneiro de Brandão6. O grupo dirigente tentativa de realizar uma análise mais acabada
do PCB durante a década de vinte, do qual os sobre a sociedade brasileira (BRANDÃO, 1992;
intelectuais Astrojildo Pereira e Octavio Bran­ MANTEGA, 1995). Esta análise, entretanto, é
dão eram os principais nomes, é deslocado do produto principalmente de uma sistematização
comando do partido que assume uma linha cada de pontos que já apareciam na caracterização
vez mais “obreira”. Leandro Konder resume da III Internacional e do PCB sobre o Brasil e o
bem o significado dos acontecimentos para a tipo de país no qual ele era enquadrado. O que
reflexão marxista sobre o Brasil: “essa derruba­ faz com que a resolução enfatize os elementos
da significava o fim de uma era: já não se tratava de atraso brasileiro, caracterizando o país como
mais de procurar, embora canhestramente, semi-colonial e semi-feudal.
interpretar a realidade brasileira à luz de um
marxismo capaz de se renovar em contato com Refletindo o clima da Guerra Fria, afirma-
uma realidade singular, inédita; tratava-se de re- se mesmo que “as principais contradições que,
ceber de fora um ‘marxismo-leninismo’ no momento atual, se verificam no Brasil são
codificado e aplicá-lo ao Brasil de acordo com as que contrapõem os imperialistas norte-
as instruções estritas do produto importado” americanos à maioria esmagadora da nação e,
(KONDER, 1982: 165). simultaneamente, os restos feudais do povo bra­
Assim, nas décadas seguintes não há pratica­ sileiro”. Portanto, a “revolução brasileira em sua
mente esforço algum por parte do PCB e dos etapa atual” deveria estar orientada para a reso­
intelectuais próximos ao partido de elaborar uma lução desses problemas, tendo um caráter “De-
explicação da sociedade brasileira que desse mocrático-Popular, de cunho Antiimperialista
conta de nossas particularidades. A modesta pro­ e Agrária Anti-feudal” (apnd CARONE, 1982:
dução teórica de marxistas brasileiros, mesmo 128). As principais medidas dessa revolução
quando seus autores são membros do PCB, se seriam duas : se estabeleceria o controle dos trus-
dá, portanto, à margem do partido. tes internacionais, principalmente norte-ame­
ricanos, e se garantiria a posse da terra para os
Não obstante, registram-se momentos de “camponeses” brasileiros.
relativa influência comunista na vida política As forças progressistas, que pretensamente
brasileira, como durante a existência da Aliança corresponderiam ao proletariado, o campesinato
Nacional Libertadora (ANL), em 1935, e no e a maior parte da pequena-burguesia, poderiam,
curto período de legalidade do PCB, entre 1945 além do mais, contar em tese com a simpatia de
e 1947. No primeiro período, a exemplo do que um setor da burguesia. Isto porque, de acordo
com a resolução, “a burguesia brasileira encon-
6 A política preconizada pelo PCB se baseava então tra-se hoje dividida em dois grupos distintos.
na aliança com a pequena-burguesia, identificada Um deles é formado pelos grandes capitalistas
com o tenentismo. Para tanto, chegou-se a formar o estreitamente ligados aos latifundiários e que
Bloco Operário Camponês (BOC), inspirado, em servem diretamente aos interesses de um ou ou­
parte, no Kuomintang chinês.

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tro grupo de monopolistas estrangeiros, par­ a pequena-burguesia urbana, a burguesia e os
ticularmente norte-americanos [...]. O segundo setores latifundiários que possu[e]m contra­
grupo é constituído pela parte restante da dições com o imperialismo norte-americano”
burguesia brasileira, denominada pelo programa {apud CARONE, 1982: 186); do outro lado, se
com acerto, de burguesia nacional, e que reflete encontrariam esse imperialismo e seus tradicio­
principalmente os interesses da indústria nacio­ nais aliados, o grosso dos latifundiários e uma
nal” {apud CARONE, 1982: 132). A resolução parte da burguesia ligada ao comércio exterior.
não especificava, contudo, quem seriam esses No caso da coalizão nacionalista, tanto a
possíveis aliados burgueses. burguesia nacional como o proletariado estariam
Mas a partir do suicídio de Vargas, em 1954, fortalecidos pelas mudanças econômicas que
e do XX Congresso do PCUS, de 1956, onde se lhes fizeram ganhar importância no interior da
reconhecem os crimes de Stalin, o PCB vai sociedade brasileira.
progressivamente mudando de orientação, pas­ O sentido da prática política dessa coalizão
sando a valorizar a democracia e a reconhecer deveria basicamente ser o mesmo estabelecido
que a sociedade brasileira se transforma pro­ em 1954: contrária aos restos feudais e ao
fundamente, principalmente devido à indus­ imperialismo, principalmente norte-americano.
trialização. A coalizão nacionalista já teria, além do mais,
O marco nesse processo de mudança de linha provado seu caráter legalista em duas ocasiões,
programática é a “Declaração de Março” de tendo defendido, em 1954 e 1955, a Constituição
1958. Esse documento tem importância contra forças golpistas representadas sobretudo
sobretudo por defender uma via pacífica para a por grupos favoráveis ao imperialismo.
realização dos objetivos ainda antiimperialistas, Também na década de cinqüenta começam
anti-feudais e, num futuro longínquo, socialistas a aparecer intelectuais de um certo peso vin­
do partido, devido à modificação em pontos culados ao PCB e suas teses. Os dois principais
fundamentais da caracterização por parte do são: Alberto Passos Guimarães e Nelson Wer-
PCB da sociedade brasileira. Reconhece-se, em neck Sodré.
particular, que ocorrem no Brasil mudanças O primeiro realiza principalmente trabalhos
importantes que apontam para “um desenvolvi­ sobre a questão agrária brasileira. Esses traba­
mento capitalista nacional” (apud CARONE, lhos coincidem, de forma geral, com a orienta­
1982: 176), entre as quais destaca-se: o estabele­ ção comunista, procurando mesmo aprofundá-
cimento de um importante parque industrial, o la. Assim, Alberto Passos Guimarães em seu li­
desenvolvimento de um capitalismo de Estado vro mais importante, Quatro séculos de lati­
no setor da indústria pesada, a ocorrência de fúndio, se insurgirá contra o questionamento do
transformações até mesmo na agricultura no sen­ passado feudal do Brasil, afirmando que “o pro­
tido de desenvolvimento capitalista e a amplia­ cesso evolutivo em curso na sociedade lusa [de
ção do mercado interno. desenvolvimento do capital comercial] não veio
Essas mudanças socioeconômicas teriam continuar-se no Brasil Colônia, onde o regime
reflexos sobre a política. Assim, o Estado brasi­ econômico instaurado significou um recuo de
leiro não mais representaria apenas “os inte­ centenas de anos em relação ao seu ponto de
resses dos latifundiários, dos setores capitalistas partida na metrópole. Para que assim aconteces­
ligados ao imperialismo, particularmente aos se, a classe senhorial, despojada de seus recursos
norte-americanos”, mas também da “burguesia materiais, empenhou-se a fundo na tarefa de
interessada no desenvolvimento da economia fazer girar em sentido inverso a roda da história,
nacional”. O que faria com que surgissem “con­ embaçada pelo sonho de ver reconstruído o seu
tradições e tipos diversos de compromisso de passado” (GUIMARÃES, 1968: 23).
