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O direito de preferência no contrato

de arrendamento rural à luz da


hermenêutica constitucional

Rafael Machado Soares*

Resumo
Introdução
Ao abordar-se o tema do direito de
preferência no contrato de arrendamen- O direito de propriedade vem so-
to do prisma da hermenêutica consti- frendo, com o passar dos tempos, diversas
tucional, torna-se necessário analisar, transformações, sobretudo no que se refe-
primeiramente, as transformações do
re à sua forma de exercício, em decorrên-
direito de propriedade, com maior ên-
cia das mutações sociais ocorridas e da
fase no Brasil, uma vez que se busca
analisar a (im)possibilidade de poder constitucionalização do direito de proprie-
ser exercido esse direito quando não dade. É esse direito que confere ao titu-
há o cumprimento da função social da lar os poderes de uso, gozo e disposição do
propriedade. Para tanto, pesquisam-se bem, facultando ao proprietário exercê-los
as transformações do direito de pro- pessoalmente ou mediante cessão desse
priedade desde o seu caráter absoluto direito de forma onerosa ou gratuita.
e, portanto, individualista, para a pro-
priedade coletiva e, por conseqüência,
direcionada aos anseios sociais, tendo
como base de sustentação a hermenêu- *
Advogado, professor de Direito Civil na Faculda-
tica constitucional. de de Direito da Universidade de Passo Fundo;
especialista em Direito Civil e Direito Processual
Civil pelas Faculdades Integradas Ritter dos Reis
e mestrando em Direito pela Unisinos.

