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Objetivo da aula:
O objetivo dessa aula não é abordar em detalhes tudo o que aconteceu na Idade
Média envolvendo o direito, mas fornecer para vocês uma compreensão geral do que foi
e como se construiu aquele direito. Procuraremos nessa aula penetrar nas origens mais
profundas da civilização medieval, expondo os valores e mentalidades que ajudaram na
formação do direito medieval.
Mas por que decidimos abordar os valores e as mentalidades que ajudaram a conformar
esse direito?
Porque os alunos já entram na universidade com uma mentalidade moderna do
direito. Mentalidade que permanece durante todo o curso.
Dai que o estudo do direito medieval vem mostrar para nós que nem sempre o
direito foi aquilo que geralmente pensamos que ele é. Ou seja, o direito medieval ajuda a
desconstruir um pouco a mentalidade moderna do direito.
O direito medieval nos prova que o direito está submerso em um universo de
valores históricos, ou seja, que ele é um produto histórico e o substrato de mentalidades
(p.6-7). Muitas vezes uma norma, uma lei ou um instituto jurídico diz respeito à visão de
uma civilização histórica (p.7).
Falei para vocês que o direito medieval é único e muito complexo. Por conta
disso, temos dificuldades de compreendê-lo.
Vou dar alguns exemplos desses erros para que vocês não o cometam
A era do direito medieval plenamente desenvolvido é a era do direito comum, quando
grande parte do trabalho dos juristas se realiza a partir da descoberta dos textos romanos do
Corpus Iuris de Justiniano (tema que será explicado mais à frente). Por conta disso, alguns
tendem a dizer que o direito medieval é uma espécie de “direito romano modernizado” e
que os homens do direito comum medieval seriam simples romanistas (p.12-13). Veremos
que isso não tem nada a ver, mas já os alerto desde agora.
Outro erro comum é o de tentar usar para Idade Média conceitos modernos,
como “Estado”, “soberania”, “lei, “legalidade”, “interpretação”. Usá-los não nos ajudará
a compreender a sociedade medieval. Como diz Paolo Grossi, esses são mitologias jurídicas
construídas na modernidade que impregnam a consciência daqueles que tentam estudar o
direito, mas possuem pouca compreensão histórica do direito (p.13)
1) Historicidade do direito
Não há dúvidas que para o jurista o direito assume hoje uma dimensão
“autoritária”, ou seja, se mostra como um instrumento de autoridade do Estado que se
revela a partir de leis, atos administrativos, sentença judicial, etc. Autoritária na medida em
que revela um distanciamento entre o órgão de produz o direito (Estado) e a
comunidade que os recebe (nós) (p.22). Nessa visão que vincula direito ao Estado, o
fenômeno jurídico sofre uma imobilização (p.22), na qual a fonte por excelência do
direito é tão somente a lei (p.22).
O grande risco dessa visão é nos cegar para aquilo que importa, a saber: a de que a
essência do direito é a sua historicidade, ou seja, o fato de o direito ser parte da dimensão
da vida, a expressão natural e inseparável da comunidade (p.23). Se é verdade que o
direito encontra-se hoje no legislador e na administração pública, também é verdade que
a produção do direito é privilégio de toda e qualquer sociedade, independente da
existência do Estado (p.23).
Mas se o direito é história também é verdade que ele é a tradução de certos
esquemas organizativos, ou seja, ele é um espelho interessante da sociedade em que se
formou (p.26). Ele é o espelho das estruturas de uma sociedade. Ele é um material social
e cultural que pode ser avaliado historicamente (p.28). É por isso que podemos falar da
existência de um direito MEDIEVAL.
→ Fruto da práxis
Como assim oficina da práxis?
Usamos esse termo porque o direito desse período não está ligado a nenhum evento
grandioso, nem é fruto de um príncipe iluminado ou de uma escola jurídica revolucionária. O
direito dessa época é fruto de uma práxis que se identifica com o costume e que é
informada por valores duradouros da sociedade medieval. É o laboratório ativo onde
um costume jurídico está sendo elaborado (p.78)
Pluralidade
Além da historicidade, outro elemento importante para a compreensão do direito
medieval é a pluralidade de ordenamentos.
Esse período da Idade Média que ficou conhecido como “alta” Idade Média
representou a fundação de uma experiência jurídica medieval e é considerada a sua
oficina da práxis. Mas como se dava essa práxis? Como aplicar isso no dia a dia?
Para a aplicação desses ordenamentos, deveria se considerar o pertencimento da
pessoa a um determinado grupo. Ou seja, o pertencimento de uma pessoa a um determinado
grupo definiria a aplicação de um direito específico e diferenciado (p.66). Pessoas de
determinados grupos seriam julgadas segundo o direito elaborado no interior desses
grupos.
