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Direito medieval: heranças jurídico-políticas para a construção da

modernidade

Reflexões sobre as principais fases da história do direito medieval, com o intuito


de vislumbrar heranças jurídico-políticas e desnaturalizar construções da modernidade.
Resumo: O artigo pretende apresentar as principais fases da história do direito
medieval, com o intuito de vislumbrar heranças jurídico-políticas e desnaturalizar
construções da modernidade. Para tanto, percorre-se a organização jurídica dos povos
germânicos; o direito canônico e as formações jurídicas eclesiásticas; o direito feudal; o
renascimento do direito romano e a formação das universidades e da cultura do ensino
jurídico; os significados do medievo para a construção da modernidade; e, por fim, as
conexões e genealogias da idade média na formação do direito penal moderno.
Palavras-chave: História do Direito Medieval. Direito Germânico. Direito
Canônico. Direito Feudal.

INTRODUÇÃO
Dentre as diferentes fases históricas da humanidade, aquela que talvez mais
dúvidas suscite é o período medieval. Falar em medievo remete-nos sempre a um período
de obscuridade, sendo tratado como “idade de trevas”. Não obstante, a era medieval pode
ser considerada imprescindível para compreendermos o significado da formação do
direito moderno, do Estado moderno, e de toda a organização social e política, a que
chamaremos modernidade, bem como seus desmembramentos posteriores na
contemporaneidade.
Todo esse período que passaremos a analisar é fruto da crise do Império Romano,
de um processo de perda de efetividade, que culminará com as conhecidas invasões
bárbaras. Os primórdios dos ordenamentos jurídicos europeus organizam-se sobre as
bases das sociedades romano-germânicas da alta Idade Média (WIEACKER, 1967).
A Idade Média é constituída por dois grandes períodos: a alta idade média, que se
estende dos séculos V a IX§, é marcada pelos direito romano e germânico, bem como
pela formação e desenvolvimento do direito canônico; e a baixa, dos séculos IX a XV,
pelo direito feudal e pelo renascimento do direito romano nas universidades. Podemos,
pois, vislumbrar esse momento histórico embasado na vigência de quatro grandes
ordenamentos jurídicos: um direito de povos germânicos; o direito oriundo da
organização eclesiástica, chamado de direito canônico; o direito feudal; e um processo de
sobrevivência e renascimento do direito romano.
Tendo em conta essa pequena introdução, organizaremos este texto em seis itens:
a organização jurídica dos povos germânicos; o direito canônico e as formações jurídicas
eclesiásticas; o direito feudal; o renascimento do direito romano e a formação das
universidades e da cultura do ensino jurídico; os significados do medievo para a
construção da modernidade; e, por fim, as conexões e genealogias da idade média na
formação do direito penal moderno.

A ORGANIZAÇÃO JURÍDICA DOS POVOS GERMÂNICOS


Fruto de um processo de descentralização política, a Europa medieval e a antiga
organização política romana tiveram seus territórios invadidos[1]por uma multiplicidade
de povos, a quem os romanos designaram bárbaros. Tais povos, mais conhecidos e melhor
designados por germânicos. “Eram povos ligados a terra, não tinham desenvolvido a
escrita, não tinham organizações territoriais ou políticas. Seu principal elemento de
organização social eram as famílias, baseadas na autoridade do pai”(CASTRO, 2003, p.
127, 128).
Quanto ao seu direito, devido à pequena centralização e uniformidade, tinham
formações jurídicas calcadas na oralidade e no costume, com cada tribo dispondo de uma
tradição própria, tal é a característica de direito consuetudinário. No entanto, tais povos
dominantes nos primeiros momentos do período medieval, mantiveram um princípio de
pessoalidade das leis, não impondo seu direito sobre os diferentes povos, que mantiveram
o estatuto de suas tribos de origem, o que também permitiu, como se verá mais adiante,
uma sobrevivência do direito romano. (CASTRO 2003).
Segundo Wieacker, houve, pelo contrário, uma absorção de valores e instituições
romanas por parte dos germânicos:
A atitude espiritual desses povos (germânicos) não conhecia qualquer repulsa
intima pelas respeitáveis e brilhantes tradições, que eles tinham encontrado; adotaram a
escrita latina, a civilização material, a língua romana, os restos da cultura tardo-clássica
e, finalmente a crença católica em vez da ariana. Quanto ao direito, conservaram o seu
durante mais tempo, na medida em que ele ainda era determinado pelo modo de vida das
comunidades pessoais e pelo seu próprio ethos e não pelo resultado de novas relações
econômicas ou de poder; para isto contribui também a concepção germânica de que o
direito não é um comando arbitrário, mas uma tradição de vida inatacável (WIEACKER
1967, p. 27).
Gilissen (2003) aponta a diferença entre o nível de evolução do direito romano e
dos povos germânicos como fator para a não imposição destes sobre aquele. Além disso,
segundo o autor, os germânicos acabaram se beneficiando das concepções de direito
público romanas, que reforçavam sua autoridade.
Tal é, pois, a contribuição e a influência desses povos para o medievo e sua
construção jurídica.

