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DIREITO MEDIEVAL

Objetivo da aula:
O objetivo dessa aula não é abordar em detalhes tudo o que aconteceu na Idade
Média envolvendo o direito, mas fornecer para vocês uma compreensão geral do que foi
e como se construiu aquele direito. Procuraremos nessa aula penetrar nas origens mais
profundas da civilização medieval, expondo os valores e mentalidades que ajudaram na
formação do direito medieval.

Mas por que decidimos abordar os valores e as mentalidades que ajudaram a conformar
esse direito?
Porque os alunos já entram na universidade com uma mentalidade moderna do
direito. Mentalidade que permanece durante todo o curso.
Dai que o estudo do direito medieval vem mostrar para nós que nem sempre o
direito foi aquilo que geralmente pensamos que ele é. Ou seja, o direito medieval ajuda a
desconstruir um pouco a mentalidade moderna do direito.
O direito medieval nos prova que o direito está submerso em um universo de
valores históricos, ou seja, que ele é um produto histórico e o substrato de mentalidades
(p.6-7). Muitas vezes uma norma, uma lei ou um instituto jurídico diz respeito à visão de
uma civilização histórica (p.7).

Mas quais são os limites dessa aula?


Além desse limite de conteúdo exposto anteriormente, é importante citar o limite
geográfico. Estaremos falando aqui do espaço europeu. Impossível seria falar de Idade
Média em terras latino-americanas. (p.8)

Falei para vocês que o direito medieval é único e muito complexo. Por conta
disso, temos dificuldades de compreendê-lo.

Por que existe essa dificuldade de compreensão?


Como argumenta Paolo Grossi no livro A Ordem Jurídica Medieval (e em outro livros,
como a Mitologias Jurídicas da Modernidade e Entre Poder e Ordenamento), a época
medieval foi marcada por um conjunto de valores que a experiência moderna tratou de
rejeitar e exilar, criando na cabeça dos observadores uma série de preconceitos difíceis
de serem desfeitos (p. 10)
→ Quem por exemplo não aprendeu na escola que a Idade Média foi a idade das trevas,
da ausência de produção cultural relevante? A Idade Média não foi uma época de
incultura. A cultura existia, mas não circulava (p.75). Inclusive, parte importante dessa
cultura era desenvolvida em instituições monásticas - centros fechados e de uma cultura
feita por poucos e para poucos (p.76).
Quando o assunto é cultura jurídica a coisa é diferente. Não existia na alta Idade
Média um aprofundamento doutrinal dos clássicos e dos pós-clássicos. Não existiam
escolas de direito que buscassem construir um conhecimento científico do direito (p.76).
A preocupação deles nesse momento não é a construção de um saber científico. O que
importava era a maneira como esse direito circulava. As escolas de direito até existiam, mas
o objetivo delas não era passar um conhecimento científico, e sim passar noções
jurídicas básicas para os aspirantes a juízes e notários (p.77-78)
Em segundo lugar, é complicado entender a Idade Média e, particularmente, o
direito medieval porque se trata de um universo jurídico completamente distinto,
marcado por sua descontinuidade em relação ao “clássico” (direito romano) e ao
“moderno” (p.10). Por conta dessa distinção, devemos tomar cuidado com dois erros que
geralmente são cometidos:
1) A tentativa de entender o direito medieval como uma continuidade do período
romano, o que nem de perto é verdade (p.11)
2) A tentativa de transplantar para a Idade Média conceitos que só serão
desenvolvidos na modernidade (p.11)

Vou dar alguns exemplos desses erros para que vocês não o cometam
A era do direito medieval plenamente desenvolvido é a era do direito comum, quando
grande parte do trabalho dos juristas se realiza a partir da descoberta dos textos romanos do
Corpus Iuris de Justiniano (tema que será explicado mais à frente). Por conta disso, alguns
tendem a dizer que o direito medieval é uma espécie de “direito romano modernizado” e
que os homens do direito comum medieval seriam simples romanistas (p.12-13). Veremos
que isso não tem nada a ver, mas já os alerto desde agora.
Outro erro comum é o de tentar usar para Idade Média conceitos modernos,
como “Estado”, “soberania”, “lei, “legalidade”, “interpretação”. Usá-los não nos ajudará
a compreender a sociedade medieval. Como diz Paolo Grossi, esses são mitologias jurídicas
construídas na modernidade que impregnam a consciência daqueles que tentam estudar o
direito, mas possuem pouca compreensão histórica do direito (p.13)

Feito esses alertas gerais, passemos ao nosso assunto.