Ex. É o caso dos clérigos que, por pertencerem a Igreja, seriam julgados pelo direito
canônico;
Ex. É o caso do mercador que, por pertencerem ao grupo de mercadores, seriam julgados pelo
coetus mercatorum, primeiro embrião do futuro “direito comercial” (p.66)
Alguém pode fazer a seguinte pergunta: e as “leis” produzidas por príncipes nesse
momento? As leis produzidas por príncipes nesse momento não tinham objetivos
totalizantes e nem excluíam a aplicação de outras normas. As normas produzidas por eles
não tem tanta relevância naquele momento. A produção do direito reside sobretudo em
outras mãos; a experiência jurídica flui de outros canais (p.69).
O direito nasce dos fatos, dos costumes. A dimensão da validade (“válido” porque
foi imposto por uma autoridade competente) é substituída pela efetividade (o que
realmente é aplicado na vida cotidiana é direito). Por isso, dizemos que o direito medieval
uma das características do direito medieval é a sua factualidade. Muitas vezes, ele é
chamado de “naturalismo jurídico” em oposição à idéia de “formalismo jurídico” (p.80)
O papel do príncipe nessa sociedade seria de respeitar o fluxo organizado da vida
do direito (p.116). Ser um bom príncipe significava promover a equidade. O conceito de
equidade deles não é o mesmo que temos hoje. Equidade significava levar em consideração
a natureza das coisas (p.116). O príncipe não ditava a norma. Seu papel era de ler as coisas e
natureza e retirar dali o direito (p.117).
Reincentrismo
Nesse cenário, caberia ao jurista olhar para os fatos e coisas e interpretá-las,
traduzi-las para uma linguagem do direito (p.88). A isso se dá o nome de reincentrismo
em oposição à visão antropocêntrica, que coloca o homem e suas ações no centro do
universo (p.89)
Essa característica me leva ao quarto valor da sociedade medieval: a imperfeição do
indivíduo e a perfeição da comunidade.
Ex do costume como lex. É o caso dos servos do mosteiro de Santo Ambrósio, em Milão,
que, ao comprirem determinados serviços, terminam que, devido à longa duração, a sua
atividade passasse a ser caracterizada como um fato consuetudinário/costume, se tornando
uma obrigação (p.111)
Por fim, antes de passar a palavra para o Raul, queria falar um pouco com vocês sobre a
presença jurídica da Igreja - tema da aula temática.
Acho que ninguém duvida aqui da importância da Igreja (da Igreja Romana, é óbvio)
na civilização medieval. No vazio deixado pela ausência do Estado, munida de uma
mensagem de salvação, a igreja conseguiu se tornar uma presença viva e eficaz que
penetrou nos mais remotos lugares durante a Idade Média. A Igreja se inseriu no
costume, o absorveu e o plasmou (p.133).
Assim como outras instituições, a Igreja tinha o seu próprio direito, conhecido por
nós como direito canônico. Esse direito se desenvolveu com bastante força durante a Idade
Média, o que geralmente é retratado em filmes e séries. De fato, a Igreja se apropriou bastante
do direito, compreendendo o impacto dele para os seus objetivos. Herdando alguns visões de
Roma, a Igreja conseguia enxergar no direito com um consolidador social e também
como um instrumento de poder (p.139-140)
Sobre esse aspecto, interessante citar uma famosa passagem de Tertuliano, apologista
que viveu entre os séculos II e III d.C. Nessa citação, ele diz que a comunidade de cristãos é
um corpo, ou seja, uma realidade orgânica e unitária. Ao seu ver, essa unidade só é possível
por conta de 3 elementos de coesão: a crença na mesma fé, a esperança comum na salvação
eterna e unidade disciplinar (imposta por vezes pelo direito) (p.137).
Um exemplo disso foi a eloquente constituição apostólica com a qual o papa Bento
XV promulgou o primeiro Codex. Ali fica claro que, durante a Idade Média, a Igreja foi
autônoma, se constituindo como um ordenamento jurídico próprio e primário - capaz de
produzir normas que extraíam sua juridicidade de Cristo como legislador divino, e não
de um poder civil (p.138).
Uma interessante característica desse direito é que ele é instrumental. Ou seja, o
objetivo da Igreja ao pensar em um direito canônico não foi colocar o direito como um
fim em si mesmo. O objetivo do seu direito é ser um instrumento para a salvação (p.147).
Por isso, quando analisamos o direito canônico da Idade Média, podemos ficar confusos
com a quantidade de soluções que podem ser dados para um mesmo fato (p.147). Por
que isso acontece?
→ Primeiro que a igreja não concebe uma regra igual para todos. A igualdade jurídica
que tanto falamos hoje era uma aberração para aquela sociedade - as pessoas deviam
eram desiguais e deveriam ser tratadas dessa maneira nos tribunais canônicos
(p.148-149);
→ O direito canônico era um direito plástico. Além de levar em consideração as
desigualdades entre seus servos, também se adaptava à situação e ao tempo em que era
aplicado. Se o direito divino era imutável (10 mandamentos), as regras acumuladas na
vida histórica da Igreja (direito humano pensado pelas autoridades eclesiásticas) para
fazê-las valer não o eram, podendo ser alteradas (p.151). Por isso, é comum na Idade
Média observar a aplicação severa de algumas normas pelos superiores eclesiásticos e, em
outros momentos, a tolerância de algumas violações para evitar prejuízos coletivos (p.152).