O DIREITO CANÔNICO E AS FORMAÇÕES JURÍDICAS


ECLESIÁSTICAS
Podemos salientar a importância da Igreja ocidental na Idade Média, tendo
assumido muitas das tarefas públicas, sociais e morais do antigo império romano. “A
Igreja era a força espiritual, de longe, mais importante; era a mais coerente e mais extensa
organização social da Idade Média; a sua ordem jurídica interna era a mais poderosa da
Idade Média”(Wieacker, 1967, p. 67).
Foi ela a responsável, desde o início, pela fixação de um conceito de direito,
calcado na ética social e, sobretudo, na ética cristã. Tal importância fica clara citando-se
Wieacker (1967, p. 17):
A cristandade fixou desde o início o conceito do direito. Na medida em que a fonte
de todo o direito não escrito – que arrancava da consciência vital espontânea – continuou
a ser a ética social, e na medida em que toda a ética europeia continuou a ser, até bem
tarde na época moderna, a ética cristã, a doutrina cristã influenciou o pensamento jurídico,
mesmo quando legislador e juristas estavam pouco conscientes dessa relação. Através do
cristianismo, todo o direito positivo entrou numa relação ancilar com os valores
sobrenaturais, perante os quais ele tinha sempre que se legitimar.
Nessa fundamentação ética não podemos nos esquecer da influência grega,
principalmente platônica, de grande influência à teologia, nesse momento histórico.
Sendo assim, vemos uma grande primazia do direito canônico na Europa, principalmente
por seu caráter unitário, sua predominância escrita, uma grande supremacia na regulação
do direito privado.
O direito canônico[2] teve uma importância crucial na formação e manutenção
das instituições e da cultura jurídica ocidental. Toda a reorganização da vida jurídica
europeia, com o desenvolvimento das cortes, dos tribunais, e das jurisdições tem
influência do direito da Igreja.
Segundo Gilissen (2003), vários fatores ressaltam a importância desse direito para
o medievo: o caráter ecumênico da Igreja, que se coloca como a única religião verdadeira
para a universalidade dos homens; a dominação sobre certos ramos do direito privado,
que foram regidos exclusivamente pelo direito canônico, durante vários séculos, mesmo
para os laicos; o fato de ser o único direito escrito, durante a maior parte da idade média,
tendo sido objeto de trabalhos doutrinais, muito mais cedo que o direito laico,
constituindo-se numa ciência do direito canônico, exercendo influência na formulação e
desenvolvimento deste direito laico.
Segundo este autor, o direito canônico é um direito religioso, retirando suas regras
de princípios divinos, revelados nos livros sagrados, o Antigo e o Novo Testamento. É o
direito de todos os que adotam a religião cristã, onde quer que se encontrem (Gilissen,
2003).
Além disso, a formação de uma classe de juristas, oriunda de dentro da
organização eclesiástica foi fundamental para o desenvolvimento de uma camada de
profissionais, que disputará mais tarde com os não clérigos, o poder de dizer o direito.
Dentre os maiores estudiosos do direito dentro da organização da Igreja encontramos os
canonistas, juristas que trabalhavam em um processo de interpretação de textos do
passado com autoridade, identificando direito e teologia. Todas as antinomias são
solucionadas a partir de quatro critérios: a) ratione significationis; b) ratione temporis (lei
posterior revoga lei anterior); c) ratione loci (lei local revogalei geral); d)
rationidispensationis (lei especial revoga lei geral). (Influência na tradição jurídica
ocidental) (Lopes, 2003).
O Corpus Iuris Canonici, principal legislação do direito canônico, permaneceu em
vigor até 1917, tendo sido composto de cinco partes, redigidas dos séculos XII ao XV:
Decreto de Graciano, Decretas de Gregório IX, Livro Sexto, as Clementinae,
Extravagantes de João XXII, Extravagantes Comuns (Gilissen, 203, p. 147).
Wieacker (1967, p. 69, 70, 72) explicita o funcionamento desse direito:
Ao contrário do que acontece com o direito profano, a ordem jurídica da Igreja
baseava-se, já na Alta Idade Média, numa tradição salvaguardada pelo uso da escrita, da
redação documental e pela escola. As bases desta tradição eram as fontes escritas e os
