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REFORMAS EDUCACIONAIS,
MOVIMENTOS SOCIAIS E NOVAS
POSSIBILIDADES NO CAMPO DE
PESQUISA EM HISTORIA
CRATO
EDSON SOARES MARTINS
2018
COORDENAÇÃO EDITORIAL: EDSON SOARES MARTINS
CONSELHO EDITORIAL: EDSON SOARES MARTINS (URCA), FRANCISCO DE FREITAS
LEITE (URCA), NEWTON DE CASTRO (URCA), RIDALVO FELIX DE ARAUJO
(UFMG)
FICHA CATALOGRÁFICA
231P. 14 CM
ISBN 978-85-920819-5-9
1. REFORMAS EDUCACIONAIS; 2. MOVIMENTO ESTUDANTIL; 3. PESQUISA EM
HISTÓRIA; I. SANTOS, HYAGO ÁTILLA SOUSA DOS. II. TÍTULO.
CDD: 981
CDU: 94 (81)
O Barra Pesada, segundo Morales (2014), foi exibido pela primeira vez na
década de 1990 pela TV Jangadeiro, na época vinculada a Rede Bandeirantes de
Televisão (BAND) e hoje afiliada ao Sistema Brasileiro de Televisão (SBT). É um
noticiário policial, que segue uma linha sensacionalista e de linguagem popular,
“responsável por cobrir as notícias relacionadas à segurança pública e aos bastidores
policiais no Estado do Ceará” (MORALES, 2014, p. 56). Esse tipo de telejornal
geralmente tem foco em “seres humanos simples, anônimos, que figuram uma posição
diferente das celebridades na sociedade brasileira” (idem. p. 41).
Meireles (2014) fala das características desse tipo de jornal. Eles montam
narrativas audiovisuais a partir da articulação de imagens, falas e sons. Eles têm um
apresentador num estúdio falando diretamente para uma câmera onde se cria uma
atmosfera com os seguintes elementos:
[...] falas, músicas, imagens; cenário moderno; uso de uma linguagem
coloquial, e, muitas vezes, chocante; apelo emocional; busca pelo
espetacular; longa duração das reportagens; repetição de cenas; presença de
um apresentador-animador; uso da teledramaturgia; enunciações baseadas
em múltiplos depoimentos e discursos emitidos por diferentes sujeitos
envolvidos nas histórias; tudo isso constitui a arquitetura primária de um
telejornal. (MEIRELES, 2014, p. 34)
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SISTEMA JANGADEIRO. "Lobisomem" ataca animais e leva pânico a agricultores. Disponível
em: < https://www.youtube.com/watch?v=DmuskYBEAfk >. Acesso em: 08 de jul. 2017.
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lenda versus fato. A análise que proponho nesse artigo é de 4 vídeos desse quadro, que
foram ao ar em 2012.
Iremos apreciar esses vídeos como fontes históricas e verificar, a partir deles,
como os moradores compreendem os acontecimentos, de quais formas os dão
significados e como o telejornal se apropria disso. Depois de exibidas as reportagens, os
vídeos foram disponibilizados no Youtube, o que me proporciona facilidade de acesso.
As narrativas: A primeira é sobre ataques a pequenos animais, no distrito de
Jaibaras, em Sobral-CE, distante aproximadamente 230km de Fortaleza-CE. Os
moradores desse lugar relatam que um ser metade homem e metade bicho rondava a
vizinhança, assustava as pessoas, atacou e comeu animais domésticos, atribuíram essas
ocorrências ao lobisomem. A segunda é dividida em três vídeos. Os fatos se desdobram
na cidade de Barbalha-CE, no Cariri cearense.
Nas construções das narrativas dessas reportagens, especificamente, é
interessante observar desde a vinheta do quadro que dá um tom assustador, o corte para
fala dos entrevistados, cenas de filmes de lobisomem, imagens dos animais atacados
[até mesmo dos ferimentos], do repórter em primeiro plano, o som ao fundo que cria um
clima de horror e outras cenas que contribuem para criar essa mesma atmosfera.
Nos sítios Lagoa, Mata dos Araçás e redondezas [em Barbalha], animais foram
vítimas de ataques e um bicho que não foi identificado pela população foi
responsabilizado. Diferente do primeiro vídeo, nenhum animal foi devorado. No texto
do rodapé do videotape, o programa, responsabiliza o chupa-cabra por tais investidas. A
narrativa se divide em duas partes e uma terceira matéria foi realizada porque os
episódios voltaram a acontecer.