JUST. DO DIREITO PASSO FUNDO V. 20 N. 1 P. 100-110 2006


O direito de preferência no contrato de arrendamento ... 101

O contrato de arrendamento é o con- lativo e Executivo, em razão da visão do


trato em que ocorre a exploração de imóvel povo de crer que o rei era um mensagei-
rural alheio para fins agrários, regulado ro de Deus. Diante dessa imagem, todos
pelo Estatuto da Terra, e que obedece aos os seus atos eram considerados divinos,
ditames da referida legislação e da Carta portanto, indiscutíveis. Este poder de dis-
constitucional. Nele, o direito de preferên- posição do rei contemplava também o de
cia constitui uma faculdade que o estatuto distribuição das terras obtidas através
confere ao arrendatário de adquirir o imó- das guerras de conquistas territoriais e,
vel arrendado, em caso de haver oferta de então, em face da prerrogativa, o monarca
venda desse imóvel, no período contratual, instituiu o sistema feudal.
preferindo-se a oferta do arrendatário Um dos motivos do surgimento do
em detrimento das demais, em ocorrendo feudalismo foi a necessidade de produção
igualdade de ofertas de compra. de alimentos para sobrevivência do povo e,
Com o presente trabalho, preten- por conseqüência, de geração de riquezas,
de-se estudar o direito de preferência no advinda da circulação de alimentos pro-
contrato de arrendamento na ótica da duzidos nos feudos. A propriedade, nesse
hermenêutica constitucional. Para tanto, regime, era explorada pelo senhor feudal,
será abordada, primeiramente, a constitu- que tinha poderes absolutos sobre ela e
cionalização do direito de propriedade, fa- utilizava a mão-de-obra do vassalo, o qual
zendo-se uma análise das transformações trabalhava no feudo em regime de escravi-
temporais desse direito. Em seu tópico se- dão. A propriedade era distribuída pelo rei
guinte, analisa-se como ocorre a elevação ao seu livre-arbítrio o qual delegava esse
do direito de propriedade à categoria de direito apenas às classes privilegiadas da
norma constitucional, apontando-se o mo- sociedade, que, na época, era da nobreza.
mento do aparecimento na Constituição, Essa situação é relatada por Silva:
bem como as transformações pelas quais “Face a gama de poderes controlados pelo
esse direito passa. Prosseguindo, enfati- rei, não se torna difícil concluir que, de sua
za-se a contribuição da hermenêutica na autoridade soberana, promanam poderes
interpretação das normas constitucionais, e critérios de distribuição de terras, con-
descrevendo as correntes hermenêuticas siderando-se especialmente a classe social
existentes, bem como o que sustentam so- em que o destinatário se encontrava.”1
bre a hermenêutica. Por fim, verifica-se a Com o decorrer do tempo, em razão
aplicação da hermenêutica constitucional do declínio da nobreza e da ascensão da
no contrato de arrendamento, no que se burguesia, o regime feudal passou a sofrer
refere ao seu exercício. pressões da classe burguesa. Essa catego-
ria social buscava exercer o domínio das
propriedades rurais com total autonomia,
Evolução constitucional fazendo cessar a exploração da monarquia
do direito de propriedade no que tange à lucratividade da terra e à
dominação do monarca nas questões de
O direito de propriedade nasceu no direito de propriedade, principalmente,
regime monárquico, no qual, os reis deti- quanto à discricionariedade da distribui-
nham o poder de disposição da proprieda- ção. Com a ascensão da burguesia, o regi-
de, assim como mantinham supremacia me feudal começou a ruir, conforme Mat-
em relação aos poderes Judiciário, Legis- tos Neto: “Como documento contestatório e
JUSTIÇA DO
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abolidor do regime feudal e da monarquia com sua obra, O espírito das leis, que,
absoluta, a Declaração dos Direitos do Ho- apesar de ser nobre e descendente de
mem e do Cidadão, de 1789, cristalizou os grandes proprietários de terra no sul da
valores econômicos defendidos pela emer- França, desde cedo sempre demonstrou
grande aversão ao feudalismo e conde-
gente e vitoriosa classe burguesa revolu-
nou, também, o absolutismo dos reis.4
cionária, mais precisamente a garantia do
direito de propriedade privada.”2 A obra de Montesquieu foi uma das
Com o término do sistema feudal e causas da ruptura do sistema feudal, con-
o advento do liberalismo, garantiram-se tribuindo para a implementação do siste-
àqueles vassalos que trabalhavam em fun- ma liberal, por defender o direito à igual-
ção das ordens dos senhores feudais mais dade através da democracia. Segundo o
liberdades e, por conseqüência, direitos autor:
fundamentais. De acordo com Silva: Toda desigualdade na democracia deve
[...] o liberalismo parte do pressuposto e ser tirada da natureza da democracia
correntes filosóficas diferentes daquelas e do próprio princípio da igualdade. Por
observadas no curso do feudalismo, Ora, exemplo, pode-se temer que pessoas que
enquanto no período feudal a liberdade precisem de um trabalho contínuo para
de iniciativas do indivíduo era sacrifica- viver fossem muitos empobrecidas por
da pelos compromissos, no período libe- uma magistratura, ou negligenciassem
ral, a liberdade do cultivador não foi mais suas funções; [...]. Nestes casos, a igual-
manifestada pelos compromissos que o dade entre os cidadãos pode ser suprimida
vinculavam ao senhor feudal, passando pela democracia em proveito da democra-