atos de aplicação do direito da Igreja desde o seu início: a Sagrada Escritura e os padres
da Igreja; as decisões dos concílios e dos sínodos; os cânones e as decretais dos papas;
por fim as leis imperiais e os capitulares relativos à igreja imperial franca.
Todo o direito baseado em cânones fez surgir, como mencionado, uma camada de
juristas que fez carreira por seu conhecimento e não mais pelas relações pessoais. Em
termos de características, percebemos uma uniformização, centralização de poder, e o
reconhecimento de um sistema de recursos.
No que se refere às regras processuais, podemos perceber um processo de
formalização e racionalização, fases processuais organizadas com clareza, investigações
e provas devendo conduzir a um convencimento do juiz, abolição das provas irracionais
(que serão mantidas e incentivadas no Tribunal da Inquisição), mas também um processo
de perda de celeridade, instaurando-se as práticas dilatórias e a formalização de atos e
prazos.
Além disso, o direito canônico estabelece regras de competência baseadas na
pessoa e na matéria, especialmente na época de seu apogeu, dos séculos X a XIV, de
acordo com Gilissen (2003): em razão da pessoa (ratione personae), temos: eclesiásticos,
tanto clérigos regulares como seculares (privilegium fori absoluto – os clérigos não
podiam renunciar a ele); cruzados (aqueles que tomaram acruz, que partem em cruzada:
privilegium crucis); membros das universidades (professores e estudantes); e os
miserabiles personae (viúvas e órfãos) quando pediam a proteção da Igreja. Já em razão
da matéria (ratione materiae), em questões penais: infrações contra a religião (heresia,
apostasia, simonia, sacrilégio, feitiçaria, etc); e infrações que atentassem contra regras
canônicas (adultério,usura), com competência concorrente da jurisdição laica.
Quanto à matéria civil: benefícios eclesiásticos; casamento e as matérias conexas:
esponsais, divórcio, separação, legitimidade dos filhos; testamentos; execução de
promessa feita sob juramento. Quanto às limitações hermenêuticas do direito e de sua
aplicação “era um mecanismo propriamente político de controle pelo alto dos poderes
absolutos de um monarca, mesmo que fosse o papa. Conjugava-se com um controle de
costumes, que limitava por baixo os mesmos poderes absolutos”(LOPES, 2003, p. 99).
Dentre as discussões sobre o direito medieval de origem eclesiástica, temos ainda
que salientar a Reforma Gregoriana e o significado político do Tribunal do Santo Ofício.
A Reforma Gregoriana, levada a cabo pelo Papa Gregório VII, teve como objetivo um
processo de autonomização e centralização da Igreja, a partir de um movimento
conhecido como Querela das Investiduras, que cerceou, nas mãos do pontífice, o processo
de nomeação de bispos, o que culminará com a organização de um poder político, que
será a origem do Estado Moderno: dominação burocrática, racional, legal e formal
(Weber, 1999).
A partir da reforma, inaugura-se o modelo que irá vigorar na Europa até o período
das reformas, no século XVI, da Igreja constituindo-se, em poder paralelo, ao Estado.
Segundo Gilissen (2003, p. 137):
O poder pontifical atinge o seu apogeu nos séculos XII e XIII. De acordo com a
concepção dos grandes papas da época (Gregório VII, Inocêncio III, Bonifácio VIII), os
reis detêm o seu poder da Igreja que os sagra e os pode excomungar, no entanto, não se
trata de uma teocracia, pois o papa não pode exercer o poder temporal, salvo nos seus
próprios Estados.
Enfim, a finalidade de Gregório VII com a Reforma era o “estabelecimento de um
poder disciplinar em suas mãos, um controle central de uma população dispersa, o
estabelecimento de uma identidade corporativa do clero com um certo corpo de leis
disciplinares, dando em uma consciência de classe”. Afirmação da superioridade da lei
sobre os costumes (Lopes 2003, p. 90).
Por fim, faz-se necessário compreender o significado da Inquisição e das Cruzadas
como dois grandes movimentos interligados e oriundos da organização eclesiástica
romana. O Tribunal do Santo Ofício ou Tribunal da Inquisição surgiu como um tribunal
especial para julgar e condenar os hereges.
No Tribunal do Santo Ofício o direito de acusar pertencia somente à parte lesada,
