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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Jussara Farias de Mattos Salazar

Figuracão e gesto:
signos de magia popular na contemporaneidade

DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

SÃO PAULO
2016

1
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP

Jussara Farias de Mattos Salazar

Figuracão e gesto:
signos de magia popular na contemporaneidade

DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

Tese apresentada à Banca Examinadora da


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência para obtenção do título de
Doutor em Comunicação e Semiótica na área de
Cultura e Ambientes Midiáticos, sob a
orientação da Profa. Dra. Jerusa Pires Ferreira.

SÃO PAULO
2016

2
Banca Examinadora:

Profa. Dra. Jerusa Pires Ferreira [orientadora]


Profa. Dra. Maria Ester Maciel, UFMG/MG
Prof. Dr. Moacir Amâncio, USP/SP
Prof. Dr. Norval Baitello Junior, PUC/SP
Profa. Dra. Lucia Leão, PUC/SP

3
À Janira, minha mãe, pela vida.
[in memoriam]

4
Agradecimentos

A João Urban, meu companheiro


À Manuela e Mariana, meus amores

À Jerusa Pires Ferreira, pela força e carinho

A Jomard Muniz de Brito, pelo apoio sempre

Agradecimentos especiais à Mainha Urban Kleinke, Nair Benedito, Raul Córdula, Prof.
Paulo Asthor Soethe, Prof. Norval Baitello Junior, Prof. Jorge Hofmann Wolff, Prof.
Pedro Serra [Departamento de Filología Moderna da Universidade de Salamanca] Jeanne
Rennaudin, Biblioteca Casa de las Conchas em Salamanca, Ricardo Aleixo, André
Vallias, Eduardo Jorge de Oliveira, Yara Mattos, Rosângela Oliveira, Bia Dias, Maria
Alice Amorim, Micheliny Verunschk, Henrique Correia, e a Pai Chacon Viana do Ilê Axé
Oxóssi Guangoubira.

Agradeço à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), que


materializou de maneira essencial esta pesquisa. [Processo nº 2012-23177-0]

Agradeço ao apoio importante da FUNDASP

5
Resumo
O regime das imagens da arte foi construído não apenas com imagens, mas antes
de tudo, por um saber excêntrico, entre desvios e falhas. A presente tese tem por objetivo
investigar as marcas arqueológicas de alguns signos materializados nos livros de magia.
A ideia central é a de que os artistas das chamadas vanguardas históricas se inspiraram
na dimensão geométrica e mágica desses signos. Ao se apoiarem nessa arqueologia,
coincidente ou não com a rede de livros populares, conjugaram diferentes tradições: a da
ancestralidade e a das vanguardas. Verificamos como tal sistema de signos, ao utilizar
quadrados, círculos, cruzes e triângulos etc., dialoga com esse contexto, mediante
argumentações críticas, antropológicas e históricas. Segundo o conceito de bordas
formulado por Jerusa Pires Ferreira, as fronteiras que definem esse trânsito permitem as
trocas de sentido que reorganizam esses sistemas e orientam os saberes que cercam tais
formas. O artista paraibano Raul Córdula com os grafismos e a geometria ou, em outra
esfera, Kasemir Malevich, com o suprematismo de formas e cores primárias, dialogam
com a transcendência por meio desse sistema de signos. Assim, a presença de formas
mágicas do pensamento ancestral na arte é o sentido que defendemos nessa tese. Ao fim,
evidenciam-se as dimensões do humano com seus gestos, quer se trate de um signo
mágico ou de uma obra vanguardista, que, recriadas por essas modulações, não cessam
de produzir novas possibilidades.
Palavras-chave: signos gráficos e mágicos, magia, edição popular, construção das
vanguardas, Raul Córdula, Kasemir Malevich.

Abstract
The art image regimen was built not only around images but prior to everything, around
an eccentric knowledge, between deviations and flaws. This doctorate thesis aims to
investigate the archeological marks of certain signs materialized in magic books. The
main idea is that the artists from historical vanguards were inspired by the geometric and
magical dimension of theses signs. By focusing on this archeology that coincides or not
with the network of popular books, they combined different traditions, such as the
ancestry and the vanguard ones. We verified how such signs system composed by
squares, circles, crosses, triangles etc converses with these contexts, through critical,
anthropological and historical arguments. According to the concept of borders,
formulated by Jerusa Pires Ferreira, the frontiers that occur on this transit allow for a
meaning exchange that reorganizes these systems and guides knowledge surrounding
such geometric forms. The artist from Paraíba, Brasil, Raul Córdula, with graphisms and
geometry or, in another sphere, the artist Kasimir Malevich, with suprematism of forms
and primary colors, converse with transcendence through this signs system. Therefore,
the presence of such magical forms in the ancestor thought in art is the meaning we
advocate on this present thesis. In the end, the dimensions of the human and its gestures
appears whether it is by a magical sign or a vanguard work of art. When recreated by
these modulations, they don’t stop creating new possibilities.

Keywords
Graphic and magical signs, magic, popular edition, vanguard construction, Raul Córdula,
Kasemir Malevich.

6
LISTA DE FIGURAS
Figura 01 – Verônica entre São Pedro e São Paulo, Ugo da Carpi, 1524-1527.
Figura 02 – Melancolia, Albrecht Dürer, 1514.
Figura 03 – Newton, Willian Blake, 1795-1805.
Figura 04 – Tetraktys.
Figura 05 – Anima mundi.
Figura 06 – Sephirots.
Figura 07 – Ponto de Umbanda, Terreiro de Pai Maneco, Curitiba.
Figura 08 – In Astrologos, Emblematur Libellus, Andrea Alciati, 1535.
Figura 09 – Frankfurt-am-Main, Emblemata, Andrea Alciati, 1567.
Figura 10 – Tábua Afonsina, fragmento, D. Afonso, o Rei, século XIV.
Figura 11 – Almanaque Perpetuum, Abrão Zacut,1496.
Figura 12 – Alegoria, Tábua de Esmeralda.
Figura 13 – Paracelso, 1541. / Astrologia
Figura 14 – Grimório do Papa Honório.
Figura 15 – Rembrandt, Fausto, 1650.
Figura 16 –`ilm al-huruf
Figura 17 – Tratado breve nas influências do céu, Abrão Zacut, séc. XV.
Figura 18 – O Livro de São Cipriano.
Figura 19 – As Clavículas de Salomão.
Figura 20 – A verdadeira Cruz de Caravaca.
Figura 21 – Virgem de Valdejimena
Figura 22 – Talismãs
Figura 23 – Evangelhos e Talismãs
Figura 24 – Infanta Anna da Áustria da Áustria, Juan Pantoja de la Cruz, 1602.
Figura 25 – Infanta Maria Anna da Áustria, Juan Pantoja de la Cruz, 1602.
Figura 26 – Nômina
Figura 27 – Sátira pictórica
Figura 28 – O enforcado, “Tarô de Carlos VI”, século XV.
Figura 29 – Cerquilha Hashtag
Figura 30 – Autorretrato para afresco, Kasemir Malevich, 1907
Figura 31 – Autorretrato, Kasemir Malevich, 1908
Figura 32 – Redentor não pintado à mão, século XII.
Figura 33 – Autorretrato, Kasemir Malevich, 1933.
Figura 34 – Autorretrato, Dürer, 1500.
Figura 35 – Vitória sobre o sol, cenário, Kasemir Malevich,1913.
Figura 36-37-38 – Esboço dos personagens, Vitória sobre o sol, 1913.
Figura 39 – Mostra ZER0.DEZ [O.10], Sala de exposições, 1915.
Figura 40 – Quadrado Vermelho, Kasemir Malevich, 1915.
Figura 41 – Quadrado Branco, Kasemir Malevich, 1918.
Figura 42 – Cruz Negra e Círculo negro, Kasemir Malevich,1923
Figura 43 – Signo de Salomão.
Figura 44 – Araguaia, Raul Córdula, 1968.
Figura 45 – Geometria, Raul Córdula, anos 90.
Figura 46 – Atelier de Raul Córdula, Olinda, Pe.
Figura 47 – Geometria, Raul Córdula, 1989.
Figura 48 – Raul Córdula com seu anel mágico.
Figura 49 – United Dead Nations, Ivan Grubanov, Sérvia, Bienal de Veneza. 2015.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO: SIGNOS DA DECIFRAÇÃO...........................................................10

PARTE I
CAPÍTULO 1: COSMOSIGNOS..................................................................................15

1.1Do signo ao signo-matriz: arqueologias .................................................................. 15


1.2 Signos geométricos.................................................................................................. 21
1.3 Signos do celestial....................................................................................................28
1.4 Signos mágicos: um saber de ouvido....................................................................... 33
1.5 Signos dentro de signos: metáforas cosmológicas .................................................. 42
1.5.1. A palavra.....................................................................................................42
1.5.2. O gesto votivo..............................................................................................50
1.5.3 O mercúrio, a mandrágora e outros signos ................................................55

PARTE II

CAPÍTULO 2: O TEMPO E O GESTO........................................................................61

2.1 A linguagem, sua descontinuidade e a metáfora da tempestade .............................61


2.2 Da vertigem do círculo mágico ao organizador de sinais........................................65
2.3 A linguagem da desconstrução, signos da vanguarda..............................................71

CAPÍTULO 3: DUAS VANGUARDAS.......................................................................78

3.1 Kasemir Malevich....................................................................................................78


3.2 Raul Córdula............................................................................................................88

CAPÍTULO 4: ANOTAÇÕES ICONOGRÁFICAS.....................................................98

4.1 Suma.........................................................................................................................98
4.2 O Quadrado Negro: Kasemir Malevich dialoga com o ícone da Virgem de
Tikhvin...........................................................................................................................98
4.3 Quadrado vermelho: Realismo pictórico de uma camponesa em duas dimensões:
Kasemir Malevich dialoga com a fotografia das camponesas de Sergei Prokudin
-Gorskii.................................................................................................................... 101
4.4 Mesopotâmia de Raul Córdula em diálogo com um fragmento da Torá judaica,
a Menorah......................................................................................................................103
4.5 Borborema de Raul Córdula em seu diálogo com os poemas: Pós-tudo e Pulsar de
Augusto de Campos, e Cidade outrora de André Vallias............................................. 105

CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................109
REFERÊNCIAS............................................................................................................113
ANEXOS ......................................................................................................................119
1. Os signos mágicos à luz meridiana do sol [índice morfológico a partir dos livros
de magia popular]......................................................................................................... 119
2.Figuras........................................................................................................................143

8
Sabei que na abóboda formada pelos céus ao redor da terra há figuras e sinais por meio dos quais podemos
descobrir os mistérios mais profundos e secretos. Essas figuras são formadas pelas constelações e pelas
estrelas, que são para o Sábio uma fonte de contemplação e felicidade mística. Essas formas brilhantes
são as letras com as quais Deus criou o céu e a terra. Elas formam Seu Nome, misterioso e santo.
[ZOHAR]

No tocante à abóboda celeste, seria possível dizer: toda a tragédia prometeica do ser humano reside no
fato de que não há uma abóboda firme sobre nós. Mas ainda assim precisamos empregar essa imagem
completamente tosca, nem que seja para possuir uma construção arbitrária que auxilie nosso olho, o qual
encara o infinito com perplexidade
[ABY WARBURG]

9
INTRODUÇÃO: SIGNOS DA DECIFRAÇÃO

Do ponto de vista da semiótica, a cultura é uma inteligência coletiva e uma memória


coletiva. Para Iuri Lotman, cultura é o continuum estruturado que restaura essa memória
atravessada por diferentes fronteiras, mas, que se comunicam para gerar novos sentidos.
Assim, a dinâmica que movimenta a cultura é a mesma da memória comum – espaço de
conservação, atualização e permanência.

Os livros de magia popular evocam os antigos grimórios medievais, repertórios


vivos no mundo editorial. Nessas publicações encontram-se muitos signos que
aprendemos a reconhecer, presentes desde as pedras e paredes de cavernas ancestrais até
as imagens incorporadas pela arte contemporânea. São signos que nos cercam no
cotidiano, incorporados ao universo diário e comum a todos.

Refletimos neste trabalho sobre alguns desses signos que, com suas formas simples
– triângulos, quadrados e círculos –, mostram-se resistentes, ainda que sua presença
excessiva demonstre certa saturação, o que às vezes os torna quase imperceptíveis. A arte
e o simbolismo mágico, de certa maneira, resgatam essas formas, reativando a memória
de construções primordiais que repetimos apesar deste excesso.

Alguns conceitos relacionados a essas formas pertencem às tradições iconográficas


que vêm desde a Antiguidade amplificando seu repertório na Idade Média, e que
dialogam com à obra de alguns artistas das vanguardas. Consequentemente, a arte
adquiriu força e consistência nesta pesquisa, tanto por seu papel nas mudanças éticas e
estéticas que marcaram o início do século XX, como por sua presença no universo do
pensamento mágico. Um aspecto relevante foi a percepção de como os artistas se
reorganizam compondo e decompondo temporalidades espaciais muitas vezes
contraditórias, mas que ao fim se comunicam configurando novos sentidos.

Buscamos um potencial crítico necessário para confrontar e ao mesmo tempo


estabelecer mediações. Teoria como tese e como recusa da linearidade do tempo; teoria
como crítica para evidenciar os fundamentos por meio das várias modalidades de discurso
– com suas mediações históricas, comunicativas e estéticas. E por esta razão defendemos
a crítica viva, em movimento, considerando a não sincronicidade como lei regular.

Examinando dados e materiais sobre a arte das vanguardas, tema que ainda se
encontra na mira da crítica contemporânea consideramos, portanto, a inserção de certo

10
simbolismo mágico na produção de alguns artistas do início do século XX. Uma marca
interessante é o fato da vanguarda produzir uma arte abstrata e tida como
intelectualizada, mas utilizar-se de signos pertencentes a um circuito que faz parte de uma
tradição popular e ancestral.

Deste modo, partimos de uma ideia central: a de que a persistência de determinadas


marcas arqueológicas de signos, também arqueológicos, passaram pelas culturas
ocidentais em diversos momentos, presentificados e materializados nesses livros de
magia. E encontramos imagens importantes que inspiraram os artistas das chamadas
vanguardas históricas e de outras modalidades, em tal dimensão geométrica e
arqueológica

Por outro lado, os artistas contemporâneos, ao apoiarem-se na dimensão


arqueológica desses signos, coincidindo ou não com a rede de livros populares do corpus
definido, encontraram aí um alento criativo, como, por exemplo, o artista construtivista
paraibano Raul Córdula ou, numa esfera mais longínqua, Kasemir Malevich, ao pensar o
suprematismo com suas formas e cores primárias.

Através desta dimensão arqueológica surgiram coincidências e aproximações nas


obras de tais artistas observando que os livros de magia nutrem, à sua maneira e à
margem, a permanência dessas formas. Esse fato, por si, evidencia certas dimensões do
humano, quer se trate de uma inscrição rupestre, quer se trate de um público popular que
consome essa espécie de ancestralidade, ou ainda de um artista popular ou de vanguarda
que recria tais modulações e probabilidades.

Para melhor compreensão dividimos a pesquisa em duas partes distintas. Na


primeira parte, com o capítulo Cosmosignos apresentamos algumas matrizes
arqueológicas que consideram a geometria, a decifração de palavras, sinais, sons e gestos.
Concentram-se aí discussões do repertório que cerca a magia, estabelecendo relações
entre a astrologia e o misticismo, entre o sagrado e o profano, com seus signos e imagens,
que se agregaram para compor um sistema cosmológico de gestos, palavras, amuletos,
imagens e objetos, numa arqueologia de signos dentro de signos.
Na segunda parte buscamos assinalar alguns conceitos até chegar ao ponto em que
surge a inquietação das vanguardas com seus artistas. Para isto, observamos rastros
impressos como linha descontínua, entre desvios, descontinuidades e aproximações, para
chegar à desconstrução empreendida no início do século XX. Consideramos o percurso

11
dos artistas Kasemir Malevich, da vanguarda russa e do construtivista paraibano Raul
Córdula.
Em seguida propusemos uma série de sínteses iconográficas que abordam a obra
desses artistas em relação aos conceitos e elementos surgidos ao longo da pesquisa. Desse
modo, O Quadrado Negro de Kasemir Malevich dialoga com o ícone da Virgem de
Tikhvin ou a Mesopotâmia de Raul Córdula discute arqueologias perdidas entre os signos
urbanos da cidade do Recife.
Os signos de magia popular foram o ponto de partida, por circularem em um
importante universo de confluências. E dizer que fazem parte de uma cultura de massas
equivale em geral, “a nomear aquilo que é entendido como um conjunto de meios
massivos”.1 Este universo popular enuncia sua própria ambiguidade ao reconhecer nela
um pertencimento ao povo. Assinalar que é popular é permitir flutuações e
transformações, admitir as trocas mais do que os acontecimentos em si, exatamente
porque no popular se configura uma não-fixidez.
Em tais publicações gravitam espaços de reciprocidade no encadeamento de tempos
distintos e por isso fluídicos à análise, que é a característica que os diferencia da
interpretação usual. Sob sua narrativa maleável há muitos autores: o tempo e o
inconsciente da história. Para a cultura popular eles são o meio que conduz mensagens
mágicas, têm a estrela do mago Salomão e fórmulas de felicidade. Mas é fato que
dificilmente encontram-se nesses livros imagens que não pertençam ao universo apócrifo;
alteradas de algum contexto anterior revivem a cada edição, reaproveitadas conforme a
necessidade editorial.
Para tanto, pensamos a partir de alguns modelos teóricos que consideram a memória
e os processos de transmissão em suas flutuações no ambiente de cultura. Utilizamos o
conceito de semiosfera de Iuri Lotman, por sua profundidade diacrônica e também por
refletir a cultura e a memória como um texto organizado que se decompõe em textos
dentro de textos – já que a própria palavra texto introduz a ideia de tessitura que por meio
desta interpretação é devolvida ao seu significado primeiro.
De igual maneira, observamos o conceito de Bordas, de Jerusa Pires Ferreira, no
que diz respeito às dinâmicas entre centro e periferia, dentro de cujos limites ocorrem as
trocas de sentido na reorganização dos signos. A ideia de cultura de bordas é, segundo

1
BARBERO, Jesús-Martin. Dos meios às mediações. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997, pg. 196.

12
assinala a pesquisadora, além de um conceito, uma cosmopolítica, criação de espaços para
observar novos e antigos segmentos culturais que se comunicam; “manuais, revistas de
modinhas, secretários de amor, livros de sonhos, livros de magia, desejados por uns e
rejeitados por outros, mas que compõem uma prática da vida. Bordas é ainda, tudo que
implica a pertença múltipla e o desafio para alguns impasses, pensando tudo que é
precário e circula pelas beiras dos sistemas”.2

Considerando os deslocamentos temporais, foram importantes as contribuições do


modelo teórico de Aby Warburg, com os conceitos de vida póstuma e fórmula de páthos,
“modalidades de presença e transformação, que rompem com uma temporalidade
linear3”. Assim, por meio de um inconsciente, a inserção das imagens, e também dos
textos, apresentam uma instabilidade que desautoriza os sistemas de organização
concebidos, flutuando numa espécie de psiquê em que o tecido resultante dessa
montagem modula uma aparente desorganização no tempo.

Walter Benjamin, por sua vez, ao pensar a história, sugere que ao invés de apontar
para uma imagem eterna do passado ou situar-se dentro das teorias do progresso, deve
estabelecer-se uma experiência com o passado [Erfahrung]. O fracasso entre essa
experiência e a arte de contar deveria ser superada pela reconstrução de uma nova
narratividade; a arte de contar estaria cada vez mais rara porque, essencialmente, os
modos de transmissão não encontrariam mais condições na sociedade capitalista
moderna, pensando os modelos tradicionais de oralidade, além das questões relativas à
exponibilidade e apresentabilidade, técnica e magia.
De igual maneira os textos do antropólogo André Leroi-Gourhan iluminaram o
tema da ancestralidade com seus ritos, lembrando, segundo um conceito de Mircea Eliade,
que “a natureza nunca é exclusivamente natural; está sempre carregada de um valor
religioso” 4 , e a simples contemplação do céu, sua experiência transcendente, seria
suficiente para desencadear uma experiência mágica. Por fim, consideramos ainda o
modelo iconográfico e iconológico elaborado por Erwin Panosfsky, para a decifração dos
signos que pesquisamos.

2
PIRES FERREIRA, Jerusa. Cultura de Bordas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2010, pg.18.

3
WARBURG, Aby. Histórias de fantasmas para gente grande. São Paulo: Companhia das letras,
2015, pg.10.
4
ELÍADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, pg.99.

13
PARTE I

14
CAPÍTULO 1: COSMOSIGNOS

Onde foi parar a relação característica da imagem materna para com a


terra, com o escuro e abissal do homem corpóreo, para com seus
instintos animais e sua natureza passional e para com a ‘matéria’ de
modo geral?

[CARL GUSTAV JUNG]

1.1 Do signo ao signo-matriz: arqueologias

Abrimos uma edição do grimório A Clavícula de Salomão. A semelhança entre as


imagens dos Sete pantáculos de Saturno e a obra do construtivista do paraibano Raul
Córdula chama a atenção, pela presença de círculos, quadrados e triângulos, e também
pela simbologia que, entre letras e números repete-se em conjunções gráficas. Abrimos
outro livro de arte cujos signos impõem o mesmo desafio. No início do século XX,
Kasemir Malevich, o suprematista da vanguarda russa, emerge com a força enigmática
de suas construções. Sobre a superfície de suas pinturas também se veem quadrados,
círculos e cruzes.

Dois artistas em tempos e épocas distintas, um livro de magia popular escrito e


reescrito pelo tempo. Como esses repertórios se comunicam? Em suas práxis esses
artistas sugerem vínculos com o mundo figural de formas e saberes ancestrais, ao
atualizarem o gesto e a materialidade deixados por esses signos vagantes entre
apagamentos e avivamentos de suas trilhas.

Desse modo, os livros de magia são o nosso ponto de partida por abrigarem tal
sistema de signos, ressaltando que não nos detivemos especificamente em uma análise
dessas publicações, mas que nos utilizamos desse universo como ponto referencial que se
desdobrou muitas vezes em direções aparentemente contraditórias.

Em seu contraste, os ciclos de vida e de morte, a grandeza e a decadência com que


a linha do tempo se despedaça, também engendram matrizes que por sua vez geram novos
modelos culturais que novamente se decompõem. Essa sucessão de novos modelos ou
paradigmas será o sintoma a ser considerado. E sintoma enquanto possibilidade de
reconstrução de um devir das formas em sua incessante inquietude para dialetizar e pôr
em perspectiva um sentido, a partir de um passado ou através “da urgência anacrônica

15
do que Nietzsche chamou de inatual ou intempestivo” 5 . São modelos heterogêneos e
anacrônicos e suas falhas exibem um conflito incessante.

Sabe-se que o universo das publicações de magia popular é resistente. São fontes
de difusão, ondulações no tempo, materializando desejos, aspirações e ilusões de
felicidade em suas conjurações e fórmulas, seja a partir do gesto impresso em seu texto,
copiado e recopiado a cada nova edição, ou em seu conjunto de estranhas imagens
apócrifas. De modo singular, não importa a autoria ou o caminho por onde transitaram,
mas sim o fato de seguirem alimentando uma demanda. E, se não há linearidade na lógica
de seu mercado é porque há multiplicidade nas vozes que se manifestam através do
continuum que movimenta a inteligência coletiva e que Lotman chama de memória e de
cultura.

E os signos que compõem essas publicações formam um importante conjunto


iconográfico de formas arcaicas, mas também revelam o cotidiano na forma de antigas
imagens que emergem abrindo um campo para novas abordagens. E através da arte, essa
fatura humana, o que parece antigo retorna, emerge, agregando e instaurando uma nova
ordenação cósmica que nos arremessa a um passado e a um gesto comum. E é porque os
signos também têm lembranças, figurações e transfigurações, que sofrem reminiscências.
E este momento se apresenta essencialmente anacrônico já que “é um presente em que as
sobrevivências se agitam, atuam, frustrando os modelos de linearidade. Movimentos,
emoções ‘como que fixadas por encantamento’ e atravessando o tempo: é bem essa a
magia figural”.6

É como se de cada signo emanasse um inconsciente. E essa ordenação, ou


desordenação cósmica, segundo o historiador alemão Aby Warburg [1866-1929], é
comparável a uma descida pelas regiões sombrias da Antiguidade. Um dicionário que se
tornou célebre na Idade Média do século XVI, trazia os verbos figurar e desfigurar com
um mesmo sentido, o de modificar numa outra figura o que a arte, no sentido mais estrito
de uma historiografia mimética e linear, ao pensar a representação, sempre negou para
seguir reconhecendo a boa figura como modelo autêntico. Ordenar para desordenar. Os
ícones milagrosos, as imagens dos pantáculos, os pontos riscados da umbanda, as estrelas

5
DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente – História da arte e tempo dos fantasmas segundo
Aby Warburg. Rio de Janeiro: Ed. Contraponto, 2013, pg. 29.
6
Idem, pg.175.

16
e quadrados místicos, produziram uma história das imagens sagradas que sempre
caminhou à margem da história da arte herdada de Vasari. E a visibilidade dessas imagens
icônicas afigurou-se em zonas de confronto, tal como nas bordas de um sistema resistente,
pensando a partir da relação centro e periferia, da qual nos fala Jerusa Pires Ferreira.7

Os signos de magia popular, em geral foram rejeitados no corpus da história da arte


porque vêm de outro corpus, como aquele traçado por anônimos e herdeiros das imagens
fata senza penello8 sobre tecidos e papeis, e produzidas para serem a simulação de objetos
destinados à magia, à lenda e ao milagre. Figurações, imagens-paradigmas,
representações do apagamento do corpo da divindade, esses signos impressos evocavam
uma figuração do sagrado, mesmo que em sua trajetória tenham muitas vezes mergulhado
no mundo profano. Essas imagens foram representações de um sagrado, em cuja origem
se estabeleceu a polarização profano, o pro-fanum, aquele que está diante do templo mas
que não entra, e sagrado, sacro, de sacer, sacratus, o santo que se oferece como dádiva.

As reflexões antropológicas e teológicas sobre o sagrado, no início do século XX


são, com certeza, profundamente diferentes em si no que concerne a determinação
positiva da noção de sagrado, como explicita Mario Perniola9 em seu interessante ensaio
Mais-que-sagrado-mais-que-profano. Para a visão antropológica, o sagrado seria um
fenômeno essencialmente social e coletivo; já para a teológica um fenômeno
essencialmente subjetivo e individual. Haveria, no entanto, um terceiro fator em que as
duas visões resultariam convergentes ao considerar o sagrado óbvio por si mesmo, não
necessitando assim de uma análise mais aprofundada. Afinal o que é sagrado para alguns
pode, em contexto e ocasião diferentes, não o ser para outros.

A esse respeito, uma revisão teórica da relação sagrado/profano propõe um espaço


de entremeio, um zwischen, um entrelugar, intervalo suspenso que espera somente ser
ocupado pelo sagrado ou pelo profano. 10 Mas, como explicita Perniola, este espaço
intermediário não deve ser pensado como um justo meio entre os dois opostos:

7
PIRES FERREIRA, JERUSA. Cultura das Bordas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2010.
8
“PER VGO/ DA CARPI INTAIATORI/ FATA SENZA/ PENELLO...” Referência à obra A Verônica entre São
Pedro e São Paulo, 1524-27, de autoria de Ugo da Carpi e executada ‘sem auxílio de pincel’ e com a
finalidade de evocar a maneira da aquiropoiesis, ou seja, ‘não feita por mão de homem’, mas pela marca
de uma ausência de corpo com a qual os sudários eram criados. Cf. Didi-Huberman, George, 2013, pg.256.
9
PERNIOLA, Mario. Mais-que-sagrado-mais-que-profano. Cf.GARCIA, Maria Amélia Bulhões; KERN, Maria
Lúcia Bastos.[org.]. As questões do sagrado na arte contemporânea. Porto Alegre: Editora da
Universidade, 1997, pg. 18.
10
Idem, pg.20.

17
[...] ele é tudo o mais que consente o desenvolvimento tanto do sagrado
como do profano. Não é a abertura de uma zona neutra no interior do
dualismo sagrado/profano, mas a afirmação de um monstro que suporta
tanto uma versão sagrada como uma versão profana.11

Neste espaço estaria representada uma zona de flutuação acima do céu e abaixo da
terra, não havendo oposição entre uma e outra, espaço de consentimento. Afinal, em sua
ambiguidade, o profano só faz aumentar o espaço do sagrado “articulando-o como em
puro e nefasto, santo e sacrílego, divino e diabólico” segundo observa Robertson Smith.12
Nesse entremeio, o fio que separa o tempo e o espaço sagrado e profano, mágico e
religioso, frustraria a noção de linearidade.
Por sua vez, Mircea Eliade13 sustenta a primazia absoluta do sagrado e propõe que,
de certa maneira, se apague a linha tênue mas difícil que separa as duas experiências para
que se configure um espaço mediador, o mágico e religioso, definido pelo tempo mítico
nas cosmogonias primordiais. Desse modo, a repetição infinita de cada experiência
simbólica, com seus rituais, nada mais seria do que “imitação e reprodução de gestos
efetuados in illo tempore por seres míticos”.14 Imitar e imagem – reproduzir, representar
– vivificar o mito. Sob esse aspecto, as hierofanias, aparições do sagrado e do divino,
transfiguram o espaço, suas significação e sentido, já que assim “toda a natureza está
carregada de história humana”.
Estes rituais que utilizam grafismos, círculos, quadrados ou triângulos carregam
consigo a lembrança ancestral do tempo em que a simples observação do sol nascer ou se
por, ou ainda a percepção do ciclo das estações, era determinante para a compreensão que
o ser humano tinha de si e do mundo que o cercava. Porém, tais saberes, com o passar do
tempo foram instrumentalizados e substituídos por novas maneiras de compreensão,
passando a compor outros repertórios instituindo novas formas de percepção.

11
Ibidem, pg.21.
12
PERNIOLA, Mario. Mais-que-sagrado-mais-que-profano. Cf.GARCIA, Maria Amélia Bulhões; KERN,
Maria Lúcia Bastos. [org.]. As questões do sagrado na arte contemporânea. Porto Alegre: Editora da
Universidade, 1997, pg.24
13
Segundo Marshall McLuhan, Mircea Eliade incide em grosseira ilusão ao supor que o homem moderno
acha cada vez mais difícil redescobrir as dimensões existenciais do homem religioso nas sociedades
arcaicas. Para McLuhan, o homem moderno, depois das descobertas eletromagnéticas, há mais de um
século, revestiu-se de todas as dimensões do homem arcaico, e mais do que ele. A arte e a erudição do
século passado, haveriam se tornado um monótono crescendo de primitivismo arcaico. Segundo
McLuhan, a própria obra de Eliade seria uma popularização extrema dessa arte e erudição, mas ressalta
que isso não quer dizer que ele estivesse errado. Veja-se McLUHAN, Marshall. A galáxia de Gutemberg.
São Paulo: Edusp. 1972, pg.106.
14
ELIADE, Mircea. Tratado de História de las Religiones II. Madrid: Ediciones Cristandad, 1974, pg.15.

18
Frente ao espaço mágico e ao espaço mítico, também há referências às cosmogonias
fantásticas que resistem desde um tempo protagonizado por seres que encarnaram
simbolicamente as forças da natureza e os aspectos gerais da condição humana – lendas,
fábulas, mitologias, representação de fatos e/ou personagens históricos, desfigurados e
amplificados pelo imaginário coletivo das tradições literárias, orais ou escritas.
A partir dessa ideia, o tempo sagrado atuaria, portanto, na repetição e na
incorporação de inumeráveis sistemas ritualísticos, transfigurando e isolando o espaço
profano circundante. Por exemplo, para a mentalidade primitiva, a experiência da alma
durante o sonho é significativa, considerando o mundo visível e o mundo invisível como
parte de uma unidade propiciatória das visões e presságios. A imagem homérica em que
“o sono é irmão da morte”15, vem de muito longe, herança do pensamento primitivo de
que os vivos se comunicariam com os mortos, fazendo dos sonhos um guia e conselheiro
para as práticas divinatórias.
E muitos aspectos da religiosidade popular são considerados como superstição,
porém, o mito que está na base do pensamento mágico primordial funda uma verdade
absoluta instituindo um é assim porque foi dito que é assim para justificar sua validade
enquanto história sagrada e religiosa. Todo mito é a “narração de uma criação”:16

É interessante notar que o homem religioso assume uma humanidade


que tem um modelo trans-humano, transcendente. Ele só se reconhece
verdadeiramente homem quando imita os deuses, os Heróis
civilizadores ou os antepassados míticos.17

Dessa maneira, a repetição dos modelos sagrados engendra um duplo resultado;


primeiramente, ao imitar os deuses, o homem se mantém no sagrado e consequentemente
na realidade e, na sequência, graças à reatualização ininterrupta do gesto divino, o mundo
é santificado. As maçãs e o velo de ouro, a planta da imortalidade, a morte do monstro e
os obstáculos, são competências heroicas que incorporam o símbolo à realidade. A
iniciação religiosa, mística ou mágica seria assim um evento da nostalgia do paraíso, do
desejo de estar sempre no coração do mundo e reaver a condição divina para superar-se
a si mesmo, reencarnando o mistério na imitação do corpo santo.

15
LÉVY-BRUHL, Lucien. A mentalidade primitiva. São Paulo: Paulus, 2008, pg.90.
16
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano-A essência das religiões. São Paulo: Editora Martins
Fontes, 2012, pg. 85.
17
Idem, pg. 88.

19
Por conseguinte, mesmo onde existir um centro-matriz ou houver um centro
cosmológico primordial, equivalentes acessíveis giram em seu entorno. As réplicas fáceis
dos almanaques, a medicina das fórmulas e simpatias, os signos de magia popular, teriam
a função de organizar uma espécie de lugar sagrado e arquetípico, lugar “que as
hierofanias e a consagração de um espaço qualquer, tratam de realizar” 18 numa
multiplicidade de pequenos centros cosmológicos que se repetem.

A organização simbólica da imaginação retoma sempre à linha transcendente como


valor supremo e ao verificar o regime de signos mágicos e sagrados, deve-se “evitar com
cuidado as querelas da teologia, e de modo algum esquivar a universalidade da
teofania”.19 Gilbert Durand, o historiador de religiões que se debruça sobre as aparições
do sagrado, observa a existência de uma tensão dialética no presente de toda intuição
religiosa no que diz respeito à temporalidade das imagens:

Observando a história, a evolução de uma religião, o cristianismo, por


exemplo, apercebemo-nos rapidamente desta pluralização: à sobriedade
cristológica das Catacumbas, opõe-se à rutilância dos esmaltes
bizantinos, depois ao ouro e à hagiografia bizantinos, novamente a
ocidental reforma de Cister e, de novo, na esteira do purismo romântico,
a exuberância e a eflorescência góticas20

Essas diferenças, aparentemente estéticas, indicam a existência de matrizes, que se


repetem em qualquer nível e sob a forma que se deseja, já que o mais importante é a
necessidade de aproximação e realização de seu modelo transcendente. E então a
efetuação do sagrado, tão essencial, converte-se nas vozes que atravessam o tempo e
chegam até nossos dias, abrindo um campo expressivo, pleno de signos, gestos e ritmos
que a memória reacende, através de um fluxo ininterrupto que desperta associações
contínuas, e do qual nos fala Jerusa Pires Ferreira:

Constata-se que no âmbito de sistemas mágicos, religiosos, há por um


lado um imaginário espraiado e uma espécie de corpo de representações
difusas presentes em repetidas situações. Mas podemos falar, por sua
vez, de um imaginário concentrado que, transitando por alguns limites
infringidos a certos sistemas e linguagens, nos remetem ao mundo das

18
ELIADE, Mircea. Tratado de História de las Religiones II. Madrid: Ed. Cristandad, 1974, pg.168.
19
DURAND, G. A imaginação simbólica. Lisboa: Perspectivas do Homem/Edições 70,
1993, pg. 106.
20
Idem, pg.108.

