grande crise econômica de 1929. Brecht, Bertolt. A Santa Joana dos São protagonistas dela o “Rei Matadouros. Tradução e apresen- dos Frigoríficos”, Pedro Pau- tação de Roberto Schwarz. São lo Bocarra (Pierpont Mauler na Paulo: Cosac Naify, 2001 (1.ª versão original em alemão), seu reimpressão 2009), 218 p. corretor Slift, outros industriais do setor de carne em conserva, trabalhadores, criadores de gado, entre outras personagens repre- Nos últimos tempos, a cidade sentativas desse quadro social; de Chicago tem ganhado nova e, principalmente, Joana Dark, a fama por ter sido o lugar da “Santa Joana dos Matadouros”, a formação política do fenômeno nova Joana D’Arc. Ela sucumbe Barack Obama, além de figurar depois de um progressivo e radi- como uma das cidades com mais cal processo de conscientização, alto padrão de vida do mundo. passando do ativismo religioso Mas, sobretudo, é preciso con- e filoburguês junto às “Boinas siderar a grave crise em que se Pretas”, espécie de Exército de encontra o capitalismo mundial, Salvação, ao laicismo desespe- num caminho de não retorno. rado ao lado dos operários desa- Esses elementos, aparentemente propriados do direito ao trabalho díspares e bizarros, justificam a e de uma consciência coletiva. reimpressão, que acaba de sair Tal processo pode sintetizar-se pela Cosac Naify, de uma peça na expressão iterativa inicial, histórica do século XX: A Santa “Eu quero saber”, e na polêmi- Joana dos Matadouros (Die Hei- ca advertência final: “Por isto lige Johanna der Schlachthöfe), se alguém aqui embaixo diz que do dramaturgo alemão Bertolt Deus existe/Embora não esteja Brecht (1898-1956), em primo- à vista/E que invisível é que ele rosas tradução e apresentação de ajuda/ Deviam bater na calçada a Roberto Schwarz. cabeça desse alguém/ Até matar” A peça brechtiana, escrita (p. 188). Contudo, como citado entre 1929 e 1931, tem como no panorama crítico que comple- pano de fundo o meio operário ta a edição da Cosac Naify, com e industrial de uma Chicago na seleção de textos por parte de 190 Resenhas de Traduções
Roberto Schwarz e a tradução de Roberto Schwarz na introdução:
Samuel Titan Jr. e Jorge de Al- “A linguagem, agressivamente meida, Brecht explicaria: “Então artificial e heterogênea, força a se verá que ela de forma alguma promiscuidade de estilos verbais fala sobre Deus, mas sim sobre o com repugnância recíproca. Ela é que se fala de Deus (...). Ela fala calcada, entre outros modelos, na justamente daqueles discursos se- realidade sangrenta e comercial gundo os quais Deus não precisa dos matadouros; em momentos ter incidência no âmbito social. escolhidamente sublimes da líri- (...) A fé aqui recomendada é ca alemã (a dicção helenizante de uma fé sem consequências no que Hölderlin e Goethe, o clima final toca o mundo que nos cerca, (...) do segundo Fausto, a interiorida- e recomendá-la é considerado por de exaltada do expressionismo); Joana um delito social” (p. 200). na terminologia da especulação As contradições e as impli- financeira; na sobriedade trágica cações das figuras representadas dos gregos; na retórica dos agi- nesse drama, que, logo, se torna tadores de porta de fábrica; na uma verdadeira parábola das pró- Bíblia de Lutero; na miséria ope- prias distopias do sistema capita- rária” (p. 9). lista e burguês, encontram uma A Santa Joana dos Matadou- forma eficaz de expressão na par- ros pode ser considerado um ticular técnica de escrita. A lín- drama didático que pré-anuncia gua usada, ora culta, ora trivial, o surgimento do célebre “tea- é modulada magistralmente por tro épico”. Nele, os elementos Brecht numa alternância e mistu- orais heterogêneos, do canto ao ra de registros paródicos oriundos verso, desempenham um papel da tradição alemã, que jogam com importante para compor uma es- o reverso das personagens e das trutura coral que escapa do psi- situações; acompanhado, dessa cologismo e da intriga do drama forma, a fuga deles de quaisquer burguês. Teatro didático, como tentativas de identificação espon- foi dito anteriormente, cujo pa- tânea pelo leitor/espectador (tra- thos é constantemente invalidado ço marcante da revolução teatral pelo tom surreal, grotesco e ca- brechtiana). O processo tradutó- ricatural. Teatro antinaturalista, rio, portanto, teve que enfren- de alguma forma, que oportu- tar esse grande desafio. Escreve namente Schwarz compara com Resenhas de Traduções 191