com uma diferenciação na aplicação das penas entre nobres e plebeus. A origem do
processo baseava-se em acusações secretas, os atos e provas eram mantidos em segredo
e a prova testemunhal era a mais utilizada. Além disso, a prova de confissão era a mais
importante, sendo na maioria das vezes alcançada mediante tortura. Os juízes eram livres
para interpretar as leis, além de poderem utilizar penas variadas (CASTRO, 2003).
O processo era instaurado de ofício, a mando do inquisidor, perdendo o caráter de
contraditório, com a utilização da tortura como ato formal, sempre que houvesse indícios.
O processo inquisitorial instituindo o inquérito como modelo judicial e jurídico, faz com
que esse instrumento se baseie nesse novo personagem: o inquisidor, um acusador oficial
que irá representar o Estado de forma ordenada e racional, e que será objeto de estudos
por Michel Foucault (1996, 1999, 2002, 2003), constituindo num aparte desse texto, como
se verá mais adiante (Lopes,2003).
Apesar de o Tribunal do Santo Ofício ser de exceção, voltado especificamente aos
delitos de heresia, acabou tornando-se em um instrumento de centralização monárquica
da Igreja e, posteriormente, dos Estados Nacionais. Segundo Le Goff (1994, p. 18), a
produção cultural e literária da época sobre o que se chamava “sociedade do Diabo[3]”
acaba por fazer surgir uma série de manuais, instaurando uma sociedade de estados:
A coroação deste reconhecimento dos “estados” é a sua entronização na confissão
e na penitencia. Os manuais de confissão que no século XIII definem os penados e os
casos de consciência acabam por catalogar os pecados por classes sociais. A cada estado
seus vícios e seus pecados. A vida moral e espiritual socializou-se segundo a sociedade
dos estados.
Também as Cruzadas tiveram uma atuação fundamental para uma expansão do
Ocidente, mas não somente uma conquista econômica, haja vista que a resistência e a luta
armadas contra os infiéis pesaram profundamente sobre a vida dos cristãos do Ocidente,
desde o século IX e por vezes mesmo mais cedo. O direito canônico e a supremacia do
poder da Igreja perdem força a partir do século XVI, com o surgimento das Reformas e
de um processo de laicização do Estado e do direito que vai ocorrer em praticamente toda
a Europa (Gilissen, 2003).
O DIREITO FEUDAL
Por volta do século X, a Europa passa por um processo de transformação da
organização política e social que culminará com o surgimento do feudalismo.
O feudalismo é caracterizado por um conjunto de instituições das quais as
principais são a vassalagem e o feudo. Nas relações feudo-vassálicas, a vassalagem é o
elemento pessoal: o vassalo é um homem livre comprometido para com o seu senhor por
um contrato solene pelo qual se submete ao seu poder e se obriga a ser-lhe fiel e a dar-lhe
ajuda e conselho, enquanto o senhor lhe deve proteção e manutenção. A ajuda é
geralmente militar, isto é, o serviço a cavalo, porque a principal razão de ser do contrato
vassálico para o senhor é poder duma força armada composta por cavaleiros (GILISSEN,
2003, p. 189).
Toda a organização jurídica fica restrita às relações feudo-vassálicas, uma vez que
toda a organização estatal e legislativa desapareceu. O costume é a única fonte do direito
laico, tendo desaparecido o direito romano (exceto na Itália) e o canônico reger apenas as
relações eclesiásticas e alguns ramos civis (supra).
Tendo em vista o também desaparecimento do princípio da pessoalidade das leis,
este direito consuetudinário terá base territorial, ou seja, cada coletividade vive segundo
suas tradições jurídicas próprias.
Os séculos X e XI foram séculos sem escritos jurídicos: nem leis, nem livros de
direito, nem sequer atos reduzidos a escrito. Os contratos tão numerosos que estão na base
dos laços de dependência de homem para homem (vassalagem, servidão) e dos direitos
sobre a terra (feudos, foros, etc.) raramente eram reduzidos a escrito; quando muito,
algumas instituições eclesiásticas (sobretudo capítulos e abadias) mandaram redigir os
atos (sobretudo doações) que lhe interessavam. Enfim, a maior parte das relações entre
os homens são regidas pelo costume que fixa as obrigações duns e doutros (GILISSEN,
2003).