20
linguagens secretas, aos territórios da decifração, às sucessivas
passagens da margem para o centro, sucessivamente.21

O trânsito que movimenta os signos populares além do caráter fragmentário, oscilou


desde na fronteira difusa entre o sagrado e o profano. Por fim, assinalamos dois fatos: o
de que a cultura popular também soube se apropriar de objetos e lugares sagrados, não
necessariamente para profaná-los, mas para investi-los de novas figurações e de que a
historiografia da arte, ao seu modo, lidou de maneira intensa com esses signos, não
somente através de suas imagens, mas também fora delas. A relação comunicacional que
evidencia esses fatos é o que observaremos em seguida, partindo do universo das figuras
geométricas.

1.2 Signos geométricos

Onde há matéria há geometria


[JOHANNES KEPLER]

Na ausência de referências naturalistas costumamos nomear os elementos


geométricos estruturados na arte como abstrações. 22 Mas, as chamadas abstrações
geométricas revelam sutilezas que, mediante uma reserva de memória organizada, atuam,
segundo Cassirer, “graças a menor diferença necessária e suficiente para operar uma
mudança de sentido”.23 Quer dizer, são formas tão usuais que sua interpretação oscila em
fronteiras sutis, onde tanto podem ser um signo mágico como podem apresenta-se em
objetos do cotidiano.

Em linhas gerais, se partimos de uma dedução simbólica inicial, duas retas que se
cruzam significam uma cruz, mas essa cruz não é a mesma gravada nas pedras ancestrais
do Parque do Ingá ou aquela ressignificada pelas relíquias cristãs. Cada qual, em sua

21
PIRES FERREIRA, Jerusa. A decifração mágica dos signos in Ghrebh - Revista de Comunicação,
Cultura e Teoria da Mídia. São Paulo, junho/2007.
22
Sobretudo nos anos 40 e 50, uma característica comum a muitos artistas foi denominada de Abstração
orgânica, pela utilização de formas abstratas arredondadas, baseadas nas que se encontram na natureza
e também chamadas de abstrações biomórficas. Kandinski, Brancusi, Miró e Henry Moore, entre outros,
utilizaram essas formas orgânicas em suas obras. Cf. DEMPSEY, Amy. Estilos, escolas & movimentos – Guia
enciclopédica da arte moderna. São Paulo: Cosacnaify, 2008, pg.181.
23
BARTHES, Roland. Crítica e verdade. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2003, pg. 42.

21
dinâmica própria, representa a imagem totalizante do ser humano de braços abertos
apontando para as quatro direções e tendo céu e terra no cruzamento do imaginário.

O quadrado, o triângulo, o círculo e o centro permitem, em sua figuração, exercícios


de decifração que podem ser traduzidos como fecundidade, criação, desenvolvimento
cósmico, eternidade, perfeição, perspectiva, infinito etc. Essas formas nos cercam de
modo imperceptível e seguem se reinventando em objetos e sinais com os quais
convivemos praticamente todo tempo. Ainda seguindo a lógica de Cassirer, o espaço da
contemplação e das produções estéticas enfatiza as diferenças existentes entre este e o
espaço dos teoremas lógico-geométricos. Quando se trata da geometria desses espaços
criativos não há interesse por um sistema de “causas” e “efeitos”, mas sim por
configurações inesgotáveis que brotam nos espaços da intuição, da emoção e da fantasia
espacial:

[...] podemos interpretar determinados complexos de linhas e figuras,


ora como ornamentos artísticos, ora como desenhos geométricos,
atribuindo assim, a um mesmo material um sentido completamente
diferente.24

Observamos assim que as objetivações intelectuais “não possuem o status de fatos


mas são mediadas pelas tradições”, 25 e por essa razão, precisamos lançar mão de um
conhecimento prévio que por ela é transmitido. Tal conhecimento intuitivo atribui, por
exemplo, um sentido mágico para os quadrados. E sabemos que o centro do quadrado
coincide com o do círculo e que a grande encruzilhada do imaginário são as medidas
canônicas do homem vitruviano. Ou que um quadrado onde a soma das linhas e colunas
são iguais, mas a das diagonais não, é chamado de hipermágico. Já o quadrado diabólico
seria um quadrado hipermágico com muitas propriedades complexas e o
nome diabólico teria sua provável origem pela dificuldade em formá-lo. Já o que se
chama quadrado de Dürer é a figura representada no canto superior direito
da gravura em metal Melancolia, a gravura em metal do pintor e ilustrador
alemão Albrecht Dürer [1514], em que os números somados exibem sempre o mesmo
resultado, na horizontal ou na vertical.

24
Ide., pg. 47.
25BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda. São Paulo: Cosanaify, 2008, pg.25.

22
Essas relações matemáticas entre as formas é o que se convencionou a chamar de
mágico por indicarem, através dessas propriedades, uma aproximação com a perfeição
cósmica vinculada à natureza divina. No entanto, a exaustão com que visualizamos as
figuras geométricas faz com que passemos a vê-las cada vez menos. “Com o dilúvio de
telas, quadros, retângulos, imagens, janelas inflacionadas, entra em cena um fenômeno
novo” 26 que seria uma espécie de “não ver”. Mas o poder dessa geometria, se
imaginarmos por exemplo, o retângulo, não se perde, seja pela sua função-janela, recorte
para o mundo, ou através da lembrança do nômade que começava a construir sua
habitação fechada e cujas aberturas eram esses quadrados ou retângulos, feitos como
buracos para ver o mundo. Produziu-se visibilidade, enquadramento, em um mundo de
certa forma domesticado, segundo afirma Norval Baitello Junior:

O poder do retângulo, anunciou Harry Pross [1923-2010], é inegável na


cultura ocidental. [...] Há uma progressiva transformação do olhar em
retângulo e dos retângulos em olhares [...] Retângulos são também
fórmulas de janelas, moldes ou pré-moldes de janelas, sintéticas ou não.
Mas o mundo não é retangular.27

Sim, o mundo não é retangular, mas retangulariza as relações que o corpo


estabelece com o espaço, e essa geometrização, a partir da perspectiva que veio a ser
determinante com o ponto de fuga de Brunnelleschi no século XV, abriu a função-janela
como paradigma. Veremos mais adiante como, para as vanguardas, a questão foi
objetivamente destituir a tradição do olhar, ao iniciar um projeto “abstracionista” através
da apropriação de formas geométricas puras. Pois, embora negassem, também se
comunicaram com a tradição das formas de representação advindas de saberes ancestrais.
E com essa comunicação, ao invés de traduzir o grau zero de uma figuração naturalista,
suas linhas e cores apelavam para o universo interior, à sensibilidade e consequentemente
para um mundo espiritual animado pela ancestralidade.
Por conseguinte, ao mesmo tempo em que lançavam manifestos onde propunham
novos discursos, muitos desses artistas recorriam às formas vinculadas ao pensamento
mágico, à transcendência e ao misticismo que cercava a geometria. Em sua utilização,
essas formas sempre estiveram presentes nas discussões humanas que polarizaram a razão

26
BAITELLO Junior, Norval. O pensamento sentado-Sobre glúteos, cadeiras e imagens. São Paulo: Editora
Unisinos, 2012, pg.56.
27
Idem pg.54.

23
e a intuição, a técnica e a magia. Na Idade Média a geometria era tida como uma das artes
liberais, ornando tratados de filosofia e enciclopédias e evocando ainda os quatro
humores da tradição grega, além de abrigar rumores de um passado que guiava a
astrologia, a astronomia, a iconologia crística e a arte humanística.

Observe-se, por exemplo, como o quadrado mágico da Melancolia, [fig. 02], de


Dürer, se insere no contexto destas imagens, próprias do jaez hermético mediado pelos
árabes. Entre objetos, uma balança, uma ampulheta parada no tempo, uma sineta, martelo,
serrote, pregos. No entanto, em Dürer essas reflexões vão dar lugar à busca de uma
sabedoria que, ao invés de cultivar um certo torpor saturnino e grotesco da magia do
medievo tardio, abre-se para a luminosidade do Renascimento. Sua grande arte tipifica,
de modo exemplar, a zona de influência da cosmologia pagã, com seu quadrado mágico,
símbolo da genial força criativa do homem saturnino. Muitos historiadores e autores
dedicaram-se à análise dessa obra emblemática, marcada pela geometria. Entre eles Erwin
Panofsky e Aby Warburg, e este último, por sua vez, analisa:

Profundamente mergulhada em si, a Melancolia, que tem asas, está


sentada, a mão esquerda apoiando a cabeça, um compasso à direita; a
seu redor, aparelhos e símbolos técnicos e matemáticos; diante dela,
uma esfera. De acordo com Ficino, o compasso e o círculo [e por
conseguinte a esfera também] são símbolos reflexivos da melancolia.28

A melancolia ou melankholia, o sentimento da bile negra e da tristeza comandada


pelo planeta saturno, foi reinterpretada pelos astrólogos árabes a partir do pensamento
grego. A lenta evolução desse planeta no céu seria uma das razões de associá-lo ao
sentimento da melancolia, porém, no século XII esta tradição astrológica encontra outra
tradição entre os sete planetas conhecidos e os sete dons do Espírito Santo. Esta nova
associação dará a saturno o atributo da sabedoria.
É possível relacionar essa gravura de Dürer à gravura Newton [1795] de William
Blake [fig.3], em que o físico e também filósofo místico Isaac Newton é retratado como
um geômetra divino. Sentado sobre uma pedra marítima, o idealizador da lei da gravidade
debruça o corpo nu sobre o chão onde traça uma composição geométrica com

28
WARBURG, Aby. Histórias de fantasmas para gente grande. São Paulo: Companhia das letras, 2015,
pg.189.

24
instrumentos de precisão. A cena desvela o questionamento entre razão e percepção,
típicas do século XVIII; a geometria media o peso do corpo submerso em relação à leveza
do ar através do gesto de Newton, que segura o desenho com os pés sobre o chão, desenho
cuja superfície prolongada confunde-se com o manto que cai sobre seu ombro.

Outro ponto a ser considerado a respeito dessas formas é a disposição simbólica


que ocupam em determinados espaços, já que também possuem um tipo de característica
mágica, expressa em números e imagens, que compõem os signos geometrizados. Uma
dessas imagens exemplares é a Tetraktys [fig.4], o triângulo perfeito da representação
pitagórica dos quatro elementos em que 1+2+3+4=10. Essa simbologia alude ao
quaternário e “não aparece somente na iconologia cristã e na especulação mística,
desempenhando possivelmente um papel ainda mais significativo na filosofia gnóstica e
através de toda Idade Média até o século XVIII”.29

Este foi um tema ao qual Carl Gustav Jung se ocupou sobremaneira, o misticismo
que envolve o número quatro. As pesquisas de Jung revelaram de modo aprofundado as
relações entre números e signos em relação à interpretação dos sonhos. Assim, ressaltava
sobre o fato de as quatro raízes serem equivalentes aos quatro elementos e as quatro
qualidades [úmido, seco, quente, frio] próprias da filosofia alquimista, sendo que “a
bibliografia acerca do simbolismo da cruz também pertence a este contexto”30. O quatro,
ainda segundo ele, seria um número sacro, considerando o problema da quadratura do
círculo, “Deus é uma figura espiritual [geométrica] cujo centro se encontra em toda
parte e cuja periferia não está em lugar nenhum” 31 , isto a partir de Platão, que
considerava o Tetraktys a mais perfeita forma. Diante disso, a imagem de Deus estaria
representada por um centro sem bordas, o círculo infinito simbolizando a eternidade.

O misticismo do número quatro também está relacionado ao círculo, o elemento


redondo, o “rotundum, quod aes in quatour vertir”, o redondo que transforma o minério
em quatro, 32 representando uma alegoria da divindade. E o círculo seria também um

29
JUNG, C.G. Psicologia e religião – Obra Completa de C.G. Jung, volume 11/1. Rio de Janeiro: Editora
Vozes, 2012, pg.54.
30
Idem, pg.55.
31
Cf. BAUMGARTNER, M. Die Philosophie des Alanus de Insulis. 1896, II, p.118. APUD JUNG, C.G. Psicologia
e religião – Obra Completa de C.G. Jung, volume 11/1. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2012, pg.71.
32
Cf. MAJER, M [ De circulo, p.27] Apud JUNG, C.G. Psicologia e religião – Obra Completa de C.G. Jung,
volume 11/1. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2012, pg.72.

25
símbolo antiquíssimo, provavelmente pré-histórico [Cf. as “rodas solares” paleolíticas da
Rodésia]. Sobre as qualidades do redondo, Jung afirma que:

Naturalmente é difícil compreender como esta figura abstrata desperta


o sentimento da “mais sublime harmonia”. Porém, se pensarmos nos
dois círculos do Timeu de Platão e na harmoniosa forma esférica da
Anima mundi, talvez não seja difícil encontrar o caminho que leve a esta
compreensão. Além disto, a ideia de “relógio do universo” evoca a
antiga concepção da harmonia musical das esferas.33[fig.5]

Todas estas formas, presentes nos sonhos, na mitologia e no folclore de diversos


povos – material preponderantemente coletivo –foram nomeadas por Jung de arquétipos.
Não obstante algumas críticas dirigidas ao perigo das generalizações de um
arquetipismo 34
, Jung ressalta que estas imagens habitualmente pertencentes às
cosmologias cristãs, mesmo em sua força de sentido incomparável quanto a outras
religiões, não são exclusivas do cristianismo, sendo encontradas com igual frequência nos
repertórios pagãos.

Ao configurar um conjunto cosmológico, esferas, cruzes, estrelas e quadrados, são


signos de um centro que está dentro deles mesmos, um si-mesmo que se refere à alma
humana, formas ditas abstratas, mas que já guardaram o microcosmo medieval. Os
mandalas contemporâneos, para Jung, repetem simbolicamente meios e métodos arcaicos
que antigamente constituíam as realidades concretas. Tal analogia pode ser comparada às
acepções do sagrado e profano que vimos anteriormente em Mircea Eliade, cujas pistas
aparentam grande afinidade com fontes pagãs, iluminando a iconologia contemporânea.
Os círculos construídos nos rituais de conjuração também atestam qualidades de proteção
e força para as fórmulas de magia, atuando como se fossem representações espaciais
imaginárias de universos neles circunscritos.

Para os místicos, as formas geométricas possuíam o dom da emanação, a


propagação de natureza mágica mediante representações, cuja finalidade seria a de atrair

33
JUNG, C.G. Psicologia e religião – Obra Completa de C.G. Jung, volume 11/1. Rio de Janeiro: Editora
Vozes, 2012,pg. 86.
34
“Este não leva a simplificação dos modelos do tempo, mas a sua negação pura e simples, a sua diluição
num essencialismo da cultura e da psique”. Apud DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente –
História da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Ed. Contraponto, 2013,
pg.52.

26
poder e sorte mediante gestos, movimentos na ocupação de espaços imantados. Uma das
fórmulas de construção do círculo mágico na Clavícula de Salomão, evoca as sephiroths,
chamadas de dez emanações Cabalísticas da Deidade:

[...] entre o primeiro e o segundo círculo, que deves tu desenhar com o


instrumento da arte mágica, farás quatro pentáculos hexagonais, e entre
eles escreverás quatro terríveis e tremendos nomes de Deus [...] Além
disso, deves circunscrever os dois círculos com dois quadrados, cujos
ângulos precisam estar voltados aos quatro pontos cardeais da terra; e o
espaço entre as linhas dos quadrado e exterior se tornarão o centro de
quatro círculos, cujo diâmetro será de um pé.35

A teoria linguística da cabala baseia-se na concepção de que por meio das


sephiroths [fig.6] deus se manifesta em dez esferas, com 22 letras que seriam a
configuração da energia divina. Nesse caso, círculos dentro de círculos, hexágonos,
triângulos, quadrados, pontos cardeais, letras e números equivalem tanto ao nome divino
consagrado pela magia, como aos quatro mundos da árvore cabalística e aos quatro
elementos alquímicos, sinalizando que estes se relacionam, na tradição judaica, com as
quatro letras do Tetragramaton ou nome de deus (YHVH).
A estrela de seis pontas, o hexagrama, signo dos mais importantes na magia é o Selo
de Salomão, assim como a de sete pontas, o Pentáculo, é a estrela de Davi. O pentagrama
simboliza o conhecimento e o saber, enquanto o hexagrama era o preferido pelos Magos
da Idade Média. Os livros cabalísticos colocam o hexagrama de Salomão à frente dos
símbolos e signos mágicos, consagrado por sua união com a rainha de Sabá, simbolizando
felicidade, serenidade, rigor e justiça. A estrela possui seis pontas, formada por dois
triângulos equiláteros opostos por uma base e entrelaçados, contendo o Macrocosmos e
o Microcosmos, o Universo e o Homem, segundo os alquimistas.
Mais que tudo, esses signos relembram um centro-matriz quando aproximam-se das
conjunções geométricas, em meio à cabala, à umbanda ou às muitas fontes cristãs.
Vejamos na umbanda, por exemplo, quando uma entidade “chega” no terreiro, se
identifica riscando seu ponto [fig.7] no chão com a pemba, uma espécie de giz com o qual
ela desenha símbolos gráficos, estrelas, triângulos, quadrados, círculos, cruzes entre
outros. As interpretações desses pontos, riscados dentro de círculos, muitas vezes são

35
A Clavícula de Salomão. São Paulo: Selo Chave, 2015, pg.61-62.

27
idênticos aos de muitas iconografias dos tratados de alquimia, da cabala e mesmo da
figuração cristã:

Sobre as formas dos pontos riscados pelas entidades da umbanda, um


ponto representa o início ou o fim; mais de um ponto significam
conjunções, uniões; a linha reta, a vida material; uma linha curva, a
polaridade; o triângulo, a força trina da santíssima trindade; dois
triângulos [hexagrama] ou a estrela de seis pontas representam todas as
forças do espaço; um quadrado com um triângulo, o setenário de onde
emanam as 7 energias; o quadrado, os 4 elementos [água, terra, fogo e
ar]; o pentagrama representa a estrela de davi e o signo de Salomão; três
estrelas podem representar os velhos e as almas; o círculo pode
significar o universo, a perfeição e o todo; um círculo com dois
diâmetros entre si, o plano divino, o quaternário espiritual; círculos
menores e semicírculos, as fases da lua e o círculo com estrias externas,
o sol 36

Por fim vimos que as formas geométricas e os signos mágicos se aproximam, na


medida em que representam formas oriundas da soma de muitos sistemas lógicos e
místicos que orientaram e ainda orientam diferentes épocas e contextos. E aí o cosmos e
seus paradigmas retornam através do saber dessas imagens, um saber anacrônico que
dessemantiza a partir de suas tradições difusas. Mas além da geometria há, todavia, a
astronomia e a astrologia, com seu saber fundamentado por estes signos ancestrais.

1.3 Signos do Celestial

Ou poderás tu atar as cadeias do Sete-estrelo ou soltar os laços do Órion?37

Olhar o céu, o infinito e o transcendente sempre foi, por excelência, uma tomada
de posição frente ao sagrado. Os céus de Ícaro e das elevações, onde aquele que “se eleva
subindo a escadaria de um santuário, ou a escada ritual que conduz ao Céu, deixa então
de ser homem para passar à condição divina”.38

36
Fonte: Mãe Luzia de Iansã em entrevista para a esta pesquisa. Recife, 2016.
37
FERREIRA DE ALMEIDA, João. A Bíblia Sagrada. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993. Livro de Jó,
38:31.
38
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano-A essência das religiões. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2012,
pg. 101.

28
O céu das epifanias populares, lugar de encontros de santos com diabos rimados em
décimas. O céu das estrelas que nos acostumamos a venerar em rezas e invocações.
Estrelinha do céu, estrela reluzente, estrela pequenina, estrela cadente, que se aparecer
riscando de fogo a noite “o doente morre”. Estrela invocada para a cura das ínguas – sai-
se à noite de casa, coloca-se a mão direita sobre a parte inflamada, olha-se uma estrela
qualquer e repete-se três vezes, minha estrela donzela, esta íngua diz que morrais vós e
viva e cresça ela, eu digo que cresçais vós e morra ela ou, “estrela do norte, cruzeiro
sagrado/vamos dar um viva ao cordão encarnado/ estrela do norte, cruzeiro do sul/ vamos
dar um viva ao cordão azul”...

A pesquisa de repertórios e signos pertencentes às culturas populares é comparável


à matrioska antiga que abrimos para encontrar matrizes que se reconhecem em dimensões
distintas. O céu e sua cosmologia, serão aqui a nossa matrioska, ponto de partida por onde
buscaremos signos dentro de signos, e a terra com seu centro e circularidade, mandala e
imago mundo, a série concêntrica onde em um quadrado cabem as proporções humanas.
Porque todas as construções sagradas representam o mundo inteiro, seu centro e a
ruptura entre o céu e a terra, umbigo do mundo, o omphalos, que se chamava umbigo da
terra, encontro do universo que representa a vida. Onde há um signo, uma crença ou um
mito de origem, está la pareja divina39 e primordial: o céu e a terra, tão cantados por
Hesíodo nas suas odes.
A essa hipótese, que se baseia na contraposição alto e baixo, atribuiu-se intenso
valor cultural em todas as épocas. Sua ligação a um elemento especificamente humano
no fluxo das percepções orientou essas categorias na dialética de opostos, categorias
descontínuas era o antigo lema atribuído à Heráclito. Divino influxus, o espírito cósmico,
“numa potência preter-individual e preter-natural atua tanto de baixo para cima como de
cima para baixo” é o espírito cósmico.40 De fato, “cada civilização situou a fonte do poder
cósmico – Deus – nos céus”.41
A esse respeito, uma importante discussão filosófica foi a que se formou sobre as
interpretações da exortação cristã nolli altum sapere, sed time 42 traduzida por São

39
ELIADE, Mircea. Tratado de História de las Religiones II. Madrid: Ediciones Cristandad, 1974. Pg.12.
40
PANOFSKY, Erwin. Renascimento e renascimentos na arte ocidental. Lisboa: Editorial Presença, 1960,
pg.250.
41
GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas, Sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, pg.98.
42
Na Epístola dos Romanos 11.20, São Paulo exortava os romanos convertidos ao cristianismo a não
desprezar os hebreus, [“Não te ensoberbeças, mas teme...”]. Apud GINZBURG, 2014, pg.95.

29
Jerônimo na Vulgata, e que exprimia as disputas teológicas entre católicos e protestantes
no contexto da Reforma. Erasmo, mais de mil anos depois, fará menção ao noli altum
sapere, com um antigo provérbio: Quae supra nos, ea nihil ad nos [Daquilo que está
acima de nós, não devemos nos ocupar]43 aludindo à ironia socrática da ambiguidade do
conhecimento humano em defesa da cultura associada à tradição humanista:

Misturando tipicamente cristianismo e cultura clássica, essas palavras


foram empregadas, por exemplo, como legenda aplicadas aos mitos de
Prometeu e Ícaro. Ícaro que cai dos céus e Prometeu punido por ter
roubado aos céus o fogo divino, foram considerados símbolos dos
astrólogos, dos astrônomos, dos teólogos heréticos, dos filósofos
inclinados a pensamentos ousados, de indefinidos teóricos da política.44

Ícaro e Prometeu estão presentes na Emblematum libellus de Andrea Alciati


[Augsburg, 1531], provavelmente a coletânea de emblemas mais antiga e influente de
todos os tempos. Todavia, é de se notar que, na primeira edição o poema intitulado In
astrólogos estava ilustrado com a figura de um astrólogo a ponto de tropeçar enquanto
olha as estrelas. Nas edições posteriores o astrólogo foi substituído por Ícaro [fig.7 e 8].
Ainda há uma imagem de Prometeu acorrentado enquanto uma águia lhe rói o fígado;
estão aí a realidade cósmica na proibição de olhar os céus e a realidade religiosa de
conhecer os segredos de Deus [arcana Dei] como predestinação.

Os primeiros magos observaram maravilhados o firmamento repleto de estrelas


enquanto o movimento dos astros guiava a existência humana. Foram os caldeus e os
assírios, os adoradores do céu, que fundaram uma astronomia teológica, cuja
interpretação foi denominada de astrologia pelos gregos. E da Babilônia vieram os
primeiros astrólogos, adivinhos, magos proféticos, curandeiros, que já se assemelhavam
a bruxos. A fascinação do ser humano pelo sobrenatural contribuiu fortemente para o
crescimento histórico de sua cultura. Malinowski mantém a convicção de que a magia é
“consequência da frustração humana: quando o homem se sente incapaz de resolver um
problema por seus próprios meios, recorre à magia”.45

43
GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas, Sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, pg.100.
44
Idem, pg.100.
45
MALINOWSKI, Bronislaw. Magia, ciência e religião. Barcelona: Edit. Ariel, 1992. Apud BLANCO, Juan
Francisco. Brujería y otros ofícios populares de la magia. Salamanca/Valladolid: Ed. Ámbito, 1992, pg.15.

30
Assim, na antiguidade tardia, as doutrinas astrológicas se viram em meio aos
impasses da sistematização racional do conhecimento herdado dos gregos e as práticas
mágicas herdadas do Oriente. Com a união da astronomia e da astrologia, as figuras do
astrônomo e do astrólogo situaram-se nos limites entre o enigmático e o rigor das ciências,
fazendo com que o trânsito entre o conceito de paganismo e o de teologia criasse a ilusão
de que os fenômenos divinos encontravam-se em sintonia com a natureza e o destino do
ser humano:

A interpretação dos sacrifícios sangrentos constituiu também um ramo


importante da ciência dos caldeus. Ocorre o mesmo com a observação
de augúrios, o significado dos prodígios, o uso dos encantos e dos
sortilégios. Organizados em colégios, os magos da Babilônia
transmitem os ritos e mistérios como um grande segredo iniciático. [...]
O grande profeta, Zoroastro, da Pérsia, foi o legislador da magia:
atribuem a ele livros sagrados. Atenas e Roma o consideram
definitivamente o criador da magia.46

Segundo Warburg, os astrólogos do tempo da Reforma percorreram de uma ponta


a outra justamente esse antípoda [que se mostra irreconciliável para a ciência hoje] entre
a abstração matemática e o vínculo de culto de veneração:

A lógica que cria o espaço reflexivo [entre o ser humano e o objeto] por
meio da designação conceitualmente especificadora, e a magia, que de
novo destrói esse mesmo espaço reflexivo entre o ser humano e o objeto
por meio do vínculo ideal ou prático supersticiosamente agregador –
observamos ambas no pensamento profético da astrologia, formando
ainda um aparato unitariamente primitivo, com o qual o astrólogo pode
de uma só vez medir e conjurar magia.47

A astrologia era determinante na fronteira que separava a ciência e o hermetismo


da Renascença, governando o destino das pessoas com um tipo de saber que jamais se
configurou como rigoroso, mas que, no entanto, almejava ser. “Para superar essa
dificuldade os astrólogos misturavam matemática com as cerimônias e, simultaneamente,
apelavam para uma hermética religiosa”.48

46
RIBADEAU DUMAS, François. Historia de la Magia. Tradução Ramon Planes. Barcelona: Plaza & Janes,
S.A., Barcelona, pg.58.
47
WARBURG, Aby. Histórias de fantasmas para gente grande. São Paulo: Companhia das letras,
2015, pg.133.
48
[ROSSI, 1992, p.39]. Apud BARBOSA NETO, Geraldo. As Ciências que os astros assinalam. São Paulo:
PUC, 2012.

31
No entanto, as hierarquias cósmicas, religiosas e políticas, geradas pelo
desenvolvimento da astronomia a partir do início do século XVI, propiciaram olhar os
céus com a invenção do telescópio, que serviria a homens como Galileu e Kepler. A
condenação do sistema heliocêntrico pela Igreja romana foi justificada como um gesto de
intolerância a essa nova cosmologia celeste.

A obra A Conjuração de saturno e júpiter, século XV, integra o Hibbur ha-gadol de


Abraão Zacut [1450-1522], e pode ser considerada a ponte entre os catálogos de
constelações conhecidos como as tábuas afonsinas e as rudolfinas.[fig.10]49 Zacut, judeu
sefárdico, rabino, astrônomo, matemático e historiador, serviu na corte do Rei João II de
Portugal e ficou conhecido pela produção astronômica no Renascimento, entre tábuas e
almanaques. Organizou o Almanaque Perpetuum [fig.11], que veio a ser traduzido para
o latim e o castelhano, e continha tábuas astronômicas que foram utilizadas, juntamente
com o seu astrolábio de metal, por Vasco da Gama nas suas viagens. Segundo Jerusa
Pires Ferreira, à grande contribuição dos gregos e depois à dos astrônomos árabes foi
incorporada ao “repertório cabalístico dos judeus e cristãos e outros canais, que vieram a
ser substância da astrologia da Idade Média, formando, sob a designação de astrologia
judaica, um tipo especial de conhecimento”.50

Todo este repertório de grafismos e signos, ao qual sempre se atribuiu grande poder
mágico, foi aos poucos formando um conjunto determinante, das imagens pagãs às
iconografias religiosas, cujas matrizes derivam de outro tempo e espaço e que foram se
reorganizando de acordo com seu tempo e espaço. Além desse aspecto, sua importância
e riqueza são inegáveis, já que nasceram de contextos sagrados, filosóficos ou de tratados
alquímicos e religiosos. A utilização desse repertório inspirou o olhar para os céus e a
prática de sistemas lógicos e mágicos, instaurando novos sentidos determinantes para o
imaginário que se construiu sobre o cosmos em sua visão física, mas, também
transcendental.

49
As Tábuas afonsinas são tábuas astronômicas elaboradas por iniciativa de Afonso X, o Sábio, no século
XIII, e que contêm as posições exatas dos corpos celestes em Toledo desde 1º de janeiro de 1252, ano da
sua coroação. Tabulae rudolphinae [1627, Tábuas Rudolfinas], foram publicadas pelo astrônomo
Johannes Kepler [1571-1630] e usadas por mais de um século no cálculo das posições planetárias.
50
PIRES FERREIRA, Jerusa. O Livro de São Cipriano: Uma Legenda de Massas. São Paulo: Editora
Perspectiva, 1992, pg.59.

32
1.4 Signos Mágicos: um saber de ouvido

O mosaico que compõe os volumes da Memória do Fogo abriga as vozes dos mitos
indígenas pré-colombianos, imagens transfiguradas em elementos da natureza, animais,
cidades sagradas e uma consciência que se revela nos fulgores das palavras e dos olhos.
No capítulo sobre a magia, há a voz que narra: A rã tinha ensinado a velha muito velha
a curar e a matar, escutar vozes que não se ouvem, e a ver cores que não se veem. 51 Por
meio da transfiguração mágica, a velha bruxa [ainda criança], aprende com a rã o ofício
da encantação e configura a matriz da mágica da criação: a velha recolheu em suas mãos
o próprio sangue e soprou-o para o sol.
Do maravilhamento das lendas da antiguidade aos mitos da Ameríndia, ao
Romanceiro e aos contos populares, presentes nos livros de cavalaria da épica medieval,
às lendas de santos e superstições, tem-se um conjunto de saberes que circula formando
uma grande narrativa. Trazem consigo a herança de relatos bíblicos e simbologias
arcaicas e as marcas vindas do mundo egípcio, da cabala hebraica, dos gregos, caldeus e
persas, além de acercar-se de grandes temas como a astrologia, a medicina e a alquimia.

As especulações de teólogos, filósofos e alquimistas já pertencem à uma história


da magia 52 que Marcel Mauss define como qualquer rito que não faça parte do coletivo,
portanto particular, secreto e misterioso, não por serem ritos, mas pelas condições que
criam no conjunto das práticas sociais. Já para o antropólogo Bronislaw Malinowski, a
magia é uma arte específica para fins específicos, legado de geração a geração, com suas
simpatias e saberes herméticos, magos e charlatães, profetas, curandeiros, sibilas, todos
praticantes de feitiços e sortilégios, com seus animais, plantas, frutos mágicos, talismãs e
jogos esotéricos. A mente e o corpo, a memória, os números mágicos, os alfabetos e
imagens, as portas, cidades, sociedades secretas, superstições e livros de conjurações.
Graças à magia, as coisas “deixam de ser o que são para converter-se no que desejamos
que sejam”.53

51
GALEANO, Eduardo. Os Nascimentos. L&PM. São Paulo, 1996, pg. 58.
52
MAUSS, Marcel. Esboço de uma teoria geral da magia. Lisboa: Edições 70, 2000, pg.7. Cf. também
Malinowski Bronislaw. Magia, Ciência e Religião. Edições 70, 1984: “a magia é construída através da
tradição. [...] é oculta, ensinada através de misteriosas iniciações, transmitida hereditariamente ou pelo
menos com grande seletividade”
53
RIBADEAU DUMAS, François. Historia de la Magia. Tradução Ramon Planes. Barcelona: Plaza & Janes,
S.A., Barcelona, pg.11.

33
Quanto à origem, a palavra magia foi instituída entre os latinos, sendo μаγϵιа entre
os gregos, embora seu conceito seja muito mais antigo, e muitos especialistas admitem a
hipótese de que as primeiras práticas mágicas haveriam surgido nas pinturas rupestres da
era paleolítica:

Este homem primitivo pintava o coração dentro dos animais, tal e como
se observa hoje em algumas exposições de arte pastoril ou de certos
bordados da Serra da França, ao sul de Salamanca.54

Para os caldeus as práticas de magia foram determinantes para o conhecimento da


astrologia, já os persas compreendiam essas práticas de forma mais abstrata e os egípcios,
de modo teúrgico, associando as práticas do maravilhoso ao sobrenatural. Portanto, essas
três culturas, somadas à grega, à romana, e à hitita, irão formar, juntamente com a cultura
islâmica, o conjunto de conhecimentos originários para a magia.

Inicialmente, a arte mágica teria surgido na Pérsia55, e muitos autores anunciam


haver sido obra de Zoroastro, que Demócrito, por sua vez, trouxe à luz, portanto, mais
compreendida como uma revelação do que uma invenção. Se a Cabala revelou as virtudes
mágicas das cifras, deve-se à Pitágoras, muito antes dela, a decifração contida nos
segredos dos números, que para ele representavam o signo da cifra. Mas a magia teve seu
ponto alto no século XVI, quando Fausto, Paracelso e Cornélio Agripa, foram à Praga
estudar como discípulos do abade Juan Tritemo:

Estão aí os três magos mais ilustres da Idade Média, os herdeiros de


longos séculos de desenvolvimento das ciências ocultas; e segundo a
tradição na História, é em Praga onde se transmite o saber de ouvido.56

Nessa época a magia era tida como uma ciência e dividia-se em mântica [ou
adivinhação], matemática [ou uso de números], sortilégios, malefícios e prodígios. A
mântica teria cinco ramificações: nigromancia [para os mortos], geomancia [para a terra],
hidromancia [para a água], aeromancia [para o ar], e piromancia [para o fogo].

A matemática compreendia os harúspices, os augúrios e os horóscopos. As


entranhas dos animais, o voo dos pássaros, o movimento das estrelas, dos eclipses e dos

54
BLANCO, Juan Francisco. Brujería y otros ofícios populares de la magia. Salamanca/Valladolid: Ed.
Ámbito, 1992, pg.23.
55
Veja-se Isidoro de Sevilha. Etimologias.[560-636]. Apud RIBADEAU DUMAS, pg.58.
56
Idem, pg.21.

34
cometas, eram matéria para estudo. Os sortilégios utilizavam as sortes e os malefícios
procediam por encantação demoníaca, ao delimitar a distinção entre magia branca
[teurgia] e magia negra [goetia]. As Tábuas apareceram, provavelmente pela primeira
vez, nas edições do suposto tratado aristotélico Secretum Secretorum, que era, supõe-se,
a tradução de um livro árabe de conselhos aos reis, traduzido para o latim. Durante o
mesmo período, foram feitas outras traduções da Tábua por Platão de Tivoli e Hugo de
Santalla, talvez de diferentes fontes. É interessante como os gregos e os egípcios traduzem
a palavra esmeralda: pedras verdes e talvez jaspe verde. Na Idade Média as Tábuas de
Esmeralda [fig.12] dos reis góticos de Espanha e o Sacro Catino, o prato que dizem ter
pertencido à Rainha de Sabá, e que foi utilizado na última ceia de Jesus, eram de vidro
verde esmeralda.

