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* Serviço de Psiquiatria do Hospital de Santa Maria, CHLN, EPE; Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa mpaulino@netcabo.pt.
Os indutores das emoções de fundo são, habi- A função biológica das emoções é dupla. A pri-
tualmente, internos. Os processos de regulação meira função consiste na produção de uma
da vida, tal como os processos de conflito men- reacção específica para a situação indutora.
tal, manifesto ou oculto, podem causar emo- Por exemplo, num animal a reacção pode
ções de fundo, uma vez que conduzem à satis- consistir na fuga, na imobilização, no ataque
fação ou à inibição de motivações. As emoções de um inimigo, ou na adopção de um com-
de fundo podem ser causadas, por exemplo, portamento amigável. Nos seres humanos as
por um esforço físico prolongado (desde o es- reacções são basicamente as mesmas, mas
tar “nas alturas”, sensação de bem estar que temperadas pela razão e pela sabedoria. A se-
se segue ao jogging, até ao estar “em baixo”, gunda função biológica da emoção é a regu-
sensação de mal estar na sequência de um lação do estado interno do organismo, de tal
trabalho físico desinteressante e monótono), modo que este possa estar preparado para essa
pelo remoer de uma decisão difícil de tomar, função específica3.
ou pela antecipação de um acontecimento As emoções são programas complexos, em
aprazível3. grande parte automatizados, de acções mo-
deladas pela evolução. As acções são comple-
AS CIÊNCIAS COGNITIVAS E AS NEURO- tadas por um programa cognitivo que inclui
CIÊNCIAS certos conceitos e modos de cognição, mas o
mundo das emoções é, sobretudo, um mundo
Nos últimos anos, tanto as ciências cognitivas de acções levado a cabo no nosso corpo, desde
como as neurociências acolheram finalmen- as expressões faciais e as posições do corpo até
te a emoção. Uma nova geração de cientistas às mudanças nas vísceras e no meio interno2.
transformou a emoção no seu tema preferido. A emoção é um processo profundamente inte-
Além disso, a suposta oposição entre emoção e grativo. As emoções ligam o corpo ao cérebro,
razão deixou de ser automática. A emoção faz trazendo continuidade aos estados da mente
parte integrante dos processos de raciocínio ao longo do tempo, e ligando as pessoas umas
e tomada de decisão, para o melhor e para o às outras no quadro das “conexões emocio-
pior. A redução selectiva da emoção é tão pre- nais” que criam a estrutura das nossas vidas
judicial para a racionalidade como a emoção sociais4.
excessiva. É provável que a emoção ajude a Pode-se considerar a emoção como um siste-
razão, sobretudo no que diz respeito aos as- ma de valores primário do cérebro, levando
suntos pessoais e sociais que envolvem risco a que certas activações sejam selectivamente
e conflito. O pano de que são feitas as nossas reforçadas. Uma experiência emocionalmente
mentes e os nossos comportamentos é tecido carregada pode mais facilmente ser recordada
não só com factos, mas com ciclos de emoções do que uma experiência rotineira4.
seguidas de sentimentos que, uma vez conhe- A compaixão pela dor física suscita reacções
cidos, geram novas emoções, numa polifonia mais rápidas do que a compaixão pelo sofri-
contínua3. mento mental. As reacções à dor física aumen-
O ENCONTRO
tam mais depressa mas também se dissipam
com maior rapidez. As reacções à dor mental As emoções ganharam estatuto e estão hoje
demoram mais a estabelecer-se, mas também bem integradas no pensamento científico e
levam mais tempo a dissipar-se2. na linguagem do quotidiano. Paradoxalmente
O aspecto mais importante da emoção é o sis- na entrevista clínica e na relação de ajuda as
tema de despertar-avaliar no qual o cérebro emoções, se bem que consideradas importan-
responde a um determinado estímulo com o tes, são deixadas num segundo plano, talvez
sinal de “é importante, tomar nota, prestar pela dificuldade de as objectivar e operaciona-
atenção!”. A emoção dá valor a uma represen- lizar.
tação despertando os mecanismos da atenção As emoções primárias e sociais utilizam um
e fazendo a focagem no estímulo4. repertório diferenciado de expressões faciais
O segundo estádio será a avaliação do signi- explícitas que facilmente as define3. Quando
ficado desse despertar emocional pela sua sentimos que uma pessoa está tensa, irritada,
tonalidade hedónica: “Isto é bom ou é mau? desanimada, entusiasmada, “em baixo”, ou
Aproximar ou evitar”? A emoção dirige o fluxo bem-humorada, sem que uma única palavra
de energia – activação de circuitos específicos tenha sido dita para traduzir quaisquer destes
do cérebro – na medida em que o sistema des- possíveis estados, estamos a detectar emoções
pertar-avaliar foca o processo cognitivo nos de fundo.
elementos do ambiente interno ou externo4. Conseguimos detectar emoções de fundo atra-
Um terceiro nível de processamento emocional vés de pormenores subtis como modificações
é a elaboração desta avaliação numa forma músculo-esqueléticas, por exemplo uma pos-
mais específica chamada emoção categórica, tura corporal particular, uma conformação
que inclui alegria, interesse, surpresa, medo, global do movimento do corpo, a velocidade
cólera, tristeza ou vergonha. Estas emoções e contorno dos movimentos, modificações mí-
categóricas têm distintas manifestações psi- nimas na quantidade e velocidade dos movi-
cofisiológicas e são encontradas nas diversas mentos oculares e no grau de contracção dos
culturas4. músculos faciais3.