O RENASCIMENTO DO DIREITO ROMANO E A FORMAÇÃO DAS


UNIVERSIDADES E DA CULTURA DO ENSINO JURÍDICO
Apesar de as concepções jurídicas medievais terem insistido na separação entre as
ordens canônica e temporal, distinguindo canonistas e legistas, a quem analisaremos mais
adiante, houve um processo de aproximação entre elas, que acabou por fortalecer o
renascimento do direito romano.
O direito romano, apesar de ter continuado a ser aplicado aos povos de origem
romana, acabou por suplantar o direito germânico, nas penínsulas ibérica e itálica, tendo
um renascimento com a formação das universidades medievais e o desenvolvimento dos
Estados Nacionais.
Não obstante esse processo de manutenção da tradição jurídica romana, que não
se dá por completo, houve, concomitantemente, um processo de perda civilizacional
que será responsável por uma estabilização dos fundamentos da consciência jurídica
europeia. Como um processo dialético de incorporação e perda, a cultura jurídica romana
atingiu os germânicos da mesma forma que foi enterrada pelos romanos, podendo ser
redescoberta apenas quando houvesse maturidade para tanto (WIEACKER, 1967).
Sendo assim, podemos, com relação à história do ensino jurídico e sua
metodologia, distinguir dois tipos de tradições jurídicas: a primeira, sita no universo
eclesiástico, de clérigos com formação jurídica, já, de certa forma descrita anteriormente;
e, por outro lado, o desenvolvimento de universidades laicas, com preponderância para
Bolonha, e o desenvolvimento das principais escolas jurídicas de interpretação do direito
no medievo, com o surgimento dos glosadores, conciliadores e humanistas.
O contexto dos juristas na Idade Média, de estudo ao texto romano, dava-se a
partir do trivium, aplicando-se a dialética, a tópica e a retórica ao texto de Justiniano, o
Corpus Iuris Civilis. Consideravam, pois, o direito romano como uma totalidade, uma
razão objetiva e universal (Lopes, 2003).
As universidades têm início na Idade Média, a partir da formação das artes liberais
e das artes mecânicas. As primeiras formavam em direito, teologia e medicina, ficando
sob a guarda da Igreja até por volta do século XI. O estudo do direito era dividido em
cânones e civil. O direito romano era visto como um direito comum a todos, sendo o
estudo baseado na busca de objetividade e a ciência considerada um saber aberto.
Por volta do século XII começa a haver, principalmente na Itália, um
ressurgimento do direito romano, que irá, nos séculos seguintes, estar relacionado ao
nascimento de todo um movimento de renascimento do pensamento filosófico, da
literatura e do desenvolvimento comercial de certas cidades do norte.
Dentre as principais universidades, Bolonha se destaca, também compartilhando
do referencial filosófico-teórico grego. Bolonha tem seu desenvolvimento a partir do
século XI, ligada a um progresso comercial que impulsiona o desenvolvimento de uma
cultura literária profana. Nesse processo.
Segundo Gilissen (2003), podem-se elencar algumas transformações nos sistemas
jurídicos dos séculos XII a XIII, que irão ser importantes para a formação de nossos
sistemas jurídicos na atualidade, principalmente os chamados direitos de família romano-
germânica: passasse de um sistema irracional para um racional, estabelecendo-se a
verdade por meios racionais de prova, com o arbítrio dando lugar à justiça; desaparece a
multiplicidade do regime feudal, formando-se os embriões dos Estados modernos; o
desenvolvimento econômico faz surgir um direito urbano, caracterizado pela igualdade
jurídica; além de um processo de emergência da lei frente ao costume.
Dentre os vários métodos de estudo do direito romano neste período, destacam-se
algumas escolas como a dos glosadores, a Escola de Orléans, os pós-glosadores ou
comentadores, e os humanistas. A Escola de glosadores teve origem em Bolonha,
vigorando entre os séculos XII e XIII. Os glosadores, juristas que trabalham a partir da
interpretação de textos romanos, consideram-nos como instrumento de razão, verdade e
autoridade (LOPES, 2003).
Apesar de uma técnica de interpretação de textos, os glosadores passaram a
interpretá-los em conjunto, compreendendo o sentido global do texto e resolvendo as
possíveis contradições entre eles. A importância dos glosadores para a resolução dos
conflitos e para a formação da jurisprudência europeia culminou com a formação de uma
cultura legalista.
Por fim, cabe referir à importância dos conciliadores e humanistas. Aqueles,
também conhecidos como pós-glosadores ou comentadores, assim como os glosadores,
prosseguiram o trabalho de interpretação sobre o Corpus Iuris Civilis, no entanto a partir
do uso de figuras lógicas mais complicadas. A Escola dos pós-glosadores surgiu na Itália,
também como uma reação aos glosadores, implicando em uma evolução ao seu método,
vigorando nos séculos XIV e XV.
Essas duas grandes escolas, a dos glosadores e a dos comentadores, constituíram
a segunda camada de juristas ao lado dos clérigos. Os humanistas (séculos XVI e XVII)
realizaram um segundo ressurgimento do direito romano, a partir de um estudo puramente
científico dos textos, com um método visando ao estabelecimento do sentido original e
verdadeiro das regras jurídicas romanas (GILISSEN, 2003).