Em sentido estrito, a magia abrange toda intenção de dominar as forças


sobrenaturais sem recorrer à religião em si, porém, nas culturas populares há um
entrelaçamento que desfaz essas fronteiras, ou seja, “não existe na mentalidade popular,
salvo algumas exceções, conflito entre as atribuições da religião e a magia, posto que tais
atribuições, de uma e de outra, não se encontram alinhadas”.57 O termo magia sempre
esteve associado a determinados círculos de iniciados e detentores de segredos e chaves,
mas também não se deve esquecer seus vínculos com a tradição oral através da
transmissão de fórmulas, mezinhas e rituais, com os quais o povo sempre acreditou
possuir, direta ou indiretamente, canais de comunicação com poderes ocultos e
sobrenaturais.

Desse modo, o cosmos e toda gravitação celeste, segundo as doutrinas dos séculos
XV e XVI, direcionavam a vida das pessoas. Para fazer isso ou aquilo necessitava-se
saber a melhor posição dos astros, a correspondência entre as partes do corpo e para a
medicina era imprescindível saber a configuração dos planetas, fazendo da astrologia a
ciência que unia o céu e a terra e ligava o humano à divindade. A lua provocava
melancolia, vênus, o amor, mercúrio favorecia o comércio e as artes e o sol glorificava as
riquezas. Sob esse influxo astral os jovens magos se ocupavam, convertiam-se em
mestres: Fausto, Paracelso e Agripa triunfaram também na arte dos horóscopos [fig.13].

57
BLANCO, Juan Francisco. Brujería y otros ofícios populares de la magia. Salamanca/Valladolid: Ed.
Ámbito, 1992, pg.17.

35
No entanto, o hermetismo, e em seguida a cabala, conduziram também à goetia, a
prática invocatória à Lúcifer, o príncipe das trevas, que a partir de então ocupou o lugar
do sábio e da ciência para concorrer em igualdade com Iavé. O demônio dava o poder, o
saber e a igualdade divina: eritis sicut dei, ou serei como os deuses. O sabbat medieval
foi “o sonho exasperado de uma fonte de prazer, de libertinagem, uma orgia que abranda
o homem, a angústia, e o instinto”58; a bruxa uniu-se aí ao diabo através do ato sexual.
Segundo Paracelso, a pedra filosofal conciliou os contrários e os irmãos inimigos,
coincidentia oppositorum.

A Igreja não admitia essas práticas, mas pouco depois da morte desses três magos,
Nostradamus fixou essa ciência para sempre, já que a partir daí será impossível estudar a
natureza sem ser um mestre na arte da astrologia. Disse-se, com razão, que foi “a paixão
pela bela linguagem e o raciocínio claro dos filósofos pagãos – Homero, Platão e
Aristóteles – o que atualizou a permanência dos antigos e proporcionou o
desenvolvimento, no século XVI, da astrologia, da magia e em seguida da
demonologia”.59

Esses fatos já repercutiam no universo mental por volta do século XIV, já que aí
não existia a noção do impossível, nem a distinção entre o espaço que separava o natural
daquilo que hoje nós concebemos como sobrenatural:

No mesmo espaço cultural em que aparece o Malleus Maleficarum,


multiplicaram-se, na época, as imagens do sabbat e das feiticeiras. O
Tugendspiegel, de Hans Vindler, editado em Augsburgo em 1486,
compõe-se de gravuras sobre esse tema. As xilografias mais célebres,
em número de seis, inúmeras vezes reproduzidas, ilustram o tratado De
Lamis et phitonicis mulieribus, publicado em Constância em 1489, e
reeditado umas quinze vezes nos cem anos seguintes [...].60

A demonologia, seus rituais e seu repertório de significados se estruturavam


através de oposição e inversão: “O Diabo como o macaco de Deus, forças que agiriam a
contrariis. Pois a unidade está em Deus e a dualidade [le binaire] em Satã”.61 Suas ações

58
RIBADEAU DUMAS, François. Historia de la Magia. Tradução Ramon Planes. Barcelona: Plaza & Janes,
S.A., Barcelona,, pg. 281.
59
Idem pg. 251.
60
KADANER-LECLERQ, J. apud MUCHEMBLED, p. 66.
61
Sir Phlip Sidney, The defense of poesie, [London, 1595], ass. E4v. Apud CLARK, Stuart. Pensando com
demônios. A ideia de bruxaria no princípio da Europa moderna. São Paulo: Edusp, 2006, p. 121.

36
seriam antitéticas, em termos narrativos, polaridade e contrariedade eram atribuídas à
queda.

Os tratados e livros de magia proliferavam, principalmente com o Malleus


Malificarum ou o Martelo da Bruxa [1487], o exaustivo manual de caça às bruxas,
publicado na Alemanha em 1487, que logo receberia dezenas de novas edições por toda
a Europa. Essas publicações provocaram um profundo impacto no julgamento de pessoas
acusadas de bruxaria por cerca de duzentos anos. Para a Inquisição caberia às mulheres
o papel de representantes de todo os malefícios:

E assim, as mulheres, para provocar mudanças nos corpos alheios usam,


às vezes, certas coisas que vão além de nosso conhecimento, mas fazem
isso sem a ajuda do diabo [...] Além do mais, elas usam imagens e
alguns amuletos, que costumam colocar embaixo das ombreiras das
portas das casas, ou no campo em que pastam rebanhos, e desse modo
enfeitiçam [...] Mas como essas imagens podem causar efeitos tão
extraordinários, parecendo que sua influência é proporcional à que
exercem os astros sobre o corpo humano, pois da maneira como os
corpos naturais são influenciados pelos celestes, assim podem ser os
corpos artificiais.62

Objetos, imagens e publicações, passam ser cultuados e banidos por conterem


poderes mágicos. No Sermão do Demônio Mudo o Padre Vieira descreve uma curiosa
visita da Inquisição, em 1615, empreendida pelo Papa Inocêncio X com a finalidade de
renovação dos conventos, encontrando grande resistência por parte das freiras que se
recusam a abdicar do uso dos espelhos136, denominados no sermão como “demônio mudo
das Escrituras, pois “como o demônio, [o espelho] teve uma origem natural, depois
degenerada em vício: analogamente, à contemplação de si, ajunta a tentação de ser
semelhante a Deus”:63

Elegeu Sua Santidade em Roma um Religioso de grande virtude e


prudência, e mestre do espírito muito experimentado, ao qual
encomendou que viajasse de secreto aos Conventos das Religiosas, não
só em comum, senão também nas celas ou aposentos particulares: e que
procurasse de lhes tirar [não por violência, mas com a suavidade de
santas exortações] tudo o que julgasse menos decente à fé. Fê-lo assim
o visitador [...] havendo nos ditos aposentos algumas alfaias, ou peças

62
Cf. Malleus Malificarum – O martelo das Bruxas. Tradução de Alex H.S., 2007:
http://pt.slideshare.net/LordKianrul/malleus-maleficarum-parte-1-portugus
63
VIEIRA, Pe. Antônio. Sermões; Org. Alcir Pécora. São Paulo: Hedra, 2003, pg.336.

37
de maior preço ou curiosidade [...] posto que com alguma repugnância,
as fizera despedir, e aplicar a melhores usos, exceto somente uma [...]
Então perguntou Sua Santidade, que alfaia ou que peça era aquela? Ao
que respondeu o visitador que o Espelho. O Espelho? Beatíssimo Padre,
sim.64

“Pitágoras possuíra um espelho mágico, como os bruxos da Tessália”. 65 Assim


foram sendo atribuídos poderes aos objetos em associação a gestos e palavras, signos
imantados que passaram a fazer parte do imaginário influindo principalmente no
cotidiano das mulheres, que passaram então a serem perseguidas como representantes do
mal.

No Brasil, a partir do século XVI, a presença do diabo foi oficialmente proclamada


e “o documentário da Visitação do Santo Ofício, dois volumes da Bahia e um de
Pernambuco, registram sua comunicação com as bruxas fiéis, algumas sabendo até criá-
los em vidrinhos, como filhinhos, tornando-os familiares, os Famaliás, espécie de
diabinho doméstico, servo da feiticeira”.66

Uma observação a parte, ao pesquisar anteriormente a figura do Fausto, 67


observamos que a ascensão dos poderes do diabo não aconteceu apenas como
consequência das transformações religiosas ocorridas a partir do século XIII no Ocidente,
mas por seu alinhamento a fenômenos culturais, sociais, políticos, intelectuais e

64
VIEIRA, Pe. Antônio. Sermões; Org. Alcir Pécora, 2003, p.339. Ver também a interessante passagem do
mesmo sermão: ”Postos, pois, fora dos nossos tempos e fora da Cristandade, antes de Salomão edificar o
famosíssimo Templo de Jerusalém, fabricou Moisés outro Templo menor e portátil chamado Tabernáculo
[...]. E sendo uma das peças notáveis deste Tabernáculo um tanque, ou lavatório grande para uso e
purificação dos Sacerdotes, antes de entrarem a sacrificar, diz o Texto sagrado, que este lavatório era
fundido de bronze, e que este bronze era dos espelhos das mulheres, que de dia e de noite, oravam e
serviam o Tabernáculo. Não faça dúvida ser o bronze dos espelhos, porque os espelhos ordinários daquele
tempo eram de bronze, como tinham sido os primeiros de estanho, e depois se fizeram também de prata
e ouro, guarnecidos de pedraria”. [p. 350].
65
RIBADEAU DUMAS, François. Historia de la Magia. Tradução Ramon Planes. Barcelona: Plaza & Janes,
S.A., Barcelona, pg.253
66
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Belo Horizonte; Rio de Janeiro: Ed. Itatiaia,
1993, p. 292. Encontramos uma interessante analogia dos famaliás no simbolismo da Cabala na versão
demiúrgica fantasmagórica do golem: “Depois de pronunciar certas preces e observar certos dias de
jejum, os judeus poloneses fazem a figura de um homem de barro ou de lodo, que deve tomar vida ao ser
pronunciado sobre ele o miraculoso Schemhamphoras [o nome de Deus]. Ele não pode falar, mas entende
razoavelmente bem o que é dito ou ordenado. Chamam-no de golem e empregam-no para executar toda
espécie de serviços domésticos”. Cf. SCHOLEM, Gerson. A cabala e seu simbolismo. São Paulo: Ed.
Perspectiva, 2015, pg.190.
67
SALAZAR, Jussara Farias de Mattos. Ariano Suassuna e o Fausto: Um passeio nos jardins do diabo.
Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2010.

38
econômicos. Esses acontecimentos traduziram um conjunto de transformações
determinantes para o surgimento de uma nova identidade coletiva, com suas contradições
e fatores de unificação, inclusive dentro do próprio cristianismo, instaurado novos
modelos de relações entre o homem, o poder e a sociedade:

Além disso, a arte gótica do século XIII não aceita colocar o diabo em
um lugar medíocre. Esmagado pelo Cristo em majestade nos frontões
das catedrais, relegado ao papel de servir apenas para valorizar ainda
mais a beatitude dos eleitos em marcha para o paraíso, ele se torna
quase humano, simplesmente um pouco enfeado, brincalhão ou
zombador.68

A acentuação negativa e maléfica do demônio veio, de fato, a partir do século


XIV com a força dos discursos laicos e a centralização do poder em marcha; nessa época,
as relações feudais e vassálicas, em crise, empurrarão o discurso sobre o diabo em direção
às novas teorias esboçadas e à arte cumprirá com o papel decisivo de ilustrar e dar vida
à figura demoníaca.

Os signos dessa ascensão podem ser vistos nas paredes do Camposanto de Pisa
nos afrescos O Julgamento Final, O Inferno e no famoso Triunfo da Morte, cuja
controversa autoria é atribuída, provavelmente, a Buonamico Buffalmacco ou Francesco
Traini. O Triunfo da Morte é considerada uma das melhores e mais poderosas obras do
trecento porque vivifica a onipresença da morte de forma drástica. Outra grande marca
iconográfica da ascensão da figura do demônio foi a Comédia de Dante.

Prosseguindo, em toda parte apareciam os Espíritos Guardiões do Tesouro,


segundo as fórmulas das Clavículas de Salomão. Paixões, sortilégios, adivinhações,
presságios, aparições, encantos, talismãs, malefícios, anéis de invisibilidade, filtros do
amor e da morte, constituíram assim a matéria de aprendizagem de todos os magos. A
teurgia, a ciência do maravilhoso e do êxtase divino realiza sobre seu altar o grande gesto
secreto do Universo, com pantáculos e círculos operatórios.

Difundiam-se muitos mitos na Idade Média, como o das cabeças falantes, a cabeça
mecânica construída pelo Papa Silvestre II, que responderia a qualquer pergunta que se

68
MUNCHEMBLED, Robert. Uma história do diabo. Séculos XII-XX. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2001, p.53.

39
fizesse, compondo uma coletânea de encantos e sortilégios medievais; dizia a lenda de
que tanto Virgílio como Alberto Magno seriam possuidores de uma.

Aos serafins, aos querubins e aos tronos da angeologia cristã opõem-se os gênios
das trevas, satanás, behemot, leviatã e os vermes da sombra, da ignorância e do mal,
mencionados na cabala: “O homem consagrado para a ascese do bem, operará, graças ao
Deus dos milagres. O homem consagrado ao mal, ao inferno, o satanista, levará ao cabo
prestígios assombrosos. Serão as forças Infernais”.69 O livro de Magia do Papa Honório,
as Clavículas de Salomão [fig.14], por fim, não faziam mais do que seguir as afirmações
dos gregos, que viam gênios intermediários que iam e vinham, entre os deuses e os
homens.

Falava-se muito do anel mágico de Asmodeus, que o rei Salomão haveria


presenteado à rainha de Sabá, para afugentar os espíritos. Os cabelos eram associados aos
encantos demoníacos, e os magos deviam deixá-los, e também as unhas, crescidos, assim
como deveriam ter a barba comprida e de forma pontiaguda; por essa razão, a cabeça das
mulheres consideradas como bruxas, era raspada. A bruxaria aparece como crença, como
prática, uma religião permanente para as multidões medievais. A Inquisição, fundada
desde 1220, codificou toda magia e a bruxaria; bruxos, adivinhos e invocadores do
demônio.

O processo dos Templários, o processo de Joana D’Arc, a queima de mulheres e


grandes sábios, alquimistas, filósofos e intelectuais, todos acusados de fazer pactos com
o demônio e praticar magia

E quanto mais miserável é o corpo, mas se agita o demônio. Sobretudo


a mulher, está habitada, cheia desses tiranos, que a saturam de uma aura
infernal, fazendo-a jogar mediante seus caprichos, fazendo-a pecar e
desesperando-a. Desgraçadamente, toda a natureza, não apenas os
humanos, converte-se em demoníaca. Se o diabo está em uma flor,
quanto mais em um bosque sóbrio!70

Os rituais satânicos, os livros de magia, com todas as fórmulas, encantações e


gestos, passaram a invocar o príncipe. Possuir um pentáculo de Saturno, munir-se de
pólvora, enxofre, e não esquecer a varinha mágica, de salgueiro, colhida à luz da lua, com

69
Idem pg.268.
70
MICHELET, Jules. La Bruja - Un estudio de las supersticiones en la Edad Media. Madrid: Akal
Ediciones, 2006, pg. 47.

40
seus sete anéis de sete metais planetários: Sol, ouro; Lua, prata; Mercúrio, mercúrio;
Vênus, cobre; Marte, ferro; Júpiter, estanho, Saturno, chumbo. A espada de mago traz
gravado o signo de saturno em um hexágono. Cumpre-se o ritual da Clavícula. Coloca-
se tudo no interior do triângulo, com a varinha e os textos das conjurações. A grande
chave das Clavículas de Salomão, segue como o melhor guia para invocar o Satanás. Mas
para ser eficaz, o livro das Clavículas deveria ser copiado pelas próprias mãos do mago:

O que vale este livro? Certamente é apócrifo, como os demais, porém,


verdadeiramente contém algo do célebre Livro de Magia, o mais célebre
da Alquimia. Seu capítulo “Das artes Mágicas ou Nigromânticas e o
que é preciso observar para falar com os espíritos” restabelece os nomes
correntes naquelas artes para evocar os Espíritos.71

Posteriormente, a Magia encontraria seu caminho, no magnetismo, no hipnotismo


e nas teorias do Espiritismo, bem como nas religiões de origem africana, a Umbanda e o
Candomblé. Ao largo de toda história, os atos de magia, as profecias, os prodígios, os
feitiços, as curas, os exorcismos, a levitação, a transfiguração, a ressurreição dos mortos,
aparições e palavras vindas do céu, formam uma lista de prodígios relacionados ao poder
oculto, e que o Novo Testamento irá ressignificar como milagres.
Desse modo, Moisés transformou seu bastão em serpente utilizando uma vara
mágica, emblema de poder real para demonstrar seu poder. Na recorrência ao número
sete, o texto do Êxodo expressa pura magia:

“Há sete pássaros mágicos, sete peixes, sete quadrúpedes, sete pedras
mágicas, sete metais, e sete signos cabalísticos. O banho purificador de
João Batista, as aparições e chuvas de pedra, também o seriam. Na
Bíblia, com os magos profetas, há narração de combates e rituais
mágicos, desde a serpente de bronze, a arca mágica, o Urim e o Tumim,
as colunas do Templo, o selo de Salomão, o escudo de David, os
pentáculos, o hexagrama e o pentagrama, selam, definitivamente, a
integração da magia nas práticas culturais e ritos hebraicos”72

O poder mágico que emana das Escrituras, o poder do nome, escrito ou


pronunciado, são recorrências bíblicas. Na construção do templo de Salomão, o Livro dos
Reis [XXIII-4-12] fala de idolatrias ao templo: “O Rei, mandou ao sumo sacerdote
Helcías..., que tirassem do templo de Javé todos os seres que haviam sido feitos para

71
RIBADEAU DUMAS, François. Historia de la Magia. Tradução Ramon Planes. Barcelona: Plaza & Janes,
S.A., Barcelona, pg.294.
72
Idem, pg. 82.

41
Baal. Expulsou os sacerdotes dos ídolos, postos pelos reis de Judá, para queimar
perfumes para Baal, para o Sol, para a Lua, para o Zodíaco e para toda a milícia do
céu”.
Consequentemente, a Bíblia, o Grande Código da arte e da literatura ocidental,
sempre foi lido como “produção simbiótica de novos textos, como intertextualidade e
palimpsesto, como código, e consequentemente suscetível de recodificação e
reinterpretação”. 73 O livro de Salomão, para sempre, o grande livro do príncipe dos
magos, o mago dos magos e o primeiro nigromante. As Clavículas de Salomão, as chaves
do ocultismo a ele atribuídas, foi o breviário de todos os magos, o livro de magia mais
venerado e pleno de sortilégios.

Não há como não escutar Santa Terezinha e Santa Catarina na intenção de todas as
Santas da Corte Celestial para se conseguir um amor ou quando Alibeck, o mago
recomenda “outrossim, que se faça uma pequena plantação de flores ‘nas terras próprias
da casa’ sendo que em cada canteiro deverão ser enterrados os seguintes talismãs: uma
Ferradura do Mar, um Cavalo Marinho e uma Estrela do Mar”.74

Finalmente destacamos a textualidade da narrativa mágica, que apresenta


elementos do fantástico e do maravilhoso. Estão aí a natureza incerta da relação entre o
real e o imaginário, e que Todorov define como a “hesitação experimentada por um ser
que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural”.75
Os anéis, os amuletos, os talismãs, as palavras pronunciadas ou escritas, os números
mágicos, e a encantação, são signos a serem decifrados.

1.5 Signos dentro de Signos: metáforas cosmológicas

1.5.1 A palavra

Em sua instrumentalização a magia sempre utilizou amuletos, talismãs, imagens,


palavras e sons pronunciados como metáforas em nome de uma verdade que lhe foi
legitimada. E também encontrou no corpo um gesto para produzir efeitos sobre objetos,

73
CAMPOS, Haroldo. Eclesiastes. São Paulo: Perspectiva, 2004, pg.18.
74
A Verdadeira Cruz de Caravaca.
75
TODOROV, Szvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2007, pg. 31.

42
assim como os objetos atuavam nesse corpo mediante rituais de transferência. O elemento
sobrenatural, místico e divino assim se manifestava, agregando poderes a esses
elementos, tanto nas invocações para um desejo a ser concretizado como no pagamento
pelo já obtido.
Um dos meios de difusão mais importantes para a iniciação destes conhecimentos
sempre foram os livros de fórmulas e receitas mágicas que passaram a ser organizados
em coleções a partir do final da Idade Média. Eram livros dentro de livros, signos antigos
e recriados, formulados para o praticante ou o aprendiz dessa magia. Verdadeiros
compostos de imagens e textos, essas publicações, segundo Jerusa Pires Ferreira,
organizaram-se como matéria fluida e espalhada, a partir de certos eixos, como
“contínuos mediúnicos, textuais e teatrais”.76Veremos, a partir de alguns exemplos, como
essa textualidade e teatralidade foram encontrando força por meio do escrito e do oral,
em espaços secretos onde “ o objeto é que vai em busca de tudo o que pode explicá-lo,
signos verbais ou visuais, símbolos e marcas, produção de uma narratologia que aproxima
linguagens arcaicas a procedimentos que o mundo popular resguardou”.77
No livro de São Cipriano, o bruxo - Capa Preta, entre orações e mezinhas
encontramos, por exemplo, o “feitiço da maçã do amor”. Ambientado em um tipo de
locus amenus, na receita as palavras soam adâmicas. Há o apelo a uma adoração de
nomes, fazendo com que todo mistério pareça “tornar-se sensível quando revestido de
imagens”:

Retire a maçã da árvore antes que caia e escreva sobre ela as palavras
ALEO + DELEO + DELATO e diga: ‘Eu te conjuro maçã com estes três
nomes que estão escritos em ti, que qualquer mulher ou moça virgem
que te toque e te prove possa me amar e queimar de amor como cera
derretida”.78

A respeito da veneração atribuída às palavras, Huizanga observa que o fenômeno


se intensificou na época medieval, onde a necessidade de adorar o inefável sob formas
visíveis não cessava de criar novas figuras. “No século XV, a cruz e o cordeiro já não
bastavam para as efusões de amor transbordante que se ofereciam a Jesus; a eles se junta
a adoração ao nome de Jesus, que por vezes ameaça eclipsar a própria cruz”.79

76
PIRES FERREIRA, Jerusa. Cultura das Bordas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2010, pg. 100-104.
77
Idem, pg. 57.
78
São Cipriano, o bruxo – Capa Preta. Rio de Janeiro: Pallas editora e distribuidora, 1997, pg. 194.
79
HUIZANGA, Johan. O declínio da Idade Média. Braga: Editora Ulisseia, 1996, pg. 209.

43
Nesse contexto, as transformações aspiram a expressões marcadas por símbolos
visuais, “numa época em que a vida, em todos seus aspectos, é dominada por e se
emaranha com diferentes formas de se posicionar diante das questões do espírito”.80 O
símbolo enquanto “uma representação que faz aparecer um sentido secreto, é a epifania
de um mistério”81 e sendo epifania é aparição, através do e no significado do indizível,
para Gilbert Durand. A liturgia cristã ortodoxa, na ornamentação da iconóstase, ou o
sacramento da Eucaristia, demonstra que a imagem simbólica [ícone] é simultaneamente
anamnese, cujo tipo é o sacramento de comunhão, e epiclese, cujo tipo é Pentencostes:

Estas coisas ausentes ou impossíveis de perceber, por definição, vão


ser, de maneira privilegiada, os próprios sujeitos da arte, da religião, da
magia: causa primeira, fim último, finalidade sem fim, alma, espíritos,
deuses etc.82

No mundo medieval havia tumultos quando se falava em superstição e idolatria. A


palavra incorporara uma força encantatória nova: “Henri Suson manda tatuar o nome de
Jesus sobre o coração e compara-se ao amante que usa o nome da amada bordado nas
vestes. Bernardino de Siena, ao terminar um sermão comovedor, acende duas velas e
mostra à multidão um painel de quase um metro tendo escrito sobre fundo azul o nome
de Jesus em letras de ouro envolto em raios de sol”.83 A abundância de imagens na qual
a religiosidade medieval mergulhara produzia “apenas uma fantasmagoria caótica se a
concepção simbólica não a houvesse envolvido num vasto sistema onde cada figura tinha
o seu lugar”.84
Se as palavras invocadas, os signos, caracteres e selos, eram produtos da cultura ou
da natureza, era questão a ser discutida, assim argumentava-se que “se elas agiam sobre
pessoas e objetos de modo causal, quem quer que as proferisse em alguma ocasião

80
CASSIRRER, Ernst. Indivíduo e Cosmos na filosofia do Renascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2001,
pg. 125.
81
DURAND, G. A imaginação simbólica. Lisboa: Perspectivas do Homem/Edições 70, 1993, pg. 12.
82
É preciso notar que os filósofos utilizam signo e símbolo ao contrário dos teólogos e linguistas. Para
estes, o signo é plenário, ou mesmo natural, enquanto o símbolo é convencional. Ver B.MOREL. Le signe
sacrè, pg.37; J.-L. LEUBA. Signe et symbole em thèologie, em Signe et symbole; P.GUIRAUD, La
semanthique, pg13. Apud DURAND, 1993, pg.11.
83
Idem, pg. 209.
84
Ibid., pg. 210.

44
produziria sempre os mesmos resultados, uma decorrência obviamente falsa, tanto para
autores sobre bruxaria como para qualquer pessoa da época medieval”.85

Para os católicos, as palavras eram as eficácias milagrosas, cuja elocução se


anunciava na ocasião dos sacramentos. Na Wittemberg protestante do século XV,
palavras eram signos de coisas, não porque delas emanasse algum poder natural, mas
porque ao se inspirarem no tomismo do século XIII, que pregava o fato das palavras
possuírem somente poder semântico, estas seriam apenas “atos de fala – invocações,
súplicas, rogos ou mesmo comandos e o destinatário seria aquele ser supremamente
inteligente, o diabo.86

Sob este ponto, Lévi-Strauss assinala que um mito, em seu conjunto de parábolas
“é uma repetição de certas relações lógicas e linguísticas, entre ideias ou imagens
expressas verbalmente”. 87 Seria por essa razão que o Reino de Deus é tido como um
verdadeiro mito simbólico, como no exemplo de São Mateus, na relação semântica que
se estabelece entre joio e trigo, em que há muito mais que o sentido literal da parábola.
Desse modo, a imagem pintada ou esculpida e toda a iconografia referente, expressam
múltiplas redundâncias; “todas as construções sagradas representam simbolicamente o
universo inteiro, identificando-se “aos céus ou aos níveis cósmicos”.88 Tal repertório se
reproduz mediante a repetição do macrocosmo à imagem do microcosmo – lugar de
transformações e também do sublime–, e para o qual a imaginação simbólica também
seria um fator de equilíbrio psicossocial.

Na transitoriedade e perenidade com que vão se articulando, tais formas concebem


um universo concreto: mineral, vegetal, animal, astral, humano, cósmico, onírico ou
poético. Lugar em que o sagrado ou a divindade podem ser significados por não importa
o quê: “uma pedra erguida, uma águia, uma árvore gigante, uma serpente, um planeta,
uma encarnação humana como Jesus, Buda ou Krihsna, ou até no apelo à Infância que
permanece em nós”.89

85
Veja-se por exemplo Martin Plantsch, Opusculum de sagis maleficis [1507], citado por Oberman,
Masters of the Reformation, 170; Dupleix, Troisième Part de la métaphysique, 185; Boguet, Examén of
witches, 79; apud Clark, 2006, 379.
86
Aquino, Summa contra Gentiles, 207. Apud CLARK, Stuart. Pensando com demônios. São Paulo: Edusp,
2006, pg.381.
87
Cf. LÉVI-STRAUSS, Anthopologie structurale, cap. XI, Les structures des mithes. Apud DURAND, 1993,
pg.14.
88
ELIADE, Mircea. Tratado de História de las Religiones II. Madrid: Ed. Cristandad, 1974, pg.155.
89
DURAND, G. A imaginação simbólica. Lisboa: Perspectivas do Homem/Edições 70, 1993, pg. 13.

45
Para a cabala, o signo do Tetragramaton, deverá ter sobre ele o nome mais secreto
da divindade e que lhe confere um poder absoluto. É o nome do supremo, a palavra,
perdida pela morte de Hiran, construtor do templo de Salomão em Jerusalém, e
reencontrada pelos esotéricos. Hoje pode-se revelá-la:

SCHEM – HA – MEPHOHASCH-

[Palavra valise, linguagem refletida no espelho de Alice, ou palavra do riocorrente


joyceano?] Esse nome, quando repetido e contemplado no signo de Salomão deve soar
como o amuleto indecifrável que, um dia perdido, foi reencontrado para emanar seu
encanto. SCHEM – HA – MEPHOHASCH- é o nome de Deus na cabala, palavra-signo
para ser guardada como um talismã. Imagem sonora.
O historiador Gershom Scholem, em seus estudos sobre o nome de Deus, observa
a mística dos números e da linguagem no Livro da criação judaica, o Sefer Ietzirá.
Segundo o livro, em suas 32 maravilhosas veredas de Sofia “criou Deus tudo o que há.
Essas sendas compõem-se dos 10 números originais, aqui denominados de Sefirot, os
quais constituem os poderes fundamentais da ordem da Criação, assim como das 22 letras,
ou seja, das consoantes, que, por sua vez, formam os elementos que estão na base de tudo
quanto foi criado”.90

Sobre este aspecto, que Haroldo de Campos chama de rítmico-visual em sua análise
do BERE’SHIT, traduzido por ele a partir do hebraico, há um comentário de Henri
Meschonnic, que propõe traduzir palavras por meio de “um sistema de brancos, um ritmo
tipográfico, visual” 91 capaz de notar a escansão dos segmentos frásicos do texto,
assinalando que a estrutura rítmica já é portadora de sentido, naquilo que denomina de a
metáfora cosmológica. Para ler o nome de Deus redesenhamos na abstração sintática a
divindade mágica na plenitude de sua invisibilidade. “A única realidade, no fundo, é este
Deus formidável, ao qual se retorna privado de si mesmo, na cega nudez do não-ser”.92
Prossegue Haroldo:

Tanto a componente ígnea como a líquida pertencem, por outro lado, à


imaginação bíblica de um cosmo supraterrestre; lembre-se da visão de

90
SCHOLEM, Gerson. O nome de deus, teoria da linguagem e outros estudos de cabala e mística: Judaica
II. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1999, pg. 22.
91
MESCHONNIC, Henri Apud CAMPOS, Haroldo. BERE’SHIT- A cena da origem. São Paulo: Perspectiva,
2000, pg.20.
92
CAMPOS, Haroldo. Eclesiastes. São Paulo: Perspectiva, 2004, pg.21.

46
Ezequiel ou, ainda, o “mar de cristal misturado com fogo, do
Apocalipse [IV, 6; XV, 2], associável ao oceano celeste que irá
desenhar, no Salmo a alusão às águas sobre as quais Deus edifica sua
“morada sublime”].93

Recorde-se que Rembrandt, em seu famoso retrato do Doutor Fausto [fig.15]


coloca um espelho mágico diante do mago, que, sentado à frente, interroga a si próprio
enquanto lê as palavras:

+ ADAM + TE + DAGERAM + AMRTET + ALGAR + ALGASTNAR.

Seriam palavras de Samael, o anjo, aconselhando-o a não fazer o pacto com


Mefisto. Outra figuração interessante desse sistema e pertencente aos livros populares, é
o talismã sonoro visual abracadabra:

Conta-se que haveria sido gravado numa pedra simbólica e que serve para dar
imunidade aos sortilégios, sendo, segundo parece ser, o mais antigo dos primitivos
amuletos, após o de Salomão. Lido em qualquer posição sempre aparece a palavra
“Abracadabra” e, ainda mais em caracteres gregos, cada um deles representa algarismos
e lido de qualquer de um dos lados dá como soma exatamente o número 365, que são os
dias do ano. Essa palavra cabalística forma a pirâmide invertida e símbolo da Trindade.
Qualquer signo, gesto, ritmo ou cerimônia usada para operar prodígios,
independente da eficácia ou da ineficácia, assim como o poder da palavra mágica, escrita
ou pronunciada, sempre foram instrumentos naturais utilizados para tocar o sobrenatural.
Para Stuart Clark, a crença de que “as elocuções possam, elas próprias, provocar
alterações físicas” sempre teve ampla difusão cultural.
Jerusa Pires Ferreira observa os elementos organizadores no princípio das
performances quanto a importância das relações existentes entre ritualidade e não-

93
Idem, pg. 27.

47
ritualidade, sagrado e não-sagrado, convergência e divergência, onde Mihail Propp
consegue ver o “relato como ato semiótico”:

No belo livro Sud e magia, Ernesto Martinho discute as relações entre


história, magia e ritualidade, referenciando-as a uma esfera das técnicas
mito-rituais, que evidenciam a potência mágica da palavra e do gesto.94

Nesse universo, a questão do significado mágico, do ponto de vista instrumental e


comunicativo da linguagem, ganha força ao ponto de Malinowski afirmar que “saber o
nome de uma coisa é apossar-se dela”.95
No círculo mágico do Livro Negro – O grande Grimoire, para invocar a corte
celestial de anjos deve-se, sobre um círculo com tiras de pele de cabrito, duas coroas de
verbena, dois castiçais e duas velas de cera virgem, traçar-se um triângulo dentro do
círculo começando pelo ponto leste. “Um D maiúsculo, um E minúsculo, um A maiúsculo
e um J minúsculo devem ser desenhados”.96
No pequeno excerto dessa invocação, a riqueza dos materiais em sua plasticidade
sagrada; ao cabrito, a cera, o fogo e a tipologia gráfica entre maiúsculas e minúsculas,
soma-se um sistema de crenças que em sua expectativa agregou, a partir da visão da
linguagem, tanto a imagem como a palavra sagrada. Nos procedimentos e operações
mágicas, as fronteiras que separam os sistemas visuais dos linguísticos sempre foram
tênues. Flutua-se entre ou com palavras e coisas:

Sem o pretender, o catolicismo medieval encorajou a ideia de que a


mera enunciação de palavras sagradas sobre objetos materiais poderia
alterar sua substância e sua eficácia [...] A reflexão sobre a natureza da
linguagem e o poder de signos foi, pois, um componente inseparável da
reforma religiosa, um fato que fez os reformadores, e não os
antropólogos, serem os primeiros a distinguir as propriedades da oração
propiciatória e a fórmula encantatória ou feitiço mecânicos.97

Entre protestantes e católicos a discussão do poder dos gestos e símbolos


estabeleceu diferenças culturais significativas, chegando-se ao final à ideia de que “as

94
PIRES FERREIRA, Jerusa. A decifração mágica dos signos in Ghrebh - Revista de Comunicação, Cultura e
Teoria da Mídia. São Paulo, junho/2007, pg.12.
95
Apud CLARK, Stuart. Pensando com demônios. São Paulo: Edusp, 2006, pg.369.
96
São Cipriano, o bruxo – Capa Preta. Rio de Janeiro: Pallas editora e distribuidora, 1997, pg.181.
97
THOMAS. Religion and Decline of the Magic, 61, Apud CLARK, Stuart. Pensando com demônios. São
Paulo: Edusp, 2006, pg. 371.

