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Conceituações importantes
A fonte do direito é a tomada da terra (p.41)2. É essa ação que faz com que todas
as relações jurídicas com a terra e todas as instituições constituídas por um povo sejam
possíveis. É ela o título jurídico sobre o qual se baseia todo o direito subsequente - o
direito territorial, o dever de servir os habitantes, a defesa do território, etc (p.42).
Inclusive, ela precede a diferenciação entre direito público e direito privado (p.43). A
tomada da terra não é uma lei positivada ou codificada, mas sim um acontecimento
histórico e político (p.45). “Ela contém a ordem inicial, de natureza espacial, origem de toda
ordem concreta posterior e de todo direito posterior. Ela é o enraizar no reino de sentido da
história” (p.45)
Mas como assim a tomada da terra funda o direito? A partir de uma dupla
orientação: interior e exterior. No interior de um grupo que tomou a terra, a primeira
divisão e partição da terra cria a primeira ordem das relações de posse e de propriedade.
Para o exterior, o grupo que toma a terra se contrapõe a outros grupos e potências que
tomam ou possuem uma terra (p.41-42). A aquisição dessa terra pode ser dar de duas
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Tomada de terra que pode ser dar de diversas maneiras: migrações, guerras, etc.
maneiras: a tomada de uma terra sem senhor ou a tomada da terra de um grupo por
outro.
Para ele, o direito das gentes também é a história da tomada da terra que, em
alguns momentos, também se acrescenta a tomada do mar. O nomos da terra reside em
uma relação entre terra e mar (p.46). Terra e mar que vem se alterando constantemente por
conta do domínio do espaço aéreo (p.46). Sobre isso, Schmitt faz uma afirmação importante:
Não existia nesse momento pré-global uma oposição entre terra e mar (fenômeno
moderno que tomará conta do direito das gentes europeu a partir do século XVII e
XVIII). O Direito comum dessa época não poderia ser abrangente ou coerente.
Prevalecia relações primitivas. Nesse momento, o direito das gentes era rudimentar.
“Tudo isso porque faltava a força ordenadora à ideia de uma coexistência entre verdadeiros
impérios - ou seja, grandes-espaços autônomos em um espaço comum -, pois faltava a
concepção de uma ordem comum, que abrangesse toda a Terra” (p.53).
a) Nomos e lei
Para fazer isso, Schmitt volta um pouco no tempo, afirmando que desde os sofistas
não está mais claro a ligação entre nomos e tomada da terra. Por exemplo, Platão afirmava
que o nomos era uma mera regra.
Aristóteles conseguiu ir um pouco além daquilo que formulou Platão, enxergando
no nomos certa conexão com o espaço. Para ele, o nomos ainda é expressão e parte
componente de uma medição concreta, concebida em termos essencialmente espaciais
(p.66). Para ele, o nomos é o senhor, é aquele que governa e, por vezes, pode ser opor ao
decreto democrático do povo (p.67). Importante ter em mente que, em Aristóteles, o nomos é
ainda apresentado como a repartição originária do solo.
A destruição do conceito originário de nomos se deu com algumas oposições que
para Schmitt não possuem nenhum cabimento. Entre elas, a mais importante é aquela
que contrapõe o nomos e physis. Por meio dela, o nomos tornou-se um dever-ser
imperativamente instituído, que não se comunica com o ser e se impõe a ele. Nessa visão,
o nomos é somente uma norma e estatuição (p.67)
Por que então ele decide usar a palavra nomos? Porque para Schmitt ela dá
conta de responder alguns problemas mundiais da atualidade que o emaranhado
legal-positivista não consegue resolver. Para ele, “O futuro nomos da Terra não será a
exumação de instituições dos tempos ancestrais, mas ele tampouco deve ser confundido com
o sistema normativo da legalidade ou com as legificações do século XIX [...] a palavra
nomos não indicava, originalmente, uma mera estatuição, na qual ser e dever-ser
pudessem estar cindidos e na qual fosse possível ignorar a estrutura espacial de uma
ordenação concreta” (p.68)
→ Schmitt nega a cisão entre dever-ser e ser. O nomos é expressão da concretude da vida
e está conectado com a ordem espacial, ou seja, com o território e suas divisões. Por isso,
Schmitt afirma que não devemos ler nomos como lei (p.68)
Por que nomos não pode ser identificado com a lei?
A lei expressa somente a artificialidade de algo meramente posto e devido em
termos positivistas, ou seja, é uma mera imposição (p.69). Ela pode ser, inclusive,
substancialmente vazia.
Já o nomos é a forma imediata na qual ordem política e ordem social de um povo
se torna espacialmente visível, “a primeira medição e divisão das pastagens, ou seja, a
tomada da terra e a ordem concreta que nela reside e que dele recorre”. O nomos da
Terra encontra sua substância, portanto, na ordem concreta - é impossível de ser vazia
como é a lei e também é impossível fazer aqui a cisão entre ser e dever-ser porque o
nomos é.
[...] Nomos é a medida que parte o chão e o solo da Terra e os localiza
em uma ordenação determinada; é também a forma, assim adquirida,
da ordem política, social e religiosa. Medida, ordenação e forma
configuram aqui uma unidade espacial concreta. Na tomada da terra,
na fundação de uma cidade ou de uma colônia, o nomos se torna
visível; com ele, uma tribo um grupo ou um povo são assentados,
ou seja, são historicamente localizados, e um pedaço da Terra é
alçado ao campo de forças de uma ordem (p.69)
O direito das gentes europeu está baseado na grande tomada de terra que
aconteceu durante os séculos XVI e XVII. Lembre-se aqui da história colonial que, para
Schmitt, significa a história de eventos de fundação espacialmente determinados.