classe no seio do próprio Estado” (apud Mais adiante, Alberto Passos chega a afirmar
CARONE, 1982: 178). que, “na impossibilidade de contar com o servo
De um lado, estariam unidos no movimento da gleba, o feudalismo teve de regredir ao escra­
nacionalista “a classe operária, os camponeses, vismo, compensando a resultante perda do nível
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de produtividade, em parte com a extraordinária defende ponto de vista oposto: “a ampliação da
fertilidade das terras virgens do Novo Mundo área em que se instalam relações feudais no Bra­
e, em parte, com o desumano rigor aplicado no sil é um processo que abrange a história do país
tratamento da mão de obra [...]. Mas em com­ desde o início da colonização quase, e chega
pensação, pôde desenvolver o caráter comercial aos nossos dias. Começa com o pastoreio serta­
de sua produção, não para o mercado interno, nejo que, no seu desenvolvimento, acaba por
que não existia, mas para o mercado mundial” incorporar áreas antes escravistas em decadên­
(GUIMARÃES, 1968: 29). cia, a partir do momento em que a economia
Mas mesmo que possa parecer estranho um açucareira entra em sua prolongada crise e se
“feudalismo” onde as relações de produção são submete à estagnação” (SODRÉ, 1976: 29).
escravistas e a economia não é natural, Alberto O estranho é que Sodré considera que “só as
Passos parece não ter dúvidas quanto a ter sido atividades de exportação comportam o escra­
este o caráter da colonização brasileira: “nenhu­ vismo e, ainda nesse caso, o regime anuncia cla­
ma dessas alterações, a que precisou amoldar- ramente a sua precariedade, sua dificuldade em
se o latifúndio colonial, foi bastante para diluir competir no exterior, sua carência de produtivi­
o seu caráter feudal”. Como prova disso, aponta dade” (SODRÉ, 1976: 34). Ora, sabemos que
para o fato que “muito freqüentemente as formas toda a economia colonial estava voltada para a
escravistas entrelaçaram-se com as formas produção para o mercado externo, portanto, co­
servis de produção” (GUIMARÃES, 1968: 29), mo considerar que a escravidão é secundária se
sobretudo com o escravo produzindo seu próprio ela é a base das atividades que orientam a vida
sustento. Que formas similares ao feudalismo da Colônia?
possam ter aparecido no Brasil Colônia não é Mas se Nelson Werneck Sodré se permite
de se estranhar. O estranho, contudo, é conside­ em certos momentos alguma independência em
rar, como faz Alberto Passos, estas formas como relação ao PCB na caracterização do passado
o dominante na formação econômico-social da colonial do Brasil, o mesmo não ocorre com sua
Colônia, voltada toda ela para a exportação de análise da nossa estrutura social. Chega a afirmar
bens primários resultantes do trabalho do braço que “povo brasileiro, nesta fase histórica, com­
escravo. preende o proletariado, o campesinato, a peque­
Nelson Wemeck Sodré é, por sua vez, um na burguesia e a parte da alta e média burguesia
pensador mais independente e sofisticado do que conhecida como burguesia nacional” (SODRÉ,
Alberto Passos Guimarães. Em relação à 1982: 401), ou seja, precisamente os grupos que
caracterização do passado colonial do Brasil, o PCB acredita que deveriam realizar nossa
contudo, sua avaliação varia em diferentes Revolução “Democrático-Burguesa, Antiimpe-
trabalhos. Em alguns textos considera haver na rialista e Anti-feudal”. Constata-se, por esse tre­
Colônia um tipo especial de capitalismo, que, cho, que o termo povo, em geral utilizado como
na linha do argentino Sérgio Bagu, chama de uma quase entidade metafísica de difícil defi­
capitalismo colonial; em outros, aponta para um nição, é empregado de forma particularmente
suposto progressivo predomínio do feudalismo imprecisa por Wemeck Sodré. Tem talvez um
no Brasil. Assim, em 1958, em Introdução à sentido próximo ao do Terceiro Estado da Revo­
revolução brasileira , afirma: “nessa estrutura, lução Francesa, com a diferença de que este era
o que se esboça, desde os primeiros dias, como considerado como um corpo único por seus con­
um destino a que é impossível fugir, é na tendores, o Primeiro e o Segundo Estados, en­
verdade, uma forma particular de capitalismo quanto aqui nada o unifica, a não ser a vontade
— o capitalismo colonial —, condicionado em de Wemeck Sodré e do PCB.
todas as suas manifestações, ainda as mais Fora do PCB, também a partir do final da
elementares, ao desenvolvimento do capitalismo década de vinte começam a surgir análises
comercial europeu, eivado, apenas para caracte­ marxistas da realidade brasileira. Elas aparecem
rizar a sua aparência exterior, dos traços locais sobretudo em grupos à esquerda do partido, que,
antes indicados” (SODRÉ, 1958: 64). Já em devido à sua não-vinculação com a política
História da burguesia brasileira , livro de 1964,

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soviética, podem fornecer um retrato mais as análises derivadas dela tenderam a equivaler
fidedigno do país. o Brasil e a América Latina ao “Oriente”, a
O pioneiro desses textos é o “Esboço de uma extrema-esquerda tende a considerar o capitalis­
análise da situação econômica e social do Brasil” mo como praticamente homogêneo, o que lhes
de 1930. Escrito pelos intelectuais Mário cria enormes dificuldades de lidar com a questão
Pedrosa e Lívio Xavier, antigos militantes do nacional, como pode-se constatar por um texto
PCB que se aproximaram do trotskismo e das de 1962 de um dos principais teóricos da Orga­
teses da Oposição de Esquerda, este artigo é nização Marxista Revolucionária — também
publicado em A luta de classes , órgão da Liga conhecida como POLOP —, Moniz Bandeira:
Comunista. “a conjuntura mundial, na etapa do imperialis­
mo, [...] acabou [com] as velhas distinções entre
Mesmo que o artigo de Pedrosa e Xavier países maduros e não maduros para o socialis­
ainda se mantenha sob a influência das teses da mo”. Assim, “em virtude do desenvolvimento
Internacional Comunista sobre os “países co­ desigual, irregular e combinado do capitalismo
loniais, semi-coloniais”, ele é mesmo superior [...], confundem-se as etapas da revolução, não
ao texto pioneiro de Octavio Brandão. Chega podendo haver dissociação entre as tarefas bur­
inclusive a antecipar boa parte das posições es­ guesas e as reivindicações socialistas” (BAN­
querdistas que se popularizarão a partir da déca­ DEIRA apud CARONE, 1981: 79).