48
práticas de ação entre os signos e as palavras seriam formas de superstição.98 Partia-se do
pressuposto de que as palavras podiam conter a essência das coisas e pronunciá-las
poderia provocar efeitos. No século XVI houve rejeição a esses pontos de vista. D.P.
Walker assinala, sobre o conceito de vis-verborum 99, a encantação através da palavra a
partir de Ficino, que “este tipo de força verbal repousa numa teoria da linguagem segundo
a qual existe uma conexão real, e não convencional, entre palavras e o que elas denotam:

a palavra não é meramente como uma qualidade da coisa que ela


designa, como sua cor ou peso; é, ou exatamente representa, sua
essência ou substância. Uma fórmula de palavras, portanto, não pode
ser apenas um substituto adequado para as coisas denotadas, mas ser
ainda mais poderosa.100

Houve ainda uma série de questionamentos sensíveis sobre o poder da palavra na


oração, já que dessa forma de invocação resultaria também, grande poder físico e
encantamento do ponto de vista religioso. A convicção de que as orações canonicamente
eram eficazes “é que as transformaria em muito mais eficazes” 101, o que “colocava em
jogo a força da imaginação na resposta a seu significado – sua comunicabilidade – e na
produção das alterações resultantes – sua instrumentalidade”.102 Como vimos, do século
XVII em diante, os signos só poderiam ter poderes que fossem intrínsecos à sua própria

98
O Duque de Maura em seu livro Supersticiones de los siglos XVI E XVII y Hechizos de Carlos II. Madrid:
Calleja, 1943, pg.97; “La nigromancia - enseña Navarro – es aquella arte maldita con que los malos
hombres hacen concierto de amistad com el Demonio y procuran de hablar y platicar con él para que les
revele algunos secretos o les dé favor y ayuda para alcanzar algunas cosas que ellos desean. Para hacer
estas invocaciones, el Demonio les tiene enseñadas ciertas palavras que digan o ciertas ceremonias que
hagan de sacrifícios de pan y vino, de viandas, de sahumerios de diversas hierbas y otras cosas a este
talle”.
99
“Na tradição ficiniana, poesia e hinos eram expressivos e afetivos, bem como encantatórios. Mesmo
assim, esperava-se que a linguagem, e os signos em geral, operasse física e psicologicamente, tanto sobre
objetos inanimados quanto sobre pessoas”. WALKER, D.P. Spiritual and Demonic Magic. 75-80 [citação
em 80-1]. Walker também identifica a visão ficiniana de vis verborum em Jacques Gohory, Pontus de
Tayards e Fabio Paolini. Apud Clark, 2006, pg.375.
100
Id. “Walker também identifica a visão ficiniana de vis verborum em Jacques Gohory, Pontus de Tayards
e Fabio Paolini”; apud Clark, 2006, pg.375.
101
“Quando escrevia uma resenha de um livro de Moll, Jung citou a definição que o autor dava de
sugestão como: ‘um processo pelo qual, sob condições inadequadas, um efeito é obtido evocando-se a
ideia que de tal efeito será obtido’ (CW 18, parág. 893). Esta é essencialmente a definição que ele
próprio empregava quando falava da sugestão com relação à hipnose, a fenômenos parapsicológicos”.
Veja-se A Critical Dictionary of Jungian Analysis,1986: Andrew Samuels, Bani Shorter, Alfred Plaut.
Dicionário Crítico de Análise Junguiana, 1ª Edição em português: Imago Editora Rio de Janeiro, 1988, Ed.
Eletrônica, 2003, Andrew Samuels/Rubedo, pg.105.
http://www.labirintojung.com.br/pdfs/Andrew_Samuels_DICIONARIO_CRITICO_DE_ANALISE_JUNGUIA
NA.pdf
102
WALKER, D.P. Spiritual and Demonic Magic. 107-8; apud CLARK, Stuart, 2006, pg. 377.

49
natureza, ou recebidos, por razões especiais de Deus, o que excluía as invocações e
conjurações mágicas, que a partir de então, passaram a vincular-se ao universo
luciferiano.
Consideravam curativas as chamadas letras mágicas. Segundo a `ilm al-huruf 103
[fig.16] as letras têm um valor numérico e, segundo este valor, quando colocadas em
determinada ordem adquirem propriedades curativas. Cada letra está relacionada com o
universo e as vinte oito letras do alfabeto têm uma correspondência com as vinte e oito
casas lunares; “do mesmo modo, se associam as letras do alfabeto às características dos
corpos; calor, secura, frieza e umidade, inclusive, se matizam os graus de cada uma delas.
Nos tratados de magia, as letras sem pontos têm mais valor do que as que os levam”.104
No início do XVII, outra forma terapêutica eram caracteres, imagens e selos, nada
mais que figuras, “esboços, traços [umbrae] de letras e coisas, para figurar, significar e
representar. Entretanto, o emprego de conjurações e invocações passou a ser utilizado
com fins terapêuticos, sendo ampliado e reconhecido, quando passaram a ser agregados
a textos religiosos. Juan de Salisbury refere-se em seu Policratus [séc. XII] aos
encantadores, definindo-os como “aquelas pessoas que praticam seu ofício por meio de
palavras”.105

1.5.2 o gesto e o corpo votivo

A classe dos símbolos rituais também é feita de gestos, como o judeu que reza
voltado para o Oriente, o padre que santifica o vinho e o pão ou o orixá que saúda os
quatro cantos do terreiro. São manifestações que sacralizam a geometria, os números e as
palavras, e foram bastante utilizados pelos praticantes de uma medicina exercitada por
curandeiros e magos, em especial na Idade Média. Tais práticas pensavam o corpo como
um pequeno cosmos que mantinha relações com o mundo sobrenatural e o universo astral.
Ao mesmo tempo, havia também os almanaques, que despontavam trazendo um tipo de

103
Ciência esotérica árabe que contém as letras do alfabeto. Ilm al-huruf: Métaphysique de la langue et
des lettres selon la doctrine d'Ibn 'Arabi. Carmela Crescenti, Editions universitaires europeennes,
Sarrebruck, 2011. ISBN 978-6131578458.
104 Cf. S. N. Haq, Names, natures and things. The Alchemist Jabir ibn Hayyan and his Kitab al-Ahjar (Bokk
of Stones), Dordrecht, Boston, London, 1994, págs. 92-93. Apud ’Ilu. Revista de Ciencias de las Religiones
XVI, pp. 23-4623. Elementos mágicos y religiosos en la medicina andalusí. CAMILO ÁLVAREZ DE MORALES.
Escuela de Estudios Árabes (CSIC) Granada, pg.33.
105
Sallisbury, Juan de. Poçicratus. Madrid: Ed. Nacional, 1984, pg.135. Apud BLANCO, Juan Francisco.
Brujería y otros ofícios populares de la magia. Salamanca/Valladolid: Ed. Ámbito, 1992, pg. 239.

50
conhecimento, como a Melothesia, a medicina astrológica que assinalava um planeta ou
um signo zodiacal correspondente às partes do corpo, para tratar dos males e alterações
físicas e psíquicas [fig.17].

Na Espanha, várias pragmáticas dos reis católicos Isabel e Fernando, a partir de


1477, equipararam os curandeiros ao ofício dos físicos, cirurgiões e farmacêuticos, apesar
da Igreja sempre os haver perseguido, como demonstram os inumeráveis processos
abertos contra eles. O tratado de Frei Martin de Castañega dedica um capítulo inteiro aos
conjuradores e conjuros supersticiosos de los endemoniados, descrevendo que os ritos
que praticavam eram “círculos e letras na terra”.106
Todos os que praticavam o ofício de invocadores e curandeiros recebiam os
instrumentos como herança pessoal, alguns inclusive organizaram suas próprias edições
de livros de magia, muitas das quais circularam nos últimos séculos, como é o caso de O
tesouro de milagres e orações da Cruz de Caravaca, o popular Livro de São Cipriano e
as Clavículas de Salomão. O primeiro, foi muito utilizado na Espanha; seu conjunto de
rezas e benzeduras contra doenças e males, foi sempre reconhecido como ciência
praticada por curandeiros [fig.18, 19 e 20].
Na região de Castilla y León um curandeiro de Zorrita de la Frontera benzia com
orações da Cruz de Caravaca, em muitos casos vulgarizadas. Para chamar dinheiro
empregava a seguinte invocação: Goret Magod et super Magod et consumatum est.107 e
contra e erisipela: En nombre de Dios Padre/ y del Hijo de Dios/ y de San Marcial,/ que
ni por fuerza ni por dentro/ se ensañe ningun mal.108
Entre os séculos XVI e XVII na Espanha, curandeiros e ensalmeiros,
[saludadores]109 ou rezadores de ensalmos, eram ainda confundidos em relação ao que
distinguia as funções de cada um. Em Salamanca e arredores, a Virgem de Valdejimena
teve grande prestígio por sua capacidade de cura de animais, especialmente a raiva,
havendo por sua graça um santuário com dezenas de ex-votos. Os versos de um canto em

106
Veja-se Castañega, Frei Martin de. Apud BLANCO, 1992, pg. 239.
107
Got Margot et super Margot consummatum est. Veja-se a Edição Imprenta de S. Salvarore de Horte, a
edição considerada por Blanco. “Este precioso libro es el único y verdadeiro de la SS. Cruz de Caravaca,
sendo de gran utilidade para todas las famílias, há sido traducido de antigos pergamiños hebreos, griegos
y latinos, procedentes de Egypto y Jerusalém. Apud BLANCO, 2007, pg. 243.
108
BLANCO, Juan Francisco. Brujería y otros ofícios populares de la magia. Salamanca/Valladolid: Ed.
Ámbito, 1992, pg.243.
109
Na tradição popular vincula-se a graça do saludador com o momento de seu nascimento – a sexta-feira
Santa durante o Sermão da Paixão ou a noite de Ano Novo, ou com certos signos que aparecem em sua
boca. Id., pg.247.

51
sua homenagem diz: Te apareciste a un toro/ Y a un vaqueiro, Grã Señora,/ Como eres
Madre de Dios,/ Eres tan saludadora110 [fig.21].

Em Ávila, conta-se de uma rezadeira famosa que teria uma cruz no céu da boca, a
chamada Simo saião ou sinal de Salomão e interpretada como um sinal das bruxas; Cesar
Morán fala de um menino rezador de Salamanca que curava todas as doenças dormindo
com os enfermos.111 Para a prevenção aos males e bruxarias recorria-se a todo tipo de
amuletos, tanto religiosos como mágicos, harmoniosamente. Eram o remédio para curar
e preservar, havendo distinção entre amuleto e talismã, sendo o primeiro “qualquer objeto
ao qual se atribuem virtudes protetoras, considerado a magia passiva, ao passo que o
talismã seria ativa”.112 Enrique de Villena, com seu Tratado da Fascinação examina com
profundidade os sistemas protetores contra a fascinação ou aojo, o mau olhado ou
quebranto:

Por virtude natural costumam trazer coral, e folhas de louro e raiz de


mandrágora e pedra esmaltada, e jacinto, e dentes de peixe, e olho de
águia, e mirra e bálsamo.113 [fig.22 e 23]

Mau-olhado, olho gordo, olho grande, fascinação, malocchio, aojamiento... há uma


longa história, e “o povo, geralmente considera a vista quase mágica”.114 O poder dos
olhos constituiu-se característica espantosa para seres e animais fabulosos. O olho
mitológico da Medusa, quando Perseu poliu o escudo para atacá-la, refletido, voltou para
o monstro. Os Basiliscos matavam com o olhar, e há o costume no México de colocar
espelhos em seus ninhos para que o olhar retorne sem matar. O gorgoneíon era o amuleto
supremo contra o mau-olhado na Grécia. O olho de Santa Luzia é um amuleto de ouro ou
prata para trazer junto ao corpo. O quebranto é herdeiro do mau-olhado, que pode ser
tirado com palavras: Nossa Senhora defumou a seu filho bento para cheirar; eu defumo

110
Ibidem, pg. 247.
111
MORÁN, Cesar. Creencias sobre curaciones, apud BLANCO, 2007, pg.256
112
BLANCO, Juan Francisco. Brujería y otros ofícios populares de la magia. Salamanca/Valladolid: Ed.
Ámbito, 1992, pg. 132.
113
VILLENA, Enrique de. Tratado de Fascinación o aojamiento. Biblioteca Virtual Universal:
http://www.biblioteca.org.ar/libros/789.pdf
114
Cascudo, Luis da Câmara. Meleagro. Rio de Janeiro: Agir Editora, 1951, pg. 64.

52
o meu para sarar:115 Por isso quando alguma mãe tem “de mandar fora o seu menino,
logo o advertem que não vá sem levar figas no cinteiro para evitar os maus olhos”.116

Assim como o olho, o corpo também figura como signo da ausência e da presença
a qual se atribuem poderes de cura ou de magia. É o caso do ex-voto, representações de
partes do corpo esculpidas, geralmente de cera ou de madeira. Sobre a sua origem, sabe-
se que Esculápio recebia daqueles a quem curava, a reprodução do braço, perna ou cabeça
do doente. Estes objetos traziam em suas formas os traços, as marcas e os sinais,
artisticamente detalhados, dos males ocorridos nas referidas partes do corpo da pessoa
curada. Esse costume se generalizou a partir dos gregos, tomando conta, por volta de
2000 a.C., de grande parte do Mediterrâneo, em locais sagrados e santuários. Abreviação
latina de ex-voto suscepto, também são representados por meio de pinturas, estatuetas
que, na Idade Média, faziam parte dos hábitos da nobreza, encomendados, em geral, à
artistas conhecidos:

Até o século XVI, o ex-voto pintado se mantém preferencialmente


relacionado às classes mais abastadas; e, a partir desse período, as
imagens votivas se disseminam pelo mundo ocidental, aparecendo cada
vez mais em imagens populares”.117

Em sua origem pertencente a nobreza, existem as pinturas de retratos das Infantas


Ana Mauricia e Maria Anna, da Áustria [1602] que posam ainda crianças, com vestidos
ornados por vários amuletos; figas, sinos e cruzes. [fig.22-23]
No século XIV, especificamente, esse tipo de imagem votiva predominava também
no México. Tratava-se de pintura sobre madeira, cartão, tecido ou vidro, de caráter
descritivo, cuja composição obedecia a um padrão determinado: na parte inferior,
encontra-se a imagem daquele que pede a graça, em postura de prece ou veneração. Atrás
dele, o motivo do pedido, retratado de forma realista, em tamanho reduzido. Na parte
superior, figurava o personagem sobrenatural evocado, dominando a cena: ora colocado
em trono ou altar, ora flutuando numa nuvem. A representação pictórica traz
invariavelmente a inscrição: ex-voto.

115
Idem pg. 68
116
Ibid., pg.115.
117
http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo5433/ex-voto

53
Os ex-votos também tiveram a função de amuletos de proteção contra as bruxas,
sendo muito comuns na Espanha; agregavam virtudes protetoras tanto sob o caráter
religioso como sob o mágico. Recomendava-se para os malefícios trazer relíquias
verdadeiras presas ao pescoço e às roupas, com o Evangelho do In principio, bem como
recomendava-se o hábito de, aos domingos levar água benta para derramar devotamente
pela casa, quartos e camas. Sobre a maneira de vestir-se, as pinturas populares dos séculos
XVI e XVII propiciam hoje verdadeiros registros para os etnólogos. Geralmente nos
trajes femininos da região de Castilla y León na Espanha, medalhas, agnus-dei, figas,
chifres, castanhas da Índia, formavam uma espécie de couraça protetora de enorme
riqueza visual [fig. 25].

Nas relações entre a imagem e a superstição, a primeira também serviu de código


metafórico para a magia. Algumas práticas, associadas ao surgimento do gênero artístico
da caricatura, por volta de 1600, segundo assinala Ernst Gombrich, fazem alusão à sátira
pictórica do século XV [fig.26], que em suas origens estaria associada à magia negra.
Apoiada entre a imagem e o sonho, o mito e a metáfora, teriam a finalidade de obter
efeitos psicológicos em rituais realizados através da instituição das imagens difamatórias:

Este desenho tosco de 1438, [fig. 23] mostra o Landgrave do Hesse e


seu brasão suspensos de ponta-cabeça em uma forca. A simples ameaça
de publicar tal imagem poderia ser usada como forma de pressão para
garantir o pagamento de um empréstimo ou a reparação de um dano.118

Ainda que a intenção não fosse ferir a vítima, buscava-se ferir sua persona, sua
reputação, através da simulação representada pela imagem. A esse respeito, Gombrich
escreveu um ensaio denominado Meditações sobre um cavalinho de pau, em que trata
das teorias da ficção, argumentando que, para a criança o brinquedo substituiria o animal
de verdade, ou seja, os que vibram com as execuções simuladas, não seriam crianças, mas
partilhariam com elas a crença infantil da punição ficcional. Após a publicação descobriu
que o filósofo alemão Hans Vaihinger [1852-1933] havia escrito o Die Philosphie des
Als-Ob ou seja, a Filosofia do “é como se” indicando o quanto a cultura humana adere ao
Als-ob através do jogo catártico ficcional. Sobre a imagem do Landgrave do Hesse

118
Gombrich descarta, nesse caso, qualquer vinculação ao vudu, a prática religiosa africana. GOMBRICH,
E.H. Os usos das imagens. São Paulo: Bookman, 2012, pg.190.

54
suspenso, há, sem dúvida, alusão à carta do enforcado no Tarô, que não por acaso,
simboliza, entre outras coisas, sacrifício, exemplo e vida pública [fig.27].
Existem ainda estudos interessantes consagrados à problemática dos lados esquerdo
e direito, sobretudo nos usos e costumes dos povos eslavos, em que se atribui um sentido
funcional e de oposição que significa fundamentalmente bom-mau e bem-mal. Sob este
aspecto as mãos ou os lados tendem a fazer ou a simbolizar a relação direita-esquerda
observando a oposição de um princípio de caráter mais espiritual a um princípio mais
laico. Estariam aí, por exemplo, o sinal da cruz, e os objetos sustentados pelos santos,
mediante uma simbologia das partes do corpo, e assim, o Arcanjo São Miguel pode ter
uma cruz na mão direita e uma espada de fogo na mão esquerda. Assinala-se que os
sérvios protegem os bebês do diabo erguendo para o ar a mão esquerda. Todos esses sinais
de oposição trazem gestos significativamente mágicos:

[...] é precisamente no lado esquerdo que se encontram os pecadores à


espera do Juízo Final, da mesma maneira que é detrás do ombro
esquerdo que se esconde o Diabo [daqui vem a expressão russa cuspir
por cima do ombro esquerdo] e detrás do direito está o Anjo da
Guarda.119

Textos e presságios de tradições muito antigas utilizados nas sessões de magia


corroboram com tal significação geral, segundo estes estudos.
A magia e seus rituais fizeram uso do corpo, e das simbologias referentes, em busca
de superar a própria noção de finitude humana. Para tanto mesclaram palavras invocadas
a textos, formas geométricas e talismãs, medicina a práticas astrológicas, imagens votivas
a imagens sonoras, dispostas por meio de relações sígnicas e lógico-linguísticas. As
transformações maravilhosas, o poder dos rituais da cura [e do mal] mediante
transferência, metamorfoses e transfigurações, são práticas amplamente difundidas até os
dias atuais, visto que as edições de livros de magia seguem sendo reimpressas.120

1.5.3 O mercúrio, a mandrágora e outros signos mágicos

119
N.I e S.M. Tolstói. Para uma semântica dos lados esquerdo e direito nas relações com outros elementos
simbólicos. Cf. LOTMAN, Iúri; USPENSKII; Boris; IVANÓV, V.; Ensaios de semiótica soviética. Lisboa: Livros
Horizonte, 1981, pg. 229.
120
Conferir as pesquisas realizadas por Jerusa Pires Ferreira sobre estas edições de massa. PIRES FERREIRA,
Jerusa. Cultura de Bordas, São Paulo: Ateliê Editorial, 2010; O Livro de São Cipriano, uma legenda de
massas. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1992.

55
A primeira imagem, o Pan Mercúrio dos Filósofos, apresenta em seus traços indícios que levam
ao tratado alquímico Rosarium Philosophorum, do século XIII atribuído a Arnaldo da Villanova.
Aí já comparece a figura antropomorfa que simboliza a união dos opostos, céu e terra, o humano
e a besta. A segunda imagem é O mercúrio dos filósofos/ Della Transmutazzione metallica de
G.B.Nazari, 1599. 121 Posterior à primeira, essa imagem recorre à mesma simbologia, sendo
encontrada em quase todos os Livros de São Cipriano como sendo a “verdadeira imagem do
bruxo” e produzida na época de Cipriano, mas que na verdade integra um tratado de alquimia do
século XVI. Figura de bestiário, o monstro tricéfalo composto de enxofre, sal e mercúrio é uma
alegoria do Mercúrio Filosofal em que a água permanece identificada com o elixir da longa vida.
Assemelha-se aos demônios que encarnam as virtudes regeneradoras das dimensões ctonia,
úmida e telúrica. Para os alquimistas, a morte do dragão pelo sol e a lua, é a metáfora da extração
do enxofre e da água lunar. A figura do dragão simboliza o mercúrio, agente da transmutação
alquímica e da matéria ancestral, o caos filosófico que ainda não foi purificado. O fato de morder
a própria cauda refere-se à circularidade e a dupla natureza do mercúrio, ao mesmo tempo fixa e
volátil, céu e terra. O caráter mutável e multiforme dessa substância seria um dos fundamentos
da alquimia.

Plantas mágicas | Mandrágora, Tacuinum Sanitatis, 1474.

121
Liber de Arte Chimica incerti autoris, século XVI; Auris Auriferae, I, P.575 s. Jung afirma ser este o
primeiro texto em que a palavra hermafrodita foi mencionada. Apud JUNG, C.G. Psicologia e religião –
Obra Completa de C.G. Jung, volume 11/1. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2012, pg.46.

56
A Mandrágora e seus frutos mágicos, quando são bebidos em grandes porções transformam-se
em poderoso alucinógeno e veneno mortal. Esta planta possui ainda propriedades curativas,
soporíferas e anestésicas. Sua raiz antropomorfa tem fama de ser afrodisíaca e propiciar a
fecundidade. Esteve associada à Afrodite, à maga Circe, às bruxas do folclore medieval e ao
episódio das mulheres de Jacó na Bíblia. Também simboliza o homúnculus, o primeiro homem
vegetal nascido no Paraíso. A cabeça tem dons proféticos e emite um grito mortal. Ao ser colhida
alguns cuidados são necessários, como ter o vento soprando para trás para que não se inale o
perfume da planta. O cão, animal consagrado à Hécate, era empregado na colheita da planta.
Depois da extração e com a ajuda de uma corda atada ao pescoço do animal, este morria
imediatamente. O camponês se propõe a colher a raiz, olhando para o oeste, para o além e tapando
as orelhas para não escutar seus gritos. Existe uma lenda de que sua raiz está sob da forca dos
injustiçados.

1. Melothesia, medicina astronômica | Desenho anatômico astrológico, século XV.


2. Le calendrier de Berger | 1497.

A medicina astrológica assinalava um planeta ou um signo zodiacal para cada parte do corpo,
tratando assim dos males e alterações físicas e psíquicas através do influxo dos astros. Os pontos
principais para realizar este estudo eram: 1) A posição central da terra, ao redor da qual giram os
corpos celestes; 2) O agrupamento das estrelas em doze constelações nomeadas com os doze
signos do Zodíaco; 3) A natureza de cada planeta segundo a doutrina dos elementos [frio, quente,
úmido e seco]; 4) O ângulo formado pelos raios que emitem dois planetas ao unir-se a partir do
lugar de observação da terra; 5) O planeta dominante em um dia ou hora determinados.
Conhecendo o nome da pessoa e o dia que nasceu, realizam-se operações aritméticas para saber
o signo zodiacal dominante em sua existência, com o que se determina sua aparência física, suas
enfermidades principais, a época em que poderá adoecer desses males e se a pessoa vai se curar
ou não.122

122 Un morisco astrólogo, experto en mujeres, Actas del III Simposio Internacional de Estudios Moriscos.
Las prácticas musulmanas de los moriscos andaluces (1492-1605),Zaghouan, 1989, págs.109-119, esp.
págs. 113-115. Apud ’Ilu. Revista de Ciencias de las Religiones XVI, pp. 23-4623. Elementos mágicos y
religiosos en la medicina andalusí. CAMILO ÁLVAREZ DE MORALES. Escuela de Estudios Árabes (CSIC)
Granada, pg.35.

57
A batalha do sol e da lua | Aurora Consurgens, 1400.

O Sol e a Lua enfrentam-se sobre o fundo avermelhado que simboliza a passagem do lusco fusco
entre a noite e o dia. Este último está representado por uma figura masculina e a noite por uma
mulher que, despida, tem a face coberta pela escuridão. O Sol, com sua face iluminada monta um
leão branco e a Lua está montada sobre um grifo, o animal fabuloso, com cabeça, bico e asas de
águia e corpo de leão. O Grifo possui dupla natureza: divina, representada pelo espaço aéreo,
próprio da águia, e terrestre, representada pelo leão. Tais animais simbolizam, ainda,
respectivamente a sabedoria e a força. Seus escudos estão trocados sinalizando a inseparabilidade
com a qual devem enfrentar a impossível batalha entre o sol e a lua, o dia e a noite.

A caída de Simão, o Mago | Jacobello del Fiore, século XV.

Simão, mago de origem hebraica conhece e domina os poderes do fogo astral e a arte da levitação.
A presença do demônio revela o truque diabólico em que o mago acredita. O magnetismo de
Simão enfeitiça a assistência que crê que na presença de milagres e prodígios. A caída da torre
desmascara o falso sábio que havia se apoderado da inteligência angelical. São Pedro invoca o
Senhor para castigar os charlatães.

As proporções do homem e seus números ocultos | E. C. Agripa, 1533.

58
O significado e poder esotérico atribuído aos números buscam a organização racional do cosmos
e a representação conceitual e figurada da divindade pelos homens. Pitágoras de Samos,
considerado um fundador da mathesis [a magia matemática] baseava seu sistema filosófico no
Tetraktys [1+2+3+4] símbolo da totalidade do cosmos e cifra da criação. O número 4 está
associado à imagem do tetramorfo cristão, em cujo interior confluem as divindades solares e
lunares das religiões arcaicas. É a mesma simbologia da figura da Esfinge, cujo corpo e cuja
adivinhação escondem uma concepção quadripartite do universo, baseada nos pontos cardeais do
céu [solstício e equinócio] e no movimento cíclico do tempo [estações, círculo zodiacal]. O culto
dos significados esotéricos dos números tem sua maior expressão na Cabala hebraica através das
correspondências infinitas entre as letras que compõem o nome de Deus e tudo que existe na
natureza.

Tábua de Esmeralda| Hermes Trimesgisto, século XV, Miniatura da Aurora Consurgens.

As 9 águias, com arcos e flechas em suas garras, representam o elemento volátil da matéria. O
recipiente líquido dourado é o elixir da longa vida, um símbolo da alquimia. Hermes Trimegisto
é o iniciado por excelência nos mistérios da Grande Obra, aquele que sabe extrair o ouro. A Tábua
de Esmeralda contém os preceitos da sabedoria hermética.

Mão alquímica com os símbolos da transmutação | miniatura da Alchimia Hermetis, séc. XVII.

A alquimia é a prática baseada no conhecimento da matéria e seus elementos, através de um


caminho iniciático, expresso metaforicamente pelo mito da transformação de metais comuns em
ouro. Sua origem encontra uma série de figuras lendárias desde Adão, Salomão, Hermes
Trimegisto e Maria Hebreia. Segundo o apocalipse, foram os anjos rebeldes que ensinaram aos
homens o caminho para obter a Pedra Filosofal. A alquimia, em sua incessante busca por
objetivos mágicos, contribuiu para a descoberta da composição de muitas substâncias químicas.

59
PARTE II

60
CAPÍTULO 2: O TEMPO E O GESTO

2.1 A imagem, o tempo e a metáfora da tempestade

A ordem do discurso da arte, assim como o da história, nasceu um dia ou sempre


recomeça? Para o filósofo Georges Didi-Huberman, a história da arte morre e renasce e
não há tempo das imagens sem a metáfora vida e morte ou sem a ideia do objeto de luto
winckelmanianno, que faz a arte grega inatingível. Outro historiador de arte, Aby
Warburg [1866-1929], cuja teoria foi objeto de muitos dos estudos de Didi-Huberman,
criou os conceitos de Nachleben [vida póstuma] e Pathosformel [fórmula de páthos] e
desse modo decompôs, “desconstruiu sub-repticiamente todos os modelos epistêmicos
em uso na história da arte” 123 , de Vasari [1511-1574] a Winckelman [1717-1768],
substituindo-os por um modelo fantasmal em que o tempo remanescente dialoga com
aparições e remissões de maneira desorganizada.

O conceito de vida póstuma é como se a Antiguidade, embora morta, ainda


continuasse viva assombrando as vidas posteriores, sendo este um desafio que Warburg
tomou para si em suas pesquisas de rastreamento de tais influências na Antiguidade,
sobretudo a do paganismo antigo na arte do Renascimento italiano, considerando a
astrologia antiga e oriental na Renascença e na Reforma. No contexto da fórmula de
páthos, modelos ou motivos oriundos da Antiguidade seriam utilizados pelos artistas
renascentistas para exprimir formas em movimento e uma espécie de linguagem gestual,
que ficariam gravadas em uma memória coletiva para serem utilizadas em situações as
quais houvesse uma demanda relativa a manifestações expressivas e artísticas.

Através da decomposição teórica do modelo psíquico de Warburg, um devir das


formas deve ser analisado mediante um conjunto de processos tensionados que
contrariam a percepção instaurada nos conceitos de contemporâneo, entendidos como
uma linha esticada em direção ao futuro. Na abertura para um modelo de temporalidade
entre diferentes épocas e espaços históricos, questiona-se quando e onde começam e
terminam as fronteiras, se é que existem, entre passado, presente e futuro. Na perspectiva
de Warburg, o presente cresce em direção à nossa frente e o futuro volta-se para trás à

123
DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente – História da arte e tempo dos fantasmas. Rio de
Janeiro, Editora Contraponto – MAR, 2013, pg. 25.

61
maneira do Angelus Novus de Benjamim, inspirado na emblemática imagem de Paul
Klee. Articular historicamente o passado tal como ele foi, para Benjamin significava
apropriar-se de uma recordação tal como ela relampeja no momento de um perigo, já que
a verdadeira imagem do passado passa voando, e que o passado, carregando sua história,
só se deixa capturar como imagem num fiat irreversível. “Nunca houve um documento
da cultura que não fosse um documento da barbárie. E assim, o próprio bem cultural não
é isento de barbárie, tampouco o é o processo de transmissão em que foi passado
adiante”.124

A tarefa seria escovar a história a contrapelo.

Uma imagem é “uma vida depois da vida [...] e o simples fato de evocar coisas
ausentes fazendo-as presentes já confere às imagens um poder impactante”. 125 Erwin
Panofsky, corroborando com a perspectiva warburguiana, prossegue sugerindo um
método de interpretação, já que para ele as fontes literárias podem criar desvios quando
“aplicadas, indiscriminadamente às obras de arte”126 assim como também seria perigoso
confiar apenas na intuição. Segundo Panofsky, o valor intrínseco ou conteúdo é a esfera
em que a obra de arte adquire o seu sentido mais amplo, considerando a interpretação em
sua temporalidade, através de crenças religiosas ou filosóficas. Assim, a iconografia dos
valores simbólicos requer conhecimentos mais amplos do que os exigidos através de
temas ou conceitos transmitidos pelas fontes literárias e pela tradição oral. Através da
intuição sintética, atribui-se a capacidade de interpretar os sintomas culturais mais
sinteticamente do que analiticamente por meio da “compreensão da maneira pela qual,
sob diferentes condições históricas, tendências essenciais da mente humana foram
expressas por temas e conceitos específicos”.127

Desse modo, na análise iconográfica, os motivos portadores de significado podem


ser chamados de imagens, cuja combinação, estórias e alegorias, deverão ser identificadas
segundo o modelo de valores simbólicos, tal como para Cassirer, através de imagens,
histórias e alegorias. Enquanto na análise iconológica esses valores deverão ser
analisados considerando suas características composicionais e iconográficas, fontes

124
Idem, pg.245.
125
BAITELLO Junior, Norval. O pensamento sentado-Sobre glúteos, cadeiras e imagens. São Paulo:
Editora Unisinos, 2012, pg.103.
126
PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2014, pg.65.
127
Idem, pg.65

62
literárias e documentos que testemunhem tendências políticas religiosas, filosóficas e
sociais.
A arte abstrata, ou não figurativa, parece estar construída sobre uma tradição de
obstáculos que surgem em sua interpretação. O confronto com a não representatividade
sugere abismos e impossibilidades através dos quais muitos métodos só funcionam na
confrontação entre imagens e suas analogias correspondentes. Assim, reduzidas a
simbologias formais ou, no máximo, a interpretações técnicas e históricas, deixa-se de
lado o polo das oposições e das tensões. Acreditamos que a busca pelo sentido requer,
isso sim, uma aproximação e uma abertura; trata-se de “debater-se nas malhas que todo
conhecimento impõe e de buscar dar ao gesto mesmo desse debate – gesto em seu fundo
doloroso, sem fim – uma espécie de valor intempestivo, ou melhor, incisivo”.128

E esse gesto pode ser atormentado, já que nos vemos diante de uma escolha e de
seus riscos; arrisca-se ao não saber. Didi-Huberman recorda a bela frase de Panofsky, “a
relação do olho com o mundo é, em realidade, uma relação da alma com o mundo do
olho”.129 A natureza das imagens esteve sempre atrelada à mimese, à cópia, a segunda
coisa especular, ou à oposição racional-empírico, já que as imagens não rejeitam o mundo
da lógica, mas jogam com ele. Pensar o tecido da representação simbólica é pensar sua
função, que se expressa por índices como nos sonhos:

Os peixes estão bem ali [as figuras, os detalhes, os fantasmas que o


historiador da arte igualmente ama colecionar], mas o mar que os torna
possíveis guardou seu mistério, presente apenas no brilho úmido de
algumas algas presas nas beiradas.130

A partir de tais evocações, Panofsky desenvolveu interpretações exemplares, como


a célebre análise sobre gravura Melancolia I de Albrecht Dürer. Figurar para ele equivale
a desfigurar, escavar o inusual enquanto transparência interpretativa, evidenciando elos
e acasos. Porque a arte também se organiza por meio da ficção, em uma série de escalas
estabelecidas através de contextos históricos que podem vir de pequenas fulgurações e
sinais de equivalências estabelecidos por estas visões: “trigais, noites de setembro,
portas, choças, estrelas, castelos, e outra série de entidades culturais imaginárias”131. O

128
DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem. São Paulo: Ed.34, 2013, pg. 185.
129
Idem pg.187.
130
Ibid., pg.223.
131
LEZAMA LIMA, José. A expressão americana. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988, pg.54.

63
tempo e o espaço da ficção determinam uma historicidade, [a forma poética se erige como
modelo ideal] quando para a história de fato, não há condições de um domínio preciso.
“Se revisamos uma série de quadros, desde as ilustrações de livros das horas até a pintura
flamenga ou italiana renascentista, podemos situar, com a visualidade que dá a pintura
sobre o devir histórico, essa causalidade de sentido e essa imagem que dá a visão
histórica”.132
Há também os signos mágicos, heranças do imaginário, memória da ancestralidade,
configurados nas primeiras luzes e gestos do pensamento arcaico espelhado na lógica do
universo e da natureza. A cultura das imagens, as iconofagias possíveis é o círculo vicioso
onde transformamos o corpo em alimento das imagens “como o alimento das imagens é
o olhar e como o olhar é um gesto do corpo”,133 sinalizando um corpo presente na ou
diante da imagem. Através de uma estética da ausência, surge, por exemplo, a imagem
do Cristo morto e ressuscitado, em forma de culto. Dietmar Kamper em seu texto
fundamental, O corpo vivo, o corpo morto134 concebe uma teoria viva do corpo que se
ocuparia do corpo morto e sua história:

A visibilidade se transformou num hábito. O regime do visível serve-se


dos meios de comunicação enquanto aparelhagem de um novo
inconsciente. Surgiu uma eternidade fatal que não quer mais cessar. O
corpo vivo é atualmente invisível. O corpo morto é uma imagem
inconsciente que exerce coação. O corpo vivo é atualmente invisível.135

O isso-foi barthesiano da imagem fotográfica reivindica um corpo ausente, assim


como o corpo da magia, através de suas evocações e conjurações, carecem de voz e de
materialização. Há um corpo ausente presentificado por uma imagem, há um corpo em
cena, um chamamento à carne do sacrifício, para proferir palavras, gravar signos, vibrar
na passagem entre profano e sagrado. A arte convoca um olhar mais atento aos códigos,
não apenas dirigido a sua visualidade, mas em sua totalidade corporal. As estruturas-
extensões do corpo, que o neoconcretista Hélio Oiticica denominou Parangolés, são
proposições de novas formas de visualidade, novas expressões para o corpo, capas de

132
Idem, pg.47.
133
BAITELLO JUNIOR, Norval. A era da iconofagia: ensaios de comunicação e cultura. São Paulo:
Hacker Editores, 2005, pg.116.
134
KAMPER, Dietmar in_http://www.cisc.org.br/portal/index.php/biblioteca/viewdownload/3-kamper-
dietmar/19-o-corpo-vivo-o-corpo-morto.html
135
KAMPER, Dietmar. Idem.

