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A PROPRIEDADE PRIVADA E SEUS ASPECTOS HOBBESIANOS E MARXISTAS

À ATUAÇÃO ESTATAL.

Leonardo Inácio Nunes1

Palavras-chave: Propriedade privada; divisão do trabalho; Thomas Hobbes; Karl Marx.

Base irrefutável da ciência do Direito desde os tempos romanos, o direito à


propriedade é ainda fonte de discussões. Cerrada no Direito Civil, a propriedade recebeu
tratamentos distintos nos vários momentos da civilização humana, evidenciando-se como
importante matéria.
Apesar dos laços ligados ao povo de Roma, é na Idade Moderna e mais recentemente
na própria contemporaneidade, que não apenas a propriedade, mas todo o paradigma que
sustentava a sociedade foi fortemente contestado e estudado com fins acadêmicos. Dentre os
intelectuais que escreveram sobre, todavia, dois em especial interessam a este trabalho. São
eles: Thomas Hobbes e Karl Marx, certamente escritores influentes para a concepção atual da
propriedade privada.
Thomas Hobbes foi um filósofo inglês, de preferência absolutista, que viveu entre os
séculos XVI e XVII, no contexto renascentista, algo fundamental para seu trabalho a respeito
do “contrato social”. Por sua vez, Karl Marx, filósofo alemão, pôde viver o precedente à
Revolução Industrial, e por isso foi capaz de analisar severamente a ordem socioeconômica
pertinente à época. É, pois, com a associação de conceitos desses dois pensadores, ora
considerando a propriedade em si, principalmente a concebida por Hobbes, ora considerando
a divisão do trabalho de Marx, que este trabalho almeja apontar a presença de seus
ensinamentos nas legislações em vigor.
Como apontado anteriormente, tendo disposições já na Roma antiga, por meio da Lei
das XII Tábuas, a propriedade privada era mencionada na sexta tábua da referida lei. Naquela
época, a do “alto império”, notadamente se sobrepuseram os aspectos individuais desse
direito. Era, por exemplo, terminantemente “proibido a compra de propriedades imóveis por
estrangeiros, para não prejudicar os nacionais” (WOLKMER, 2006, p. 94). Disso, depreende-
se o sentido histórico atribuído ao instituto, em virtude das conquistas extraterritoriais dos
romanos.

1 Acadêmico de Direito da Universidade Estadual do Norte do Paraná.


Também crível historicamente, foram às disposições quanto à propriedade presentes
no Código Civil Francês de 1804, o famoso Código de Napoleão, que recepcionou a
concepção romana de propriedade de maneira essencialmente individualista. Tal conclusão é
evidente conforme dispunha o art. 544 do mesmo código: “a propriedade é o direito de gozar
e dispor das coisas do modo mais absoluto, desde que não se faça uso proibido pelas leis ou
regulamentos”. Pontua Silvio Venosa (2004, p. 171) sobre a importância do Código de
Napoleão: “[...] Como sabido, esse Código e as idéias [sic] da Revolução repercutiram em
todos os ordenamentos que se modelam no Código Civil francês, incluindo-se a grande
maioria dos códigos latino-americanos [...]”
Hoje, diferentemente, a sensibilidade ao corpo social por parte dos legisladores e dos
operadores do Direito é mais exigida. O momento posterior à obra de Karl Marx, bem como
as tentativas de aplicação da doutrina marxista, foram revigorantes para a “aristotélica”
esquerda política. Mesmo com questionamentos acerca da efetividade dos sistemas, o
fortalecimento das causas sociais e dos direitos da pessoa implicou na necessidade de atuação
do Estado. É nesse momento que as concepções de Marx e de Hobbes acabam por se
complementar, concebendo parcela do Estado Democrático de Direito contemporâneo.
Especificamente sobre a propriedade privada, em suas escrituras Marx acabou por
repudiá-la, principalmente em virtude de sua acepção plenamente econômica que alimentava
a “luta de classes”. Das conquistas do marxismo, assim, obviamente a mais evidente após a
publicação do Manifesto do Partido Comunista, em 1848, foi justamente a regularização da
jornada de trabalho e dos direitos trabalhistas. E a comparação entre o trabalhador e a
propriedade privada é bastante válida, sobretudo levando em conta os aspectos históricos da
fase transitória entre Idade Moderna e a Idade Contemporânea. Considerado semelhantemente
à propriedade de terras, aquela preconizada pelo Código Napolêonico, o proletariado era
refém do poderio capitalista. Alguns séculos antes, todavia, em “Leviatã, ou, Matéria, forma e
poder de um Estado eclesiástico e civil”, a despeito da necessária relação entre o proprietário
e o Estado, Thomas Hobbes foi capaz de ilustrar o cenário em seu ponto mais objetivo.