a ser objeto de preocupação social. [...] cia. Mas é apenas uma igualdade aparente
em decorrência do liberalismo europeu, que se suprime, pois um homem arruina-
surgiu o que veio a chamar-se individua- do por uma magistratura estaria em pior
lismo, que consistiu no reconhecimento situação do que os outros cidadãos, e este
da importância do homem em geral, que, mesmo homem, que se veria obrigado a
em épocas anteriores, fora reduzido à negligenciar as funções, colocaria os outros
condição de escravo, servo, ou a outras cidadãos numa situação pior do que a sua;
condições pouco dignas. A partir daí, o e assim por diante.5
novo Estado que incorporava a vontade
Com o advento do liberalismo, criou-
geral da sociedade, além de libertar o
indivíduo, passou a garantir-lhe direitos se a estrutura liberal da propriedade, na
fundamentais que se incorporavam nos qual o proprietário possuía uma gama de
textos das constituições liberais.3 poderes, com poucas limitações, uma vez
que explorava a propriedade com pouca
A idéia de liberalismo começou a to- intervenção estatal. O Estado, naquela
mar conta da sociedade, surgindo, assim, a época, preocupava-se prioritariamente,
noção de direitos fundamentais, bem como com a produção, para gerar cada vez mais
a exaltação de alguns direitos individuais. riquezas através da exploração da terra.
Nesse sentido Silva relata: O liberalismo garantiu aos cidadãos
[...] as idéias liberais começaram a surgir a hegemonia legal, ou seja, igualdade de
em pleno processo de transição da crise oportunidades de acesso à propriedade,
do sistema feudal na Europa, através de permitindo que aquele que com condições
escritores que muito contribuíram para o para ser proprietário tivesse oportunidade
aprimoramento social e moral da huma- para alcançar esse direito, não somente os
nidade, como foi o caso de Montesquieu,
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senhores feudais, como no regime do feu- delada como um conceito universal de ver-
dalismo, desde que com condições finan- dadeiro direito subjetivo, fruto da extensão
ceiras para tal. da própria personalidade e liberdade do
No que tange ao Brasil, em 1891 sur- homem, e, a princípio, acessível a todos.7
giu a Constituição Republicana, que come- Por sua vez, o advento do Estatuto
çou a reestruturar a propriedade das terras da Terra, lei nº 4 504/64, foi considerado
devolutas, passando-as ao domínio do Es- um marco para a transformação do direito
tado, aumentando, com isso, o número de especificado no que se refere à propriedade
latifúndios improdutivos no Brasil. Silva rural: Nele estavam previstos o princípio
comenta que, “[...] embora a primeira Carta da função social da propriedade, bem como
Magna Republicana não tenha regulado pro- os elementos para sua concretização, uma
priamente a matéria agrária, durante sua vez que, até então, o direito de proprieda-
vigência adveio o Código Civil, Lei 3.071, de de possuía, segundo o Código de 1916, um
1.º de janeiro de 1916, que regulou institutos caráter absoluto, e o proprietário poderia
referentes às atividades agrárias [...] fonte exercê-lo sem qualquer limitação de ordem
subsidiária do Estatuto da Terra”.6 mais expressiva. Porém, essa visão pare-
A Constituição Republicana não tra- ce distorcida, considerando-se que a Cons-
tou de limitações relativas ao direito de tituição de 1937 já condicionava o direito
propriedade, que somente foi instituciona- em questão a sua função social, prevista
lizado com o advento da Constituição de no art. 2o do Estatuto.8
1937, tendo sido regulado e limitado o seu
modo de atuação. Com isso, o pensamento
de caráter absoluto da propriedade come-
A elevação do direito de
çou a ruir. Nota-se que esse direito, em propriedade à categoria
se tratando de Brasil, foi costumeiramen- de norma constitucional
te encarado como um direito subjetivo de
ordem absoluta, o que pode ser comprova- Mesmo tendo a função social da pro-
do com a simples leitura do Código Civil priedade surgido com a Constituição de
de 1916, elaborado com um único intuito: 1937, esse princípio não era respeitado,
garantir a proteção da burguesia, clas- pelo fato de que o controle do seu cumpri-
se beneficiada pelas normas codificadas, mento não era operacionalizado. Nesse
desrespeitando o ditame constitucional da sentido, a situação de individualismo per-
Constituição de 1937. manecia, sem qualquer preocupação com
Com o passar dos tempos, o direito os anseios sociais relativos à exploração
de propriedade deixou de ser visto como adequada da terra.
um direito individual, ocorrendo sua so- Diante da publicidade do Código Ci-
cialização, o que forçosamente determinou vil e do entendimento de sua aplicação,
uma análise de seu objeto, imprimindo ao independentemente da Constituição, a
seu exercício um prisma menos individua- função social da propriedade rural foi sen-
lista e mais socialista. Nesse sentido, Al- do esquecida. Somente passou a ser divul-
buquerque esclarece: gada com a elaboração e a aprovação da
A propriedade privada, tal como definida lei que instituiu o Estatuto da Terra, que
em nosso Código Civil, foi modelada se- regulou a forma de exploração da proprie-
gundo o esquema da propriedade romana dade rural, impondo que sua função social
e, por obra da pandetística alemã, foi mo- fosse respeitada.
JUSTIÇA DO
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Em 1988, o direito de propriedade direitos incorporadas às constituições