64
vestir e dançar, “vivências mágicas”, incorporações que instauram a vontade de um novo
mito.136
A respeito de uma semiótica da arte, Bóris Uspenskii assinala que as obras podem
ser consideradas como “um texto composto de símbolos a que cada um atribui por sua
conta e risco um conteúdo, sendo seu desenvolvimento, em definitivo, análogo ao da
linguagem”. 137 E as imagens, os signos, a arte, comunicam-se em si, como sistemas
formados por corpos orgânicos e interpretá-los é trazer à superfície o corpo submerso
que, à luz de um tipo não histórico de temporalidade, não esquece, mas revive sua
ausência em outro corpo longínquo.

2.2 Da vertigem do círculo mágico ao organizador de sinais

Arqueólogos descobriram recentemente um padrão semelhante ao indexador/


hiperlink hashtag [#], conhecido originariamente com cerquilha, entalhado em Gorham
Cave, um antigo refúgio neandertal na costa do Gibraltar, na Península Ibérica.[fig.29]
Um dos grandes debates da arqueologia atualmente é saber se os neandertais possuíam a
capacidade de se expressar de forma abstrata e simbólica, tal como os humanos modernos
pré-históricos demonstraram, ao pintar imagens de animais nas paredes das cavernas.138
A figuração dos tempos primordiais aponta para muitas direções e interpretações
sobre signos e imagens. A memória recorda que na contemplação das constelações ou na
observação do rito das estações ecoam reminiscências, restos de lembranças que

136
FAVARETTO, Celso. A invenção de Hélio Oiticica. São Paulo: Edusp, 1992, pg.107.
137
USPENSKII, Borís. Sobre a semiótica da arte. Cf. LOTMAN, Iúri; USPENSKII; Boris; IVANÓV, V.; Ensaios de
semiótica soviética. Lisboa: Livros Horizonte, 1981, pg.31.
138 Agora, os arqueólogos que trabalham em Gorham Cave, publicaram um relatório na revista

Proceedings, da Academia Nacional de Ciências, com um padrão quadriculado gravado na parede da


caverna. Este padrão, semelhante a atual "hasgtag" (#), foi entalhado de forma profunda, usando algum
tipo de ferramenta de pedra, e foi encontrado sob camadas arqueológicas que datam de pelo menos 39
mil anos, mas que contêm traços de ferramentas de pedra que apenas os neandertais fizeram. A imagem
lembra um pouco o padrão geométrico de 75.000 anos encontrado em caverna de Blombos, na África, e
os pesquisadores argumentam que é uma prova positiva de que os neandertais eram tão capazes do
pensamento abstrato, como os humanos modernos. Segundo os pesquisadores, o padrão foi feito
claramente de forma proposital, e não atividade utilitária. Havia uma vontade de produzir um teste
padrão abstrato. O estereótipo de neandertais como brutos humanos está agora praticamente
desacreditado. http://noticias.uol.com.br/ciencia/ultimas-noticias/redacao/2014/09/02/neandertais-
podem-ter-usado-hashtag-para-expressar-pensamento-
abstrato.htm#fotoNavId=prc672e4428a81a66fe8d65a35762429c820150730

65
conduzem às matrizes desse saber arcaico. Segundo Iuri Lotman, basta que se pretenda
descrever o conjunto das artes nos marcos de tal ou qual época para que “descubramos
claramente a expansão de umas como interrupções na história de outras:

Sin embargo, la história real de la cultura da um cuadro totalmente


distinto: los distintos momentos de llegada de semejantes fenómenos
epocales em las diferentes ramas del arte se nivelan solamente em el
metanivel de la autoconciencia cultural, que se convierte después em
concepciones investigativas. Pero em el tejido real de la cultura la no
sincronicidad no interviene como uma desviación casual, sino como
uma ley regular.139

O corpo, a mão, o olho, e o ouvido, são vias por onde o ser humano acessa a
figuração – em seu ritmo, sonoridade e gesto. À semelhança do que ocorre com a imagem,
o sistema dos sentidos humanos emergiu simultaneamente à técnica na pré-história, de
modo que os objetos, a linguagem e o ritmo, são aspectos que se tocam em um mesmo
processo. A memória das marcas de caça primitivas feitas por varinhas, fragmentos de
ossos e traços gravados na terra ou em pedras, repetidos são mensagens que retornam à
gesticulação técnica das primeiras figurações rítmicas do ser humano há cerca de 35 mil
anos atrás.
Tecnicidade manual e tecnicidade verbal. O gesto, associado ao utensílio, assinala
uma espécie de memória 140 humana táctil, gerando as primeiras ações de preensão e
manipulação, memória essa que “exteriorizada, encontra-se na coletividade étnica, sendo
isso o que a distingue da memória animal”. 141 Pela transmissão oral, o capital dessa
memória desenvolveu sua sobrevivência material e social, importante para a coesão do
grupo, propiciando também o desenvolvimento da literatura oral e das práticas figurativas
em geral.
Através da expansão dessa memória, o aparecimento da escrita se deu, após
milênios de um amadurecimento no interior dos sistemas de representações mitográficas,

139
LOTMAN, Iuri. La semiosfera I – semiótica de la cultura y del texto. Selección y traducción por
Desidério Navarro. Madrid: Frónesis Cátedra universitat de Valência, 1996, pg.33-34.
140
“o termo memória [aqui] é entendido num sentido extremamente lato. Não se trata de uma
propriedade da inteligência, mas antes e seja ele qual for, do suporte no quais se inscrevem as cadeias de
atos. A este título, pode-se falar de uma memória ‘específica’, para definir a fixação dos comportamentos
das espécies animais, de uma memória ‘étnica’, para assegurar a reprodução dos comportamentos nas
sociedades humanas, e ao mesmo título, de uma memória ‘artificial’ eletrônica na sua forma mais recente
e funcionando sem recurso ao instinto ou à reflexão, para garantir a reprodução dos atos mecânicos
encadeados”. Cf. LEROI-GOURHAN, 1983, pg.229.
141
LEROI-GOURHAN, André. O gesto e a palavra – Memória e Ritmos. Porto: Edições 70, 1983, pg.58.

66
alinhando no pensamento o desenvolvimento da palavra e a conversão simbólica
resultante da série linear de signos alfabéticos. O fato de a inscrição dessa memória, não
obstante o conhecimento prático e científico, apresentar raríssimas comprovações,
também admite a inclusão de um contexto onde a matéria mágica e religiosa não é
claramente separável das formas práticas. Ritual e técnica.
E a técnica projeta a memória, permite e abre um conhecimento a ser transmitido
de geração a geração. Para Vilém Flusser, um argumento anterior assevera que o escrever
objetiva conduzir o círculo da vertigem do pensamento ao pensamento orientado por
linhas, e que agora é possível dizer: “de um círculo mágico do pensamento pré-histórico
a um pensamento histórico conformado em linhas”.142 Todavia, para um organizador de
sinais “os escritos não são o código apropriado para a observação, para a contemplação.
As imagens são mais apropriadas para isso”.143 E a primeira certeza baseada em fatos leva
a crer que a arte figurativa nasce de uma forma coerente “aflorando, progressivamente.
Os cumes do pensamento simbolizável são os primeiros a surgir, emergindo muito antes
das figuras começarem a organizar-se no sentido do realismo”.144
Algumas gravuras de animais e de geometrizações paleolíticas, permitem falar de
realismo, pois o que se produz anteriormente através da denominação de primitivo apenas
pode ser dado como propriedade às primeiras manifestações artísticas conhecidas. Por
conseguinte, “a arte primitiva começa pelo abstrato e até mesmo pelo pré-figurativo.145
Arte abstrata, abstrair, no sentido mais etimológico, “isolar pelo pensamento;
considerar uma parte isolando-a do todo” expressariam assim as primeiras formas de arte
que selecionam pontos expressivos “para traduzir em símbolos um todo mitológico, a fim
de poder constituir um mitograma”.146
Desde o final do século XIX, sustentou-se o caráter religioso da arte pré-histórica e
de suas hipóteses – a não religiosidade de uma arte pela arte e a prática das artes mágicas.
Essa discussão fica mal alicerçada quando se tenta separar o homem religioso,
representado por deuses, do artista como um simples criador de formas. A linguagem das
formas, indissociável do comportamento figurativo, reflete a realidade “sob a forma de
símbolos verbais, gestuais, ou materializados em figuras”.147

142
FLÜSSER, Vilém. A Escrita. São Paulo: Annablume, 2010, pg.37.
143
Idem, pg.45.
144
LEROI-GOURHAN, André. O gesto e a palavra – Memória e ritmos. Porto: Edições 70, 1983, pg.189
145
Idem, pg.188.
146
Ibid., pg. 189.
147
LEROI-GOURHAN, André. As religiões da Pré-História. Porto: Edições 70, 1983, pg.177.

67
A dificuldade dos etnólogos e arqueólogos em atestar com precisão de que maneira
ocorreu a inserção do ser humano através do aparelho simbólico é um campo instável
onde o que se sabe, certamente, é que as teorias e probabilidades sobre o pensamento e a
ação primitiva, chegaram através do registro de imagens, tanto da arte como do
pensamento religioso ancestral.
Observando a cronologia que situa figuras e objetos que testemunharam os
diferentes períodos cognitivos e simbólicos do ser-humano, percebe-se a evolução que
vai da abstração ao figurativismo, e que se estabeleceu através dos seguintes períodos:
1- O pré-figurativo, com a presença de ossos e pequenas placas, há
aproximadamente 50 mil anos.
2- O primitivo, em que correspondem figuras de animais e indícios de figuras
humanas, há aproximadamente 30 mil anos.
3- O arcaico, em que o domínio técnico é perfeito com pinturas, esculturas e
gravuras, há aproximadamente 20 mil anos.
3- O período clássico, cuja transformação alcança um realismo de formas muito
desenvolvido, com as proporções próximas do real, há aproximadamente 15 mil
a 10 mil anos.
4- E finalmente, o período tardio, há aproximadamente 10 mil anos, em que os
últimos vestígios dos estilos antigos cessam e as representações de animais
encontram-se integradas num realismo de formas e movimentos
impressionante.148
De forma que, foram necessários transcorrerem cerca de 50 mil anos para que a arte
paleolítica, ligada por um mesmo fundo simbólico, siga a curva evolutiva comparável
com as outras artes conhecidas durante longos períodos.
Para Walter Benjamim, a produção artística começa com imagens a serviço da
magia, e o alcance histórico de uma refuncionalização das obras ocorre, do ponto de vista
metodológico e material, numa sociedade cuja técnica se confundia inteiramente com o
ritual:

O alce, copiado pelo homem paleolítico nas paredes de sua caverna, é


um instrumento de magia, só ocasionalmente exposto aos olhos dos
outros homens: no máximo, ele deve ser visto pelos espíritos [...] Essa
arte registrava certas imagens, a serviço da magia, com funções

148
Idem pg.86.

68
práticas: seja provavelmente como execução de atividades mágicas,
seja a título de ensinamento dessas práticas mágicas, seja como objeto
de contemplação, à qual se atribuíam efeitos mágicos.149

Dos círculos dos ossos ao culto das ossadas, toda uma série de atos se relacionam
com vestígios de religiosidade: ossos de ovelha num prato acompanhando uma sepultura
ou a cabeça e as patas de um carneiro colocados à entrada de um tumulus, são fatos
positivos que atestam esses vestígios de culto no período paleolítico superior [15 mil
anos], mesmo em sua insuficiência de materiais.
Posteriormente, na Idade Média, o valor de culto viria a obrigar certas estátuas
divinas a serem mantidas no interior de cellas sacerdotais, assim como as imagens
sagradas deveriam ser conservadas em locais invisíveis aos olhos de observadores. O ato
de resguardar objetos e imagens dos olhares, provavelmente está na origem do fascínio,
mal de ojo, mau olhado, característica das tradições que consideram a vista um meio
mágico, como vimos em capítulo anterior. “O poder dos olhos constituía característica
espantosa para seres e animais da fábula. A alma estava nos olhos e o seu reflexo era
sagrado, participante da essência vital”.150
Para Benjamim, a exponibilidade das obras de arte cresceu em uma escala tão
descomunal com os vários meios de reprodutibilidade técnica, que a essa mudança de
ênfase na recepção, corresponderia uma mudança qualitativa comparável à que ocorreu
na pré-história. Desse modo, o valor de culto, concebido como instrumento mágico, a
priori, passaria só mais tarde a figurar como obra de arte mediante um valor de exposição.
Essa dialética da apresentabilidade, que Benjamin chama de aura e Blanchot de
fascinação151, visa a construção da imagem-objeto na qual o humano tentava pensar-se
como imagem de seu deus. Podemos entender aqui os ícones e as relíquias como formas
afirmativas de um desejo de imagem feita de ausência humana através da presença de um
corpo sacralizado e quase apagado. Para tanto, o Sudário, o Mandylion ou o lenço de
Verônica, vão caracterizar a teologia negativa e a sintaxe dos místicos:

149
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Ed. Brasiliense, 2012, pg.188.
150
CASCUDO, Luis da Camara. Meleagro. Rio de Janeiro: Agir Editora, 1951, pg.64.
151
Cf. M. Blanchot, La solitude essentielle, L’espace littéraire, op. cit., pp.22-7: “A fascinação está
fundamentalmente ligada à presença neutra, impessoal, a um agente indeterminado, ao imenso Alguém
sem figura. É a relação que o olhar mantém, relação ela mesma neutra e impessoal, com a profundidade
sem olhar e sem contorno, a ausência que vemos porque nos cega”. [p.27] Apud Didi-Huberman, Georges,
2013, p.249.

69
Assim, o Mandylion foi qualificado, desde a origem, de gráfico-
agráfico; maneira de reunir num único objeto modelos semióticos
heterogêneos; maneira de imaginar milagres semióticos, se assim
podemos dizer.152

Tais imagens teriam como finalidade construir o mistério, em sua eficácia mágica,
e a veneração através do intocável por excelência; ícones aquiropoéticos, não feitos por
mãos humanas, mas criados de forma milagrosa. O Mandylion “era envolto na púrpura
imperial e levado solenemente em procissão; assim ocupava um trono real e servia de
palladium, isto é, de imagem encantatória, nas expedições militares bizantinas”.153
O esoterismo figurativo é “praticamente contemporâneo ao nascimento da própria
arte. Longe de constituir um fenômeno tardio, está diretamente relacionado com o fato
das figuras serem símbolos e não cópias”. 154
No entanto, para Leroi Gourhan,
paralelamente, a arte abstrata teve uma longa carreira no “campo do simbolismo dos
signos religiosos e astrológicos, assim como no domínio da heráldica, para acabar por se
desligar de seu sentido, e sofrer uma transposição para uma arte onde a esquematização
das formas procura sugerir um sentido à margem dos caminhos da verdade ótica”.155
Em princípio a obra de arte “sempre foi suscetível de reprodução”,156 o que, no que
diz respeito à técnica, esta aconteceu em períodos espaçados, mas de modo sucessivo. Os
gregos só conheciam dois métodos de reprodução técnica das obras de arte: a fundição e
a cunhagem. Só com a xilogravura foi possível estabelecer um método de reprodução em
série que, apenas na Idade Média será acrescido da gravura em metal e da água-forte. A
litogravura é que vai permitir que as obras sejam amplamente reproduzidas.
Será a partir da difusão das imagens que o modo de percepção das coletividades
humanas irá se modificar de maneira intensa. Multiplicada a capacidade de exposição, as
obras passam a ser recepcionadas de modo diferente, adquirindo funções novas, tal como
ocorreu na pré-história quando o valor de culto se transforma, transpondo o sentido da
arte como instrumento de magia. Benjamin fará críticas severas aos dadaístas, que,

152
DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da Imagem. São Paulo: Ed.34, 2013, pg.247.
153
Idem, pg.248.
154
LEROI-GOURHAN, André. O gesto e a palavra – Memória e ritmos. Porto: Edições 70, 1983, pg.201.
155
Idem, pg.215.
156
BENJAMIN, Walter. Benjamin e a obra de arte. Técnica, imagem, percepção. Rio de Janeiro: Ed.
Contraponto, 2012, pg. 10.

70
segundo ele, haviam transformado a arte “num projétil capaz de atingir o espectador”.157
Com o surgimento das massas, despontariam igualmente atitudes novas nas relações com
a arte; na libertação da arte de sua vinculação imediata ao sagrado, percebe-se o centro
desse processo de secular duração e, exatamente por isso, tão difícil de ser compreendido
em seu percurso contraditório.

O caráter mágico das imagens é essencial para compreender esse tempo, o tempo
de ver, o tempo mágico, aquele em que o olhar percorre a imagem e vai estabelecendo
relações atemporais, segundo Flusser, circularizando e vagueando pela superfície. No
vaivém do olhar “um elemento explica o outro, e este explica o primeiro. O significado
das imagens é o contexto mágico das relações reversíveis”. 158 E ainda, o pensamento
mágico, “tal visão mágica do espaço está quase inteiramente eliminada de nossos modelos
de conhecimento, mas em contextos valorativos, [éticos e estéticos] permanece vigente.159

A função, a superação, e a autonomia da imagem são premissas para a discussão da


arte das vanguardas.

2.3 A linguagem da desconstrução, signos da vanguarda

Quando percebi que as velhas linhas de repente empalideciam,


e o futuro nelas oculto se transformava no dia de hoje,
compreendi que a pátria da criação está situada no futuro

[KLÉBNIKOV]160

O verdadeiro questionamento de um recomeço exigiria hoje que a humanidade


esquecesse a arte ancestral, as culturas mediterrâneas, renunciasse a compreender a
Grécia antiga, a Itália da Idade Média, os Flamengos, os modernos, enfim, todo um
sistema de tradições que a arte percorreu desde a pré-história. Além da memória social, e

157
BENJAMIN, Walter. Benjamin e a obra de arte. Técnica, imagem, percepção. Rio de Janeiro: Ed.
Contraponto, 2012, pg. 29.
158
FLUSSER. Vilém. Filosofia da Caixa Preta- Ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro:
Relume Damará, 2009, pg. 8.
159
FLUSSER. Vilém. Arte de retaguarda. http://www.flusserbrasil.com/art15.html
160
Tradução de Boris Schnaiderman de “Uma visão dialética e radical da Literatura”, in Roman Jakobson.
Linguística. Poética. Cinema. São Paulo: Perspectiva, 1970. Apud Velimir Klébnikov. Ka. Tradução e notas
de Aurora Fornoni Bernardini. São Paulo: Ed, Perspectiva, 1977, pg.55.

71
do peso de seis mil anos de arte civilizada. Esse recomeço “só poderia ser possível
mediante uma oposição rigorosa, comparável à do asceta que nega no deserto”.161
Lotman, ao referir-se à cultura, enfatiza um tipo de memória coletiva que para ele
é a “memória criativa”, que a arte potencialmente mantém em atividade, e cujo caráter
pancrônico espacial e contínuo seriam seus traços mais significativos:

La memoria cultural como mecanismo creador no solo es pancrónica,


sino que se opone al tempo.[...] La actualización de tales o cuales textos
se subordina a las complejas leyes del movimeiento cultural general y
no puede ser reducida a la fórmula “el más nuevo es el más valioso”.[...]
Cada cultura define su paradigma de qué se debe recordar [esto es,
conservar] y qué se há de olvidar.162

Considerando o papel ativo da memória na atualização e conservação de novos


sentidos, como as vanguardas desconstruíram a ordenação lógica nas representações
visuais e simbólicas no início do século XX?
O conceito de contra-arte, orientado a partir da violação dos cânones estabelecidos,
surgiu a partir das vanguardas movimentadas pela inquietude e pela busca de um novo
tipo de verdade – formas radicalmente novas de representar sua experiência no mundo.
Os artistas, lançaram-se então à “criação de uma arte que revelaria aspectos inacessíveis
às técnicas e convenções da arte figurativa”163, através da recusa sucessiva do realismo,
da forma e de todo e qualquer vestígio de figuração”, conservando apenas o capital
elementar do ritmo e das oposições de valor”.164
O aparecimento das vanguardas europeias propiciou um discurso para a arte, que
deixaria para trás o otimismo positivista do final do século XIX, ainda impregnado pelas
ideias iluministas. E se era necessário libertar a arte do peso da representação, conforme
postulou Kasemir Malevich no contexto das vanguardas russas, também era
indispensável alinhar-se aos movimentos de um futurismo que já se anunciava com a
revolução industrial, na profusão de engrenagens e meios de reprodução que surgiam.

161
LEROI-GOURHAN, André. O gesto e a palavra – Memória e ritmos. Porto: Edições 70, 1983, pg.216.
162
LOTMAN, Iuri. La semiosfera I – semiótica de la cultura y del texto. Selección y traducción por Desidério
Navarro. Madrid: Frónesis Cátedra universitat de Valência, 1996, pg.158-160.
163
GOODING, Mel. Arte abstrata. São Paulo: Cosacnaify, 2002, pg. 06
164
LEROI-GOURHAN, André. O gesto e a palavra – Memória e ritmos. Porto: Edições 70, 1983, pg.216.

72
Os movimentos modernistas do século XIX serviram, como base para
instrumentalizar a primeira fase da vanguarda, cujo adjetivo, avant-garde, surgiu na
França por meio de Saint-Simon [1760-1825]:

Seremos nós, artistas, que serviremos a vocês da vanguarda. Que belo


destino para as artes, o de exercer sobre a sociedade um poder positivo,
uma verdadeira função sacerdotal, e de marchar vigorosamente na
dianteira de todas as faculdades intelectuais da época do seu maior
desenvolvimento! [citado em Bell, 1978, 35; cf. Poglioli, 1968,9]165

A noção de que a pintura e a escultura poderiam retratar a realidade do mundo


mediante a imitação iluminadora [mimese], ou pela representação ilusionista de
fenômenos naturais, foi posta em dúvida. Enquanto isso, a originalidade criativa rejeitaria
as velhas formas para apreender maneiras de invenção em que as coisas do mundo
poderiam ser retratadas apenas como uma linguagem visual abstrata.
O termo novo, e a palavra moderno se converteriam então nas “palavras-chave
afirmativas do século, um talismã verbal, tanto para artistas como para os críticos”.166 E a
intenção dos vanguardistas pode ser definida como uma “tentativa de direcionar a
experiência estética, que se opunha a práxis vital – tal como o esteticismo a desenvolveu
para a vida cotidiana”,167 além de questionar a autonomia e a função da arte, ao desacatar
o conceito de l’art pour l’art. Com a libertação da arte de sua vinculação imediata ao
sagrado e às finalidades de culto, os vanguardistas almejavam uma superação da arte que
deveria se re-transportar para a práxis vital, ou seja, retornar à vida cotidiana e seus
processos vitais, por mais que parecesse contraditório.

Peter Bürger examina o conceito de engajamento político na arte, alterado


essencialmente pela vanguarda mediante suas teorias, [ou seja, no quadro de uma teoria
de vanguarda]. A questão da “necessidade da discussão do engajamento não pode ser
separada da própria discussão do problema”,168 além da intenção de destruir a instituição
arte e reinstaurar uma práxis, não pela destruição efetuada pela sociedade burguesa, mas
antes pelo impacto social na obra individual.

165
Idem pg. 29.
166
GOODING, Mel. Arte abstrata. São Paulo: Cosacnaify, 2002, pg.07
167
BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda. São Paulo: Cosanaify, 2008, pg.71.
168
Idem, pg.149.

73
A polêmica entre Adorno e Lukács, baseada na oposição entre arte orgânica e arte
de vanguarda estabeleceu valores e normas estéticas. Enquanto Adorno eleva a obra
vanguardista, Lukács se apoia na obra de arte orgânica, ou seja, realista. A teoria da
estética assume, ainda hoje, os critérios de Adorno, cuja defesa se baseia na ideia de que
“a sociedade do capitalismo tardio teria se tornado irracional a ponto de talvez não ser
mais compreensível teoricamente”,169 razão aplicada à arte pós-vanguardista.

Ao impacto social da nova originalidade da vanguarda, atrelavam-se os imperativos


da autenticidade, com ênfase na experiência individual e distante da representação de
objetos no espaço. Buscava-se, com as formas puras, atingir o espiritual, e alguns artistas
acreditavam inclusive que dessas formas emanavam energias puras; “alguns sentiam que
a obra de arte abstrata poderia induzir a um sentimento do numinoso ou do transcendente
e ocupar um lugar na vida espiritual entre os objetos sagrados ou ícones do passado”.170

Wassily Kandinsky [1866-1944], o precursor do construtivismo russo, acreditava


que a pintura, como a música, deveria exprimir a vida interior do artista, seus mais
profundos sentimentos e intuições, sem recorrer à reprodução de fenômenos naturais.171
Kandinsky, que era adepto da teosofia blawatzkiana e do ocultismo, formulou uma teoria
do espiritual na arte em que afirmava:

Ainda que a tendência dos teosóficos para construir uma teoria e a sua
alegria possam parecer prematuras à possibilidade de responderem ao
imenso e eterno ponto de interrogação e inspirar um certo ceticismo ao
observador, este grande movimento espiritual é real.172

Antitético, o universo discursivo da modernidade percorreu aquela “transitória,


fugidia e contingente” modernidade da fala baudelairiana, oscilando em meio à tensão
por um anseio de mudanças que, para David Harvey, veio a ser sua característica nunca
contestada. A sensação avassaladora que cercou artistas e escritores de diferentes épocas
e lugares, a partir de então, foi sempre a de lidar com a ideia de fragmentação,
efemeridade e mudança caótica. Leroi-Gourhan observa que a abstração como “recusa de
significação de uma parte da obra, está relativamente próxima da do Paleolítico”.173 E tal

169
BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda. São Paulo: Cosanaify, 2008, pg.167.
170
GOODING, Mel. Arte abstrata. São Paulo: Cosacnaify, 2002, pg. 07.
171
Idem, pg.20.
172
KANDINSKY, Wassily. Do espiritual na arte. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1987, pg.39.
173
LEROI-GOURHAN, André. O gesto e a palavra – Memória e ritmos. Porto: Edições 70, 1983, pg.215.

74
proximidade se apresenta pelo fato de existirem elementos-chave, compostos num espaço
ultradimensional, mas privados de sintaxe, mediante a recusa da ordenação narrativa de
valores que, até então encontravam-se nas formas compostas a partir de uma perspectiva
e de uma simetria tradicionais.
Quanto ao sentimento transcendente, este buscava a convergência de formas e
movimentos, luz, linguagens, sinais, símbolos, geometrias e diagramas, principalmente
através de fotomontagens, tipologias sans serif e cores puras, influenciando
profundamente o repertório da visualidade e da sonoridade futura. O minimalismo do
gesto em John Cage, por exemplo, é pleno de uma espacialização que recorre a essa
forma, em sua percepção sonora e corporal.

Ao confrontar posturas diferentes quanto ao uso do material, tal como a tradição


sempre orientara, havia no artista da vanguarda um desejo de arrancá-lo e devolvê-lo ao
seu contexto funcional, juntar fragmentos com a intenção de atribuir sentidos, e nessa
medida a montagem pode ser considerada seu princípio básico. Rompendo com a
aparência desses signos “as partes não se referem mais à realidade, elas são a
realidade”.174

Mas, paradoxalmente, assim como o mundo se unia no ideal de modernidade,


também se desintegrava, na contradição e na angústia do sólido que se desmancha no ar.
A ruptura, no sentido de um respeito ao passado e sob a marca da transitoriedade
“dificulta a preservação de todo sentido de continuidade histórica”, segundo David
Harvey, já que, além da ruptura, a modernidade abrigou um processo de quebra inerente.
O modernismo sempre esteve comprometido com a descoberta, e o projeto da
modernidade, às voltas desde o século XVIII com a ideia do progresso iluminista,
demandou um trabalho intelectual considerável, dessacralizando o conhecimento e
secularizando a organização social para, de maneira otimista, acolher o turbilhão de
mudanças a que se propunha. A questão foi a de como poderia haver um mundo novo
sem a destruição do que viera antes? A figura trágica do Fausto de Goethe sintetizaria o
pensamento e a ação de um herói épico preparado para destruir mitos religiosos,
dominando a natureza com a finalidade de criar uma nova paisagem humana dos desejos.
Eis o velho diabo que sempre ressurge no âmago da história.

174
BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda. São Paulo: Cosanaify, 2008, pg.139.

75
Na verdade, o desejo da razão iluminista no início do século XX, já não seria
possível depois de Nietzsche, que com seu posicionamento acima da ciência, torna a
experiência estética “um poderoso meio para o estabelecimento de uma nova mitologia
quanto àquilo a que o eterno e imutável poderia referir-se em meio a toda a
efemeridade”.175 Caberia então ao artista, enquanto criador, ser o indivíduo que cumpriria
com uma função heroica ao efetuar a destruição criativa. Para os movimentos artísticos
do início do século XX, articulados na base da primeira fase da vanguarda, a questão
passou a ser: como representar o eterno e o imutável?
O naturalismo mostrava-se insuficiente e a preocupação com a inovação da
linguagem, bem como as descobertas de novos códigos, mergulharam o artista em um
processo autorreferencial em que “aceitavam o efêmero e o transitório como locus de sua
arte”, construída a partir dessas técnicas de montagem/colagem que, superpostas criavam
um efeito simultâneo:

Reconhecendo essa característica, certas vanguardas – os dadaístas, os


primeiros surrealistas – tentaram mobilizar suas capacidades estéticas
para fins revolucionários ao fundir a sua arte com a cultura popular.176

Todavia, afirma Hobsbawn, a verdadeira revolução das artes do século XX não foi
realizada pelas vanguardas, mas pela lógica combinada da tecnologia e do mercado de
massas, ou seja, da democratização do consumo estético. “O mais importante com relação
às verdadeiras artes revolucionárias é que elas foram aceitas pelas massas porque
precisavam se comunicar com as massas”.177 Apesar de que o rompimento do projeto
moderno com a tradição, durou o bastante para criar sua própria tradição, já que, passados
mais de cem anos desde que Baudelaire lançou seu manifesto em busca do novo, o que
se vem produzindo seria uma “arte em saltos, de vanguarda a vanguarda”.178
Desse modo, a arte, com a ruptura efetuada pelas vanguardas a partir do final do
século XIX, desconstrói a representação mimética dos objetos na tentativa de organizar
essa nova práxis vital e arrancá-la do esteticismo. As abstrações e as figuras geométricas
propiciam essa busca do espiritual e das formas puras. O confronto entre o caráter coletivo
do sujeito da criação e a categoria de produção individual se estabelece.

175
HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola,2013, pg. 27.
176
Idem pg.31.
177
HOBSBAWN, Eric. Tempos fraturados. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, pg.291.
178
ROSENBERG, Harold. A tradição do novo. São Paulo. Ed. Perspectiva, 1974, pg15.

76
Tal impermanência e desmaterialização refletirão um estado de coisas que levará
Marcel Duchamp, em 1913, a assinar uma série de objetos [um urinol, um secador de
garrafas etc.] e enviá-los a uma exposição. A assinatura – que justamente retém o
individual da obra, ou seja, “o fato de que ela se deve àquele artista – impressa num
produto de massas qualquer, transforma-se em signo de desprezo frente a todas as
pretensões da criatividade individual”. 179 Desse modo, as vanguardas, através de sua
ruptura com a representação realista, instrumentalizaram alguns conceitos que, à luz do
início do século XX, fundaram novos modelos criativos. Mas, se na transmissão dessas
novas proposições simbólicas as vanguardas dialogaram com fronteiras situadas em
diferentes tempos e estruturas, a nova arte abandonou de fato a tradição?

179
BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda. São Paulo: Cosanaify, 2008, pg.100.

77
CAPÍTULO 3:

DUAS VANGUARDAS

3.1 Kasemir Malevich

Davi de Michelangelo, que monstruosidade!

[KASEMIR MALEVICH]

A arte é uma das peças chave para esta tese, e o artista, seu gesto e figuração,
integram o conjunto de signos que nos interessa. Observamos até aqui como o papel da
arte foi amplificado de maneira decisiva com os movimentos das vanguardas do início do
século XX, efetivando rupturas determinantes para o horizonte, não apenas estético, mas
principalmente ético e funcional. Neste contexto, Kasemir Malevich foi um artista que,
sem dúvida, efetuou mudanças significativas na contextura de novos modelos de
repertório, na medida em que, pensando com as flutuações da tradição, mergulhou nas
origens desse repertório. Veremos em sua obra, como a arte das vanguardas, com suas
formas e artistas, não se distanciou do circuito dos signos que cercam a magia.
Rússia, início do século XX. Profundamente enraizado a seu tempo, Malevich180
idealizou o Suprematismo, movimento concebido com a vanguarda russa, afirmando que
fazia sua arte, sua pintura, num estado de transe místico e sob a influência de uma
consciência cósmica, pois, segundo o artista, desse modo sua obra adquiria grande
significado. Verifica-se que tal consciência, habitualmente ligada a práticas religiosas e
místicas, introduz ao centro uma das supostas contraposições que buscamos iluminar, a
da vanguarda versus tradição. Afinal, o que Malevich comunica, com suas formas
geométricas imperfeitas?
O crítico e historiador Giulio Carlo Argan diz que a artisticidade da arte forma um
só corpo com a sua historicidade para legitimar a “existência de uma solidariedade de
princípio entre a ação artística e a ação histórica”.181 E que, portanto, haveria uma ação

180
Kazimir Severinovich Malevich, [Казимир Северинович Малевич ][Kiev, 1878 – São Petersburgo,
1935) foi um artista soviético. Fez parte da vanguarda russa e foi o idealizador do movimento conhecido
como Suprematismo. Apesar da infância no campo, demonstrou um interesse precoce pelo desenho.
Estudou na Escola de pintura, escultura e arquitetura de Moscou, onde trabalhou por algum tempo,
mudando-se em seguida para Petrogrado, onde fundou o Instituto Nacional de Cultura Artística.
181
ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como História da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Pg.23.