a tipologia artística e ideológica classe e a fabricação de salsichas
do pintor George Grosz. Expli- (...)” (p. 11). ca Brecht: “Essa dramaturgia Nesse emaranhado de vozes, exige do espectador uma atitude uma irônica celebração do capita- bem determinada. Ele deve ser lismo é declamada grotescamente capaz de acompanhar a sucessão por Slift: “O que Bocarra prome- de acontecimentos em cena com te ele cumpre./ Irmãos, que mo- a postura de quem está decidido mento! O mercado volta à vida/ a aprender, deve ser capaz de O pior já passou, a crise está compreender o modo como esses vencida./ Benditos os emprega- acontecimentos estabelecem múl- dores, benditos os empregados/ tiplas conexões no todo forma- Que à fabrica tornam felizes e do pelo desenrolar da peça” (p. congraçados./ A voz da razão 198). E, mais uma vez, cabe res- ouvida com maturidade/ Trouxe saltar como essa concepção dra- o bom senso à nossa sociedade./ mática necessita recorrer a uma Abram-se os portões, funcione o linguagem modular para atingir parque industrial/ É no trabalho no palco a sua plena potenciali- que se entendem proletariado e dade expressiva, potencialidade capital” (p. 80). que precisou ser mantida na tra- E os trabalhadores repetem o dução. Ainda segundo Roberto refrão aliterado: “Que, se não for Schwarz: “Por serem assuntos à força, não vai/ Nem vai se a “baixos”, a exploração de clas- força não for de vocês” (p. 142 se e a carne enlatada são tratadas e 144). Joana lhes replica lirica- em Santa Joana em linguagem mente: “Alto, parem de apren- nobre, emprestada de Hölderlin der!/ Estas lições são gélidas!/ e Goethe. O efeito de profanação Combatam, sim, a desordem e a é ostensivo e encarna, para ser confusão/ Mas não pela violên- breve, as objeções do materialis- cia./ Embora a tentação seja for- mo ao idealismo e dos explora- te!/ Mais uma noite destas e mais dos à celebração do homem “em uma destas/ Asfixias silenciosas e geral”. Entretanto, note-se que a mais/ Ninguém saberá se conter. outra face da moeda é tão ou mais É certo que já vocês/ Passaram importante: eis aí, expressas com muitas noites de muitos anos/ excelência, no verso mais arma- Juntos aprendendo/ Estas lições do da literatura alemã, a luta de frias e tremendas. É certo tam- 192 Resenhas de Traduções
bém que se somam/ A violência à xista e atento e culto conhecedor
violência no escuro/ E o fraco ao da matéria, como tradutor, para fraco e que os atritos sem solução/ dar conta do marxismo de Brecht, Também se somam” (p. 144). que se problematiza a qualquer Ainda, quando o sistema pro- instante: os conflitos sociais são dutivo entra em colapso, pois os abordados através de uma análise empregados sob risco de perder prismática que “mostra” antes de o emprego são também os con- “demonstrar”. Não obra-tese e sumidores que deveriam reger a sim de reflexão analítica sempre demanda de consumo no merca- estimulada a descortinar contra- do, o texto chega ao seu clímax dições e oportunismos, quer no nas palavras de Bocarra: “Esti- sistema capitalista-burguês, quer mado Mister Snyder, o senhor na ação humana. não percebeu/ O essencial da A Santa Joana dos Matadou- situação. Os muitos/ Que estão ros, em tradução de Schwarz, foi lá fora SÃO ELES OS NOSSOS publicada pela primeira vez pela COMPRADORES (...) Parece Paz e Terra, editora que também inverossímil, não é? (...) Muitos lançou o teatro completo de Bre- dirão que eles são vulgares e mes- cht em 12 volumes. O dramatur- mo supérfluos/ E às vezes incômo- go alemão é, sem dúvida um au- dos, mas o olhar experiente/ Não tor bastante traduzido no Brasil. se engana e sabe que o comprador Contudo, essa última reedição SÃO ELES!/ Analogamente, e chega no momento certo, pela muitos não entenderão, é necessá- conjuntura histórica e política rio/ Dispensar um terço dos tra- mundial e porque os textos dra- balhadores, pois/ O mercado de máticos de Brecht não deixam de trabalho também se abarrotou/ E constituir um admirável exemplo a mão-de-obra tem que estar sob de arte a serviço, mas não súcu- controle” (p. 170). ba, das ideias. Em suma, ninguém melhor Andrea Santurbano que Roberto Schwarz, crítico e UFSC teórico literário de formação mar-