OS SIGNIFICADOS DO MEDIEVO PARA A CONSTRUÇÃO DA


MODERNIDADE
Segundo Kritsch (2004), as bases para a constituição do Estado moderno,
principalmente a noção de soberania, foram construídas a partir dos conflitos políticos
e jurídicos, que deram origem aos alicerces legais e ideológicos do poder do Estado. Tais
conflitos são políticos porque resultaram de uma redistribuição de poder que acabou
culminando com a entrada de novos atores na cena política, bem como jurídico, porque
tais problemas sempre foram explicitados no período como questões de jurisdição e
legitimidade.
Nesse sentido, podemos ver na Igreja a instituição preliminar de centralização de
poder. Além disso, a estabilização europeia, depois do período das invasões, também é
apontada como uma das matrizes para o surgimento da modernidade:
No entanto, o principal elemento ideológico que culminará com a formação do
Estado moderno é o conceito de soberania, que, de acordo com Kritsch (2004, p. 5)
“começou a desenvolver-se a partir dos intermináveis conflitos de jurisdição entre papas,
reis e imperadores que dominaram os séculos finais do medievo”.
Sobre o desenvolvimento da soberania sustenta ter também origem na recuperação
dos textos jurídicos romanos, que acaba por limitar o poder sobre dado território: Essa
noção nascente de soberania, por sua vez, é constituída de elementos formadores não
menos relevantes, que terminariam por fazer parte dos alicerces legais e ideológicos do
moderno Estado.
Sendo assim, vemos que determinadas construções, tão características da
modernidade, acabam tendo seu cerne no medievo, sendo, portanto, necessário o
conhecimento desse período histórico para tal compreensão. Aliás, gostaria de terminar
salientando que não se pode fazer um estudo histórico do direito sem conectá-lo com as
demais compreensões sociológicas, políticas e filosóficas que embasam cada momento
histórico.
Sendo assim, não se pode deixar de mencionar, em finais da idade média, o
movimento teórico-intelectual que implicará numa ruptura com tal período, fruto de uma
série de teorias que terão uma importância crucial para o surgimento da modernidade.
São, pois, dessa época, com as devidas diferenciações de datas, as produções de ciência
política de Maquiavel (século XV); o contratualismo de Hobbes, Locke e Rousseau
(séculos XVII e XVIII); a escola de direito natural, que, desde São Tomás, tem
fundamentado todo o direito eclesiástico e que com Grotius (século XVII) irá ter um
embasamento racional; bem como as teorias dos reformadores penais, como Beccaria,
Bentham, Brissot (século XVIII).
Especificamente no que se refere ao direito penal moderno, é importante ter em
conta o quanto a história medieval é importante para a compreensão da sociedade
disciplinar e do surgimento da prisão. Michel Foucault (1996, 1999, 2002, 2003), a partir
de análises históricas de metodologia genealógica, demonstrará como se deu o surgimento
da prisão como instrumento primordial de controle social da modernidade, descrevendo
suas origens históricas e suas implicações na modernidade e na atualidade.
Fruto de uma prática social não oficial, a prisão acaba tornando-se numa grande
bandeira para o tratamento de criminosos, a partir de uma atuação dos chamados saberes
modernos – formações discursivas que compõem aquilo que Foucault entende como
ciências humanas que acabam por justificar o uso e a manutenção da prisão, calcada no
tripé disciplina, vigilância e correção.
A contribuição de Michel Foucault, para estudantes de história do direito, é um
tanto oblíqua, mas seguramente imprescindível para uma visão ampla e crítica de nossas
instituições e práticas jurídicas, contribuindo para desmistificar determinadas crenças e
valores e desnaturalizar o uso e a permanência de determinadas instituições.
Como teórico crítico da modernidade, Foucault buscará nas idades Antiga e
Medieval origens e explicações para nossas construções absolutizadas, sempre no sentido
de uma desnaturalização, e em nossa opinião, é aí que reside a necessidade de um
conhecimento histórico que transcenda a mera descrição e aponte para uma melhor
compreensão crítica de nossa época.
CONCLUSÃO
Buscou-se, neste artigo, pesquisar as aproximações e negações entreconcepções
gestadas sob a égide da sociedade medieval e as implicações destas na formação do
pensamento jurídico-político moderno.
Estudou-se o Direito na Idade Medieval. Apesar de ser considerado pela maioria
da doutrina um período de pouca importância para o Direito, o artigo demonstrou o
contrário. Tendo por base o Direito Germânico, Feudal e Canônico, o Direito Medieval
contribuiu muito para o atual Direito, tendo aparecido vários institutos nesse período que
são aplicados hoje, inclusive no Direito Processual.
Aborda, ainda, o ressurgimento do Direito Romano como uma necessidade da
burguesia e dos senhores feudais. Por fim, analisa a importância das universidades e suas
diversas escolas com suas teorias e contribuições para a humanidade.