78
que se realiza no presente, mas pressupõe a experiência do passado e um projeto de futuro,
que, por sua vez, asseguraria um valor permanentemente histórico. Assim, eis-nos outra
vez diante do contrapelo, dos fantasmas e do hermetismo revisto agora nos signos básicos
de um repertório: o tríptico formado pelo quadrado, o círculo e a cruz. Mas será
inicialmente através da revelação da pintura ocidental, do neo-impressionismo [As
banhistas de Paul Cézanne...], e ao jogo dinâmico do cubo-futurismo, que Malevich
chegará ao suprematismo do quadrado negro, passando pelos ícones e as imagens
sagradas, onde o jovem artista irá se autorretratar numa teologia de formas e de cores.
Em 1907, Malevich expõe Esboço para um afresco [fig.30]. Nesse autorretrato o
artista se retrata com barba e tendo ao fundo figuras de santos nus em um bosque. Entre
1908 e 1909 já se nota uma mudança considerável em outro Autorretrato [fig.31] no qual
se representa à frente de um fundo vermelho com figuras femininas que se assemelham a
imagens religiosas. Nas duas pinturas, o artista tem um olhar fixo e simétrico, análogo ao
de alguns ícones archiropoieticos russos, como o Redentor não pintado à mão [fig.32],
têmpera sobre madeira do século XII. Acredita-se que as imagens archiropoieticas, como
vimos em um capítulo anterior, haveriam sido criadas de forma milagrosa e não pelas
mãos humanas, como é o caso dos sudários e mandilyons.
Em um terceiro autorretrato, de 1933 [fig.33], um de seus últimos quadros já no
final da vida, Malevich situa-se de forma anacrônica, em um suprematismo cosmológico,
em que se apresenta como um homem medieval. As vestes são compostas por todas as
formas e cores suprematistas, repetindo, de certa maneira, o gesto frontal do Autorretrato
de Dürer [fig.34], e assinando a tela, embaixo à direita, com um pequeno quadrado negro,
signo de sua emblemática obra e onde principiou aquilo que costumava a chamar de o
grau zero de sua pintura.
Portanto, em 1913 Malevich expôs a primeira versão do Quadrado negro como
cenário da ópera futurista Vitória Sobre o Sol [em russo: Победа над Cолнцем, Pobeda
nad Solntsem] 182 [fig.33]. A ópera, composta por Mikhail Matyushin estreou no Luna
Park em São Petersburgo, tendo seu libreto escrito em Zaum183, e obtendo a contribuição

182
http://www.ce-review.org/99/3/ondisplay3_hunter.html
183
“Zaum (em russo: заумь u заумный язык), ou Linguagem transmental é um conceito utilizado para
designar os experimentos linguísticos do simbolismo fonético na criação de línguas artísticas, realizados
por alguns poetas futuristas russos, entre os quais Vélimir Khlébnikov e Aleksei Krutchionikh. A palavra
zaum está composta pelo prefixo за (além, por trás) e a palavra ум (mente, conhecimento). O zaum pode
ser definido como uma linguagem poética experimental caraterizada pela sua indeterminação no
significado. Os exemplos mais salientáveis de zaum foram o poema de Krutchionikh intitulado Дыр бул

79
de Aleksei Kruchonykh. A música foi composta por Mikhail Matyushin, e o prólogo foi
escrito por Vélimir Khlebnikov, havendo apenas duas apresentações, cuja performance
foi organizada pelo grupo artístico Soyuz Molodyozhi. O espetáculo tornou-se célebre
porque Malevich, além de apresentar sua primeira pintura com o tema do quadrado
negro, desenhou o figurino e o cenário. A opera propunha-se sublinhar o paralelismo
entre o texto literário, a composição musical e a pintura, exibindo um elenco de
personagens tão extravagantes como Nero e Calígula na mesma pessoa, o Viajante de
todas as épocas, o Conversador ao telefone, os Novos, etc.[fig. 34-35-36] A obra exaltava
o domínio da técnica sobre a natureza na batalha contra o sol onde a linguagem alógica
de Kruchonykh, aliada à música de Matyushin, composta de gritos e ruídos, propagavam
o estranhamento de uma nova dicção. O cenário e o figurino recordavam as telas
cubofuturistas de Malevich, e os trajes, executados com papelão e arame, limitavam a
mobilidade dos personagens, que se moviam lentamente e com rigidez, criando um
espaço pictórico de lógica abstrata.

O público reagiu negativamente à performance, assim como alguns críticos e


historiadores. Recentemente, em 2013, a ópera foi remontada pelo Russian State Museum
no Stas Namin Theatre, em comemoração aos 100 anos de sua primeira apresentação.184
Um ano depois da primeira apresentação, Malevich escreveria a Matyushin, que na época
preparava a publicação dos desenhos da ópera, dizendo: “aí há um painel, o quadrado
negro, que me foi muito útil porque ofereceu uma grande quantidade de materiais [...]
Marca o princípio da vitória”.185

Em 1915, Malevich expôs o Quadrado Negro na mostra 0.10, colocando-o no alto


do canto direito da sala de exposições, lugar onde usualmente ficam os ícones sagrados
das moradias russas. [fig.37] O quadro inclinava-se para o expectador cercado pelas

щыл (Dir bul shchil) e o livreto da ópera Vitória sobre o sol, ou as autodenominadas linguagem dos
pássaros, linguagem dos deuses e linguagem das estrelas desenhados por Khlebnikov. Esta iniciativa
poética é comparável aos usos linguísticos contemporâneos do dadaísmo, mas a teorização linguística
que há por trás do zaum deve-se inteiramente a um intento sério de recuperar o simbolismo dos sons
num exercício de glotogonia. Nos últimos anos, o poeta de vanguarda Sergei Biriukov fundou a associação
de poetas Academia do Zaum em Tambov, e entre os principais utilizadores estão também Sergei
Segai e Rea Nikonova. As atividades zaum incluíram performances públicas e publicações. O movimento
influenciou também poéticas posteriores, incluindo o Surrealismo, o Novo realismo, a Pop art e fluxus”.
https://en.wikipedia.org/wiki/Zaum
184
https://www.youtube.com/watch?v=7EX7Z9I716U
185
Cf. Paul Kruntorad in SIMMEN, Jeannot; KOHLHOFF, Kolja. Kasemir Malevich – Vida y obra. Barcelona:
Könemann, 2000, pg.35.

80
demais obras e assinalando a imagem que viria a se configurar como o princípio da arte
abstrata. Malevich dirá sobre o Quadrado Negro: Eu sentia apenas a noite dentro de
mim, e foi então que concebi a nova arte, que chamei suprematismo. O artista afirmava
ter concebido o quadro num estado de transe místico e sob influência da consciência
cósmica. É um “vazio profundo, geométrico, misterioso, autorreferente que se propõe a
si mesmo como forma e tema simultaneamente”. 186 Desse modo, o artista expõe uma
nova representação, cuja fatura pretende o não-visto e induz à imaginação por sua força
enigmática e até mesmo espiritual. Pretendia com isso, representar um mundo não-
objetivo em sua pregação ao não figurativismo proposto pela vanguarda, mas de forma
radical e dialogando em profundidade como um visionário para quem “não existe outra
realidade além da sensibilidade”.187 A partir de 1915, esse mundo não objetivo, nomeado
de Suprematismo por Malevich e de Construtivismo por Tátlin, serão as duas grandes
correntes das vanguardas ideológicas e revolucionárias russas, então lideradas por
Maiakovsky e oficialmente apoiadas pelo comissário do governo de Lênin, Lunacharsky.
Tal desejo de um mundo não-visto e não objetivo, composto de formas geométricas,
espelhava também os acontecimentos revolucionários do início do século XX,
alimentando a discussão em que novos valores éticos e estéticos se alinhavam às
mudanças. É interessante observar o conceito de ostranenie [tornar estranho], formulado
por Viktor Shklovsky em 1917, que discute uma significativa teoria do ponto de vista [de
uma animação do ponto de vista] de onde decorre, em ampla medida, o futurismo, o
produtivismo e o construtivismo russos. Seria o processo de examinar um fenômeno
determinado de uma maneira nova, proposto pelos formalistas russos. Sobre essa questão
Maurício Lissovsky assinala que:

o discurso difícil e tortuoso, ponto de vista não familiar, deveria impedir


o envolvimento inocente e exigir o empenho do leitor/espectador para
decodificar o “texto”. Na tradição das vanguardas russas tornar estranho
era um modo crucial para romper com hábitos perceptivos e cognitivos
secularmente arraigados, passo decisivo para a construção do “novo
homem russo” [...]188

186
GOODING, Mel. 2002.
187
Idem, pg. 151.
188
LISSOVSKY, Maurício. A máquina de esperar –Origem e estética da fotografia moderna. Rio de
Janeiro: Ed. Mauad, 2008, pg.162.

81
Shklovsky defendia a ideia de que o objetivo da arte era fornecer a sensação do
objeto tal como visto e não como reconhecido através de um estranhamento da visão sem
reconhecimento, nova e não-familiar, tornando as coisas obscuras, de modo a aumentar a
dificuldade e a duração da percepção. “Na arte é a nossa experiência do processo de
construção que conta, não o produto final”.189 Assim, no fechamento cognitivo do não visto
resultaria um esquecimento momentâneo que, tornando o mundo estranho, renovaria a
percepção.
Para Lotman, a tendência em “tudo interpretar num texto artístico como
significativo é tão grande que estamos bem fundamentados para considerar que numa
obra não há nada de contingente”.190 A busca pelo estranhamento tornou-se chave para o
discurso de muitos autores da esquerda europeia – Brecht em particular e também Walter
Benjamin – o que “representava, no campo da visão artística, o paradigma do
acontecimento revolucionário, capaz de instalar um novo ponto de vista sobre o
mundo”. 191 Em sua busca por novos pontos de vista Malevich foi influenciado pelo
filósofo e matemático russo P. D. Ouspensky [1878-1947] com seus conceitos místicos
sobre a quarta dimensão; este afirmava que “a pintura se torna uma espécie de metafísica
intuitiva, insinuando outra dimensão da realidade, só acessível à imaginação, só tornada
visível pela arte”192 acreditando que por trás do mundo visível há um outro mundo.
Na Rússia do início do século XX, provavelmente com o boom da era industrial, os
processos de montagem influenciavam o imaginário, contaminando a arte e os artistas,
que sintonizados com o zeitgeist, construíam e pensavam suas obras como engrenagens
de um futuro que se anunciava, vindo daí o termo construtivismo. Malevich, ao adotar as
formas simples e geométricas, soltas e flutuando no espaço, imaginava estar criando um
mundo paralelo, simbolizado pelo espaço multidimensional, infinitamente em todas
direções do cosmos.
A pintura Quadrado vermelho ou Realismo pictórico de uma camponesa em duas
dimensões [1915], foi concebida como arquétipo da revolução, sendo exibido pela
primeira vez na exposição 0.10: “o púrpura significa o poder bizantino, o vermelho o
sangue dos mártires, o púrpura ilustra a aristocracia czarista como insígnia de classe

189
O crítico literário russo Viktor Shklovsky citado por Watney, op. cit. pg. 16, Apud LISSOVSKY, Maurício,
2008, pg. 163.
190
LOTMAN, Iuri. A estrutura do texto artístico. Lisboa: Editorial Estampa, 1978, pg.49.
191
LISSOVSKY, Maurício. A máquina de esperar –Origem e estética da fotografia moderna. Rio de Janeiro:
Ed. Mauad, 2008, pg.164.
192
Idem, pg.17.

82
social, o vermelho do sangue é a Revolução, o vermelho do comunismo”.193 A associação
ao nome da praça vermelha surgiu porque a palavra russa красная [krasnaya] pode
significar tanto vermelho como bonito. A forma não é um quadrado, rigorosamente
falando, e todos os elementos existem dentro da tela, como se quisessem preservar o
espaço sagrado da arte; os ângulos saltam para fora e o título sugere a nova figuração
objetiva que Malevich propõe[fig.38].
Na sequência, com O quadrado branco sobre o fundo branco [1918], o artista
atinge o ponto alto da não-objetividade em sua pintura, imprimindo o signo da pureza
elevada ao limite. Este alcance o fará declarar em 1915: “Por suprematismo, entendo a
supremacia da sensibilidade pura nas artes figurativas” 194 [fig.39]. Na composição, o
equilíbrio entre o branco e o nada tensionam o espaço em sua dimensão cósmica,
propondo um mergulho na subjetividade. Há uma concentração de vazios marcados pela
ausência, em que a esfera terrestre, segundo o próprio Malevich, vibraria no “ritmo do
infinito cósmico de um silêncio dinâmico”.195
Malevich desenhou o suprematismo em três etapas: primeiramente o período negro,
em seguida o cromático e, por fim, a série de pinturas brancas. Todos os períodos
transcorreram “sob signos convencionais das superfícies planas expressando, poderia se
dizer, planos e volumes futuros, e efetivamente, no momento atual o suprematismo
aumenta o tempo-volume da nova construção arquitetônica”:196 O artista identificou-se
profundamente a seu tempo, engajado aos acontecimentos que o cercavam e dialogando
com uma brilhante geração de escritores, músicos e artistas futuristas que despontavam,
mesmo à distância:

Algo do purismo de Mallamé se encontra no Manifesto Suprematista.


Malevich seguramente ignorava isso. São afinidades que descobrimos
quando menos imaginávamos. O esteta sutil, o que tinha a ver com o
russo contundente? A página em branco. A tela branca escrita com
branco sobre o branco. Este Manifesto foi publicado em 1915, em São
Petersburgo. Antes, há algo dele dos românticos alemães. Antes, dos
pré-socráticos.197

193
Cf. Paul Kruntorad in SIMMEN, Jeannot; KOHLHOFF, Kolja. Kasemir Malevich – Vida y obra. Barcelona:
Könemann, 2000, pg.48.
194
CARDOZA Y ARAGÓN, Luis. André Breton (Atisbado sin la mesa parlante -Malévich (Apuntes sobre
su aventura icárica). México: Fondo de cultura económica, 1992, pg.119.
195
Cf. Paul Kruntorad in SIMMEN, Jeannot; KOHLHOFF, Kolja. Kasemir Malevich – Vida y obra. Barcelona:
Könemann, 2000, pg.63.
196
Idem, pg.175.
197
Ibid., pg. 121.

83
De acordo com esta analogia, Malevich dialogou com os conceitos de subdivisões
prismáticas que formam ilhas de significação e brancos, na poesia de Mallarmé, cuja
espacialização tipográfica deu origem a várias experimentações dos futuristas do início
do século XX, e que também são relativas à visualidade em sua obra poética.
Observando os títulos com os quais o artista intitulou suas obras, percebe-se que
oscilam entre o desejo de um hermetismo geométrico e uma narratividade quase
surrealista: Composição suprematista: aeroplano voando [1914], Composição
suprematista que exprime o sentimento do telégrafo sem fio [1915], Quadrado vermelho:
realismo pictórico de uma camponesa em duas dimensões [1915], Suprematismo:
realismo pictórico de um jogador de futebol [1915], Composição suprematista
transmitindo o sentimento de uma onda ‘mística’ que vem do espaço cósmico [1917].
Segundo o crítico e historiador Mel Gooding:

a literariedade dos títulos pode provocar um sorriso [...] Nossa resposta


mais profunda dependerá de quão seriamente consideramos Malevich,
e não se compartilhamos ou não suas ideias e crenças: ela requer aquele
tipo sutil de distância irônica que Samuel Taylor Coleridge descreveu
como a suspensão voluntária de descrença.198

Tal ironia, utilizada pelo artista na escolha de sua tipologia narrativa, soa como uma
desconstrução da forma e dos valores instituídos pela arte, além de, assim, propor uma
discussão ética e filosófica, cujo intuito seria o de provocar os sentidos. Afinal, o purismo
das formas geométricas, sobretudo o quadrado, não encontrado na natureza ou na arte
tradicional, simbolizava para ele a supremacia de um mundo maior que o mundo das
aparências.
A crítica e historiadora de arte Amy Dempsey afirma que Malevich seria um
“cristão místico e, como seu compatriota Wassily Kandinsky, acreditava que a criação e
a recepção da arte eram atitudes espirituais independentes 199 Todavia, Malevich e
Kandinsky, apesar de tantos vínculos que os aproximavam, vieram a romper, fazendo
com que o Suprematismo e o Construtivismo seguissem por vias distintas. Por ocasião,
da Última exposição futurista: 10.0 [dez.zero], em 1915, os dois expuseram em salas
separadas e nessa ocasião Malevich publicou o manifesto Do cubismo e futurismo ao

198
GOODING, Mel. Arte abstrata. São Paulo: Cosacnaify, 2002, pg.17.
199
DEMPSEY, Amy. Estilos, escolas & movimentos – Guia enciclopédica da arte moderna. São Paulo:
Cosacnaify, 2008, pg. 103.

84
Suprematismo: o novo realismo na pintura. O artista, nessa época, via-se envolvido
secretamente com todas as ideias que o levaram a abstração suprema que exibiu nessa
exposição, acreditando ser esta a energia espiritual que animava o universo:

Em um momento de grande intuição, Malevich tinha visto nessa


imagem a origem energética de um modo totalmente novo de pintar.
Ele percebeu seu potencial mítico como um signo pintado para um novo
começo, o progenitor significante de qualquer quantidade de formas
criadas cujas relações dinâmicas se dariam no espaço imaginário da
pintura e não no espaço imaginário de um quadro.200

Quanto à origem familiar do artista, há imprecisões. Viria de uma família de


trabalhadores ou de camponeses, existindo versões, uma, a de que o pai, administrador
de uma refinaria de açúcar era russo, outra em que a mãe seria russa e o pai polaco,
empregado em uma propriedade agrícola. Sabe-se com certeza, que estudou na Escola de
Pintura de Kiev, e mais tarde, provavelmente em Moscou. Malevich sofreu por sua arte e
pela tarefa revolucionária que propôs, assumindo ambas e buscando conciliá-las em suas
bases incompatíveis. Os esforços empreendidos pelo Regime na aplicação da doutrina
com fins utilitários foram sempre antagônicos em relação aos objetivos do Suprematismo,
revelando a “consciência de tais contradições e as dificuldades irredutíveis causadas por
uma concepção idealista na adaptação ao mundo real”.201

A formação de Malevich, segundo deduz-se de seus escritos e de sua


vida, parece rigorosa; foi a formação de um estudioso em suas relações
com homens de várias concepções: esotéricos, teístas [Gorki,
Lunacharsky], assim como dos primeiros marxistas russos, logo
transformados em idealistas [como Berdiaef, o de Uma Nova Idade
Média]. Os anarquistas místicos, os marxistas ortodoxos e a voracidade
da Revolução em todos os campos.202

A revolução havia sido apoiada com convicção pela maior parte dos artistas da
vanguarda, os quais foram acolhidos durante algum tempo pelo novo regime. Em 1919,
Malevich participa da Décima exposição Estatal: Criação abstrata e Suprematismo, em
que atinge o seu auge, porém, no final dos anos 20, finda o apoio do Estado ao movimento
de arte abstrata experimental, substituída então pelo Realismo Socialista. Desse modo, os

200
GOODING, Mel. Arte abstrata. São Paulo: Cosacnaify, 2002, pg.15.
201
CARDOZA Y ARAGÓN, Luis. André Breton (Atisbado sin la mesa parlante -Malévich (Apuntes sobre su
aventura icárica). México: Fondo de cultura económica, 1992, pg.149.[tradução nossa]
202
Idem, pg.150.

85
artistas russos voltaram-se para a arte utilitária e o design industrial e, em 1920, Malevich
muda-se para Vitebsk, dedicando-se ao ensino de arquitetura e design. Sua intenção era
projetar edificações e cidades futuristas, “como abstrações que tinham por finalidade
captar a essência ou a ideia do projeto”203 por meio de maquetes que ele denominou de
architectones.
O filósofo alemão Rudolf Carnap [1890-1970], em suas pesquisas, formulou a
distinção entre o espaço formal, o espaço intuitivo e o espaço físico. O modelo traçado
por Carnap em 1929, considera os elementos fundadores da arte abstrata contemporânea
ao descrever o espaço através de palavras como dentro, entre, próximo e distante.
Ressaltando ainda que, não apenas Malevich mas, de igual maneira, “as pinturas de
Vantongerloo, Doesburg e mesmo Mondrian e Kandinsky efetuaram uma transição do
pensamento pictórico do espaço formal para o espaço intuitivo”.204
Em 1929, Malevich foi acusado pelo governo soviético de subjetivismo. Nos anos
seguintes seu prestígio decresceu. “Perdeu suas funções oficiais e chegou a ser preso e
torturado. Morreu abandonado e na pobreza em São Petersburgo, em 1935. Apesar de ter
recebido funerais oficiais, a condenação de sua obra e do Suprematismo foi seguida de
um esquecimento de décadas”.205 Entre 1934 e 1935, sua obra foi vista pela última vez na
Rússia, para logo desaparecer em depósitos de museus até 1962. Apenas em 1977 foi
reincorporada oficialmente a coleções de diferentes museus.
Na cerimônia de sua morte, o féretro, decorado por Suetin, um de seus discípulos
em Vitebsk, foi conduzido num carro com o Quadrado Negro. “Malevich gostava de
passar férias em Nemtchinovka, a aproximadamente 60 km de Moscou, em uma casa
pertencente a sua esposa Sofía Rafalovich. Suas cinzas foram espalhadas pelos campos
dessa aldeia, onde o pintor, descalço e vestido com a rubaka [camisa dos camponeses],
trabalhava amorosamente em suas férias”.206
A obra de Malevich fundamentou as discussões teóricas que alimentaram as
vanguardas russas, tanto como modelo de criatividade humana, como de construção
política e social. Identificado com a Revolução de 1917, o artista influenciou muitos de

203
DEMPSEY, Amy. Estilos, escolas & movimentos – Guia enciclopédica da arte moderna.
São Paulo: Cosacnaify, 2008, pg. 105.
204
Apud MARTIN, Jean-Hubert; PEDERSEN, Paul. Centre Georges Pompidou. Malévitch. Paris: Collections
du musée national d’art moderne, 1980, pg.12.
205
https://pt.wikipedia.org/wiki/Kazimir_Malevich
206
CARDOZA Y ARAGÓN, Luis. André Breton (Atisbado sin la mesa parlante -Malévich (Apuntes sobre su
aventura icárica). México: Fondo de cultura económica, 1992, pg.180.[tradução nossa]

86
seus contemporâneos com sua política de economia formal e metafísica. Juntamente com
Tátlin e o Construtivismo, sonhou “a arte como uma projeção imaginativa, em analogias
concretas, das novas possibilidades da vida civilizada e uma metodologia construtiva para
sua realização material nas formas da vida cotidiana”.207

Por esta razão, atribuiremos sempre conceitos como arte ativa, tecnologia
produtiva e política metafísica a Malevich e aos Construtivistas. O que se escondia atrás
de seu desejo de destruição da perspectiva por uma nova construção das formas da arte,
foi o desenho de um duplo sentido revolucionário que alimentou seu sonho de mudança.
Mas a mudança por ele empreendida foi revolucionária principalmente porque vibrou em
gradações de um tempo difuso: “O quadrado do suprematismo e as formas surgidas dele
são comparáveis aos desenhos primitivos dos homens das cavernas ao configurarem o
sentimento de ritmo”208, escreveu o artista em 1927 [fig.40-41].

E a arte da vanguarda russa encontrou, com Kasemir Malévich e nas formas


geométricas, importantes modulações da ancestralidade, com as quais expressou os
anseios que espelharam o início do século XX, cuja singularidade será sempre a síntese
que o homem do quadrado negro realizou com o movimento Suprematista, acima de tudo
ao postular a sensibilidade como novo ponto de vista do olhar sobre a arte:

Malevich em Kursk, com seu material de trabalho, 1900. [fonte: Koneman]

207
GOODING, Mel. Arte abstrata. São Paulo: Cosacnaify, 2002,pg.50.
208
Cf. Paul Kruntorad in SIMMEN, Jeannot; KOHLHOFF, Kolja. Kasemir Malevich – Vida y obra. Barcelona:
Könemann, 2000, pg.50.

87
3.2 Raul Córdula

É sabido que na Serra da Borborema, como em outras serras, se contam histórias.


Velhas lendas, longos e tecidos mitos, princesas encantadas e desencantadas por heróis.
Mas Atlas e Pyrene já ficaram bem longe.

[JERUSA PIRES FERREIRA]

Artista dos signos, e também das manifestações do sagrado, da memória das


paisagens da Borborema ou da vida, em sua pintura marcada pela geometria, o que Raul
Córdula propõe é uma incessante consagração da imagem, utilizando formas que
remetem à antigas tradições esotéricas e que ele reinterpreta em sua obra.
Olinda, 2015. Pelos cantos da casa, plantada no meio de uma antiga ladeira de
Olinda, espalham-se esculturas, quadros, livros e objetos de arte que se misturam a
objetos místicos, compondo a grande casa atelier. O homem de fala pausada surge no
longo corredor do antigo casarão. É Raul Córdula.209 Em meio aos muitos objetos que
compõem o espaço, ele circunscreve e fixa pontos, pantáculos, selos mágicos que a
tradição manda serem impressos em pergaminho virgem, pele de bode ou gravados em
um metal precioso. Este selo, importante sinal, presente no trabalho de Córdula,
ultrapassa a condição de objeto ou imagem ao ocupar o lugar de signo mágico ou talismã
em suas pinturas e em sua vida. E a apropriação desse signo é intensa, tanto para Córdula
como na língua do povo se espalha no Nordeste brasileiro através da corruptela de “signo-

209
Raul Córdula Filho (Campina Grande PB 1943). Pintor, artista gráfico, cenógrafo, professor, crítico de
arte. Começa a pintar em 1958, orientado pelo amigo Flávio Bezerra de Carvalho. Em 1959, ilustra poesias
da Geração 59, grupo de poetas paraibanos que edita o suplemento literário A União nas Letras e nas
Artes. No início da década de 1960, viaja para o Rio de Janeiro e estuda história da arte no Instituto de
Belas Artes e técnica em pintura no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro - MAM/RJ, onde é aluno
de Domenico Lazzarini (1920 - 1987). Entre 1963 e 1965 é supervisor do setor de artes plásticas da
Universidade Federal da Paraíba - UFPB. Atua como cenógrafo em várias emissoras de televisão, entre
1965 e 1972. Em 1967, torna-se diretor do Museu de Arte Assis Chateaubriand de Campina Grande - Maac.
Idealiza, em 1977, o Núcleo de Arte Popular e Artesanato - NAP, da Casa de Cultura de Pernambuco, no
Recife. Entre 1978 e 1985, é coordenador do Núcleo de Arte Contemporânea da UFPB. Leciona história
da arte e fundamentos da linguagem visual nos cursos de educação artística e arquitetura e urbanismo
do Departamento de Artes da UFPB entre 1978 e 1988. É contratado pelo Museu de Arte da Moderna da
Bahia - MAM/BA para coordenar a implantação do Salão MAM-Bahia de Artes Plásticas, em 1994. Torna-
se diretor de desenvolvimento artístico e cultural da Fundação Espaço Cultural da Paraíba - Funesc entre
1997 e 1998. [ Fonte: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa9410/raul-cordula].

88
salomão, sinoseimão, signo-salmão, sino-salomão, sino-seimão, sinsalamão, sinseimão,
samão...”[fig.42]

Raul Córdula se sente à vontade quando os temas são a arte e as coisas sagradas,
não hesitando em afirmar: “Eu medito muito na frente dessas cores e formas, mas existem
coisas que faço e não consigo olhar por muito tempo. Há a contemplação como uma
função da arte”. E quando Córdula fala em contemplação, aborda a função de sua arte,
pela diversidade de sentidos atribuídos à pintura moderna e ao artista, que sempre serão,
em certa medida, “uma consequência do compromisso do artista com a história da arte,
inclusive as ideias que ele tem a respeito dela”.210

A primeira impressão que se tem da obra de Córdula é a de um grande conjunto


geométrico e recorrente, acrescido por simbologias que o artista foi agregando ao longo
desses mais de 50 anos de carreira, entre exposições e livros. Os triângulos, quadrados,
círculos, estrelas, cruzes, letras hebraicas e inscrições latinas características da cabala,
são para ele os signos que têm como função conceder poderes que advém do mundo das
coisas invisíveis. Originários da memória de tradições antigas, como a dos pitagóricos,
esses signos inspiraram o movimento das vanguardas artísticas, introduzidas no ideário
plástico da América Latina, logo após a Segunda Guerra Mundial, surgindo também com
grande força no Brasil, a partir do final da década de 1950, pela via da arte concreta,
principalmente com Lygia Clark, Lygia Pape e Hélio Oiticica, e também com o
construtivismo de Córdula.

A arte concreta, em 60, chegava pelo caderno B do jornal da Paraíba,


eu era ilustrador, e nessa época não fazia nada geometrizado, mas era
apaixonado por artistas como Ivan Serpa na fase geométrica, Aluísio
Carvão estava começando a ter importância e eu adorava o Milton da
Costa. Era um artista que eu via com muita emoção, e essa era a emoção
que eu queria que as pessoas sentissem vendo os meus quadros
[...]
Dialoguei com muitos artistas. Ia muito ao Rio de Janeiro, frequentava
o grupo de Antônio Dias, Vergara e Gerchman, era o grupo que se
denominava Nova Objetividade e a Galeria Relevo. Eu e Antônio Dias
nos interessávamos muito pela Pedra do ingá”.211

210
ROSEMBERG, Harold. A tradição do novo. São Paulo. Ed. Perspectiva, 1974. pg.28.
211
Todas as opiniões aqui emitidas por Raul Córdula fazem parte de uma série de entrevistas realizadas
com o artista, para esta pesquisa, entre 2012 e 2015.

89
Autodidata e experimentalista, Córdula recusa as fórmulas e os ismos da tradição
modernista, mas sua obra alinha-se, do ponto de vista geracional, ao construtivismo
brasileiro, sintonizada a todos os acontecimentos, entre as rupturas e retomadas que
afetaram a arte do século XX. “Com certeza o autor faz referência aos inúmeros
manifestos que grande parte dos seguidores das correntes do século XX necessitam
redigir para explicar suas obras herméticas e repletas de simbologias pessoais ”.212 Cabe
mencionar o engajamento político de Córdula, na série Araguaia, cuja exposição foi
censurada em 1968. São pinturas, desenhos, colagens, retratos que revelam o movimento
político de resistência à ditadura militar: “nela estão os nomes dos desaparecidos, na cor
do barro e com traços de vestígios de pessoas, que podem estar enterradas.213[fig.43] A
vocação gráfica do artista, outra herança modernista, fará com que também exerça o ofício
de designer e de cenógrafo:

“Não sou concretista, não posso ser chamado de construtivista, eu não


me enquadro teoricamente nem historicamente. Eu sempre quis fazer a
mesma coisa de um ângulo diferente. Sobre o esgotamento formal, faria
tudo de novo de uma maneira diferente. Não tenho nenhum
compromisso com o mercado, que sempre me rejeitou, o que me deu
liberdade e nenhum compromisso”. [março/2012]
Em outra entrevista:
Considero as vanguardas dos anos 60, foi quando eu nasci para a arte.
Houve um tempo em que tive escritório de design gráfico e uma paixão
pela retícula de impressão em off set. Fazia composição com as 3 cores,
e dali via surgir um universo tão grande que reduzido chega-se ao ponto
de não ver mais. A distância o torna imperceptível, mas quando nos
aproximamos, vemos outra coisa”. [maio/2015]

De modo geral, Córdula recusa as influências, optando por falar sobre o processo
da emanação das formas: “me interessa saber que as formas emanam algo, alguma coisa
como poder” desse universo simbólico onde todas as formas existentes possuem
significação mágica”. Seu trabalho, marcado pela concisão de formas, e em sua grande
maioria pelas cores primárias, se espalha em grandes espaços cromáticos pontuados por
signos e símbolos. A partir da década de 1980, o artista explora as tensões e distensões da

212
KARMAN, Ernestina. Folha da Tarde ilustrada. São Paulo, 10 de março de 1978.
213
Raul Córdula em http://www.revistacontinente.com.br/secoes/artes-visuais/12627-50-anos-raul-
cordula.html

90
superfície articulada em planos triangulares, fase denominada pela crítica como nova
geometria.
Por outro lado, ficam evidenciados alguns equívocos, ao interpretar sua pintura por
seu colorido poético e pela geometrização, como expressões de uma arte decorativa e
leve, já que essa leitura é frequente por grande parte da crítica que vem se ocupando da
obra de Córdula, mediante um olhar regionalista:

[...] Para mim, sempre foi um alívio e muito enriquecedor fruir as cores
e o jogo de formas, explorando um conflito produtivo de oposições
cromáticas, que sempre existem nas telas de Raul Córdula. Elas
conseguem reunir numa dinâmica muito ágil as cores e os triângulos –
figura geométrica da preferência do artista – e essa velocidade não
descansa: salta como um dançarino de frevo. Estão sempre rompendo
os limites virtuais do desenho nos rápidos drippings e brincam com as
cores vizinhas. [...]214

O encadeamento das formas, na obra de Córdula, agrega um repertório de imagens


e símbolos da arte brasileira, em seu encontro ao contexto latino-americano, através da
herança das marcas, sinais rupestres e signos das muitas iconografias ancestrais. Sejam
nas inscrições da Pedra do Ingá, no sertão da Paraíba, ou na Serra da Borborema em
Pernambuco, esses signos foram transmitidos por antigas culturas da América indígena,
africana e ibérica e do Nordeste mouro-judaico. A criptografia desses signos é essencial
para a construção de sua obra. Além disso, há a geometria e o tempo, o espaço, as formas
e símbolos arquetípicos [o triângulo, primeira superfície-divindade, o quadrado,
oposição-celestial e o pentágono, poder-oculto] ressignificados em matéria e experiência
para o artista.[fig.44]
Córdula utiliza esses signos, compondo uma cosmologia pessoal, entre nomes,
lembranças e imagens que vão formando um conjunto de narrativas que serão codificadas
em suas pinturas. E aí, a palavra BORBOREMA, que para ele é sagrada, surge pintada
numa tela “como reverência à serra onde nasci, sendo a série extensa de quadros com
triângulos nascentes como o sol, que definem os conceitos de eternagora e infinitaqui”:215

214
DUARTE, Paulo Sérgio. A dança da geometria. Rio de Janeiro, 2000. Conferir Textos críticos em
http://www.raulcordula.com.br/criticas.aspx
215
A Serra da Borborema, é uma região montanhosa no interior da região Nordeste do Brasil. Medindo
aproximadamente 400 km em linha reta norte–sul, localiza-se nos estados de
Alagoas, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte.

91
Com a palavra Borborema eu fiz mono-impressões para criar a
impressão de lugares, de texturas minerais e vegetais. O motivo era
representar o movimento de subir e descer a serra; acrescentei o círculo
para fazer o “o”, do quadrado ou do retângulo, que são o suporte de
tudo. O triângulo se repete e gira, essa malha é o primeiro elemento de
um alfabeto de 3 letras, o triângulo o quadrado e o círculo, em
combinações poéticas com mais 2 elementos fortes: textura e material.
[...]
INFINITAQUIETERNAGORA é um conceito poético, ou um poema
visual, onde tento significar este cruzamento do aqui infinito com o
agora eterno, este momento, ou não momento, que quando a gente tenta
compreender ele já passou.