Sobre a lenda do lobisomem, no Brasil, essas narrativas chegaram na memória
do colonizador e até hoje perduram. São tantas e em várias partes do mundo,
diferenciam-se pelas peculiaridades regionais e por ganhar novos personagens, espaços
e novas percepções. A ideia é de que o lobisomem, palavra de origem germânica, seja
um ser fantástico metade homem e metade lobo (DE SOUSA, 2013). “Você acredita em
lobisomem?”29 pergunta, Nonato Albuquerque, o apresentador do programa Barra
Pesada, antes de chamar a matéria na qual anunciava que os moradores tinham medo de
sair à noite por conta de ataques feitos a animais de pequeno porte por um ser metade
homem e metade cachorro.
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SISTEMA JANGADEIRO. "Lobisomem" ataca animais e leva pânico a agricultores. Disponível
em: < https://www.youtube.com/watch?v=DmuskYBEAfk >. Acesso em: 08 de jul. 2017.
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Algumas pessoas tiveram contato com tais avejões, viram, encontram-se ou seus
bichos foram vitimados, segundo os moradores procurados pela reportagem. A equipe
jornalística comenta que alguns desses moradores não quiseram comentar os
acontecimentos. Alguns dos narradores não viram, eles reproduzem o que outras
pessoas viram. Para dar credibilidade e legitimar as suas falas citam os nomes e até
parentescos dando um tom de proximidade e intimidade com os fatos. Maria das
Graças, dona de casa, uma das colaboradoras, conta:
[...] várias pessoas viram, inclusive a primeira pessoa que viu foi
Cleide, minha vizinha. E com bem uns oito dias a mais quem viu foi
meu filho. [...] Essa semana também, a Simone, é uma senhora, né.
Não é uma senhora que fala mentirinha, é uma senhora que fala a
verdade, diz que viu e não entende o que era aqui. Viu e disse que era
a coisa mais feia do mundo.30
30
Idem.
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SISTEMA JANGADEIRO. Mistério: animais vêm sendo atacados por bicho estranho 2. Disponível
em: < https://www.youtube.com/watch?v=RyfX_TdKsRQ>. Acesso em: 08 de jul. 2017.
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SISTEMA JANGADEIRO. "Lobisomem" ataca animais e leva pânico a agricultores. Disponível
em: < https://www.youtube.com/watch?v=DmuskYBEAfk >. Acesso em: 08 de jul. 2017.
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metade gente e metade bicho”33. Nos casos apresentados não é possível identificar a
origem da besta e como teve seu destino selado ou de onde tenha aparecido o
alienígena.
Especialista deram pareceres dos casos. No caso de Sobral, a equipe procurou
um ufólogo que disse que não se tratava de algo sobrenatural, “cabuloso”, como
chamou, e sim de uma criatura extraterrestre, mas não a especificou. Dos de Barbalha,
foram até a secretaria de saúde desse município. Entrevistaram um veterinário que disse
que achava que se tratava de um animal doméstico, como um cachorro faminto, e não
de um animal silvestre. Outro funcionário advertiu para que a população não comesse a
carne dos animais abatidos.
Em Sobral, os ataques foram atribuídos pelos jornalistas ao lobisomem. O título
da matéria no Youtube já denuncia: "Lobisomem" ataca animais e leva pânico a
agricultores. Lá, alguns animais foram devorados. Em Barbalha, atribuíram ao chupa-
cabra, uma criatura extraterrestre. Os animais foram atacados nas partes do pescoço e
entre a barriga e as patas, mas não devorados. A partir dos depoimentos dos
colaboradores deram significado.
Podemos notar o uso de representações que são conflitantes. De acordo com
grupos e interesses dão significados aos acontecimentos. O telejornal fala em
assombrações, o ufólogo diz que é coisa de outro mundo, a população ora acredita
nisso, ora não e os funcionários municipais cogitam que os ataques vieram de outros
animais. Temos a representação como ferramenta teórica para analisar nosso objeto.
Através da aplicação dessa noção podemos notar que as reportagens do quadro Mistério
dão representações que torna sensível a presença dos seres em questão, a partir dos
relatos, na vida social dos indivíduos.