passou a fazer parte do título II da Cons- teriam conteúdo exclusivamente moral,
tituição Federal, que trata dos direitos e mas não qualquer eficácia jurídica.11
das garantias fundamentais. Está espe- A evolução da constitucionalização
cificado no seu art. 5º, caput,9 e também do direito privado ocorreu de forma gra-
previsto no art. 170 da CF de 1988, III,10 dativa, pois partes da doutrina e da juris-
o princípio da função social da proprieda- prudência ainda discutem a auto-aplica-
de como parte integrante dos princípios bilidade das normas constitucionais. Sar-
da ordem econômica, acenando para a mento, citando Ferrer, apresenta a tese
conclusão de que o direito tratado possui dessa doutrina:
ainda uma função econômica.
No mesmo título apontado, a CF esta- Argumenta-se que a eficácia direta da
Constituição nas relações privadas margi-
belece que o direito de propriedade deverá
naliza o legislador, [...] degrada o princípio
ser exercido de acordo com os anseios so- da autonomia privada e dissolve a certeza
ciais. Reafirma, nesse sentido, a existência da letra impressa na lei numa nebulosa
de uma função social, e o legislador, para de valores com o conseqüente sacrifício
operacionalização desse direito, estabe- da segurança jurídica, até consagrar uma
leceu os requisitos para o alcance de seu espécie de totalitarismo dos valores cons-
cumprimento. Limitou o legislador cons- titucionais aos quais deverão se submeter
titucional, portanto, a forma de exercê-lo, os particulares em todas as suas decisões
fazendo com que o exercício de tal direito privadas juridicamente relevantes.12
fosse direcionado de acordo com os anseios Sustenta essa parte da doutrina que
sociais. A análise, aqui, é de uma ótica cole- as normas constitucionais são deveras abs-
tiva, para que a ação não acarretasse danos tratas, gerando uma insegurança em relação
à própria sociedade, reiterando os termos à sua interpretação e aplicação. No entanto,
do Estatuto da Terra, dispositivo infracons- essa tese defendida não merece ser acolhi-
titucional editado anteriormente. da, uma vez que nas normas infraconsti-
Por outro lado, a inclusão da função tucionais também existem as cláusulas ge-
social da propriedade na esfera constitu- rais e os princípios que regulam as relações
cional determinou o surgimento de outro privadas e públicas os quais dependem da
problema para a implementação, ou seja, interpretação subjetiva do juiz ao analisar
a aceitação da normatização da Constitui- o conflito judicial para, assim, materializar
ção. Tal aceitação é fato que gera até os e/ou normatizar a lei.
dias atuais grandes controvérsias, uma Em análise do constitucionalismo,
vez que a sua aplicabilidade imediata ain- elimina-se a possibilidade de ele ser deixa-
da permanece resistente à posição do Ju- do de lado, sustentando-se a normativida-
diciário. Sarmento comenta: de da carta constitucional, a qual precei-
[...] A noção de que a Constituição é uma tua que a constituição não pode ser rene-
norma jurídica, dotada de caráter impe- gada pela sociedade, uma vez que a força
rativo, cujos comandos podem ser tute- imperativa deve ser alastrada em todas as
lados em juízo quando não forem espon- relações sociais. Além disso, a Constitui-
taneamente respeitados, embora possa ção reflete o Estado democrático de direito
hoje parecer uma completa obviedade, e, como tal, o contrato social deve ser res-
demorou algum tempo para se firmar [...]. peitado pelos membros da sociedade que o
Sustentava-se [...] que as declarações de criaram democraticamente.
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Streck comenta sobre o constitucio- atual, desde que o Judiciário esteja aten-