Com INFINITAQUIETERNAGORA, Córdula faz referência aos conceitos gregos de


tempo kronos e kairós. Para o artista, aí se encontra a busca do infinito, já que haveria a
limitação humana em compreender, no sentido estrito da palavra, o que isto significa,
como da mesma forma seria inconcebível a ideia de eternidade.
Em Córdula, esse posicionamento frente à temporalidade, demonstra uma certa
aproximação com o pensamento mágico, não obstante sua ligação ao movimento das
vanguardas. Córdula diz que se movimenta em um espaço sagrado e invoca os ritmos da
vibração do pantáculo, desenhado exatamente no centro do atelier, onde estaria, segundo
ele, o centro da casa, contendo dois círculos concêntricos[fig.45]. Esses círculos mágicos
demarcam um ritual, assim definido por ele:

“Todo meu interesse pela magia, ou melhor, pela articulação de forças


[forças mesmo] se encontra no meu ateliê em torno de uma pequena
instalação que todos chamam de altar. Na verdade, é um espaço
desenhado sobre uma mesa onde coloco norteados os símbolos
materiais referentes aos 4 elementos: pedra para o norte, fogo para o
sul, água para o oeste e ar para o leste, onde todas as forças nascem
como nasce o Sol. No altar [prefiro chamar na ara, é menos católico]
ficam também as coisas que estou trabalhando no momento, que são
colocadas no centro, para onde se dirigem as palavras, gestos e ações.
É na ara que cultivo os Anjos, dentro de uma tradição da Cabala cristã
desenvolvida pelo místico francês que assina o nome de seu Anjo,
Haziel.
Para que tudo isto se manifeste é preciso selar os quadrantes num
movimento em torno deste espaço, e com isto criar um tubo,
um cilindro no vazio até o que eu posso entender como infinito. Através
deste tubo, porque não chamar de pórtico e com o centromédio do Anjo
determinado, falamos com o Eterno. Os resultados são sempre sutis,
mas não faltam. Quando eu era menino já ouvia: Deus escreve certo por
linhas tortas, um conceito absolutamente mágico[...] Nas cerimônias eu
desloco este altar para o centro do pantáculo e selo os quadrantes de
forma que tudo que se passar no espaço selado emane para o plano astral
– universo paralelo onde as coisas são projetadas para serem realizadas
aqui, peremptoriamente, se você merecer. Assim acontece também

92
através da oração, da oferenda ao orixá, dos sortilégios e das
invocações”216

É interessante observar como o artista aproxima os termos instalação, altar e ara,


estabelecendo assim um espaço homogêneo entre religiosidade e a arte. Em seguida estão
os termos palavras, gestos e ações e os elementos pedra, fogo, água e ar, em meio às
coisas com as quais o artista está trabalhando no momento, ao compor seu ritual.
Através das representações e das práticas simbólicas o ser humano aprendeu a dar
um sentido e uma ordenação ao mundo, por meio de uma recuperação imaginária do
divino reconduzido através da consagração de objetos, espaços ou pelo próprio corpo. A
hierarquia dos círculos da sacralidade empregada por Córdula pode evocar tanto o Homo
ad circulum quadratus vitruviano, como os mandalas ou os círculos concêntricos dos
tratados alquímicos de magia:

“Minha arte vem daí. Tenho uma religiosidade independente, mas


segura. Nas minhas invocações ao átomo do infinito onde existo, dentro
da angelitude de meu Anjo, eu digo ‘Que o amor que eu inspiro seja o
amor que tu inspiras, que a ciência que eu use seja a tua ciência, que a
arte que eu expresse seja a do Verbo Divino. Ele exorta: "Eu te dei
poderes para criar, para que através de ti se empresem as verdades
eternas; Eu te dei poderes para restabelecer o que os teus irmãos, na sua
peregrinação humana, quebraram, tornaram inútil."217

A propósito, para os alumiados, ou alumbrados espanhóis, místicos do século XVI,


a prática interior ou privada da religião era essencial. O homem não necessitava de
nenhum intermediário para unir-se à deus e um de seus fundamentos “sugere espíritos
livres, indivíduos que se consideravam absolutamente independentes de outros grupos
religiosos”.218

En la primera mitad del siglo xvi español, el término alumbrado tenía


el mismo sentido escolástico de lumen o iluminatio. Era utilizado
libremente por los teólogos y aparecía frecuentemente en las
traducciones de los místicos medievales, tales como la versión
castellana de las Obras, epístolas y oraciones de Santa Catalina de
Siena, publicadas en Alcalá en 1512, para aludir a la acción de Dios
sobre las almas (Asencio 1952, 72). [...] Este término, o herejía

216
Depoimento de Raul Córdula para esta pesquisa, 2012-2015.
217
Idem.
218
Augusta E. Foley. El alumbrismo y sus posibles Orígenes. Centro Virtual Cervantes. ACTAS VIII, 1983,
pg.530.

93
fantasma, abarcaba una enorme gama de tendencias que incluía desde
auténticos místicos y reformadores eclesiásticos hasta franciscanos o
dominicos milenaristas, pseudoprofetas, visiónarios, judios retractados,
luteraños, erasmistas, dejados, recogidos y quietistas.219

Tomamos o conceito benjaminiano, em que a forma original de inserção da obra de


arte se exprimia pelo culto – as primeiras obras de arte “surgiram a serviço de um
ritual”220 – observando a maneira com a qual Córdula atribui valores de autenticidade ao
seu processo de produção. Seu leimotiv é a imantação de objetos, a aurificação do espaço
e, consequentemente, de sua obra. De um lado a religiosidade singular que, conferida pelo
ritual, confirma o poder desta linguagem mística e mágica, de outro, a objetividade e a
geometria que depuram, em contraposição aos espaços marcados pelo uso exaustivo da
sacralização em sua práxis diária. Em certo sentido, a arte e o sentido mágico – para
Córdula – se encontram naquilo mesmo que é o fundamento de sua contradição: o artista
diante de si mesmo, artífice e criação.
Ao mesmo tempo, o artista assinala que o intenso comprometimento com a
geometria haveria orientado sua vida desde sempre:

“O triângulo vem de uma paisagem que se multiplicava e se multiplica


quando vejo a perspectiva da estrada se transformando se
movimentando. Comecei a fazer isso quando estava montando o museu
de Campina Grande e vivia na estrada. Pintei uns triângulos equiláteros
cortados, como uma estrada. Uma coisa com textura.[...] Era muito
prazeroso [ver as formas geométricas], só tive coragem de fazer isso
mais de dez anos depois em 72, 73...quando comecei a fazer as
paisagens geométricas. Depois retirei as paisagens e comecei a fazer
apenas os triângulos e depois sempre; a partir do livro de esboços eu
consolido um esquema.
O triângulo sempre teve um significado; ver nas igrejas o triângulo
irradiante, a trindade, pai-filho-espírito santo, na base de muitas
religiões. Orações como o pai nosso dizem coisas como assim na terra
como no céu. É a mesma coisa que a tábua de esmeralda de Hermes
Trimegisto; o que está embaixo é como o que está em cima e o que está
em cima é como o que está embaixo, para realizar os milagres de uma
única coisa. E também a estrela de Israel, de 6 pontas, apontando para
baixo e para cima como se fossem chaves, ou pontos para acessar ideias,
mas a imaginação vai ainda mais além”. [fig.46]

219
Mujica Puntilla, Ramón. Rosa Limensis- Mística, política e inconografía en torno a la patrona de
América. México: Centro de estudios mexicanos y centroamericanos, Institut français d’études andines,
Fondo de Cultura económica, 2002. Pg.77-132.
220
BENJAMIN, Walter. pg.185.

94
De acordo com a tradição, Hermes Trimegisto, o três vezes grande é o nome dado
pelos neoplatônicos, místicos e alquimistas ao deus egípcio Thoth, identificado com o
deus grego Hermes. Ambos eram os deuses da escrita e da magia nas respectivas
culturas. Hermes inventou a flauta, que deu de presente a Apolo em troca de lições de
magia divinatória e do “caduceu, a vareta mágica de ouro rodeada por duas serpentes que
transformou no seu emblema”.221 Segundo Córdula, seu avô, Vicente Trevas, “encontrava
água no sertão de Pernambuco com uma forquilha feita de graveto. Ele era filho de Pai
Trevas, um jagunço que se escondia de dia e vivia de noite. Diziam que Pai Trevas era
curandeiro, daí a vocação de meu Avô. Os dois, Pai Trevas, assim como Vicente Trevas,
eram místicos, curandeiros, corajosos e poderosos”.
No Corpus Hermeticum, conjunto de textos atribuídos a Hermes, encontra-se a
seguinte passagem:

Hermes viu a totalidade das coisas. Tendo visto, ele compreendeu.


Tendo compreendido, teve o poder de revelar e mostrar. E de fato o que
sabia, escreveu. Do que escreveu, a maior parte escondeu, guardando
silêncio em lugar de falar, para que cada geração que viesse ao mundo
precisasse procurar essas coisas.222

Portanto, Córdula parte de uma mitologia pessoal construída de lendas familiares,


exortações e gestos, que são os seus rituais de alumbramento e apropriação do tempo e
do espaço. Essas consagrações são procedimentos iniciáticos que, para ele, permitem
aberturas em direção ao cosmos transcendente, lugar em que formas comuns, por meio
do gesto criador, são retiradas do mundo inerte e se prestam à animação. As dinâmicas
do tempo e dos pontos cardeais, as cosmogonias, as palavras e as metafísicas da
antiguidade determinam tais espaços simbólicos comandados por objetos que dirigem o
comportamento mágico que reordena o universo:

A partir deste momento, o homem passa a ter nas mãos a chave do


universo, e sob formas diversas, mas convergentes, surgem
extraordinários corpos de conhecimentos, inteiramente baseados nos
jogos das identidades e contrários, englobando todo conhecimento
existente desde os números à medicina, desde à arquitetura à música.223

221
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: Editora José Olimpyo,
2001, pg.161.
222
GILCHRIST, Cherry. A Alquimia e seus Mistérios. São Paulo: Ibrasa, 1988. p. 60. Apud Fábio Cavalcante
de Andrade. A TRANSPARÊNCIA IMPOSSÍVEL Lírica e Hermetismo na Poesia Brasileira Atual, 2008.
223
LEROI-GOURHAN, André. O gesto e a palavra – Memória e ritmos. Porto: Edições 70, 1983, pg.
143.

95
Leroi-Gourhan atribui a propriedade de posse do símbolo ao comportamento das
sociedades primitivas no âmbito mais científico, visto que só poderiam se expressar os
que pudessem dominar os fenômenos, na medida em que o pensamento também
permitisse através da palavra, agir sobre eles construindo uma imagem simbólica de
posterior realização material.

Quanto aos livros de magia, Córdula afirma que as Clavículas o influenciaram até
hoje, mas não seria essa a única fonte para o seu trabalho de desenho e consagração dos
pantáculos. Segundo afirma:

“Não sou versado no livro de São Cipriano nem no da Cruz de


Caravaca, mas já os li e os considero importantes para as práticas de
magia. Não são verdadeiramente livros, não têm autor, são tradições
editadas em várias ocasiões e até por vários grupos com interesses
outros. Mas estas tradições existem, são praticadas no ocidente.
O de São Cipriano se coloca como prática da magia comum, mas é
muito usado na chamada magia negra em que os cristãos, por exemplo,
combatem. Curioso é que os evangélicos passaram a chamar de magia
negra o Candomblé. A Cruz de Caravaca é um símbolo de muita força
para os cristãos medievais, tem a ver com as Cruzadas certamente. É o
símbolo visual por excelência, como a Cruz de Cristo que tema força
que tem apesar da simplicidade. Aliás é isso mesmo, o alfabeto nos diz
tudo, tudo significa, e nada é mais simples e, por exemplo, o
alfabeto hebraico é elemento fundamental da magia de tradição
ocidental que é a cabala.
Mas meu interesse está em As Clavículas de Salomão. Há muito, por
instruções de um cabalista amigo, desenho e consagro pantáculos
cujas origens estão nas Clavículas. As pequenas chaves atribuídas a
Salomão são pequena parte de um conhecimento muito antigo que
necessariamente não foi descoberto, nem mesmo praticado, pelo Rei,
mas que estão nas origens do conhecimento do povo hebreu.
Existem muitas outras. Preciso dizer que isto tudo parte do princípio de
que a forma emana poder, veja-se a Cruz de Cristo ou o Olho que Tudo
Vê dos maçons, por exemplo. Mas é bom ver também o oval da Esso e
a concha da Shell de nosso tempo, entre outros inúmeros símbolos
modernos, também chamados de marca ou logotipo [quando partem de
alfabeto]. A imagem, portanto, qualquer imagem, emana
poder!”[fig.47]

Para Córdula, suas pinturas emanam um poder transformador que pode tanto atrair
como afastar o observador. Assim, a arte para ele é uma linguagem para contemplação:

96
“Pessoas que possuem quadros meus ficam na frente meditando, como
os que ficam na frente de qualquer quadro o fazem. Isso que está na
parede é um objeto para se contemplar, não há um entendimento para
além disso; claro que tem uma relação com o mundo objetivo e com a
matéria, a tensão dos espaços, mas, a grande coisa além da linguagem
da arte é ser uma linguagem para contemplação, onde pode-se dentro
do conhecimento tirar proveito dele”

Córdula, a partir da emanação, da imantação e da contemplação, propõe o alcance


de uma extensão da natureza divina, que em sua pintura é elaborada de maneira
processual, contínua e permanente. É certo que a contemplação, aplicada às suas formas
e com o intuito de chegar à fascinação e ao encantamento, constitui o objeto mágico e
maravilhoso do qual tratamos. Entretanto, com tais proposições, Raul Cóedula articula
certos elementos de sua cosmologia, que, mediados pelo gesto e por suas crenças
funcionam como matrizes mitológicas pessoais. E assim, produz a passagem de seus
signos geométricos e sagrados para o plano pictórico de suas telas, transfiguradas em
paisagens geométricas.

Raul Córdula, 2006. [foto: João Urban]

97
CAPÍTULO 4: ANOTAÇÕES ICONOGRÁFICAS

[...] o verdadeiro texto através da leitura do texto e das imagens,


uma espécie de meta-texto que associa aspectos visuais e intelectuais.

[Uwe Fleckner] 224

4.1 Suma

Propomos, a seguir, alguns exercícios de leitura crítica para os múltiplos contextos


que observamos: a arqueologia de imagens, palavras, gestos, atuais ou perdidos no
paradoxo temporal e cultural em que se inserem os signos mágicos. Deslocamentos,
confrontos, semelhanças: tudo se aproxima e tudo se afasta.

4.2 O Quadrado Negro, de Kasemir Malevich em seu diálogo com o ícone da Virgem
de Tikhvin, considerando um comentário de Malevich:

“Eu me transformei no zero da forma e me puxei para fora do lodaçal sem valor da arte
acadêmica. Eu destruí o círculo do horizonte e fugi do círculo de objetos, do anel do
horizonte que aprisionou o artista e as formas da natureza. O quadrado é uma forma
subconsciente. É a criação da razão intuitiva. O rosto da nova arte. O quadrado é o
infante real, vivo. É o primeiro passo da criação pura em arte”. [Kasemir Malevich]225

A tela O Quadrado Negro de Malevich realiza a síntese de três fórmulas distintas, a


Geométrica, trata-se de um quadrado, a da Ressurreição, através da analogia entre o
quadrado e o Infante real [o menino Jesus] e a da Iconostase entre um ícone [a Virgem
de Tikhvin] e o espaço sagrado das habitações russas. Resulta daí uma geometrização da
ressurreição e de outro lado, uma sacralização do espaço. Malevich representa uma
Geometria que se tornou sagrada, ou, em outros termos, uma sacralização do espaço da

224
Cf. A tautologia da descrição – Sobre a abordagem metodológica da imagem em Carl Einstein e Aby
Warburg. Coleções Literárias. Rio de Janeiro: Ed. 7letras, 2013, pg.18.
225
Manifesto do Cubismo ao Futurismo ao Suprematismo: O novo realismo na pintura, 1915 em GOODING,
Mel. Arte abstrata. São Paulo: Cosacnaify, 2002, pg.15.

98
arte dotado de tudo que o lugar do ícone implica – em suma, uma consubstanciação entre
a memória da tradição e o novo através da vanguarda.
Destruídos os círculos do horizonte, dos objetos, e do anel do horizonte, por onde se vai
e se chega ao mesmo ponto, Malevich puxa-se a si próprio para fora do lodaçal, bebe as
águas do esquecimento [lethes], para transformar-se no zero da arte – o primeiro passo
da criação purificada –, estabelece o rosto 226 da nova arte que é o Infante real vivo
corporificado pelo do quadrado e ungido pela Paixão. Instaura uma nova iconicidade, em
que morte e vida configuram a operação mágica da transformação pelo ressurgimento. A
cor preta, o zero das cores e o desvelamento [aletheia] das ranhuras presentes na
superfície da pintura, estabelecem um esquecimento mas evocam analogias com a matéria
da qual são feitos os ícones sagrados. A memória não se contrapõe, mas antes dialoga
com a forma e o paradoxo da razão inconsciente e intuitiva.

Esses elementos: a geometria, a ressurreição, o espaço sagrado e a memória, personificam


a pintura mais hermética de Malevich com o enunciado objetivo de um sistema religioso,
iconostático e geométrico e a inquietação de um artista. Nele se confundem três tradições:
a da transfiguração do Infante em menino Jesus, pertencente aos Mistérios da Antiguidade
cristã, a da Geometria do quadrivium, e a Arte, uma das cinco virtudes.

Tipificado pelo espírito do homem do início do século XX na Rússia, Malevich, o


Suprematista, anseia por mudanças sociais e estéticas, mas mostra-se reverente às
tradições populares que remetem ontologicamente as suas origens encarnando o sujeito
cósmico, movido pelo intelecto e a transcendência, mas em sintonia com a dimensão
ideológica da experiência da vanguarda.

Pelo que se apresenta, O Quadrado Negro, de Kasemir Malevich e o ícone da Virgem de


Tikhvin, dialogam em seus valores simbólicos.

226
“Mesmo quando a pintura se torna abstrata, ela não faz senão reencontrar o buraco negro e o muro
branco, a grande composição da tela branca e da fenda negra. Dilaceramento mas também estiramento
da tela por eixo de fuga, ponto de fuga, diagonal, golpes de faca, fenda ou buracos: a máquina já está aí,
funciona sempre, produzindo rostos e paisagens, mesmo as mais abstratas. Veja-se Ano zero –
Rostidade em DELEUZE, Gilles; Guattari, Félix. Mil Platôs – Vol 3, São Paulo: Ed 34 Letras, 1996, pg.39.

99
227

227
Ícone Russo, A Virgem de Tikhvin | 84 x 66 e Quadrado negro suprematista, 1914-1915 |
79,5 X 79,5, Galeria Tretiakov, Moscou.

100
4.3 Quadrado vermelho: realismo pictórico de uma camponesa em duas dimensões, de
Kasemir Malevich em diálogo com a fotografia das camponesas de Sergei Prokudin-
Gorskii:

Com o Quadrado vermelho: realismo pictórico de uma camponesa em duas dimensões


Malevich concentra fórmulas que sugerem ser incompatíveis: a Geometria da camponesa
que abarca a Ideologia do vermelho, e o Realismo em duas dimensões. Desse modo há
uma geometrização do realismo e uma ideologização da geometria. Malevich expressa
um realismo que abandonou a representação da natureza [sua tridimensionalidade
figurativa] corporificado pela figura da camponesa geométrica que com o vermelho alude
às roupas femininas das mulheres do campo [tipicamente vermelhas] e às classes
populares da Rússia no início do século XX.

Ao nomear a camponesa como um quadrado e deformá-lo, denuncia a desproporção que,


ao revés, tal a divindade, desordena o belo da simetria com ironia ao estabelecer a
contraposição discordante. Essa deformação do quadrado sugere uma nova perspectiva,
cujo eixo, deslocado para fora do centro, discute a própria função em um universo
politicamente instável. Ao termo realismo opõem-se geometria e vanguarda. Levemente
inclinado, o quadrado recusa o sentido apolíneo em oposição ao dionisíaco do vermelho
e assim instaura um espaço transcendente e engajado. A palavra russa Красивый /
Красный, simultaneamente significa bonito e vermelho 228 e define qualidades da
camponesa: a revolução popular [e a vanguarda] é bela.

Assim, o Quadrado vermelho de Malevich, a obra cuja essência evoca a abstração pura,
é a suma de um sistema de ideias onde a Geometria sintetiza as seguintes tradições,
filosóficas e científicas: a da Ideologia, personificada pelo vermelho da camponesa,
através do sistema de ideias que expressa os interesses revolucionários russos do final do
século IXX, a do Realismo em que o artista estabelece um novo código de
representatividade preconizando um real através do pictórico e a da Ironia, figura de
retórica clássica. Malevich, em sua ruptura com o movimento realista abarca o desejo de
mudanças no contexto sócio-político russo mas mantém-se fiel às origens populares,
expressando a camponesa geometrizada.

228
Serge Fauchereau in Néret, G., Malevitch, Taschen, 2002, p.51.

101
229

229
Camponesas oferecem frutos aos visitantes em uma área rural ao longo do Rio Sheksna, perto da
cidade de Kirillov, 1909. Do fotógrafo russo Sergei Mikhailovich Prokudin-Gorskii, que, com o apoio do
Czar Nicolau II, desenvolveu a primeira tecnologia de foto colorida e Quadrado vermelho: realismo
pictórico de uma camponesa em duas dimensões | 53,0 X 53,0, 1915. Museu Estatal Russo, São
Petersburgo.

102
4.4 Mesopotâmia de Raul Córdula em diálogo com um fragmento da Torá, [a Menorah],
considerando um comentário de Córdula:

“Mesopotâmia é para mim uma metáfora da cidade do Recife, a cidade entre dois rios,
a Babilônia em que vivemos, levada por ideias e sentimentos extraordinários, mas
também eivada de urubus e carniças”. [Raul Córdula]

“Farás também um candelabro de ouro puro; de ouro batido se fará este candelabro; o
seu pedestal, a sua hástea, os seus cálices, as suas maçanetas e as suas flores formarão
com ele uma só peça. Seis hásteas sairão dos seus lados: três de um lado e três do
outro." [Fragmento da Menorah]

Com o signo Mesopotâmia, Raul Córdula sintetiza três fórmulas: a Metafórica, na


transposição de sentido entre a cidade do Recife e a Mesopotâmia, que por sua vez
designa a Babilônia, a Semiótica por seu diálogo com o signo da Menorah e a Teológica
na discussão escatológica entre vida e morte.
Ao nomear como Mesopotâmia, o antigo signo de uma calçada do Recife, Córdula
fornece as antíteses Tigre/Eufrates e Capibaribe/Beberibe, rios que dividem as duas
cidades. A confluência dos dois rios desagua na desordem dessa babilônia, cidade-
margem, marginália onde se confundem sentimentos e ideias extraordinários. [a
marginália passou a fazer parte do debate cultural brasileiro a partir de 68]. Entretanto a
cidade metáfora é também a cidade mouro-judaica em cujo chão os antigos imprimiram
a árvore da vida: a flor-castiçal que deveria ter sete hastes, ou pontas e em cada ponta
deveria haver uma lâmpada que queimaria óleo de oliva e iluminaria o interior do
Tabernáculo. Resulta daí uma sacralização da cidade entre dois rios através da
ressignificação dos indícios de uma tradição religiosa impressa e reatualizada a partir de
uma apropriação do artista
Assim, Mesopotâmia de Raul Córdula, tal como a flor de um signo alquímico é a suma
de um sistema de ideias em que o artista estabelece um código ontológico de
representatividade ao declará-la como entrelugar da Metáfora, figura de retórica clássica.
Ao mesmo tempo, Córdula, através de sua presença no movimento construtivista reitera
o desejo de mudanças no contexto sócio-político e estético mas mantém-se fiel às
tradições mágicas ao resgatar e iconizar um signo urbano ancestral.

103
Mas há o augurium, a cidade que é também eivada de urubus e carniças. Cidade dividida.
Entre os babilônicos as vísceras do animal, em particular o fígado, eram utilizadas para
fins proféticos. Pois o rei de Babilônia faz uma parada a fim de empregar a adivinhação
na bifurcação da estrada, onde os dois caminhos se dividem. Ele sacode as flechas.
Consulta seus ídolos; examina o fígado. [Ezequiel 21:21] Arqueólogos recentemente
encontraram em apenas um local na antiga Babilônia 32 fígados de argila, todos eles
contendo inscrições de presságios. Cidade múltipla e poliédrica. Geométrica e
escatológica.
Esses elementos: a apropriação dos grafismos ancestrais, a memória e o espaço sagrados,
personificam a pintura alquímica de Córdula, através da formulação de um sistema de
signos místicos e geométricos e o posicionamento crítico que o artista institui. Córdula
dialetiza a tradição e a arte, os sentimentos extraordinários e a devoração da carniça,
movido pelo sentimento de confluências e divergências que experimenta a partir da
cidade entre dois rios. [“párias brasilíricos pelo mangue eterno de fissuradas e
reinventadas mesopotâmias”] 230

231 232

230
Jomard Muniz de Britto em performance sobre a Instalação MESOPOTÂMIA, em que também foi
curador. Galeria ArtePlural, Recife, 2010.
231
Raul Córdula, Mesopotâmia. 2010
232
Menorah, signo judaico.

104
4.5 Borborema de Raul Córdula em seu diálogo com os poemas: Pós-tudo e Pulsar de
Augusto de Campos, e Cidade outrora de André Vallias, considerando um comentário de
Córdula:

“Sagrado para mim é a palavra BORBOREMA pintada numa tela como reverência à
Serra onde nasci. É a série enorme de quadros com triângulos nascentes como o Sol, que
são os conceitos de eternagora e infinitaqui”.

[Raul Córdula]

“Quis/ mudar tudo/ mudei tudo/ agorapóstudo/ extudo /mudo”

“Onde quer que você esteja/ em marte ou eldorado/ abra a janela e veja/ o pulsar quase
mudo/ abraço de anos luz/ que nenhum sol aquece/ e o oco escuro esquece”

[Augusto de Campos]

Outrora/ Aurora/ Agora

[André Vallias]

A pintura da série Borborema de Raul Córdula é a soma de elementos que sintetizam três
sistemas: o da Geometria, são triângulos e círculos, o da Escrita, trata-se de uma pintura
que dialoga com a tipologia verbivocovisual [terminologia aplicada aos poemas de
Augusto de Campos] e o da Física definida no espaço-tempo da paisagem transcendente
do eternagora e infinitaqui de Córdula. Configura-se assim uma geometrização da poesia
[a sacralização do conceito imagético e icônico da palavra] e o redimensionamento da
paisagem no eixo-tempo.

O topônimo Borborema é originário do tupi ybymbore'yma, que significa terra sem


habitantes, palavra encadeada na memória do artista entre as montanhas e o sol de sua
infância na cidade de Campina Grande. Eleva-se a página à potência do céu estrelado
[Paul Valèry] na busca do conflito modernista proposto pelo olhar da vanguarda em sua
articulação espacial e através de certo abandono formal. [Ao trabalhar de forma integrada
o som, a visualidade e o sentido das palavras, a poesia concreta propõe novos modos de

105
fazer poesia, visando uma arte geral da palavra, A expressão joyceana verbivocovisual
sintetiza esta proposta que, desde os anos 1950, foi colocada em prática pelos poetas
concretos, afirma Augusto de Campos].233

Esse caráter visual confere uma dimensão pictórica aos poemas, marcados pela tipologia,
pela geometria e o vetor espaço-tempo. O poema cidade outrora de André
Vallias234desenha o círculo mágico no qual a língua dialoga em torno da duração do
tempo: entre o passado e o presente, o sol nascente. Assim como em Campos “quis/
mudar tudo/ mudei tudo/ agorapóstudo/ extudo /mudo” o tempo e o espaço se
materializam através de múltiplas sonoridades que se deslocam na paisagem desenhada
pelo poema. Pulsares, quasares, estrelas. Esses elementos encontram-se em seu diálogo
com a tipologia marcadamente geométrica em que espacialização da página se esvazia
em modulações e linhas de uma sequência de acordes visuais e sonoros. Para Córdula, a
palavra Borborema desenha seu próprio percurso montanhoso assim como a cidade-
tempo de Vallias e as constelações existenciais de Campos se organizam e reverberam
em ondas no espaço mágico do eternagora e infinitaqui.

“Los fantasmas tienen su potencia y esa potencia es una fuerza de desintegración. Si hay
una potencia de ser en los fantasmas es porque estos se mueven en el desierto [o páramo]
como a través de un espacio agujereado; son la pura potencia de ser [o del no ser],
nunca un limite, siempre un umbral”.235

233
Referência: http://www.poesiaconcreta.com/audio.php?page=9&ordem=asc
234
André Vallias informa que o poema foi extraído de um outro poema de Max Martins chamado
Angelita, na ordem em que aparecem as 3 palavras CIDADE/AURORA/OUTRORA: Os seios de Angelita: eis
a cidade/ outrora curva sem princípio e bruma/ onde a aurora nascia dos parapeitos lusos/ Nascimento,
casamento e morte. O nome/ e os musgos sobem pelo peito./ Salvo o jardim, somente a verdura perdura/
nestes jarros como sombras/ descendo dos ombros de Angelita/ levemente inclinados no poente — agora.
Sobre as imagens que transparecem na tipologia utilizada, Vallias afirma ainda:“É um casarão de Belém.
A ideia me veio no colóquio Max Martins/90 em Belém, numa fala da Eliane Robert de Moraes sobre esse
poema. Formatei quando retornei ao Rio, esta semana. [VALLIAS, André, junho de 2016, em entrevista
para esta pesquisa].
235
LINK, Daniel. Fantasmas. Imaginación y sociedade, pg.13. Apud ANTELO, Raul em A literatura é um
arquivo [Os fantasmas de Link]. Boletim de pesquisas Nelic, vol.10 – 15, 2010.2, pg. 42.

106
236

237

238

239

236
Raul Córdula. Da série Borborema.
237
Augusto de Campos. Pós tudo, 1984.
238
Augusto de Campos. Pulsar, 1975.
239
Andre Vallias, Cidade/Aurora/Outrora, 2016.

107
240

240
Raul Córdula. Mesopotâmia. 2010

108
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que torna o tempo legível é a imagem


[GEORGES DIDI-HUBERMAN]

Através dos livros de magia popular foi possível chegar aos artistas – e até
mesmo à poesia –, na medida em que, além da geometria, encontramos determinados
aspectos que cercam o gesto e o tempo que enreda muitas linhas. Todavia, não há como
afirmar que as vanguardas e seus artistas se vinculam, de maneira rigorosa, apenas ao
repertório destes signos, até porque da arte, em lugar do previsível horizonte, só
reverberam contradições.
De acordo com o que vimos, percebe-se sim que existe uma produção de arte
contemporânea que detém o conhecimento dessas formas ao agregá-las as suas
respectivas redes de representações. Consideramos extremamente relevante o fato de os
artistas Raul Córdula e Kasemir Malevich dialogarem com esse conjunto de signos
mágicos, já que, por meio desta constatação, pode-se afirmar que para esta rede não existe
o tempo, mas temporalidades, a partir de onde as matrizes saltam para engendrar novos
territórios de confronto.
E, tais contradições e conflitos demonstram que a importância desses símbolos
visuais persiste sim, na relação profícua e duradoura que sempre existiu entre forma-
geometria-magia. Da mesma maneira, percebemos que a palavra magia evoca sempre um
relembramento que ora se volta para um passado, ora retorna em cada ação ou pequeno
signo do mundo, para formar novas metáforas cosmológicas, na expressão de Henri
Meschonnic, para quem tudo é traduzir ou decifrar.
É nas fronteiras, muitas vezes imperceptíveis, entre os sistemas visuais e
linguísticos, entre o corpo e o gesto que é latente, que esses vínculos se armam em nossa
direção. As formas geométricas se impõem tanto através da dinâmica que as mantêm
recorrentes, como nestes signos e nas obras dos artistas. Os rastros deixados indicam a
impossibilidade de esgotamento do tema, não apenas pelo fato de que essa teia singular
se movimenta, mas porque ao se movimentar produz novos movimentos per se como
linhas que serpenteiam agitando esses signos.
A importância de tal fato se manifestou sobretudo na evidenciação do diálogo
estabelecido pelos vislumbres do velho saber excêntrico com o qual nos deparamos ao

109
longo de tantas reflexões teóricas que revelaram práticas muito antigas. E são saberes que
se mantêm ativados por um nó de anacronismos, entre falhas e desvios que, por muitas
vezes, se contradizem. Mas voltar à contradição é o que faz com que esses signos
sobrevivam se comunicando para além da esfera meramente linear, ao se manifestarem
como fantasmas que transluzem pelas frestas o seu vínculo indissociável com a vida, já
que foi a vida que um dia os animou.
No entanto, essa dimensão secreta das imagens, sobre a qual os místicos sempre
estiveram de acordo, até certo ponto se mostra “insuficiente” já que em sua
heterogeneidade há um lado que pertence a natureza do irrevelável e do misterioso, lugar
onde as coisas jamais se comprovam. Porém, é exatamente aí onde nascem as teorias
mágicas, místicas e esotéricas. Não obstante sua importância, esses conhecimentos são
mantidos à margem, mesmo ao considerarmos que sua origem abriga grande parte do
conhecimento herdado pela ciência, pela matemática, pela medicina e pela astrologia.
Nessas bases foram se formando muitos repertórios de natureza empírica, que, de fato são
a sustentação de todo um composto de conhecimentos com o qual convivemos entre,
imagens, gestos, palavras e sons.
Caminhamos por esse terreno, que habitualmente costuma-se chamar de tradição
[contradição?], mas que ao final revelou a área de confronto onde tal dimensão secreta e
mágica, de certo ponto, foi se abrindo. De acordo com isso, abandonamos algumas linhas
de investigação que buscam a coerência das teorias de causa e efeito, cuja finalidade é
legitimar um sistema de crenças construído homogeneamente, deixando de lado alguns
fios soltos, que são apenas aparentemente frágeis, mas que por uma capacidade vital se
recompõem em outro momento.
O que imprime a grandeza real das formas que pesquisamos, por certo, é
exatamente o conflito com o qual se debatem, entre lembranças e desaparições, entre
aparições e ressurgimentos, na ocupação de lacunas, vazios e silêncios. Por conseguinte,
desta experiência emana a ideia de que tal contexto sobrevive mais de suas falhas no
tempo e no espaço, do que necessariamente de algum processo linear. E a arte morre, a
arte renasce, com seus signos e contradições e recomeça oscilando o tempo todo entre a
essência e o devir, reanimada por um desejo que não cessa.
Por esta razão, constatar certa dissimetria que elimina as noções de vida e morte,
grandeza e decadência, foi interessante já que nos ajudou a pensar a partir de blocos
híbridos, rizomas e retornos. E assim, nos orientamos como um dibuk, a alma penada da

110
mitologia judaica, o atravessa-paredes241 que se movimenta como quem se apossa de um
corpo a partir de um passado inatual, não importa saber em qual tempo ou espaço, porque
a história se abre para formas e signos, não pelas teorias do progresso, mas por meio da
letra misteriosa que “se configura no sentido da apreensão entre o que alguém nos diz,
comunica, revela, fascina” quando tratamos de tais signos.242 E aí os dois sistemas, a arte
e esses signos, confluem entrelaçados um com o outro, entrecruzados pelo nó incessante,
que muitas vezes se mostra hermético a decifrações. A permanência com a qual resistem
se deve ao caráter deslocado e mutilado com que aparecem, ressurgindo em pequenos
traços, detalhes, formas geométricas e marcas, superfícies onde cada um, sorrateiramente,
tece um passado seu.
Ainda a propósito da pesquisa, a terceira margem do rio foi o encontro com a obra
do sérvio Ivan Grubanov na Bienal de Veneza [fig.49], cujo impacto faz com que se pare
para pensar a arte, antes de tudo, como meio de reconstruir mundos, com seus simulacros
e pequenos signos de desaparições. O mundo como relato íntimo de desaparições íntimas.
Desastres de guerras [Goya]. Se existisse um locus geometricus este seriam as bandeiras
que simbolizam as Nações. Grubanov desfigura a geometria desta identidade quando
expõe os países dissolvidos numa união de nações mortas. Desconstruídos seus símbolos
como territórios, são manchas pisoteadas, desvestidas de sentido como se já não fossem
mais um corpo, mas restassem apenas fantasmas. A arte aí revela a imagem da morte em
sua significância incomensurável a partir de onde o artista menciona a Iugoslávia, seu
país, renomeada como Sérvia. E no momento em que se discutem separações e
deslocamentos biopolíticos, antevemos o futuro que se anuncia como na fábula do era
uma vez, mas que renasce.

Já que o que se revela para a arte e o mundo das imagens, é que figurar equivale a
desfigurar e vice-versa e ainda que a identidade é uma operação de troca ― a alteridade
nasce a partir de onde se deixa de ser o outro. O ambiente no qual se inserem as figuras
através das temporalidades [trópos, afetos e gestos], desaparece e reaparece sempre como
a história de uma nova ou antiga preparação figural na passagem da vida ao signo, à
forma, à obra. Ou de outro modo, retorna ainda como dilema ou contradição de infinitas

241
Warburg foi o fogo fátuo, ou melhor, o atravessa-paredes da história da arte [...] Cf. Didi Huberman,
Georges. A imagem sobrevivente – História da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de
Janeiro: Ed. Contraponto, 2013, pg. 31.
242
PIRES FERREIRA, JERUSA. A decifração mágica dos signos in Ghrebh - Revista de Comunicação, Cultura
e Teoria da Mídia. São Paulo, junho/2007, pg.12.