da de sessenta. Assim, afirma que “o modo de Mas é só por volta do final da década de
produção capitalista e a acumulação —e, por cinqüenta e início da de sessenta, longe do PCB
conseqüência, a propriedade privada capitalista e próximo da universidade e por vezes de grupos
— foram exportados diretamente das metrópoles à esquerda do PCB, que se forma verdadeira­
para o Novo Mundo” (apud ABRAMO e KA- mente um marxismo brasileiro. Isto é, textos
REPOVS, 1987: 66-67) apesar de, logo adiante, marxistas deixam de ser apenas manifestações
se contradizer, ao caracterizar nossa colonização isoladas e se começa a produzir uma literatura
como uma “forma peculiar de feudalismo” marxista como um “sistema de obras ligadas por
{apud ABRAMO e KAREPOVS, 1987: 68). O
artigo também nega a existência de oposição denominadores comuns, que [...] fazem [dessa]
entre imperialismo e burguesia nacional, que literatura aspecto orgânico da civilização”
considera que em países novos como o nosso (CÂNDIDO, 1993: 23). Dessa forma, na década
“ao aparecer na arena histórica, já era velha e de sessenta passam a existir, em relação ao
reacionária” {apud ABRAMO e KAREPOVS, marxismo, as condições mínimas que Antônio
1987: 65). Pedrosa e Xavier questionam além Cândido aponta para que haja comunicação
do mais o antagonismo entre burguesia urbana literária: 1) a existência de um conjunto de
e proprietários rurais e defendem que a relação produtores literários; 2) a existência de um
de trabalho prevalecente no campo é o salariado. conjunto de receptores literários que formam
As conclusões que se pode tirar de tais postula­ públicos; 3) a existência de um mecanismo
dos são também bastante claras para eles: se transmissor, a linguagem, que pode se converter
deveria procurar organizar autonomamente a em diferentes estilos.
classe trabalhadora, preparando o caminho para E bem verdade que antes da década de
a Revolução Permanente que instauraria sessenta existiam autores e leitores marxistas
imediatamente o socialismo. no Brasil, mas o terceiro elemento para que
As organizações trotskistas que surgirão exista comunicação literária, a linguagem,
posteriormente, assim como grupos próximos estava ausente de nosso meio. Isto porque, de
de posições luxemburguistas, manterão basica­ maneira geral, nossos marxistas não se
mente esse tipo de análise, além de, no caso dos preocupavam em elaborar uma linguagem que
últimos, valorizar a democracia. Por outro lado, estivesse de acordo com as nossas condições,
a inserção social desses grupos será mínima, contentando-se, em compensação, a consumir
funcionando mais como seitas do que como as fórmulas que a III Internacional havia
partidos. Além do mais, se a III Internacional e elaborado para os “países coloniais, semi-
coloniais ou dependentes”. Não havia, portanto,
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um sistema articulado, um marxismo autônomo como um marginal no seu ambiente político e
no Brasil, já que o que existia de produção intelectual principal, o marxismo do Brasil.
marxista no país estava diretamente ligado a Prova disso é que, ao longo de seus muitos anos
uma outra tradição, a tradição da III Interna­ de militância comunista, praticamente não
cional e, indiretamente, através dela, à tradição exerceu cargos de destaque no PCB. As exce­
do marxismo soviético. ções foram apenas no período da Aliança Nacio­
Apenas com o marxismo uspiano — “capítu­ nal Libertadora (ANL), quando foi vice-presi­
lo brasileiro do marxismo ocidental” — passa dente da seção paulista, e na curta legalidade
a existir um marxismo brasileiro, em razão de do PCB, entre 1945 e 1947, em que foi eleito
certos marxistas na década de cinqüenta e deputado estadual e líder da bancada comunista
sessenta finalmente terem sido capazes de for­ na Assembléia Legislativa de São Paulo9. Tam­
mular uma explicação do Brasil. Paulo Arantes, bém do ponto de vista teórico defendeu teses
que foi quem melhor estudou o marxismo minoritárias no interior do partido, tendo afir­
uspiano, assinala mesmo que ele tinha “como mado já em 1933, em Evolução política do
ponto de partida e horizonte conclusivo refazer Brasil, que “podemos falar num feudalismo
radicalmente o diagnóstico da síndrome brasileiro apenas como figura de retórica, mas
brasileira de origem, do complexo colonial à absolutamente para exprimir um paralelismo
nossa inserção oblíqua e subordinada no sistema que não existe, entre nossa economia e da Eu­
mundial do capitalismo contemporâneo” ropa medieval” (PRADO Jr., 1987: 17).
(ARANTES, 1994: 239). Esses autores marxis­ II. CAIO PRADO JR. E O PCB
tas criaram, portanto, uma linguagem específica, Mais, porém, do que um solitário, talvez se
tendo também se formado em tomo deles um possa considerar Caio Prado como membro de
público que consumia suas obras. um grupo minoritário no PCB (LIMONGI,
Caio Prado Jr., que produziu o essencial de 1987), o qual, entretanto, não chegou a ser uma
sua obra no período anterior, foi, conseqüente­ fração. Vejamos os principais momentos da
mente, um solitário7. Como os dependentistas história desse grupo.
e uspianos, porém, preocupou-se basicamente Com a entrada do Brasil na II Guerra, o PCB,
em entender a particularidade latino-americana que fora praticamente destruído com a repressão
e brasileira. Diferentemente deles, contudo, não do Estado Novo, começa por volta de 1943 a se
se formou em tomo de Caio Prado uma tra­ reorganizar. Com a reestruturação surgem tam­
dição8 . bém divergências no interior do partido. De um
Caio pode, conseqüentemente, ser encarado lado, cria-se a Comissão Nacional de Organiza­
ção Política (CNOP), sediada no Rio de Janeiro
e constituída principalmente pelo chamado
7 Um marxista uspiano de destaque, Roberto “grupo baiano”. Oposto a ela formam-se os Co­
Schwarz, reconhece o caráter pioneiro de nosso autor: mitês de Ação, com bases principalmente em
“o caso de exceção foi Caio Prado Jr., em cuja pessoa São Paulo. Fazia parte da CNOP gente como
inesperada o prisma marxista se articulou critica­ Diógenes Arruda, Pedro Pomar, João Amazo­
mente à acumulação intelectual de uma grande nas, Maurício Grabois e Mário Alves, que vi­
família do café e da política, produzindo uma obra
superior, alheia ao primarismo e assentada no riam a constituir o grupo dirigente do PCB du­
conhecimento sóbrio das realidades locais” rante o período democrático. Por outro lado,
(SCHWARZ, Folha de São Paulo, p. 5). eram membros dos Comitês de Ação principal­
mente intelectuais, como Caio Prado Jr., Mário
8 É possível que a Revista Brasiliense, que teve em Schenberg, Victor Konder e David Lemer.