nalismo: to à hermenêutica constitucional, que não
[...] O constitucionalismo não morreu! As
busca o resultado da interpretação através
noções de constituição dirigente, da força de métodos, uma vez que, para haver in-
normativa da constituição, de Constitui- terpretação da norma, deve o interpretan-
ção compromissária, não podem ser rele- te pré-compreender a matéria estudada.
gadas a um plano secundário. Mormente Assim, cada leitor apresenta um resultado
em um país como o Brasil, onde as pro- interpretativo construído de forma diver-
messas da modernidade, contempladas sa, podendo chegar a resultados seme-
no texto constitucional de 1988, longe lhantes. Na visão de Sarmento,
13
estão de ser efetivadas.
[...] a Constituição representa um limite
A aplicação das normas constitucio- para o legislador privado, o que importa
nais é medida que se impõe. Não se pode na inconstitucionalidade das normas edi-
levar ao esquecimento a existência da cons- tadas em contrariedade a ela, bem como
tituição, ou mesmo que ela seja somente um na não recepção dos diplomas anteriores
conjunto de metas a serem alcançadas, sem com ela colidentes [...]. Mas além de atuar
a necessidade de se medirem esforços para como limite para o legislador, a Consti-
tuição também projeta relevantes efeitos
concretizá-la. Não se pode olvidar que uma
hermenêuticos, pois condiciona e inspira
constituição é a vontade do povo consagrada
a exegese das normas privadas,que deve
e que o desrespeito a ela significa desconsi- orientar-se para a proteção e promoção
derar os anseios sociais. A aplicação direta dos valores constitucionais centrados na
dessa norma, de caráter imperativo, é me- dignidade da pessoa humana.15
dida que se impõe e que deve ser buscada
intensamente pelo Judiciário, poder que O direito de propriedade, como direi-
normatiza a legislação citada. to fundamental, deve ser exercido em con-
As relações privadas não podem mais sonância com os ditames constitucionais.
ser reguladas à luz do Código Civil sem ter Nesse sentido, deve ser normatizado pela
como base a ótica constitucional. Sarmen- constituição, não podendo o legislador in-
to, comentando essa auto-aplicabilidade, fraconstitucional desrespeitá-lo, sob pena
sustenta que “[...] é importante ressaltar a de incorrer em violação ao contrato social.
possibilidade de aplicação direta da Cons- Não se pode olvidar que tal direito seja
tituição nas relações privadas, sempre que exercido em desacordo com sua função pre-
possível. Como norma jurídica que é, dotada determinada, sob pena de incorrer-se em
de imperatividade, a Constituição não ne- atentado constitucional, que, certamente
cessita da mediação do legislador civil para gerará prejuízo para a própria sociedade.
incidir sobre tais relações, podendo, por si E mais: o direito de propriedade deve estar
só, alcançá-las com seus comandos”.14 em consonância com a sua função social. E
A constituição possui algumas tare- em se tratando de propriedade rural, tam-
fas, dentre as quais o direcionamento das bém deve ser observada a sua função econô-
normas infraconstitucionais, que limitam mica, uma vez que a propriedade que não
a elaboração e a aplicação dessas normas, produz não gera riquezas para a nação, não
além de ter um efeito hermenêutico. gerando, portanto, recursos para o governo
Os princípios constitucionais servem investir na própria sociedade para melhorar
de parâmetro para as decisões do Judiciá- o seu modo de vida, não podendo garantir,
rio e garantem que a norma será sempre por conseqüência, a dignidade do seu povo.
JUSTIÇA DO
106 DIREITO