[...] todo indivíduo particular tem propriedade absoluta de seus bens, a ponto de
excluir o direito do soberano. Todo homem, na verdade, tem uma propriedade que
exclui o direito de qualquer outro súdito, e a tem em razão do poder soberano, sem
cuja proteção qualquer outro homem teria igual direito a ela. Mas, se o direito do
soberano for também excluído, ele não poderá cumprir a missão que lhe foi
destinada, e que consiste em defender os súditos tanto dos inimigos externos como
dos ataques mútuos; consequentemente, o Estado deixará de existir. [...] Se a
propriedade dos súditos não exclui o direito do soberano representante a seus bens,
muito menos o exclui em relação aos cargos de judicatura ou de execução, nos quais
os súditos representam o próprio soberano. (2009, p. 228)
O exposto leva ao entendimento de que, em conformidade com o relatado pelos
autores aqui trazidos, o Estado moderno durante seu encaminhamento teve suas intervenções
exatamente quantificados, quer dizer, o patrimônio o movia. Thomas Hobbes ao comentar
sobre o compartilhamento de poder entre Estado e proprietário estabelece um limite entre
ambos. A imprecisão dessa barreira, entretanto, abre alas para o complemento de Karl Marx,
fundamentado na força das burguesias, que mesmo após o advento dos direitos humanos e
sociais, como os vários elencados na Constituição Federal de 1988, persiste em virtude do
caráter econômico do Estado. Situação que se prostra em diversas áreas do Direito, e causa
impactos até mesmo no fragmentário Direito Penal.
Por isso mesmo, ao analisar o texto constituinte quanto à propriedade privada, que
em conformidade com o Estatuto da Terra de 1964 consagra a função social da propriedade,
observam-se incongruências. Considerada uma das mais modernas de todo o mundo, a
Constituição, que fixa em seus arts. 182 se seguintes, o referente à propriedade, erra por
disponibilizar políticas públicas decadentes para o cumprimento do estabelecido. Apesar de
citar reformas agrárias para terras rurais, e a existência do Estatuto das Cidades para as áreas
urbanas, o legislador constituinte e o Direito Brasileiro como um todo, tem se postado
signatário da doutrina patrimonial hobbessiana do absolutismo, ainda que, contrariamente,
algumas de suas legislações guardem similaridade com a proposta marxista.

REFERÊNCIAS:

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988.


______ Código Civil, Código de Processo Civil, Código Comercial, Legislação civil,
processual civil e empresarial, Constituição Federal. Organizador Yussef Said Cahali. 10ª ed.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.
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visam a melhor distribuição da terra. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L4504.htm> Acesso em: 10 nov. 2013.
______ Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição
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Acesso em: 10 nov. 2013.
CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de direito romano: o direito romano e o direito civil
brasileiro. 30ª ed. Rio de Janeiro: Forense. 2007. 352 p.
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 25ª ed. São Paulo: Saraiva, v. 4.
2010.
HOBBES, Thomas. Leviatã, ou, Matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. São
Paulo: Martin Claret. 2009.
MASCARO, Alisson Leandro. Filosofia do Direito. 2ª ed. São Paulo: Atlas. 2012.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: direitos reais. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2004.
WOLKMER, Antonio Carlos. Fundamentos de história de direito. 3ª ed. 2ª tir. Belo
Horizonte: Del Rey, 2006.

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