Caio Prado Jr. seu principal animador, tenha con­
gregado um certo número de intelectuais identifica­
dos com suas teses. A revista, porém, foi incapaz de 9 No primeiro caso, contudo, é preciso assinalar que
criar propriamente um grupo articulado que man­ a vice-presidência era de uma organização frentista
tivesse uma continuidade e, assim, criasse ao longo da qual o PCB fazia parte e não propriamente do
do tempo uma tradição. partido.

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A AVENTURA BRASILEIRA DO MARXISTA CAIO PRADO JR.
Enquanto o primeiro grupo era favorável, em segunda metade da década de cinqüenta.
nome de uma união nacional que a Guerra contra Assim, a sugestão de Limongi, da existência
o Eixo exigiria, a apoiar o antigo ditador Getulio de uma certa continuidade entre os “Comitês
Vargas, os Comitês de Ação defendiam a luta de Ação” e a Revista Brasiliense parece não ser
aberta contra o “fascismo” do Estado Novo. inteiramente descabida. Caio Prado é, além do
Assim, foi Caio Prado Jr. que sugeriu o nome mais, pelo menos no segundo caso, o seu prin­
para o partido que deveria congregar a oposição cipal nome, sendo em tomo de suas teses que
a Getúlio, a União Democrática Nacional (UDN) os outros membros do “grupo” se articula­
(PRADO Jr., 1981). Contudo, com a decisão do vam11 . Mais do que um gmpo político organiza­
Secretário-Geral Luís Carlos Prestes de apoiar do, estes amigos comunistas parecem constituir
a CNOP, a luta interna no interior do PCB se algo similar a aquilo que J. P. Nettl (1969), na
decide favoravelmente a esse grupo. Alguns sua biografia de Rosa Luxemburgo, chama de
membros inconformados dos Comitês de Ação “gmpo de pares” (peer group ) que existia no
chegam mesmo a não aceitar a decisão, vindo a Partido Social-Democrata do Reino da Polônia
ingressar na Esquerda Democrática (ED) (PSDRP). Assim como os intelectuais judeus
(CHILCOTE, 1974; RODRIGUES, 1983). Este, que constituíam o núcleo da liderança do
porém, não é o caso de Caio Prado, que se man­ PSDRP, os intelectuais paulistas da Revista
tém fiel ao PCB10. Brasiliense compartilhavam mais do que
Portanto, em 1955, quando é fundada a posições políticas. Laços de amizade os uniam,
Revista Brasiliense , as divergências entre Caio o que talvez tenha contribuído até para criar um
Prado Jr. e a direção do PCB, tanto do ponto de certo ethos entre eles. Portanto, mesmo que se
vista teórico como prático, já haviam sido considere Caio Prado um solitário, ele é um
bastante significativas. Dessa forma, mesmo que solitário de tipo especial, ou seja, um solitário
o manifesto de fundação da revista afirme que que não fala apenas em nome próprio.
ela não terá “ligações de ordem política e Prova da ligação da Revista Brasiliense com
partidária [e que] será orientada pelos seus certos comunistas é que, além de Caio e Elias
próprios redatores e colaboradores” (REVISTA Chaves Neto, seus principais animadores — que,
BRASILIENSE, 1955: 21), Fernando Limongi ao longo de seus 46 números, publicaram
tem razão em apontar para o grande número de respectivamente 31 e47 artigos12 —, aparecem
membros do PCB envolvidos com o entre os mais importantes colaboradores da
empreendimento editorial. Estes comunistas, revista gente que num momento ou outro esteve
além do mais, têm em comum o fato de se ligada ao PCB, como: Heitor Ferreira Lima (28
identificarem com teses minoritárias no interior artigos), Álvaro de Faria (26 artigos), Everardo
do partido, questionando principalmente a Dias (22 artigos), Paulo Alves Pinto (22 artigos),
caracterização da questão agrária e a aliança com F. Pompeo do Amaral (12 artigos), Octávio
o populismo que passa a ser feita a partir da Brandão (12 artigos), Samuel B. Pessoa (12 ar­
tigos) João Cruz Costa (7 artigos), Catulo Bran­
10 Além dessa divisão no interior do PCB, ocorrida co (7 artigos), Otto Alcides Ohlwieter (5 artigos)
durante a redemocratização, já em 1937, quando e José Chasin (4 artigos). No núcleo central da
deveriam ser realizadas eleições para a sucessão de
Getulio Vargas, haviam aparecido divergências entre
a direção do PCB e o Comitê Regional de São Paulo.
Os paulistas se recusaram a apoiar a candidatura 11 Um membro destacado do grupo, seu primo Elias
oficialista de José Américo de Almeida, Chaves Neto, não deixa dúvidas quanto a isso: “foi
argumentando que isto representaria uma forma de dentro das concepções nacionalistas da tese
colaboracionismo com o “fascismo getulista”. Esta apresentada por Caio Prado Jr. [Diretrizespara uma
recusa levou à expulsão de alguns dirigentes como Política Econômica Brasileira] que um grupo de
Hermínio Saccheta e Heitor Ferreira Lima. Caio intelectuais comunistas e não comunistas fundou a
Prado, contudo, não parece ter participado da luta Revista Brasiliense" (CHAVES Neto, 1977: 142).
interna, já que em 1937, depois de passar dois anos 12 Os dados que seguem baseiam-se em LIMONGI,
na prisão, partia para o exílio na França. 1987.

62
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA N° 8 1997
revista a presença comunista é ainda mais ção do Brasil contemporâneo , publicado em
significativa. Dos dez colaboradores mais 1942; Formação econômica do Brasil, de Celso
assíduos da Revista Brasiliense , nove deles Furtado, publicado em 1959; Formação da lite­
tiveram alguma ligação com o PCB. Entre eles, ratura brasileira , de Antônio Cândido, publica­
apenas Florestan Fernandes (12 artigos) não foi do em 1959; Os donos do poder , que tem como
membro do PCB13 . Portanto, há indícios se­ subtítulo formação do patronato político brasi­
guros de que a Revista Brasiliense , apesar de leiro , de Raymundo Faoro, publicado em 1958.
sua independência, fazia parte da órbita cultural Mesmo outras obras, como Casa grande e sen­
comunista. zala , de Gilberto Freyre, publicada em 1933, e
É possível também que muitas das carac­ Raízes do Brasil , de Sérgio Buarque de Holanda,
terísticas da Revista Brasiliense se devam à sua publicada em 1936, apesar de não conterem a
origem regional. Em São Paulo, estado com palavra “formação” no título, estão inspiradas
menor presença do poder central que o Rio de pelo mesmo tipo de preocupação.