[...] a representação como dando a ver uma coisa ausente, o que supõe
uma distinção radical entre aquilo que representa e aquilo que é
representado; por outro, a representação como exibição de uma
presença, como apresentação pública de algo ou de alguém. No
primeiro sentido, a representação é instrumento de um conhecimento
mediato, que faz ver um objeto ausente através da sua substituição por
uma “imagem” capaz de reconstitui-lo em memória e de figurá-lo tal
como ele é. (CHARTIER, 1990, p. 20)
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SISTEMA JANGADEIRO. Mistério: animais vêm sendo atacados por bicho estranho 2. Disponível
em: < https://www.youtube.com/watch?v=RyfX_TdKsRQ>. Acesso em: 08 de jul. 2017.
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pessoa fica com medo. Quem não tem medo de coisa ruim, né?”34. Em Medeiros
(2006), quando compilou informações sobre a lenda dessa assombração, diz: “O
lobisomem prefere atacar crianças que ainda não foram batizadas” (MEDEIROS, 2006,
p. 53). Essas lendas, com o tempo e resignações, como instrumento moralizador social a
partir de preceitos da fé cristã.
Após a metamorfose, o bicho sai à procura de alimento, em busca de carne
humana, de preferência a de pagãos, e outros bichos, fazendo arruaça e assustando o
povo da vizinhança. Segundo Priore, “no Brasil permaneceu a justificativa do castigo
por ligações sexuais incestuosas, consistindo sua sina em chupar sangue de criança de
peito e de animaizinhos novos” (2010, p. 107). Existem patologias que se confundem o
folclore, a licantropia clínica, trata-se de um distúrbio mental onde o portador acredita
que muda sua fisionomia para de um animal (DE SOUSA, 2013).
Montando um breve levantamento historiográfico, no período da Inquisição nos
séculos XVI e XVII, em um momento de perseguição às práticas de bruxaria e rituais
pagãos, nos é posto por Carlo Ginzburg (1988), em sua obra Os andarilhos do bem, a
postura em relação aos lobisomens lituanos em Jügensburg, o mito sobre esses seres
foram “demonizados”, já que como as bruxas, os lobisomens cometiam a diabrura de
comer carne humana, preferindo as crianças pagãs. Notamos como a Igreja
desempenhava sua posição, trazendo as pessoas para suas práticas através das suas
construções dogmáticas.
Tomando referência em Darnton (1986), vemos em O grande massacre dos
gatos a ligação direta entre antropofagia e o mito dos seres híbridos em questão. Em
tempo de forte crise social e econômica na Idade Média pessoas cometiam canibalismo,
o que deu margem para que fossem evidenciadas as lendas sobre lobisomem. O autor
também conta que era possível às metamorfoses pelas fases da lua e mais, algumas
pessoas sofriam de com patologias mentais acreditando se transformar nessas feras.
Na obra História do medo no ocidente, de Delumeau (2009), podemos conferir
sobre o papel dos lobos, que na Idade Média, colocou-se em dúvida a natureza do lobo.
São animais ferozes que depois das guerras iam para os campos devastados e se
fartavam com restos humanos dos combatentes. Pareciam que não eram lobos naturais,
eram sanguinários, excelentes caçadores, atacavam rebanhos e aves. Aos poucos foram
aparecendo como animais temidos pela população e que supuseram serem feras
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SISTEMA JANGADEIRO. "Lobisomem" ataca animais e leva pânico a agricultores. Disponível
em: < https://www.youtube.com/watch?v=DmuskYBEAfk >. Acesso em: 08 de jul. 2017.
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místicas. Acreditou-se que esses fossem homens transformados, poderiam ser soldados
e ainda feiticeiros.
Ainda no campo historiográfico trazido por Delumeau, percebemos as tentativas
da Igreja em aliviar as tensões das pessoas e livrar os seus seguidores das bestas
satânicas que adoravam comer crianças e mulheres grávidas. Relatos e documentos
investigados pelo escritor indicavam que o monstro, que perambulava e assustava o
povo no campo, parecesse com o lobo com traços humanos.
O intelectual e folclorista do Cariri, José Figueiredo Filho, fala que na década de
1960, “O lobisomem está totalmente desmoralizado no sul do Ceará” (1962, p. 22). As
narrativas sobre ele é algo do passado e já não amedronta mais nem as crianças.
Considerando esse pensamento do autor de Folclore no Cariri, datado de 1962, é
curioso, após 50 anos, como relatos sobre aparições continuam sendo narrados.
Ganhando novos personagens, novos lugares e outros significados.
REFERÊNCIAS
DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente 1300 – 1800: uma cidade sitiada.
São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
PRIORE, Mary Del. Esquecidos por Deus: monstros no mundo europeu e ibero-
americano (séculos XVI – XVIII). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
FONTES