O direito de propriedade sofreu com constitucional de propriedade, necessária


o passar dos tempos transformações de se faz a realização de um estudo sobre a
caráter constitucional. A partir da Cons- hermenêutica em si. Essa investigação
tituição de 1988, passou a fazer parte dos perpassa a análise das transformações
direitos fundamentais, sendo, inclusive, dessa decorrentes no tempo, diferenciando
encarado como princípio fundamental em as espécies de hermenêutica e averiguan-
razão de sua importância, não havendo do as modalidades de sua aplicação na
mais espaço para o direito de propriedade análise das normas constitucionais. Esse
individual, sob pena de retrocesso social. estudo deve ser precedido pela conceitua-
Não se pode mais pensar numa so- ção oferecida por Grodin:
ciedade desigual, em que a propriedade é Por hermenêutica entende-se, desde o
alcançada somente pela minoria de seus primeiro surgimento da palavra no século
integrantes, com exploração, sem qualquer XII, a ciência e, respectivamente, a arte da
preocupação com o social, buscando-se tão- interpretação. Até o fim do século passa-
somente o progresso do proprietário em de- do, ela assumia normalmente a forma de
trimento da miséria alheia. A propriedade uma doutrina que prometia apresentar as
possui função social e econômica e não pode regras de uma interpretação competente.
ser garantida sem a observância desta fun- Sua intenção era de natureza predomi-
ção, que já é parte integrante dela. A justi- nantemente normativa e mesmo técnica.
ça social poderia ser alcançada justamente Ela se restringia à tarefa de fornecer às
ciências declaradamente interpretativas
com a destinação adequada dessa proprie-
algumas indicações metodológicas, a fim
dade, uma vez que pela exploração direcio- de prevenir, do melhor modo possível a
nada serão garantidos a implementação do arbitrariedade no campo da interpreta-
emprego, a geração de riquezas e o aumen- ção [...]. Por isso, formou-se, desde a Re-
to da circulação de mercadorias, gerando, nascença uma hermenêutica teleológica
por conseqüência, arrecadação de impostos (hermenêutica sacra), uma hermenêutica
advindos dessa atividade. filosófica (hermenêutica profana), como
Portanto, o cumprimento dessa fun- também uma hermenêutica jurídica.16
ção é de importância relevante, uma vez Primeiramente, nasceu a herme-
que é pela sua interpretação que será ope- nêutica clássica, chamada “metodológica”.
racionalizada a implementação dos direi- Essa classificação enfrentou transforma-
tos fundamentais das partes litigantes. ções de caráter, assumindo com as obras
de Hans-Georg, Gadamer e Heidegger um
caráter intitulado filosófico, passando-se
A contribuição da da filosofia da consciência para a filosofia
hermenêutica na da linguagem. Leal, seguindo os ensina-
mentos de Durand, explica:
interpretação das
Em termos históricos [...] a interpretação,
normas constitucionais em sua fase mais moderna, remonta es-
sencialmente à percepção mais aguda do
Para se interpretarem os dispositi- problema, do significado textual introdu-
vos legais relativos ao direito de preferên- zido pela hermenêutica bíblica associada
cia no contrato de arrendamento, ou seja, a Scheleiermacher no começo do século
para proceder a uma análise do direito XIX [...]. O intento de Scheleiermacher
[...] era o de sistematizar uma hermenêu-
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tica geral, enquanto arte de compreender, mento, uma vez que não há interpretação
visando a servir de base às mais diversas sem quebra de preconceitos, mantendo
e múltiplas teorias metodologias específi- idéias imutáveis sobre o objeto, ou situa-
cas das diferentes disciplinas dedicadas á ção a ser analisada.
interpretação de textos.17
Para tanto, a ontologia contribui
Essa faceta da hermenêutica antiga, para a interpretação, considerando-se o
conforme a citação transcrita, tem como fato de não existir interpretação sem exis-
um de seus defensores Scheleiermacher, tir “ser” e “ente”, reafirmando, portanto,
que sustentava a tese de que a interpre- a posição de que a metodologia de inter-
tação da ciência era metodológica e que pretação não funciona; a interpretação é
havia somente um sentido da norma a ser construção de um ser num dado tempo,
descoberto pelo interpretante. Nesse caso, quebrando o paradigma de que somente
ignorava que o ser interpretante está inse- existe uma interpretação. Streck comenta
rido num contexto histórico e que faz uma a ontologia, sustentando:
interpretação da hermenêutica de acordo A verdade não é uma questão de método.
com a sua visão subjetiva da norma. Nesse Será, sim, uma questão relativa à mani-
sentido, não há uma interpretação única, festação do ser, para um ser cuja existên-
uma vez que depende do ser interpretan- cia consiste na compreensão do ser [...].
te, que poderá alterar a sua interpretação Na ontologia da compreensão, a vida é
com o passar dos tempos, fato que compro- história, onde o próprio ser se desvela no
va ser a interpretação temporal. horizonte da temporalidade. O próprio ser
Já a hermenêutica filosófica, defen- é tempo. Por isto, a vida, a existência con-
dida por Heidegger, traçou novos rumos creta, emerge na compreensão do ser.19
para a interpretação, analisando a figura A hermenêutica filosófica contribui
do ser interpretante e de que forma ocorre para o direito na medida em que traça o
essa interpretação, defendendo que a filo- caminho da interpretação adequada da
sofia não é lógica, somente recebe a contri- norma. Isso evidencia que a cada inter-
buição dela para ser produzida. E ainda, pretação poderá surgir uma nova idéia da
que, para haver interpretação, deve, obri- norma a ser observada ao tempo da inter-
gatoriamente, haver pré-compreensão. pretação, com reinterpretação a cada mo-
Essa interpretação depende do questiona- mento temporal diferenciado. Desse modo,
mento. Nas palavras de Heidegger: aquela visão metodológica da hermenêuti-
Todo questionamento é uma procura. ca resta superada pela sua inadequação,
Toda procura retira do procurado sua di- ou, mesmo, pela falta de resultados.
reção prévia. Questionar é procurar cien- Sendo a hermenêutica a arte de in-
temente o ente naquilo que ele é e como terpretar, e sendo a função da interpreta-
ele é [...]. Enquanto procura, o questio- ção romper com a abstração da lei, dando-
namento necessita de uma compreensão lhe a sua concretude pela sua aplicação ao
prévia do procurado. Para isso, o sentido
caso concreto, tem-se nessa afirmação a
do ser já nos deve estar, de alguma ma-
neira, disponível.18
conclusão da importância da existência da
hermenêutica e da sua aplicação no direi-
Assim, de acordo com Heidegger, to. Tem ela, pois, a função de elucidar o di-
para acontecer a interpretação, o ser in- reito, dando um novo sentido à norma. E,
terpretante deve abster-se de obstaculizar em se tratando de Constituição, deve esta
a inclusão do questionamento nesse mo- também ser interpretada por meio da her-
JUSTIÇA DO
108 DIREITO