Janeiro, a busca por uma ação autônoma da Como se pode constatar pela breve relação
classe trabalhadora é uma possibilidade maior. de títulos reproduzida acima, a maior parte
Não é mero acaso, portanto, que em diferentes desses livros é da década de trinta e cinqüenta,
momentos históricos, como na época de predo­ períodos, portanto, essenciais neste século para
mínio anarquista e da formação do PT, isto tenha a reflexão sobre o Brasil. Talvez se possa mesmo
sido uma importante aspiração para setores do considerar, como faz Luciano Martins (1987),
movimento operário14 . que, a partir do modernismo, começa a se formar
III. CAIO PRADO JR. E A LITERATURA SO­ uma intelligentsia brasileira. Assim, apesar de
BRE A FORMAÇÃO DO BRASIL ser possível encontrar sopros de radicalismo em
certos pensadores e escritores, como Joaquim
Em seu esforço de compreender as particu­ Nabuco, Manoel Bonfim, Euclides da Cunha e
laridades da sociedade brasileira, Caio Prado Lima Barreto, eles ainda são autores isolados,
acaba, porém, por se afastar do PCB e se incapazes, portanto, de realmente impulsionar
aproximar de outros autores, muitos deles não a mudança no país.
marxistas, que se preocuparam com a mesma Em contraste, a partir do modernismo, inte­
questão. Obceca a estes autores, como nota lectuais passam a encarar, como sua tarefa, au­
Paulo Arantes, principalmente uma questão: “a xiliar numa transformação quase completa do
ausência de linhas evolutivas mais ou menos Brasil. Sinal disso é o discurso em que Graça
contínuas a que se costuma dar o nome de Aranha anuncia seu abandono da Academia Bra­
formação”. Assim, inspirados pelo que vêem nos sileira de Letras e ingresso nas fileiras modernis­
países de capitalismo central, parecem querer tas: “o movimento espiritual modernista não se
“dotar o meio gelatinoso de uma ossatura mo­ deve limitar unicamente à arte e à literatura, ele
derna que lhe sustentasse a evolução” (ARAN­ deve ser total. Há necessidade, tão longamente
TES, 1992: 229). esperada, de transformação filosófica, social e
E esta preocupação comum que dá a tanto política” (apud MARTINS, 1987: 76-77).
livros chaves de interpretação do Brasil um ar Assim, de forma similar aos populistas russos,
de família. Não por acaso, boa parte deles, a os modernistas brasileiros procurarão “ir ao po­
começar pelo de Caio que dá origem ao gênero, vo”, buscando apreender o que é a identidade
ostentam no título a palavra “formação”: Forma­ brasileira. A partir daí, se abrirá caminho para
interpretações globais do país não naturalistas,
13 Florestan Fernandes, entretanto, desejou filiar-se
que abandonam a explicação racista ou baseada
ao Partido. Cf. FERNANDES, 1989. no “meio tropical”.
14 No Rio de Janeiro, em compensação, já no período Caio Prado Jr. teve, portanto, a felicidade de
da República Velha pode-se apontar para a existência ter realizado o grosso de sua atividade intelectual
de um sindicalismo “amarelo”, antecessor do traba- nesse período essencial para a reflexão acerca
lhismo e bastante ligado ao Estado (FAUSTO, 1986). do Brasil, podendo ser considerado como mem­

63
A AVENTURA BRASILEIRA DO MARXISTA CAIO PRADO JR.
bro destacado de uma intelligentsia em gestação. ocorre apenas com a Revista Brasiliense , mas
Mais especificamente, os dois principais mo­ também com os outros elementos constitutivos
mentos da produção intelectual de Caio Prado do contexto intelectual e político mais amplo
se dão entre 1933 e 1945 e entre 1955 e 1969, do qual a revista faz parte.
respectivamente os períodos em que alguns in­ Mesmo que a atividade cultural continue a
telectuais se lançam ao descobrimento dos fun­ não ter no Brasil um caráter inteiramente cumu­
damentos da “brasileiridade” e à militância na­ lativo, que favoreceria o estabelecimento de tra­
cionalista. No primeiro período, Caio Prado es­ dições, não se pode negar que, a partir do desbra­
creveu: Evolução política do Brasil (1933), vamento intelectual realizado na década de vinte
Formação do Brasil contemporâneo (1942) e e trinta por homens solitários, criaram-se condi­
História econômica do Brasil (1945), além de ções de produção intelectual mais permanentes
URSS, um novo mundo (1934). Já no segundo e seguras. Assim, a produção mais significativa
momento, publicou: Dialética do conhecimento da esquerda nacionalista é feita a partir de certas
(1952), Diretrizes para uma política econômica instituições. Verdade que o caráter dessas insti­
brasileira (1954), Esboço dos fundamentos de tuições varia bastante. Há tanto as consolidadas,
teoria econômica (1957), Notas introdutórias à como a Universidade de São Paulo (USP), as
lógica dialética (1959), A revolução brasileira mais ou menos consolidadas, como o Instituto
(1966) e História e desenvolvimento (1969), Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), e as
além de O mundo do socialismo (1962). mais precárias, como a Revista Brasiliense.
No que se refere à “geração” de trinta, Caio Também diferentes da década de trinta, são
Prado Jr. é considerado, juntamente com as preocupações que orientam estas instituições.
Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, Vimos que nos anos trinta, tanto para os
um dos seus principais membros. Os três são intelectuais como, de certa forma, para o novo
vistos até como os inauguradores de uma nova regime, se tratava fundamentalmente de se criar
maneira de se entender o Brasil. o Brasil, ou ao menos um novo Brasil, diferente
E característico da “geração de trinta”, a daquele país atrasado da República Velha.
preocupação de fornecer uma explicação global Agora, já na segunda metade da década de cin­
do Brasil que orienta a obra de Caio Prado Jr. qüenta16 , quase todos parecem se mover a partir
Assim como os modernistas que o haviam pre­ de certos pressupostos comuns sobre o país em
cedido, os três cavaleiros de 1930 parecem ter que vivem. Estes pressupostos, que foram esta­
encarado como sua principal tarefa a criação de belecidos nas décadas anteriores, dizem respeito
um país, ou ao menos, a idéia de que se faz dele, tanto à caracterização do Brasil, como às
coisas que, convenhamos, se confundem. Mas aspirações do que o país deveria ser. Ganharam
como os modernistas já haviam estabelecido os tanta força que se pode pensar na existência de
símbolos para pensar o Brasil, ficou mais fácil uma certa hegemonia na sociedade brasileira17
para Gilberto Freyre, Sérgio Buarque e Caio Apesar de todos os equívocos que apareceram
Prado Jr. se lançarem, de forma mais ou menos
sistemática, ao estudo da gramática que constitui 15 Na delimitação desse período fui até 1969, apesar
o país. Não é mero acaso, portanto, que a inves­ de a Revista Brasiliense encerrar suas atividades com
tigação nesse momento tenha sido, sobretudo, o golpe de 1964, por entender que a ordem de preo­
historiográfica. cupações que aparecem em A revolução brasileira e
As condições de produção intelectual no História e desenvolvimento serem fundamentalmente
outro grande momento da atividade de Caio as mesmas da revista.