REFERÊNCIAS
CASTRO, Flávia Lages de. História do Direito: geral e Brasil. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2003.
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas, Rio de Janeiro: Nau, 1999.
__________. Ditos e escritos IV. Estratégia, poder-saber. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2003.
__________. Vigiar e Punir. História da violência nas prisões, 14ª ed.. Petrópolis: Vozes,
1996.
__________. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
2003.
KRITSCH, Raquel. Rumo ao Estado moderno: as raízes medievais de alguns de seus
elementosformadores. In: Revista de Sociologia e Política, n. 23. Curitiba: UFPR, nov.,
2004. Disponível em:www.periodicoscapes.gov.br. Acesso: 23/08/2015.

LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1984.


LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história. Lições Introdutórias. São Paulo:
Max Limonad, 2002.

WEBER, Max. Economia e sociedade. Brasília: UNB, 1999, 2 v.

WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. Lisboa: Fundação


CalousteGulbenkian, 1967.

NOTAS
[1] As migrações germânicas provocaram, nas províncias do Ocidente, encontros de
civilizações originais, frequentemente bem complexas. Desses choques nasceu nossa
civilização medieval, civilização de síntese, onde é difícil distinguir as tradições romanas
e as múltiplas contribuições bárbaras. Desde mais de um século, os historiadores, segundo
as técnicas de pesquisa, os progressos das ciências auxiliares ou mesmo as teses e
correntes de opinião, deram maior ênfase a um outro mundo (Heers, 1991, p. 25).
[2]O direito canônico é o direito da comunidade religiosa dos cristãos, mais especialmente
o direito da Igreja católica. O termo cânon é empregado nos primeiros séculos da Igreja
para designar as decisões dos concílios (Gilissen, 2003, p. 133).
[3]Esta nova sociedade é a sociedade do Diabo. Daí a considerável voga que teve a partir
do século XII na literatura clerical o tema das “filhas do Diabo”, casadas com os vários
estados da sociedade. Por exemplo, numa filha de guarda de um manuscrito florentino do
século XIII podemos ler o seguinte: O diabo tem IX filhas, que casou: a simonia com os
clérigos seculares; a hipocrisia com os monges; a rapina com os cavaleiros; a profanação
com os camponeses; a simulação com os guardas; a fraude com os mercadores; a usura
com os burgueses; a pompa mundana com as matronas; e a luxúria, que ele não quis casar
e que a todos oferece como amante comum (LE GOFF, 1984, p. 18)

GOMES, Julia Araújo; PONTES, Sarah Moraes et al. Direito medieval: heranças jurídico-políticas para a construção
da modernidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5318, 22 jan. 2018. Disponível
em: https://jus.com.br/artigos/62006.

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