menêutica, trazendo as normas constitu- ba uma proposta de um terceiro para com-


cionais para a realidade temporal atual. prar a propriedade arrendada. O art. 92,
par. 3o, do Estatuto da Terra estabelece
que, no caso de alienação do imóvel arren-
Uma análise dado, o arrendatário terá preferência para
hermenêutica do adquiri-lo em igualdade de condições, de-
vendo o proprietário dar-lhe conhecimento
direito da preferência da venda a fim de que possa exercitar o di-
reito de preempção dentro de trinta dias,
constitucionalizado a contar da notificação judicial ou compro-
vadamente efetuada, mediante recibo.
Como já demonstrado no decorrer
No artigo especificado, não está ex-
do trabalho, a propriedade sofreu diver-
posto que para o arrendatário exercer esse
sas alterações de caráter. Uma delas é a
direito, terá de estar dando à propriedade
obrigatoriedade do cumprimento da sua
a sua devida destinação social, cumprindo,
função social e econômica. No que tange
portanto, com os requisitos constitucionais.
ao cumprimento dessa funcionalização da
Aqui, segundo a hermenêutica filosófica,
propriedade, tem-se a garantia do direi-
deverá o julgador, com sua pré-compre-
to de preferência na aquisição a quem a
ensão, interpretar a legislação pertinente
esta explorando, ou, mesmo, possuindo-a
ao caso concreto e, ao final, normatizar o
diretamente.Para tanto, esse direito de
litígio, fazendo com que os dados passados
preferência deve ser analisado em cada
pela situação apontada levem a uma sen-
caso concreto, fazendo-se uma análise her-
tença que esteja em harmonia com os di-
menêutica do direito em face das normas
tames do Estado democrático de direito e,
constitucionais na situação real do contra-
portanto, constitucionalizada, garantindo
to de arrendamento, no momento em que,
a observância dos direitos fundamentais
em tese, o arrendatário adquiriria o direi-
elencados na Carta constitucional.
to de preferência.
Da situação concreta apontada con-
A hermenêutica filosófica deixa evi-
clui-se que o direito de preferência so-
dente que, para analisar qualquer situa-
mente pode ser exercido se a exploração
ção jurídica, necessário se faz que o ser
da terra estiver em consonância com os
interpretante questione a situação concre-
ditames constitucionais, ou seja, no mo-
ta. Para tanto, deve, primeiramente, ter a
mento da oferta de compra, deve ser ob-
pré-compreensão sob o questionamento.
servado se o arrendatário está cumprindo
Nas palavras de Streck, “sempre inter-
a função social da propriedade. Para isso,
pretamos, pois. E para interpretar, neces-
poderá ser requerida ajuda ao Incra, que
sitamos compreender. Para compreender,
poderá analisar a produtividade alcança-
temos que ter uma pré-compreensão [...],
da pelo arrendatário, bem como os outros
constituída de estrutura prévia do senti-
requisitos legais necessários para a análi-
do, que se funda essencialmente em uma
se específica. Esse requisito é baseado na
posição previa [...] que já une todas as par-
20 supremacia da norma constitucional em
tes [...] do sistema”.
relação ao Estatuto da Terra, que é norma
Suponha-se que “A” (arrendatá-
infraconstitucional.
rio) esteja explorando a propriedade de
Na visão de Streck, “a renovada su-
“B”(arrendador) e que o arrendador rece-
premacia da Constituição vai além do con-
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trole de constitucionalidade e da tutela A propriedade, inevitavelmente, gera


mais eficaz da esfera individual da liber- riquezas à sociedade, uma vez que, em ha-
dade”.21 A constituição possui um caráter vendo produção, ela servirá tanto para as
limitador, ou seja, as normas infraconsti- necessidades básicas do proprietário como
tucionais não podem ser editadas em de- para circulação de riquezas em razão da
sacordo com os seus ditames, mas também comercialização da produção alcançada. E
possui uma função moral relativa à garan- para haver produção, necessária se faz a
tia dos direitos fundamentais. existência de mão-de-obra. Por outro lado,
A interpretação da necessidade de o uso inadequado desse meio de produção
cumprimento da função social para obter o gera inúmeras conseqüências tanto no
direito de preferência pode ser baseada no âmbito de manutenção da riqueza como
princípio da dignidade da pessoa huma- no âmbito ambiental e, por conseqüência,
na, ou, mesmo, no direito à propriedade, na esfera social.
uma vez que, se o arrendatário não esti- O contrato de arrendamento é um
ver explorando a propriedade segundo os modo de garantir a exploração do imóvel
ditames constitucionais, quem sofrerá por rural no qual se passa esse direito a um ter-
esse desvio é a própria sociedade. ceiro, que dará a destinação social ao bem de
Como exemplo, cita-se o descumpri- produção. Para tanto, como o arrendatário
mento das normas ambientais, que, por está contribuindo para a subsistência da so-
conseqüência, poderá gerar o descontrole ciedade, estabeleceu o legislador que ele tem
do meio ambiente, ocasionando prejuízo direito de preferência na aquisição do imó-
à saúde da sociedade como um todo, ou, vel objeto deste contrato, se houver proposta
mesmo, à questão da produtividade não de alienação onerosa desse imóvel durante o
alcançada. Isso implicará a insuficiência período contratual.
de material alimentar para sustentação Efetuando-se uma análise herme-
da sociedade, determinando que, no caso nêutica do direito de preferência do ar-
de haver uma discussão judicial sobre a rendatário chega-se, enfim, à conclusão
garantia do direito acima especificado, de- de que somente pode exercer esse direito o
verá o Judiciário verificar o cumprimento arrendatário que estiver cumprindo com a
ou não da função social para deferir ou não função social da propriedade, uma vez que,
o direito infraconstitucional apontado. após a constitucionalização deste direi-
to, devem as normas infraconstitucionais
estar em consonância com a constituição,
Considerações finais respeitando-se a imperatividade desta so-
bre as demais normas e a sua aplicabilida-
Analisando-se as transformações que de imediata.
o direito de propriedade sofreu no decorrer
da história, verificou-se que o modo de ex-
ploração desse direito foi se direcionando, Referências
passando do caráter absoluto para o cará-
ter limitado. Tal limitação não ocorreu por ALBUQUERQUE, Ana Rita Vieira de. Da
acaso, mas pela necessidade de o ser social função social da posse e sua conseqüência
preocupar-se com os demais membros da frente à situação proprietária. Rio de Janei-
sociedade diante da necessidade de sobre- ro: Lumen Juris, 2002.
vivência de todos.
JUSTIÇA DO
110 DIREITO