Gostaria de começar falando com vocês sobre os pressupostos ordenadores da sociedade


medieval e do seu direito. Ou seja, vamos falar sobre as características gerais desse
período.

1) Historicidade do direito
Não há dúvidas que para o jurista o direito assume hoje uma dimensão
“autoritária”, ou seja, se mostra como um instrumento de autoridade do Estado que se
revela a partir de leis, atos administrativos, sentença judicial, etc. Autoritária na medida em
que revela um distanciamento entre o órgão de produz o direito (Estado) e a
comunidade que os recebe (nós) (p.22). Nessa visão que vincula direito ao Estado, o
fenômeno jurídico sofre uma imobilização (p.22), na qual a fonte por excelência do
direito é tão somente a lei (p.22).

O grande risco dessa visão é nos cegar para aquilo que importa, a saber: a de que a
essência do direito é a sua historicidade, ou seja, o fato de o direito ser parte da dimensão
da vida, a expressão natural e inseparável da comunidade (p.23). Se é verdade que o
direito encontra-se hoje no legislador e na administração pública, também é verdade que
a produção do direito é privilégio de toda e qualquer sociedade, independente da
existência do Estado (p.23).
Mas se o direito é história também é verdade que ele é a tradução de certos
esquemas organizativos, ou seja, ele é um espelho interessante da sociedade em que se
formou (p.26). Ele é o espelho das estruturas de uma sociedade. Ele é um material social
e cultural que pode ser avaliado historicamente (p.28). É por isso que podemos falar da
existência de um direito MEDIEVAL.

Do que se trata esse direito medieval?


O direito medieval não é apenas o direito aplicado no período que vai dos séculos
V a XV d.C. Ele é um conjunto de escolhas daquele momento histórico que marcam a
civilização jurídica medieval, que expressam o seu modo singular de sentir e viver o mundo
(p.33). É uma mentalidade jurídica que absorve a Europa Ocidental por quase um
milênio (p.34).
Antes de continuar a explicação sobre ele, faço uma observação sobre o milênio que
marca a Idade Média. Geralmente, aprendemos na escola que ela se divide em alta e baixa
Idade Média. A classificação não está completamente incorreta, mas em alguns momentos ela
pode causar certa confusão.
A linha divisória que separa a alta e baixa Idade Média é o século XI, mas a data
não é a mesma para todos os lugares. Por exemplo, para um estudioso alemão ou francês
essa linha divisória está no século XIII. O segundo risco que a primeira linha oferece é a
de tratarmos os dois períodos como momentos autônomos. No entanto, eles são marcados
por um nível alto de coesão, principalmente no que diz respeito ao direito (p.35).
→ Enquanto a alta Idade Média deve ser vista sobretudo como a oficina da práxis, o
segundo deve ser visto como um laboratório sapiencial; enquanto o primeiro tem uma
fisionomia agrária, o segundo será marcado por um período de cidades e de transações
comerciais (p.35-36)
Assim sendo, desde que tenham cuidado com isso, vocês podem adotar essa
nomenclatura.

→ Fruto da práxis
Como assim oficina da práxis?
Usamos esse termo porque o direito desse período não está ligado a nenhum evento
grandioso, nem é fruto de um príncipe iluminado ou de uma escola jurídica revolucionária. O
direito dessa época é fruto de uma práxis que se identifica com o costume e que é
informada por valores duradouros da sociedade medieval. É o laboratório ativo onde
um costume jurídico está sendo elaborado (p.78)

Incompletude do poder político


A Idade Média começa com o desmoronamento da sólida e admirável estrutura
estatal romana. Após esse desmoronamento, sobra apenas um vazio político.
A especificidade da ordem jurídica medieval repousa, em primeiro lugar, nesse
relativo vazio, chamada por Paolo Grossi de “incompletude do poder político”. Por
incompletude ele entende a “carência de toda vocação totalizante do poder político”, ou
seja, a ausência de um poder político como o Estado que avoque para si a produção do
direito e todas as decisões relevantes daquela sociedade (p.50)
Falei para vocês que o conceito de Estado é uma invenção moderna. E efetivamente
é. Foi na modernidade que a ideia de Estado, como uma realidade político-jurídica
unitária, com efetividade de poder em todo um território, como o único agente com
legitimidade para coagir e como único produtor do direito foi construído (p.51). Foi na
modernidade que se construiu o Estado como um sujeito político forte, “com poder político
totalmente completo” (p.51)
De modo bem diferente se comporta a sociedade medieval. Ela não é unitária ou
englobante. Ninguém diz que é o único legitimado a coagir ou a produzir o direito. Pelo
contrário. Nessa sociedade convivem diversas instituições e ordenamentos - direito
canônico, direito das cidades livres, direito dos feudos, corporações de ofício, etc (p.54).
O direito não é monopólio de um agente, mas de inúmeros grupos sociais (p.58)
Por isso, também é inadequado falar na Idade Média na ideia de soberania. Quem
poderia ser soberania em uma sociedade marcada por uma pluralidade de ordenamentos?