Prado Jr., da segunda metade da década de 16 Tanto a Revista Brasiliense, como o ISEB, são
cinqüenta até os anos sessenta, contrastam bas­ criados em 1955, sendo também nesse período que
tante com o primeiro período. Nesse momento, ganham força os estudos, iniciados em 1951, sobre
que corresponde, grosso modo, ao período de escravidão e relações raciais, realizados na USP por
existência da Revista Brasiliense 15, o trabalho inspiração, sobretudo, de Florestan Fernandes.
intelectual se dá de forma coletiva. O que não 17 Não no sentido do marxismo russo, já que esta

64
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA N° 8 1997
e continuaram a aparecer no tratamento desses no segundo momento da sua atividade intelec­
temas: por exemplo, ter se pensado o Brasil co­ tual o debate ocorre em limites mais estreitos,
mo uma “democracia racial” ou não; o brasileiro já que haviam surgido públicos mais visíveis,
como um “homem cordial” ou não; nossa aos quais se devia dirigir. Assim, em 1933,
colonização como primordialmente orientada quando Caio Prado publica seu primeiro livro,
para o mercado externo ou não. Mais, o objetivo Evolução política do Brasil, quase não existe
que vem orientando o país desde 1930 tem sido quem produza e leia livros marxistas sobre o
um só: o desenvolvimento baseado, sobretudo, Brasil, enquanto o período de existência da
numa acelerada industrialização. Revista Brasiliense coincide, de forma geral,
Conseqüentemente, na segunda metade da com o momento mais pujante da cultura de
década de cinqüenta já não se discute tão esquerda brasileira.
apaixonadamente o que é o Brasil, já que todos E natural que, no primeiro período, Caio e
parecem imaginar que têm uma idéia do que seja seus companheiros de “geração” quase fossem
isto. A questão agora é outra. É determinar qual obrigados a serem originais, já que tinham de
será o lugar do país no mundo. O que faz com estabelecer as idéias que fariam o Brasil ser
que o tema do nacionalismo apareça com toda a Brasil, enquanto no segundo momento, já era
força. Resumidamente e de forma um tanto menor o espaço para idéias novas, por existirem
esquemática, pode-se dizer que, se antes se explicações a respeito do Brasil mais ou menos
tratava de estabelecer a nação, agora o problema consolidadas. De certa maneira, o que ocorreu
é de determinar qual será o destino desta nação. foi que, por certas idéias, estabelecidas na dé­
Mas as diferenças entre os dois períodos não cadas de vinte e trinta, terem se tomado res­
param aí. Enquanto a discussão de Caio Prado peitáveis, terem sido — como diz Antônio
Jr. e seus contemporâneos da “geração de trinta” Cândido (1989) a respeito do modernismo,
quase se dá no “vácuo”, no sentido de que rotinizadas —, não se podia mais fazer tanto
praticamente não fazem parte de grupo algum18, como antes. Assim, no que diz respeito a Caio
Prado Jr., ele teve que se defrontar com toda
uma série de pressupostos, com os quais muitas
tradição política vê hegemonia como a direção po­ vezes se identificava, e que criavam uma iden­
lítica que uma classe ou fração de classe exerce em tidade comum para a idéia gelatinosa, até há
uma aliança policlassista, mas em parte no sentido pouco usada, de “pensamento nacionalista bra­
gramsciano, que identifica hegemonia também com sileiro”. O nacionalismo, que, mais do que um
a direção intelectual e moral que se exerce no espaço pensamento articulado, era quase uma atitude
da sociedade civil (LACLAU e MOUFFE, 1989). intelectual, chegou a representar, portanto, uma
Sabemos, pela análise de Francisco Weffort (1978), limitação para o pensamento de Caio e de outros.
que uma das características do populismo é precisa­
mente a ausência de hegemonia, já que nenhuma clas­ O populismo foi o principal grupo identi­
se ou fração de classe participante na coalizão social ficado com as assim chamadas teses nacionalis­
que realizou a Revolução de 1930 substituiu a tas na América Latina. Conseqüentemente, nes-
burguesia cafeeira como gmpo dirigente no país. Por
outro lado, o “Estado de compromisso”, com sua
situação de equilíbrio entre as classes fundamentais, respectivamente: o regionalismo nordestino e o gmpo
e, conseqüentemente, a excepcional autonomia do paulista. O esforço intelectual dos dois é, entretanto,
aparelho estatal, acaba elaborando um projeto para
o país. Projeto em torno do qual todas as forças sociais mais “sistemático” do que as obras artísticas
fundamentais se posicionaram. Por um certo período modernistas. Mesmo assim, Gilberto Freyre talvez
de tempo este projeto pôde, portanto, ser mesmo seja uma exceção na “geração de trinta”, já que se
identificado com a direção intelectual e moral da vida pode estabelecer uma certa continuidade entre seu
brasileira, tendo se convertido em um quase senso pensamento e o “racismo científico” de Sílvio
comum. Romero e Nina Rodrigues. A diferença de Freyre
em relação a estes autores deriva, em grande parte,
18 Entre os “homens de 1930”, Gilberto Freyre e da substituição que efetua do conceito de raça pelo
Sérgio Buarque de Holanda têm ligação com o de cultura. Mesmo assim, utiliza seu novo conceito
modernismo em suas duas vertentes principais, de forma em muitos pontos similar ao antigo.

65
A AVENTURA BRASILEIRA DO MARXISTA CAIO PRADO JR.
se seu segundo período de atividade intelectual, autores nacionalistas de então, como Celso
Caio Prado Jr. e o pensamento marxista da Furtado (1991), a grande falha de Caio Prado
América Latina têm nele seu principal inter­ Jr.: sua incapacidade de entender o “sentido”
locutor19 . Mesmo outros interlocutores impor­ da industrialização brasileira. Diferentemente do
tantes de Caio neste período, como o ISEB e a que imagina, ela não prolonga a situação
CEPAL (Comissão Econômica para a América colonial, mas é um processo, em grande parte
Latina), fazem parte do universo politico-cul­ endógeno, que transforma profundamente o
tural do populismo. Todos, de forma geral, iden­ Brasil.
tificam o atraso, legado pela antiga dominação Mas além das diferenças existentes entre os
oligárquica, como o grande obstáculo a ser trans­ períodos em que Caio Prado Jr. é ativo inte­
posto, via, sobretudo, uma industrialização a ser lectual e politicamente, há também distinções
promovida pelo Estado, amparado por uma ali­ “internas” nas posturas dos autores e grupos en­
ança policlassista. volvidos com os dois ambientes intelectuais e
No caso brasileiro, comunistas e populistas políticos em que atua. Fato bastante natural, que
se aproximam de tal forma que chegam mesmo ocorreu igualmente em diversas outras experiên­
a protagonizar uma aliança complicada. Este é cias intelectuais. Dessa forma, Goldmann, ao
mesmo um dos fatores que leva ao isolamento falar de uma situação bastante distinta da nossa,
de Caio Prado Jr. e daqueles que pensam como nos dá boas pistas para compreender o
ele no PCB. De qualquer forma, a aliança faz fenômeno: “o pertencer à sociedade francesa do
com que haja uma certa coincidência nas doen­ século XVII não pode explicar nem fazer com­
ças diagnosticadas e nos remédios prescritos por preender a obra de Pascal, Descartes e Gassendi,
populistas e comunistas para o Brasil. A dife­ ou a de Racine, Comeille e Molière, na medida
rença maior acaba aparecendo na meta final a mesmo que são obras que exprimem visões
ser perseguida por uns e outros: enquanto popu­ diferentes e mesmo opostas, apesar de todos os
listas e similares se contentam com a criação de seus autores pertencerem à sociedade francesa
um país que tenha um desenvolvimento voltado do século XVII. Por outro lado, este fazer parte
“para dentro”, comunistas enxergam nisso, no comum pode explicar certos elementos formais
esquema da Revolução Burguesa, uma etapa comuns aos três pensadores e escritores”
necessária, mas que apenas prepara o caminho (GOLDMANN, 1964. 22).