4
BRASIL. Constituição (1998). Constituição Idem, p. 24.
da República Federativa do Brasil. 33. ed. 5
MONTESQUIEU. O espírito das leis. 2. ed.
São Paulo: Saraiva, 2004. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 58.
6
SILVA, op. cit., p. 126, nota 2.
BRASIL. Lei nº 4 504 de 30 de novembro de 7
ALBUQUERQUE, Ana Rita Vieira de. Da
1964. Estatuto da Terra. 17. ed. São Paulo: função social da posse e sua conseqüência
Saraiva, 2002. frente à situação proprietária. Rio de Janei-
ro: Lumen Juris, 2002. p. 45.
GRODIN, Jean. Introdução à hermenêutica 8
Art. 2o “É assegurada a todos a oportunidade
filosófica. São Leopoldo: Unisinos, 1999. de acesso à propriedade da terra, condiciona-
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 14. ed. da pela sua função social [...].”
9
Petrópolis: Vozes, 2005. Art. 5o - “Todos são iguais perante a lei, sem
distinção de qualquer natureza, garantin-
LEAL, Rogério Gesta. Perspectivas herme- do-se aos brasileiros e aos estrangeiros resi-
nêuticas dos direitos fundamentais no Brasil. dentes no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à segurança e à proprieda-
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. de [...].”
10
MONTESQUIEU. O espírito das leis. 2. ed. Art. 170 - “A ordem econômica, fundada na
São Paulo: Martins Fontes, 2000. valorização do trabalho humano e na livre
iniciativa, tem por fim assegurara todos a
MATTOS NETO, Antônio José de. O direito existência digna, conforme os ditames da
agrário na Constituição. Rio de Janeiro: Fo- justiça social, observados os seguintes princí-
pios: [...] III - função social da propriedade;”
rense, 2005. 11
SARMENTO. Direitos fundamentais e rela-
SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais ções privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen 2004. p. 70-71.
12
Juris, 2004. FERRER apud SARMENTO, op. cit., p. 102.
13
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitu-
SILVA, Leandro Ribeiro. Propriedade rural. cional e hermenêutica. 2. ed. Rio de Janeiro:
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. Forense, 2004. p. 2-3.
14
SARMENTO, op. cit., p. 101, nota 12.
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitu- 15
SARMENTO, op. cit., p. 100, nota 12.
cional e hermenêutica. 2. ed. Rio de Janeiro: 16
Forense, 2004. p. 2-3. GRODIN, Jean. Introdução à hermenêutica fi-
losófica. São Leopoldo: Unisinos, 1999. p. 23.
_______. Hermenêutica constitucional e(m) cri- 17
LEAL, Rogério Gesta. Perspectivas herme-
se. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. nêuticas dos direitos fundamentais no Bra-
sil. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2000. p. 132-133.
18
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. 14. ed.
Notas Petrópolis: Vozes, 2005. p. 30-31.
19
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica consti-
1
SILVA, Leandro Ribeiro. Propriedade rural. tucional e(m) crise. Porto Alegre: Livraria do
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. p. 11. Advogado, 2004. p. 199.
20
2
MATTOS NETO, Antônio José de. O direito STRECK, op. cit., p. 6, nota 14.
agrário na Constituição. Rio de Janeiro: Fo- 21
STRECK, op. cit., p. 101, nota 14.
rense, 2005. p. 2.
3
SILVA, op. cit., p. 23, nota 2.

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