Uma perspectiva complementar da emoção Há que distinguir entre o discurso emocional
examina a forma como as alterações no estado em geral e a detecção das emoções. Quando
do corpo são representadas no cérebro como estamos a fazer uma entrevista clínica se-
marcadores somáticos (Damásio). As respos- guindo o discurso verbal das ideias somos
tas do corpo a uma situação ou a uma esco- desviados pelo surgimento duma emoção no
lha a fazer, permitem ao cérebro saber como o entrevistado que nos obriga a seguir o dis-
indivíduo sente uma determinada experiência. curso emocional. Penso que estes desvios são
Tal marcador somático pode ser usado como fundamentais na tentativa de compreender
uma reacção visceral a uma experiência, for- aquela pessoa, como se o discurso emocio-
necendo input adicional ao processamento nal trouxesse proximidade em relação aquilo
cognitivo4. que é mais importante e mais verdadeiro na
vivência daquela pessoa. Estávamos a ouvir o Não sei se no momento actual temos dados
discurso racional, mais ou menos organiza- para transmitir na formação informação so-
do, e fomos alertados para valorizações emo- bre a descodificação de posturas, mímica gros-
cionais. O entrevistado estava a fazer um es- seira ou mímica fina.
forço de síntese para relatar o que se passava A minha formação foi muito influenciada pe-
consigo e foi traído por qualquer coisa, que los estudos de Paul Ekman sobre as emoções
pela sua importância ou carga emocional o humanas e a expressão das mesmas, princi-
inquietou. Se o entrevistador estiver atento a palmente a nível facial. Com a orientação de
estes sinais poderá aproximar-se mais da vi- Carlos Caldeira, no início da minha formação
vência da pessoa, da sua verdade. Não é uma em psicoterapia e psiquiatria, habituei-me nos
adivinhação do que se passa realmente com meus encontros com as pessoas que me procu-
o outro, mas sim uma pista que com cuidado ravam clinicamente a tentar fazer, no fim das
podemos devolver ao outro para que conti- entrevistas, o roteiro do que senti na outra pes-
nue na sua exploração interna. soa ao longo do encontro, o humor, os afectos
• linha do discurso das ideias e as emoções experimentados. O primeiro con-
• linha do discurso emocional tacto que me habituei a fazer na sala de espe-
Muitas vezes também, estando disponíveis, ra, num espaço mais neutro, por oposição ao
sem preocupações ou estados emocionais meu gabinete de consulta, era extremamente
que concorram com o nosso estar no “aqui rico neste tipo de vivências. Ainda sem saber
e agora” do encontro, apercebemo-nos de nada da outra pessoa, quase sem discurso ver-
emoções, ou nos mais sensíveis de sensações bal, ou com um discurso social formal de boa
viscerais, em nós próprios que nos alertam educação, era possível de uma forma clara
para uma discrepância ou incongruência compreender emoções grosseiras e por vezes
que surgiu na relação, provavelmente, entre emoções mais finas. Claro que era necessário
os canais de comunicação que estávamos a estar muito atento a filtros do meu próprio
usar, compreensão por palavras, compreen- estado de espírito, das evocações que aquela
são por linguagem não verbal ou compreen- pessoa fazia em mim ou do próprio ambiente
são empática. São situações muito delicadas da sala de espera.
na distinção entre o que é de um e o que é Entusiasmado com estas experiências passei
do outro. Quando temos um razoável grau a fazer este tipo de balanços com algumas
de certeza de que a vivência não tem a ver turmas de alunos que se iniciavam na entre-
connosco, podemos devolver ao outro, com vista clínica. Dinamizei há muitos anos um
maior cuidado ainda, esta vivência, permi- grupo com internos em que entrevistámos,
tindo-lhe, caso lhe faça sentido, integrar esta ao longo de um ano lectivo, pessoas que es-
nossa reacção. tavam internadas no serviço. Pedíamos a sua
• compreensão verbal colaboração para uma entrevista sem finali-
• compreensão não verbal dade diagnóstica ou terapêutica. Procuráva-
• compreensão empática mos ficar a conhecer aquela pessoa na sua
forma de funcionar em geral, ter uma visão uma emoção, um raciocínio eram aceites
descritiva da sua personalidade. Depois da com a mesma atenção, cuidado e respeito
pessoa sair, fazíamos a roda dos presentes, (ver Fig. 3).
cada um descrevendo a primeira impressão,
o roteiro dos estados emocionais observados/
sentidos no entrevistado e também o roteiro
dos estados emocionais do próprio. Foi extre-
mamente interessante perceber a semelhan-
ça das descrições e a importância dos filtros
pessoais quando havia diferenças.
Quando converso com esses colegas sobre a
experiência, hoje todos psiquiatras seniores,
recordamo-la como uma experiência marcan-
te nas nossas formações. Na época a pressão do
tempo não era tão sentida. Mas é preciso tem-
po para formar clínicos ou psicoterapeutas
(ver Fig. 2). Figura 3. Compreensão empática.