A relativa indiferença do poder político pelo direito. A autonomia do direito.


Como veremos quando estudarmos a modernidade, o Estado sempre considerou
a relevância do direito para a realização de seus objetivos totalitários e universalizantes
(p.61).
A sociedade medieval se comporta de maneira diferente. Não queremos dizer que
o direito não tem um peso grande nessa sociedade. Queremos dizer que os detentores de
poder não concebem o direito enquanto um objeto necessário de suas atenções e um
instrumento obrigatório para o seu regime (p.61). A atenção do monarca, do senhor, da
comuna medieval está voltada para aquela área do jurídico vinculada ao exercício e
conservação do poder, mas não há uma preocupação em regular todos os aspectos da vida
humana, como se tem hoje por exemplo (p.61). Eles respeitam implicitamente outras
fontes normativas.
→ Ex. não há necessidade de regular algo que talvez já tenha sido regulado pelo direito
canônico.
Essa relativa indiferença pelo direito gera uma relativa autonomia para o direito.

Pluralidade
Além da historicidade, outro elemento importante para a compreensão do direito
medieval é a pluralidade de ordenamentos.
Esse período da Idade Média que ficou conhecido como “alta” Idade Média
representou a fundação de uma experiência jurídica medieval e é considerada a sua
oficina da práxis. Mas como se dava essa práxis? Como aplicar isso no dia a dia?
Para a aplicação desses ordenamentos, deveria se considerar o pertencimento da
pessoa a um determinado grupo. Ou seja, o pertencimento de uma pessoa a um determinado
grupo definiria a aplicação de um direito específico e diferenciado (p.66). Pessoas de
determinados grupos seriam julgadas segundo o direito elaborado no interior desses
grupos.
Ex. É o caso dos clérigos que, por pertencerem a Igreja, seriam julgados pelo direito
canônico;
Ex. É o caso do mercador que, por pertencerem ao grupo de mercadores, seriam julgados pelo
coetus mercatorum, primeiro embrião do futuro “direito comercial” (p.66)

Alguém pode fazer a seguinte pergunta: e as “leis” produzidas por príncipes nesse
momento? As leis produzidas por príncipes nesse momento não tinham objetivos
totalizantes e nem excluíam a aplicação de outras normas. As normas produzidas por eles
não tem tanta relevância naquele momento. A produção do direito reside sobretudo em
outras mãos; a experiência jurídica flui de outros canais (p.69).
O direito nasce dos fatos, dos costumes. A dimensão da validade (“válido” porque
foi imposto por uma autoridade competente) é substituída pela efetividade (o que
realmente é aplicado na vida cotidiana é direito). Por isso, dizemos que o direito medieval
uma das características do direito medieval é a sua factualidade. Muitas vezes, ele é
chamado de “naturalismo jurídico” em oposição à idéia de “formalismo jurídico” (p.80)
O papel do príncipe nessa sociedade seria de respeitar o fluxo organizado da vida
do direito (p.116). Ser um bom príncipe significava promover a equidade. O conceito de
equidade deles não é o mesmo que temos hoje. Equidade significava levar em consideração
a natureza das coisas (p.116). O príncipe não ditava a norma. Seu papel era de ler as coisas e
natureza e retirar dali o direito (p.117).

Reincentrismo
Nesse cenário, caberia ao jurista olhar para os fatos e coisas e interpretá-las,
traduzi-las para uma linguagem do direito (p.88). A isso se dá o nome de reincentrismo
em oposição à visão antropocêntrica, que coloca o homem e suas ações no centro do
universo (p.89)
Essa característica me leva ao quarto valor da sociedade medieval: a imperfeição do
indivíduo e a perfeição da comunidade.

Imperfeição do indivíduo e perfeição da comunidade, ou melhor, o comunitarismo


É incorreto e anti-histórico pensar o primeiro período medieval como um
universo de indivíduos garantidos nos seus direitos. Nesse momento histórico, o indivíduo,
ou seja, o sujeito autossuficiente é uma abstração. O indivíduo só faz sentido em um
grupo ou comunidade. O direito que se aplica sobre ele depende exclusivamente de qual
grupo ele faz parte (p.90).
Esse aspecto é demonstrado por três textos de teólogos-filósofos situados em
momentos diversos da Idade Média. Os autores são Santo Agostinho (século V), Hugo de
São Vítor (século XII) e Santo Tomás (século XIII).
Santo Agostinho diz que a criatura, individualmente considerada, enquanto
permanece isolada, não atinge a plenitude de si mesma. Só é possível percebê-la num
tecido superior. O tecido da comunidade (p.94)
Trata-se de uma visão completamente oposto àquela que irá de construir na
modernidade - altamente centrada no indivíduo (p.104).