Portanto, o acontecimento fundamental do direitos das gentes europeu foi a tomada de
terra do “novo mundo” (p.83).
O descobrimento das Américas deu origem ao moderno direito europeu das gentes
que só terminaria no século XX. Falamos em direito europeu das gentes porque nesse
período as nações européias cristãs eram tidas como o centro do mundo e, portanto,
portadoras de uma ordem que valia para toda a Terra.
Foi nesse momento que se passou a discutir de maneira fervorosa a repartição da terra
e do mar. Para os europeus, o novo mundo não era visto como um inimigo a ser combatido,
mas como um espaço livre (uma área livre para ocupação e expansão europeia) (p.88).
Com a colonização da América foram traçadas as primeiras linhas globais de
divisão e partição (p.90). A primeira linha se deu em 1494 com a bula inter coetera, feita
pelo papa Alexandre VI. Depois dessa, temos o famoso tratado de Tordesilhas, também feito
no mesmo ano.
Importante ressaltar que essas concepções acerca das linhas globais se alteram ao
longo do tempo. Portanto, uma coisa é falar de concepção de linha global durante a
colonização das América, outra coisa é tratar disso durante a Segunda Guerra Mundial. O
contexto é diferente. Essas linhas são importantes porque elas dialogam com aquilo que
podemos chamar de linha de amizade.
Linha de amizade - é como se o mundo fosse dividido entre aqueles que são amigos e
aqueles que não merecem ter os mesmos privilégios dos amigos. A linha dividia aqueles que
estariam submetidos ao direito das gentes europeus e aqueles que seriam submetidos ao
direito dos mais fortes (violência irrefreável) (p.95). “[...] tudo o que ocorre ‘além da linha’
permanece completamente fora das apreciações jurídicas, morais e políticas que eram aceitas
aquém da linha” (p.96).
O estudo das linhas de amizade durante o século XVI revelam dois espaços livres
no qual se desenvolvem atividades desenfreados do povo europeu: o Novo Mundo e o
mar. Para os europeus cristãos, nesses espaços não havia direito ou jurisdição e a única
maneira de levar isso para esses espaços seria por meio da conquista (p.96). Basta lembrar
aqui do estado de natureza construído por Hobbes e que, de acordo com o Schmitt, é uma
alegoria feita para representar as Américas (p.98)
Essa ordem só vai se alterar com as lutas por independência das colônias que
começam no século XVIII e XIX, se consolidando no século XX.
Qual foi a consequência da formação do Estado para o direito das gentes? Estado,
nomos da terra e direito das gentes europeu estão imbrincados.
No século XVI, o direito das gentes europeu continental era um direito
interestatal de Estados soberanos europeus e determinava o nomos do restante da Terra
a partir desse núcleo europeu (p.132). “[...] a formação de conceitos do direito das gentes
dessa época conhece apenas um eixo: o Estado territorial soberano” (p.132)
“Assim surgiu a ordenação territorial ‘Estado’, impermeável,
espacialmente fechada em si, livre do problema da guerra civil
estamental, eclesiástica e religiosa. Ele tornou-se portadora de
uma nova ordem do direito das gentes, cuja estrutura espacial é
vinculado ao Estado e determinada por ele. Sua particularidade
reside no fato de que o direito das gentes se torna interestatal em
um sentido específico. Primeiro: em virtude da demarcação clara
de superfícies fechadas em si, o jus gentium [direito dos povos] se
converte em um jus inter gentes [direito entre os povos], e na
verdade em um inter gentes europoeas [entre os povos europeus]”
(p.135)
III. O DIREITO PÚBLICO EUROPEU
Para finalizar, gostaria de destacar a parte final selecionada para a aula de hoje, localizada na
página 225-228. Ali, Schmitt defende novamente a historicidade do direito das gentes ao
afirmar que o direito das gentes interestatal do direito público europeu é apenas uma das
muitas possibilidades dos direitos das gentes em termos de história do direito (p.225).
Destaca também que esse direito interestatal possui diversos elementos
não-estatais. Para ele, o interestatal não significa que cada sujeito do direito das gentes esteja
isolado. Pelo contrário, “o caráter interestatal só é compreensível a partir de uma ordem social
englobante, que é portadora dos próprios Estados” (p.226).
Para provar esse ponto, Schmitt destaca que a forma de organização de um
determinado povo também faz parte do direito das gentes. Ou seja, fazem parte do direito
das gentes: 1) direito inter-étnico (entre famílias, parentelas, clãs, nações); 2) direito
inter-cidades; 3) direito interestatal (entre ordens territoriais centralizadas das formações
soberanas); 4) direito entre autoridades espirituais e poderes leigos (papa. califa, buda, etc); 5)
direito inter-imperial (entre grandes potências com uma supremacia espacial que se estende
para além do território estatal).
Para além desse jus gentium, pode haver um direito comum universal que estende para
além das fronteiras fechadas em si. Ele pode constituir um padrão constitucional comum ou
num mínimo de organização interior cuja existência se presume em concepções e instituições
religiosas, civilizacionais e econômicas comuns (ex. dado por Schmitt: direito universalmente
reconhecido do direito à propriedade e um mínimo de garantia processual) (p.227)