para o estabelecimento do socialismo. O mesmo se dá com Caio Prado Jr., Gilberto
Dessa forma, mesmo quem é uma voz isolada Freyre, Sérgio Buarque Holanda, a Revista
no PCB, como Caio Prado Jr., é incapaz de fugir Brasiliense , a USP e o ISEB. Todos eles fazem
inteiramente ao senso comum de seu grupo e parte do contexto intelectual brasileiro entre a
época. Como outros que no período eram cha­ terceira e sexta década desse século, o que
mados de nacionalistas, Caio vê o desenvolvi­ contribui para que tenham preocupações co­
mento “para fora”, principalmente através da muns, mesmo que sob perspectivas divergentes,
exportação de matérias-primas, como o grande muitas vezes até opostas. Assim, enquanto na
problema do Brasil, naturalmente a ser corrigido “geração de trinta” Gilberto Freyre é saudosista
através de um desenvolvimento “para dentro”, em relação ao nosso passado e Sérgio Buarque
onde a industrialização tem papel prepon­ nota, aliviado, os sinais que apontam para sua
derante. superação, Caio Prado avalia, consternado, que
Está mesmo na sua divergência com outros há no Brasil uma imbricação do presente com o
passado. Na década de cinqüenta, por sua vez,
certas instituições, como a CEPAL e o ISEB,
19 O primeiro período de atividade de Caio Prado respectivamente órgãos da ONU e do governo
coincide com os primórdios do populismo no Brasil. brasileiro, assumem uma postura próxima de
Nesse período, entretanto, os traços característicos estatolatria, acreditando que técnicos traba­
dessa tradição política ainda não tinham sido estabe­ lhando junto ao aparelho estatal seriam capazes
lecidos de maneira tão clara. de racionalmente diagnosticar nossos males e

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA N° 8 1997
apontar sua solução20, e a USP assumia uma Portanto, Caio Prado Jr., ao tratar da questão
postura mais independente e “acadêmica”, nacional, é, além de continuador de uma certa
também preocupada com a intervenção política, linha intelectual e política, a do marxismo do
mas subordinando-a à necessidade de manter o PCB, também um inovador que aponta para
rigor científico, a Revista Brasiliense e Caio as­ caminhos que só serão explorados posterior­
sumiam uma postura intermediária: eram mili­ mente pelo marxismo uspiano.
tantes, assim como a CEPAL e o ISEB, mas sem Mas como explicar a independência intelec­
estarem ligados ao aparelho estatal e à linha tual de Caio Prado Jr.? Uma possível resposta é
dominante no PCB, o que possibilitava mante­ a fornecida por Sérgio Miceli (1989: 102). Nota
rem, tal como a USP, uma postura independente. esse autor que Caio e seus companheiros de ge­
IV. CAIO PRADO JR. COMO CONTINUA- ração, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Ho­
DOR E INOVADOR NO MARXISMO DO landa, iniciam sua atividade intelectual num
BRASIL momento em que a vida universitária ainda não
Se é verdade que Caio Prado Jr., como so­ está consolidada no país, o que contribui para
litário que é, inova em relação às formulações que sejam quase uma espécie de grandes se­
do PCB, elaborando uma explicação do Brasil nhores intelectuais. Diz Miceli: “os autores de
mais de acordo com a nossa experiência histó- Evolução política do Brasil, Raízes do Brasil e
rico-social, não chega, contudo, a romper intei­ Casa grande e senzala trabalhavam por conta
ramente com o grupo intelectual e político do própria, não tendo então quaisquer laços com a
qual faz parte. Ou seja, inova a partir do mar­ instituição universitária, empresários de suas
xismo da América Latina e do Brasil, mas ainda obras na acepção literal do termo, e ainda
dentro desses contextos. bastante marcados pelos procedimentos da fa­
tura ensaística21 . Os três desenvolveram sua
Talvez seja mesmo quando trata de uma das carreira intelectual valendo-se basicamente de
grandes questões, senão a maior, da sensibili­ seu patrimônio material e social, devendo quase
dade da esquerda latino-americana e brasileira, nada a mentores políticos, partidários ou acadê­
a questão nacional, que Caio Prado vá mais lon­ micos”. Seriam, portanto, “livre-atiradores iso­
ge na sua originalidade. Nossa esquerda, como lados [...] últimos representantes de uma cate­
nota Fernando Pedreira (1982), é “nacionalista goria de grandes intelectuais autodidatas” (MI­
e pequeno-burguesa”; todavia, seu naciona­ CELI, 1989: 102)22.
lismo, mesmo que muitas vezes equivocado, de Por outro lado, como sugere Emir Sader
forma geral não a desmerece. Ocorre justamente (1996), a partir do aparecimento da universidade
o contrário, em razão de haver, como afirma passa a ocorrer no Brasil um processo em muitos
Jorge Castaneda, uma “clara identificação da
independência nacional com a mudança social” 21 Bolívar Lamounier, ao falar do pensamento auto­
(CASTA-NEDA, 1993:272) na América Latina. ritário, resume a estrutura narrativa desse gênero: “in­
O que não se dá por acaso, já que os países da variavelmente se inicia com amplas reflexões his-
América Latina são fruto de revoluções incom­ tórico-sociológicas sobre a formação colonial do
pletas, nossas independências do século passado. país, estende-se no diagnóstico do presente [...] e cul­
Dessa forma, nações inconclusas têm como prin­ mina na proposição de algum modelo alternativo de
cipal problema justamente o fato de não conse­ organização político-institucional” (LAMOUNIER,
guirem integrar a maior parte de suas populações 1990: 345).