Costume como constituição


De maneira geral, o costume é um fato/comportamento que se repete
consistentemente por um longo período de tempo. Geralmente é inconsciente (p.108-109).
Na sociedade medieval, o costume é a lex não escrita.
→ Não confundir lex e lei: lex é identificada na idade média como costume certificado e
sistematizado (p.110).

Ex do costume como lex. É o caso dos servos do mosteiro de Santo Ambrósio, em Milão,
que, ao comprirem determinados serviços, terminam que, devido à longa duração, a sua
atividade passasse a ser caracterizada como um fato consuetudinário/costume, se tornando
uma obrigação (p.111)

Por fim, antes de passar a palavra para o Raul, queria falar um pouco com vocês sobre a
presença jurídica da Igreja - tema da aula temática.
Acho que ninguém duvida aqui da importância da Igreja (da Igreja Romana, é óbvio)
na civilização medieval. No vazio deixado pela ausência do Estado, munida de uma
mensagem de salvação, a igreja conseguiu se tornar uma presença viva e eficaz que
penetrou nos mais remotos lugares durante a Idade Média. A Igreja se inseriu no
costume, o absorveu e o plasmou (p.133).
Assim como outras instituições, a Igreja tinha o seu próprio direito, conhecido por
nós como direito canônico. Esse direito se desenvolveu com bastante força durante a Idade
Média, o que geralmente é retratado em filmes e séries. De fato, a Igreja se apropriou bastante
do direito, compreendendo o impacto dele para os seus objetivos. Herdando alguns visões de
Roma, a Igreja conseguia enxergar no direito com um consolidador social e também
como um instrumento de poder (p.139-140)
Sobre esse aspecto, interessante citar uma famosa passagem de Tertuliano, apologista
que viveu entre os séculos II e III d.C. Nessa citação, ele diz que a comunidade de cristãos é
um corpo, ou seja, uma realidade orgânica e unitária. Ao seu ver, essa unidade só é possível
por conta de 3 elementos de coesão: a crença na mesma fé, a esperança comum na salvação
eterna e unidade disciplinar (imposta por vezes pelo direito) (p.137).
Um exemplo disso foi a eloquente constituição apostólica com a qual o papa Bento
XV promulgou o primeiro Codex. Ali fica claro que, durante a Idade Média, a Igreja foi
autônoma, se constituindo como um ordenamento jurídico próprio e primário - capaz de
produzir normas que extraíam sua juridicidade de Cristo como legislador divino, e não
de um poder civil (p.138).
Uma interessante característica desse direito é que ele é instrumental. Ou seja, o
objetivo da Igreja ao pensar em um direito canônico não foi colocar o direito como um
fim em si mesmo. O objetivo do seu direito é ser um instrumento para a salvação (p.147).
Por isso, quando analisamos o direito canônico da Idade Média, podemos ficar confusos
com a quantidade de soluções que podem ser dados para um mesmo fato (p.147). Por
que isso acontece?
→ Primeiro que a igreja não concebe uma regra igual para todos. A igualdade jurídica
que tanto falamos hoje era uma aberração para aquela sociedade - as pessoas deviam
eram desiguais e deveriam ser tratadas dessa maneira nos tribunais canônicos
(p.148-149);
→ O direito canônico era um direito plástico. Além de levar em consideração as
desigualdades entre seus servos, também se adaptava à situação e ao tempo em que era
aplicado. Se o direito divino era imutável (10 mandamentos), as regras acumuladas na
vida histórica da Igreja (direito humano pensado pelas autoridades eclesiásticas) para
fazê-las valer não o eram, podendo ser alteradas (p.151). Por isso, é comum na Idade
Média observar a aplicação severa de algumas normas pelos superiores eclesiásticos e, em
outros momentos, a tolerância de algumas violações para evitar prejuízos coletivos (p.152).

obs: a possibilidade de não aplicar determinadas normas eclesiásticas mesmo no momento de


violação existe até hoje, sendo chamada de “teoria da dispensa”. Basicamente, em alguns
casos, o superior eclesiástico pode não aplicar uma norma ao caso concreto se entender
que a sua aplicação poderia gerar um prejuízo maior do que um proveito espiritual
(p.152)

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