à vida nacional. 22 A tese de Miceli pertence a um dos modelos para
explicar a história intelectual brasileira, o institucio-
nal-cientificista, que Wanderley Guilherme dos San­
tos discute. De acordo com este modelo, a criação
20 Talvez até porque acreditassem que se encon­ das universidades no Brasil, a partir da década de
travam numa posição privilegiada em relação ao trinta, seria quase que um momento mágico na trans­
conjunto da sociedade, sendo capazes dever por cima formação do pensamento brasileiro. Portanto, mesmo
das divergências de interesses e valores que a divi­ sendo correta a premissa de que o aparecimento de
diam. uma vida universitária é um divisor de águas na

67
A AVENTURA BRASILEIRA DO MARXISTA CAIO PRADO JR.
pontos similar ao discutido por Russel Jacoby universidades e o declínio da boêmia como os
(1990) em relação aos EUA, de desaparecimento principais motivos que levaram nos EUA ao
do intelectual público. Isto apesar do processo desaparecimento dos intelectuais públicos. No
não se dar da mesma forma em nosso país. Ao Brasil, por nosso turno, pode-se imaginar que o
contrário, a atual visibilidade de intelectuais no aparecimento das universidades, a deterioração
Brasil parece mesmo ser exagerada; eles estão das zonas centrais das grandes cidades e o declí­
em todos os lugares, infestam os jornais e seus nio da boêmia tiveram efeito similar. Mas o
suplementos culturais23. Mas, se diferentemente cômputo geral em relação à produção intelectu­
dos EUA, muitos de nossos intelectuais de varia­ al, num país como noutro, talvez seja similar:
das faixas etárias escrevem para públicos mais ganhou-se em rigor, mas se perdeu muito em
amplos, de maneira similar ao “gigante do nor­ amplitude e comprometimento das obras.
te”, o tipo de preocupação que orienta boa parte Além do mais, se o que Miceli diz a respeito
de nossa intelectualidade já não é o mesmo da de Freyre e Buarque de Holanda já não é intei­
geração de Edmund Wilson e Caio Prado Jr. ramente verdadeiro, este é ainda menos o caso
Dessa forma, contrastando com os antigos, os em relação ao que afirma sobre Caio Prado Jr.
modernos não tratam mais de grandes temas nu­ É indiscutível que Caio Prado passou sua vida
ma linguagem acessível, preferem discutir pro­ alheio às instituições acadêmicas24, inclusive
blemas que só podem interessar a um grupo mais do que Freyre e Sérgio Buarque. Por outro
restrito numa linguagem cifrada. Pior, a preo­ lado, também não se pode esquecer que durante
cupação ética parece estar quase ausente de seus quase todo seu período de atividade intelectual,
trabalhos. Caio pertenceu a uma outra instituição que exi­
Mas se há diferenças entre os EUA e o Brasil gia em relação às suas diretrizes fidelidade in­
em relação à repercussão de escritos de inte­ comparavelmente maior do que qualquer univer­
lectuais, os motivos que levam, num país como sidade: o Partido Comunista.
no outro, à irrelevância da maior parte dos tra­ Assim, mesmo que a origem social de Caio
balhos publicados são basicamente os mesmos. Prado seja um fator favorável à sua indepen­
Jacoby aponta para a deterioração das cidades, dência, pois, diferentemente de boa parte dos
o crescimento dos subúrbios, a expansão das intelectuais marxistas, não dependia de partidos
para sua sobrevivência, ela não explica suficien­
produção intelectual brasileira, as implicações que temente esta independência. Para constatar isto,
se tiram de tal constatação são exageradas. Há uma basta pensar em outro grande intelectual burguês
quase representação no modelo: antes da universi­ militante do partido comunista no período sta-
dade o que existia eram certos diletantes, na maior linista: o filho de banqueiro Georg Lukács, que
parte dos casos literatos com pretensões políticas; acabou se submetendo aos ditames de Mos­
com a universidade passa a haver “ciência”. Ver cou25 .
SANTOS, 1978.
Jacob Gorender resume bem o problema da
23 Até em razão de nossa alta taxa de analfabetismo, relação de Caio Prado com o PCB: “o fato de
pode-se, entretanto, desconfiar da expressão
numérica dos públicos que atingem. Assim, se
imaginarmos, com muita boa vontade, que quem tem 24 Mesmo que isto tenha sido contra sua vontade, já
acesso aos artigos dos intelectuais são todos os que por duas vezes tentou se tornar professor uni­
leitores de jornais, constataremos que essa produção versitário; em 1954, quando se candidatou à cátedra
se dá num quase “círculo fechado”. Isso, devido à de Economia Política da Faculdade de Direito da
estreiteza do meio, faz praticamente dos leitores de USP, e em 1968, quando se candidatou à cátedra de
jornal intelectuais, ou o equivalente a isso no Brasil. História do Brasil da mesma USP.
Portanto, a publicação de artigos de intelectuais talvez
tenha como motivação principal mais o prestígio dela 25 As alternativas para os comunistas originais na
resultante do que uma real preocupação com a análise época do stalinismo parecem ter se reduzido a três:
de problemas candentes. O que não é de se estranhar 1) se submeter ao partido, como fez Lukács; 2) sair
em um país com passado escravista e tradição dele, como ocorreu com Korsch; 3) ou ter a “sorte”
bacaharelesca. de ser preso e esquecido, caso de Gramsci.

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA N° 8 1997
nunca ter sido punido por uma direção stalinista no PCB, mesmo defendendo teses contrárias à
não deixa de ser singular. Por muito menos, orientação do partido, como quando questionou
outros militantes foram postos à margem ou o passado feudal do Brasil. Apesar de Caio pro­
mesmo expulsos do partido e estigmatizados vavelmente não se sentir inteiramente a vontade
como renegados. Acredito que Caio ganhou com tal fórmula26 , renunciou à possibilidade de
respeito como historiador e por seu currículo influenciar na luta interna do partido, através
de militante. Era um dos poucos intelectuais da criação de, por exemplo, uma fração. Nessa
marxistas pertencentes ao alto escalão da cultura solução, interessava ao PCB o prestígio que
brasileira e passara pelas prisões com um podia trazer a presença nas suas fileiras de um
comportamento dignifícante. Ademais disso, dos maiores intelectuais brasileiros. Caio Prado,
Caio jamais tentou aliciar alguém para suas por sua vez, talvez não acreditasse que a salva­
idéias e organizar uma fração — pecado mortal ção viesse de Roma, mas, como disciplinado co­
para o stalinista. Penso que tudo isso o protegeu munista da época do stalinismo que era, certa­
contra punições e excomunhões em que foram mente pensava que ela estava em Moscou.
pródigos dirigentes intolerantes” (GORENDER,
1989: 208). 26 Além de sua participação em iniciativas, tais como
Portanto, a independência de Caio Prado Jr. os “Comitês de Ação” (1943-1945) e a Revista
se explica melhor, mesmo que não inteiramente, Brasiliense (1955-1964), prova disso é o que o
por uma solução de acomodação à qual ele e próprio Caio Prado afirma em 1981: “nunca pertenci
seu partido acabaram por chegar. Caio Prado, à direção do partido, nem tive nele grande prestígio
ou influência. Sempre fui um elemento secundário,
com exceção dos períodos mais abertos da e mal considerado, não em termos pessoais, mas por
frentista ANL e da legalidade, não foi aproveita­ causa de minha maneira de interpretar o Brasil”
do em cargos de direção; em compensação, ficou (PRADO Jr., 1981: 310).

Bernardo Ricupero (ifbe@sanet.com.br) é mestrando em Ciência Política na USP (Universidade


de São Paulo).

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