111
tentativas. Abolido o tempo, a história sobreviveria com seus signos, palavras e formas
soltas. E a memória, expertise na arte da montagem, dos cut-ups e das serializações,
seguiria se reorganizando como um inconsciente em seu desejo de vivência. Afinal, como
disse um dia o poeta: “a memória é uma ilha de edição”243.

243
SALOMÃO, Waly. Carta aberta a John Ashbery. 1995.

112
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—— http://www.poesiaconcreta.com/audio.php?page=9&ordem=asc
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http://www.labirintojung.com.br/pdfs/Andrew_Samuels_DICIONARIO_CRITICO_DE
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——http://pt.slideshare.net/LordKianrul/malleus-maleficarum-parte-1-portugus

118
ANEXOS:

1. OS SIGNOS MÁGICOS Á LUZ MERIDIANA DO SOL*


[Indice morfológico a partir dos livros de magia popular]

Livros há que não são só para ser lidos, mister que se lhes guarde para
consultas e anotações. Outros, como os de meditações e orações, devem
ser lidos, relidos e trelidos e, nas horas de angústia e de desamparo, há-
de se recorrer a eles para que de suas páginas brotem as lições de paz e
de serenidade. É obra para ser guardada, lida, relida e meditada, a que
se deve recorrer nos momentos de aflição e dor, e reviver nos instantes
de alegria e tranquilidade.
[de O Livro Encarnado de São Cipriano]

Abracadabra |

amuleto gravado numa pedra simbólica e que serve para se tornar imune
aos sortilégios, sendo, segundo parece ser, o mais antigo dos primitivos amuletos, após o
de Salomão. Lido em qualquer posição sempre aparece a palavra “Abracadabra” e, ainda
mais em caracteres gregos, cada um deles representa algarismos e lido de qualquer de um
dos lados dá como soma exatamente o número 365, que são os dias do ano. Palavra
cabalística forma a pirâmide invertida símbolo da Trindade.

Agla | palavra mágica

Alibeck | Astrólogo, o antigo egípcio, possuidor do precioso Manuscrito de Salomão.


Nasceu em Alexandria em 1567, recebendo primeiramente o nome de Hassib.

Alma | Presença passiva em todos nós, isto sobrevive por toda a eternidade e faz então
parte da substância original do universo. É o Pensamento Uno do universo. A alma foi
considerada além dos quatro elementos materiais e assim conceituando-se como um
quinto elemento (ou Quinta-essência).

Albificação |

Calcinação ao branco ou ao vermelho.


119
Alomancia | Ciência de adivinhação pelo fogo

Alquimia |

Uma das Ciências Ocultas que ocupa um destacado lugar, pois é a


metafísica da química orgânica. Esteve em muito uso na Idade Média, e os alquimistas
mais célebres pertencem à essa época de superstições, expondo a receita da pedra
filosofal. Atualmente caiu no esquecimento.

Amuletos | Objetos mágicos de diversas espécies de materiais quase sempre


desconhecidos dos profanos que possuem virtudes e poderes maravilhosos e, podemos
dizer, sobrenaturais. Alguns são impressos em metais, barro, madeira, louça, e até partes
de órgãos de certos animais ou plantas, só podendo ser feitos por determinada pessoa para
ter a força mística necessária. São receitas secretas guardadas em segredo e transmitidas
apenas aos “iniciados” e “escolhidos”, conhecedores da Alta Magia.

Amuleto das Constelações | Um dos mais usados por aqueles que desejam ser felizes em
amor e para conquistar a simpatia das pessoas. Não pode ser de ferro ou aço, e o possuidor
o levará domingo, assistindo à missa ajoelhado e, ao sair da igreja, com o signo na mão
direita fará o sinal da cruz. Naquela mesma noite colocará o Signo de Salomão junto à
Estrela do Mar e à Figa de Arruda e, à meia-noite em ponto, embrulhará os 3 objetos num
pano preto de lã, colocando-o embaixo do travesseiro, repetindo isso durante os 6 dias
úteis daquela semana.

Amuleto Celeste | Recomenda-se para aqueles que desejam felicidade nas viagens.

Amuleto Divino | Apenas pode ser aplicado por pessoas que querem fazer o bem, é
conhecido sob a denominação de “Schemaanphora”.

Amuleto Dominador | Representa a consagração terrestre de todos os amuletos e com


ele pode-se ter o domínio sobre todos os demais amuletos, menos o de Salomão.
Entretanto, ainda não foi comprovado que esse amuleto pode substituir os demais e
produzir os efeitos que cada um dá, mas podemos garantir que o seu poder é
extraordinário.

120
Amuleto Exterminador |

Indispensável para aqueles que sofrem de insônia, perseguições e


doenças nervosas. Suas virtudes são tão extraordinárias, que com esse amuleto a pessoa
estará livre, inclusive das perseguições dos inimigos, dando-lhes grande felicidade em
consequência de possuir a Cruz de Caravaca e o grande signo zodiacal do Escorpião, bem
como pelos círculos e sinais cabalísticos contidos no mesmo.

Amuleto do Grande círculo cabalístico | Baseado na cruz, é esse o amuleto que,


acompanhando qualquer um dos que possuírem os praticantes das ciências ocultas,
diminuirá o efeito contrário que surgir em qualquer ocasião.

Amuleto Marte | Quem possuir esse amuleto dificilmente será vencido e se se dedicar
aos exercícios físicos, esporte etc. chegará a obter os primeiros lugares em todas as
competições em que tomar parte.

Amuleto de Mercúrio | Para vencer os inimigos, obter facilidade nos negócios e vencer
na vida.

Amuleto do Sol | Influi na saúde do indivíduo, pois o sol, como é sabido, é o que dá vida
aos homens, aos animais e às plantas, pois representa Deus.

Anel de Salomão | Amuleto no qual estava gravado o misterioso nome de Deus e apenas
conhecido pelo rei Salomão, sendo que o possuidor do anel dominava todos e tudo que
desejasse. Deve ser fabricado em ouro do mais puro num domingo ao pôs do sol e durante
o mês de maio. Para que produza efeitos mágicos deverá ser colocado durante sete dias e
sete noites em contato com a Pedra de Cevar, tirando no sétimo dia ao amanhecer. Usa-
se no dedo do coração da mão direita.

Anfiguri | Engrimanço, discurso, matéria, trecho literário burlesco etc., escrito em prosa
ou verso, propositalmente ininteligível, qualquer peça literária, discurso, dito etc.
desordenado e sem nexo; bestialógico.

Ars Goetia | Arte Goética, do latim, provavelmente a Arte de Uivar,


geralmente chamada só de Goetia [ou Goecia], é a invocação de 75 demônios ensinada

121
na primeira parte das Clavículas de Salomão. Este capítulo é conhecido como Lemegeton
Clavicula Salomonis ou A Chave Menor de Salomão e nele são descritos todos os 72
Espíritos Infernais, assim como todo o sistema que supostamente havia sido usado pelo
rei Salomão. O Lemegeton é dividido em cinco partes: Ars Goetia, Ars Theurgia
Goetia, Ars Paulina, Ars Almadel e Ars Nova.

Asmodeus |

Considerado um dos sete príncipes do inferno abaixo somente


de Lúcifer. Asmodeus é imperador do inferno e se alimenta e se fortalece da avareza. É o
demônio representante do último pecado, a Luxúria, concepção dada ao considerado pior
dos pecados. Normalmente representado com asas e três cabeças: uma de homem com
hálito de fogo, uma de touro e uma de carneiro, símbolos de virilidade e fertilidade

Astral | Que contém fluido cósmico.

Astrologia |

Uma das Ciências Ocultas que por ter alcançado grandes resultados
contou nos tempos mais remotos com maior número de adeptos desde os ais poderosos
senhores até os humildes plebeus. Cada ser humano nasce sob a influência de um astro,
possuindo um signo ou constelação, que exerce também influência numa parte do corpo
humano. Esse zodíaco se divide em 12 signos e cada um ocupa um lugar chamado “casa
astral”. É a metafísica da Astronomia.

Aura | Fluido que envolve indivíduo.

Axinonmancia | Arte de adivinhação com o machado.

Azoth | Palavra cabalística, é formada pelas primeira e última letras do alfabeto inglês
("aµ e ´]µ), que representam o começo e fim de toda a criação, o alfa e omega dos
filósofos gregos, o aleph e tau dos cabalistas hebreus. Então o Azoth é o último arcanum,
o espírito universal de Deus que cria. Os alquimistas acreditaram que o mercúrio de metal
líquido levou a assinatura deste espírito arquetípico onipotente

122
Basilisco |

Criatura alquímica simbólica, dita ter; cabeça de um pássaro e o


corpo de um dragão. O animal serpentino áptero foi chocado do ovo de um galo
hermafrodita e foi alimentado por uma serpente. O Basilisco também tem conotações
químicas que provavelmente tem a ver com um processo de metalurgia que envolve
cinábrio.

Boaz | Nome da coluna do templo de Salomão.

Bruxa[o] |

Que pratica magia e recorre ao diabo.

Bruxa de Évora |

Ou Bruxa de Yeborath, Iebora, em árabe ‫ يعبره‬significando cruzado,


cruzamento, encruzilhada, aparece pela primeira vez, no contexto do estudo da História
da Bruxaria, ligado ao nome do São Cipriano, o feiticeiro. Ela teria sido uma das mestras
do mago e ele, seu discípulo mais prestigiado, herdeiro de seus feitiços.

Cabala |

Livro mágico da tradição judaica.

123
Calunga |

Boneca ricamente vestida e que simboliza uma entidade ou rainha já


morta no Maracatu. Sem ela o cortejo não sai, pelas mãos da dama do paço e da rainha,
encarna a força dos antepassados do grupo deu origem. Figurinha de pano, de osso,
madeira, metal: desenho representando a forma humana ou vegetal.

Cartomancia |

Ciência de adivinhação com as cartas.

Catoptromancia | Ciência de adivinhação com um espelho.

Cromniomancia | Ciência da adivinhação com cebola.

Chave dos Pactos | Ou Grande amuleto “Dominatur”, simboliza a força por


abrir todas as portas da ciência, da felicidade, da saúde, do poder.

Cipriano |

Cipriano, conhecido como o Bruxo, nasceu na cidade de Antióquia,


situada entre a Síria e a antiga Arábia.

124
Circulo | Ou esfera é símbolo de unidade, o Pensamento de Deus. É matematicamente e
psicologicamente uma experiência "irracional" além da dualidade de razão.

Clavículas de Salomão | Ou Signo de Salomão; Chaves das Clavículas.

Conjurações | Ver Evocações.

Conjuração de Belzebuth | Num dia qualquer em que Saturno esteja no seu signo, à
meia-noite, desenhe sobre o pergaminho virgem os caracteres de Belzebuth, depois de ter
feito a conjuração respectiva, repetindo 4 vezes: “Belzebuth, Lúcifer, Madilon, Solymo,
Soroy, Theu, Ameolo, Segrael, Praredum, Adricalorum, Martiro, Tirmo, Cameron,
Chorsy, Metosiste, Prumose, Dumaso, Elivisa, Alphorois, Fubentronty, Vinde,
Belzebuth”.

Conjuração a Aschtarot | “Aschtaroth, Ador, Cameso, Valuerituf, Mareso, Lodir,


Cadomir, Aluiel, Calniso, Tely, Prétorim, Viordi, Curexicrbas, Calvodim, Brazo,
Trabasol, Vinde Aschtaroth”.

Conjuração a Bechard | Desenhe o símbolo reproduzido num pergaminho virgem e,


segurando com a mão esquerda, tendo o braço dobrado sobre o ombro direito, repita 14
vezes a seguinte oração: “Bechard, Surmy, Delmusan, Ataisloyn, Bechard paralisa, eu te
ordeno, esta tempestade. Eu te conjuro que obedeças”. Deixe correr 14 minutos e
segurando um sapo pelas pernas traseiras com a sua mão direita, atire-o no rio ou lago,
de uma distância de 14 passos.

Conjuração de Belzebuth | Num dia qualquer em que Saturno esteja em seu signo, à
meia-noite, desenhe sobre o pergaminho virgem os caracteres de Belzebuth, depois de ter
feito a conjuração respectiva, repetindo 4 vezes: “Belzebuth, Lúcifer, Madilon, Solymo,
Soroy, Theu, Ameolo, Segrael, Praredum, Adricalorum, Martiro, Timo, Cameron,
Chorsy, Metosiste, Prumose, Dumaso, Elivisa, Alphrois, Fubentronty, Vinde, Belzebuth.

Conjuração a Frimost | Faça a seguinte invocação 15 vezes: “Frimost, Charusilhos,


Melahy, Liamintho, Colehon, Paron. Frimost eu te ordeno que faças com que N. [nome
da mulher que se deseja possuir] venha ao meu encontro e satisfaça os meus desejos no
tempo mais curto possível”. A conjuração só deve ser feita depois que o símbolo estiver
desenhado no pergaminho virgem, devendo o praticante colocá-lo sobre o coração,
segurando-o com a mão direita.

Conjuração a Guland |

125
Conjuração a Klepoth |

Conjuração a Serguth |

Cruz |

Afugenta os seres diabólicos e os bichos de assombração. Os


vultos brancos das almas do outro mundo não resistem ao sinal da cruz ou mesmo à cruz
viva dos dois dedos indicadores cruzados, na improvisação imediata ao próprio
sentimento de pavor. Crua no batente das portas, soleiras, pelo lado de fora, não permite
o ingresso de tudo que for ruim. É universal a sua presença.

Decifrador de sonhos | Aquele que conduz Alibeck ao mosteiro para iniciação, onde
começa sua carreira como astrólogo e mago, conseguindo grande progresso nessas
ciências seculares. Cada ser humano nasce sob a influência de um astro, que exerce
também influência numa parte do corpo humano.
Demonologia | Ciência do demônio.

Demiurgo | Intermediário de deus.

Desencarnado | Livre do corpo e da carne.

126
Duende | Entidade de aspecto humano, orelhas pontudas e pequenina estatura, que usa
seus poderes em travessuras noturnas para assustar os moradores das casas; trasgo,
fradinho da mão furada.

Ectoplasma | Matéria fluida no espiritismo.

Egrégora |

Exalação mágica das energias coletivas.

Elementais | Fluidos universais.

Enxofre | É uma das três substâncias divinas. Representa paixão e é associado com a
operação de Fermentação.

Espada mágica |

A de que se serve o mago.

Espectro | Forma de um morto que reaparece.

Espelho mágico de Salomão |

Objeto mágico que reflete o duplo do indivíduo, sua alma, seu espectro.
Abre-se para o maravilhoso e o invisível. Pode ser a janela aberta sobre o desconhecido
ou as águas profundas do lago eterno.

Espíritos | Em alquimia é a presença ativa em todos nós, o que se esforça para a perfeição.
Espírito busca manifestação material para se expressar. É o Objeto Uno do universo.

127
Exorcismo |

Rito religioso para expulsar o Demônio.

Evocação | Ou conjuração, tem a finalidade de trazer para junto do evocador os


emissários do céu ou do inferno, para atenderem ao seu pedido. Devem ser feitas pela
palavra mental, falada ou escrita.

Evocação de Claunech |

É um espírito do inferno muito querido por Lúcifer. Dá bens e riquezas, conduzindo à


descoberta de tesouros escondidos. Também é um Exu na Umbanda.

Ex-voto |

Objeto a que se conferiu uma intenção votiva; quadro, placa


com inscrições, figura esculpida em madeira ou cera, representando partes do corpo São
colocados em igrejas, capelas, estátuas, cemitérios e cruzeiros de acontecido, para pagar
promessas, agradecer uma graça alcançada, consagrar ou renovar um pacto de fé.

Famaliá |

Diabinho caseiro “familiar” acabou virando Famaliá, Sempre pronto a


satisfazer as necessidades de seu dono, pode nascer de uma galinha fecundada pelo diabo.
Para conseguir o tal ovo, a pessoa deve procurá-lo durante o período da quaresma, e na
primeira sexta feira após conseguir o ovo, a pessoa vai até uma encruzilhada, à meia-
noite, com o ovo debaixo do braço esquerdo, após passar o horário retorna para casa e
deita-se na cama. No fim de 40 dias aproximadamente, o ovo é chocado e nascerá o

128
diabinho. Em posse do diabinho, a pessoa coloca-o logo numa garrafa e a fecha. Com o
passar dos anos o diabinho enriquece o seu dono, e no final da vida leva a sua alma para
o inferno.

Feitiço para o Amor | neste dia que nasce, e o sol que vem chegando, que eu tenha em
mim a força dos carvalhos, a languidez dos rios e a beleza das fontes que cantam ao passar
pela terra. Senhor dos rios, Oxosse caçador, Rainha das Fontes, luminosa Isis e Oxum,
que eu seja amada como as grandes damas da Idade Antiga, com amor e paixão. Que eu
prenda o coração daquele que amo [diz-se o nome] pela fé, pela luz, pela sabedoria
druídica.

Filtros | beberagem com que se pretende despertar o amor, meio de sedução, encanto,
feitiço.

Flor Sanctorum |

Livro que contém a vida dos santos. = FLOS-SANTÓRIO.

G | letra mágica da Cabala.

Galinha negra, A |

mais conhecido por seu nome em inglês: Black Pullet, é um livro


esotérico, um Grimório anônimo, escrito no final do século XVIII, supostamente por um
oficial francês que serviu nas guerras napoleônicas. A galinha negra abarca três questões
do ocultismo: os anéis, os talismãs, e a invocação de vampiros.[imagem: selo para invocar
um ser sobrenatural]. ). De acordo com as instruções você deve pronunciar em cima de
um cetim preto as seguintes palavras: "Nades, Suradis, Maniner", e um Gênio irá
aparecer; se disser ao Gênio : "Sader, Prostas, Solaster ", o Gênio irá trazer-lhe o seu
verdadeiro amor. Diga "Mammes, Laher" quando você se cansar dela.

129
Golem |

homem fabricado em Praga.

Grande Cruz de São Cipriano |

“em meu caminho de feiticeiro pastoreio as ânsias, o amor-paixão, o


sonho do povo, o medo, os feitiços e bruxedos, gargalhadas de fantasmas andam sempre
comigo, mas eu uso como defesa especial cruz-amuleto. Carregando-a comigo estou
sempre protegido de malefícios estranhos” – Palavras de Cipriano, o Buxo. O poderoso
símbolo varou séculos e ficou conhecido como a grande cruz de São Cipriano.

Grande Grimório de Salomão, O |

Atribuído oficialmente à Antonio del Rabino, um mago veneziano que


afirmava haver redigido a obra baseando-se em textos assinados pelo próprio Rei
Salomão. No Grande Grimório especifica-se com detalhes como evocar e pactuar com
Lucifugo Rofocal. Consciente dos riscos que encerraria tal pacto, Antônio del Rabino, ou
quem quer que tenha sido seu autor, incluiu no Grande Grimório uma série de cláusulas
cheias de duplos sentidos, que permitem burlar o diabo quando este se apresente para
reclamar sua parte no pacto.

130
Grimório |

Livro de magia usado pelos feiticeiros; grimoire, de grammaire,


especificamente gramática latina, ininteligível para o povo. Livros de
conhecimento mágico, geralmente datados do século XIII ao XVIII. Contêm
informações astrológicas, listas de anjos y demônios, encantamentos e feitiços, medicina,
invocações de seres sobrenaturais e talismãs. Conhece-se pouco sobre muita das fórmulas
mágicas ainda que seja provável que tenham sua origem em traduções de magia oriental
árabe com elementos ocidentais.

Grimório do Papa Honório |

Sua Santidade Honório III, tendo sido abrandado por suas atividades
pastorais, decidiu amavelmente transmitir os métodos e a habilidade de controlar e
invocar os espíritos aos seus irmãos em Jesus Cristo, os reverenciados, e ele acrescentou
as conjurações necessárias para isso; e tudo poderá ser encontrado na Bula deste livro.

Hermetismo |

Ciência de Hermes, os escritos mais importantes atribuídos a ele são


a Tábua de Esmeralda e os textos do Corpus Hermeticum.

Hexagrama de Salomão |

O hexagrama é formado unindo–se o Triângulo da Água com o


Triângulo do Fogo, formando a estrela de seis pontas, também conhecida como Selo de
Salomão.

131
Homúnculo |

A alquimia possuí três objetivos, o primeiro é transmutar metais


inferiores em ouro, o segundo fabricar o Elixir da Longa Vida e o terceiro é a criação de
vida humana artificial a partir de materiais, os homúnculos. O conceito do homúnculo
parece ter sido usado pela primeira vez pelo alquimista Paracelso para designar uma
criatura que tinha cerca de 12 polegadas de altura e que, segundo ele, poderia ser criada
por meio de sémen humano posto em uma retorta hermeticamente fechada e aquecida em
esterco de cavalo durante 40 dias. Então, segundo ele, se formaria o embrião. Outro
alquimista que tentou criar homúnculos foi Johanned Konrad Dippel, que utilizava
técnicas bizarras como fecundar ovos de galinha com sêmen humano e tapar o orifício
com sangue de menstruação.

Iroko |

A grande gameleira das folhas largas é um orixá cultuado no candomblé do


Brasil pela nação Ketu e, como Loko, pela nação Jeje. Corresponderia ao Nkisi, o tempo
na Angola/Congo. Iroko foi à primeira árvore plantada e pela qual todos os outros orixás
desceram à terra. Iroko é a própria representação da dimensão Tempo. Nas estradas e nas
matas encontram-se frequentemente quartinhas de água em torno dos troncos.

Laboratório | Local de trabalho para magia, a expressão vem possivelmente da tradição


dos alquimistas, antigos magos.

Livro das Clavículas de Salomão |

Do latim Clavis Salomonis também conhecido como As Chaves de Salomão é


um dos mais célebres e enigmáticos livros de ocultismo da história. Ao mesmo tempo em
que é referência frequente em outros tantos tratados e citado constantemente por vários
ocultistas, sua autoria, bem como sua legitimidade são discutíveis. É tido como o primeiro
manual de magia cerimonial escrito no Ocidente e apareceu originalmente no Império
Bizantino, no século XII da Era Cristã, e logo tornou-se conhecido em toda a Europa. No

132
século XIX, grandes magos da França e da Inglaterra resgataram a obra, utilizando para
isso edições do século XV, preservadas nas Bibliotecas de Londres e de Paris.

Livro da Cruz de Caravaca |

Caravaca é antiquíssima cidade da Espanha. No tempo em que


dominavam os árabes terá ocorrido um milagre na respectiva igreja; com efeito, faltava a
cruz do altar onde se celebraria a S. Missa; os anjos então teriam levado para Caravaca a
cruz peitoral do Patriarca de Jerusalém. A cruz assim milagrosamente aduzida se tornou
objeto da veneração dos fiéis. O livro contém um tesouro de milagres e orações para a
cura das doenças do corpo e da alma e também um grande número de práticas que lhe
permitirão livrar-se de feitiços e encantamentos através de rezas e exorcismos. Foi
traduzido de antigos pergaminhos hebreus, gregos e latinos, procedentes do Egito e
Jerusalém.

Livro de São Cipriano |

Grimório que contém diversos rituais de ocultismo e magia com


múltiplas finalidades, inclusive para o quotidiano. Embora o livro se coloca como escrito
por São Cipriano, apareceu séculos após sua morte e não poderia ter sido escrito por ele.
Na verdade, a primeira edição conhecida saiu em 1849. O famoso Livro de São Cipriano
foi redigido antes de sua conversão, mas o mistério que envolve a vida do Santo interfere
também em seu livro. Uma parte dos manuscritos foi queimada por ele mesmo. A questão
é que não se sabe quando, e por quem os registros foram reunidos e traduzidos do hebraico
para o latim, e posteriormente levados para diversas partes do mundo. No decorrer dos
anos, o conteúdo sofreu alterações significativas. Houve uma adaptação de acordo com
as necessidades e possibilidades contemporâneas; além da adequação necessária na
tradução para os vários idiomas. Atualmente, não é possível falar do Livro, mas sim
dos Livros de São Cipriano. As edições capa preta e capa de aço; ou aquelas intituladas
como o autêntico, o verdadeiro, ou o único, enfatizam um mesmo acervo mágico central.

133
Livro dos Segredos da Criação |

Uma cosmogênese entremeada de conceitos alquímicos creditados a


Apolônio de Tiana, provavelmente do século I d. C. Uma parte deste livro é a célebre
Tábua Esmeraldina que, embora nada diga sobre as técnicas alquímicas, tornou-se para
os árabes a obra básica de sua alquimia. O prestígio desta Tábua tornou-se tal que sua
autoria foi atribuída ao próprio Hermes Trimegistro.

Livro da vaca |

Ou Livro das leis, também conhecido como "O livro da vaca" [Liber
Vaccae], "A vaca de Platão" ou Activarum Liber Institutionum, século XII-XIII.
Apocrifamente atribuído a Platão, é um de dos grimórios mais antigos conhecidos e que
serviu de inspiração para outros grimórios posteriores e tratados de alquimia. É uma obra
latina baseada na tradução da obra árabe Kitab an-nawamis (S. IX), que supostamente foi
a tradução árabe de um texto helenístico escrito por Platão. Inclui ensinamentos para a
criação de seres viventes a partir de fluidos e restos corporais de homens e animais, além
de rituais e encantações. É provável que também tenha se chamado De proprietatibus
membrorum animaliumainda, sendo esta, outra obra medieval de temática similar que
não chegou até nossos dias, mas que é mencionada em alguns tratados da época. [imagem:
o cachorro iluminado, anônimo/século xv]

Lucifogo Rofocal |

Na demonologia, é tido como um dos demônios maiores em


hierarquia, sendo o conde e primeiro-ministro do inferno, segundo o Grimório do Papa
Honório III. Trata-se de um rei dentre os demônios que está encarregado do governo do
inferno por ordem de Lúcifer. O nome Lucífago é proveniente das palavras latinas lux

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[luz] e fugio [fugir], dando ao nome o significado de aquele que foge da luz ou aquele
que adora a ausência da luz. Rofocale, por sua parte, é um anagrama para Focalor, o nome
de outro demônio. Segundo outras fontes, Lucifuge é o inverso de Lucifer assim como
também Rofocal é derivado de Lucifer invertido – isto é, Reficul. Segundo a lenda,
assume um corpo à noite e odeia a luz. Entre seus muitos deveres estão a criação
de doenças, deformidades, terremotos, e a destruição de divindades sagradas. Lucifago
Rofocal é descrito por grimórios ocultistas e demonologistas como um ser encapuzado, e
possui 22 liliths guardando seu trono.

Malleus Maleficarum |

Ou Martelo das Feiticeiras é uma espécie de manual de caça às bruxas,


publicado em 1487, demonstrando como processá-las, inquiri-las, julgá-las e condená-
las. Mulheres que não choravam durante o julgamento, por exemplo, eram
automaticamente consideradas culpadas de bruxaria. Foi compilado e escrito por dois
inquisidores dominicanos, Heinrich Kraemer e James Sprenger. Os autores
fundamentavam as premissas do livro com base na bula Summis desiderantes, emitida
pelo Papa Inocêncio VIII em 5 de dezembro de 1484, o principal documento papal sobre
a bruxaria.

Manuscrito | Papiro em que Salomão explica as virtudes de suas orações e evocações.


Serve de proteção repelindo tudo que seja mau.

Mão da Glória |

Talismã usado para encontrar tesouros escondidos. À meia-noite de


sexta-feira corta-se a mão de um enforcado, prega-se o dedo sobre a palma e a coloca
num vaso de cobre cheio de salitre, e nervos de gato. Deixe nesta vasilha durante quinze
dias, então retire e exponha ao sol quente até que esteja absolutamente seca. A seguir,
faça uma vela com a gordura do enforcado, cera virgem, gergelim e esterco de cavalo.
Pegue a mão e use-a como um candelabro, para segurar essa vela, posicionando a vela
entre os dedos médio e anular dessa mão ao ser acesa. No lugar onde se encontra o tesouro
a chama estala e se apaga repentinamente, aí é só abaixar-se e pegar o tesouro.

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Mercúrio dos Filósofos |

Corpo semelhante ao mercúrio vulgar, mas possuindo todas as suas


qualidades naturais, não tendo sofrido os ataques do fogo comum no momento da
separação. Um dos princípios ocultos constitutivos da Matéria. É também o símbolo da
Prata preparada para a Obra final.

SCHEM – HA – MEPHOHASCH- |

O conjunto dos 72 nomes de Deus, de 3 letras cada, formados a partir do


desdobramento do "Tetragrammaton" (YHVH) em 72 partes. Estes nomes são derivados
dos versículos 19, 20 e 21 do Capítulo 14 do Êxodo. Em sua escrita original hebraica,
cada um destes versículos possui 72 letras. Para obter-se os 72 Nomes, escreve-se estes
três versículos um sobre o outro, sendo o versículo 19 da direita para a esquerda, o
versículo 20 da esquerda para direita, e o versículo 21 da direita para a esquerda. Cada
uma das 3 letras que compõem um nome é retirada de cada um dos versículos. Assim, o
Shem Ha-Mephohasch também é chamado de o Nome Dividido.

Objetos mágicos | Na sua virtude e totalidade todos os objetos têm virtudes e poderes.
Aquele que souber usá-los terá um grande poder místico.

Óleo de Saturno | Nome dado ao selo de Hermes. É um líquido gorduroso que flutua
sobre o composto na fase da Putrefação. Ele forma-se como uma cobertura estanque,
isolante e impermeável.

Oração | Fórmula constituída de palavras que exprimem um desejo, pode ser curta ou
longa e dirigida a um ser superior.

Gnomos | Anão sem idade definida, de traços fisionômicos feios, que, segundo a Cabala,
vive no interior da Terra e tem a guarda de seus tesouros em pedras e metais preciosos.

Oração das Ondinas | Rei terrível do mar, Tu que tens as chaves das cataratas dos céus
e que encerras as águas subterrâneas nas cavernas da terra; rei do dilúvio e das chuvas da
primavera, Tu que mandas na Humanidade, que é como o sangue da terra, és adorada por
nós que Te invocamos. A nós tuas móveis e voláteis criaturas, fala-nos das grandes
comoções do mar e tremeremos; fala-nos também das águas límpidas e desejaremos Teu
136
amor. Ó, imensidade na qual vão se perder as correntes do ser que sempre renasceu em
Ti! Ó oceano de perfeições infinitas! Altura que Tu contemplas na imensidade;
profundeza que Tu exalas nas alturas, conduze-nos à verdadeira vida pela inteligência e
pelo amor! Conduze-nos à imortalidade pelo sacrifício, para que sejamos dignos de
oferecer-te um dia a água, o sangue e as lágrimas para o perdão dos erros. Amém.

Silfos | Ao contrário de fadas são masculinos. O termo provém de Paracelso,


que os descreve como elementais que reinam no ar, nos ventos, tanto que, são fadas, fadas
do vento, assemelhando-se às vezes a anjos.

Ovo filosófico |

Segredo dos alquimistas.

Palavra mágica | Pensada ou lançada no éter, proferida nas evocações, tendo o poder de
atrair e criar para quem pronuncia.

Pássaro |

Elevado no céu: volatização, ascensão, sublimação. Voando em direção ao


solo: precipitação, condensação. Estas duas imagens reunidas em uma mesma figura: a
destilação. Pássaros opostos a animais terrestres, significam o Ar, ou o Volátil.

Pedra | A Pedra é a meta da Grande Obra. Foi visto como uma pedra de toque mágica
que poderia aperfeiçoar qualquer substância ou situação imediatamente. A Pedra
Filosofal foi associada com o Sal do Mundo, o Corpo Astral e o Elixir.

Pedra de Cevar | Ou pedra dos sete metais, possui a propriedade da atração. Deve-se
possui duas pedras, sendo denominadas CASAL DE PEDRAS DE CEVAR. Atrai
pessoas e pensamentos daqueles que quer influenciar em seus trabalhos. Deve ser
guardado dentro de um saquinho de seda natural verde, ou de papel impermeável,
juntando limalha de aço e sete grãos de trigo, guardando em caixa de papel, tendo o
cuidado de não aproximar qualquer metal da caixinha que guardá-la.

Pedra Filosofal | Panaceia universal dos antigos alquimistas para transformação dos
metais em ouro: “Deve-se começar a experiência quando o sol está em poente, quando o

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marido Vermelho e a esposa Branca se unem no espírito da vida para viver no amor e na
tranquilidade, na proporção exata de água e de terra. Do ocidente avança através das
trevas para o Setentrião; separa o marido e a mulher entre o inverno e a primavera”. Tão
faustoso acontecimento foi realizado por Nicolau Flamel, que converteu mercúrio em
preciosa prata em 1351, depois de três anos de experiências e erros.
Pássaro | Elevado no céu: volatização, ascensão, sublimação. Voando em direção ao solo:
precipitação, condensação. Estas duas imagens reunidas em uma mesma figura: a
destilação. Pássaros opostos a animais terrestres, significam o Ar, ou o Volátil.

Pantáculo |

Os Pantáculos, signos mágicos, quando gravados em um talismã, dão a


este uma suposta capacidade de irradiar as forças do Cosmos, atribuindo-lhe um aspecto
ativo, diferentemente do amuleto e do simples talismã. Um exemplo são os Pantáculos
do Rei Salomão, filho de Davi. Outros são confeccionados contendo Quadrados
mágicos associados a planetas, a fim de obter destas os influxos astrais a favor da
intenção do seu detentor. O Pantáculo funciona conforme a vontade impressa do mago,
operador, ou fiel sobre a joia, que grava a intenção que tem a vontade maior consumida
em objetivos próprios e regulamentada pelos direitos universais.

Pentagrama de Agripa |

O pentagrama esotérico sempre foi alvo de interesse e curiosidade,


dado ser este um dos mais antigos símbolos de magia, inicialmente entregue pelo Abade
Trithemo, mestre que teve como discípulos Paracelso, Cornélio Agrippa e Doutor Fausto
de Praga, este último mencionado na obra de Goethe “Fausto”.

Pentagrama de Levi |

Alphonse Louis Constant [1810-1875] foi um grande Iniciado da Alta


Magia. Eliphas Levi, como ficou conhecido, foi considerado no mundo da magia como
um dos precursores do renascimento do atual interesse por todos os temas fantásticos.
Entregou esse majestoso símbolo de força para a humanidade em seu livro intitulado
Dogma e Ritual de Alta Magia. Levi a descreve como “o símbolo do macrocosmo através

138
do qual o homem domina os poderes e o ser dos elementos e derruba o demônio e a sua
legião”.

Picatrix |

Trata-se de um livro de astronomia, astrologia, conhecimentos místicos


e ocultos, alquimia e magia, composto na língua árabe, na Espanha moura, algum tempo
antes da metade do século XI. A versão conhecida na Europa era uma tradução para o
latim do original árabe perdido, datada de cerca de 1250. Quase sempre, o trabalho
original era atribuído ao astrônomo e matemático Maslama ibn Ahmad al-Majriti
(falecido por volta de 1004), mas estudos modernos refutam essa autoria. Acredita-se que
o título “Picatrix” seja uma distorção do nome do grande físico grego Hipócrates. O
fragmento mostrado aqui data do século XIV e foi preservado por muito tempo na
biblioteca Piarista em Podolínec, ao norte da Eslováquia. Ele hoje pertence às coleções
da Biblioteca Nacional da Eslováquia. Wilhelm Printz, estudioso alemão da língua árabe,
descobriu o original em árabe do Picatrix em torno de 1920, cujo título (Ghāyat al-Ḥakīm)
havia sido traduzido como “A Meta do Sábio” ou “O Objetivo do Sábio”.

Quadrado mágico |

Figura cabalística das cifras.

Querubim de Ezequiel, O |

O querubim de quatro cabeças da profecia de Ezequiel, explicado pelo


duplo triângulo de Salomão. Embaixo a roda de Ezequiel, chave de todos os Pentáculos
e o Pantáculo de Pitágoras. O querubim de Ezequiel é representado aqui como o profeta
descreve. As suas quatro cabeças são o quaternário de Mercavah; as suas seis asas são o
cenário de Berechit. A figura humana no centro representa a razão; a cabeça de águia, a

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crença, o boi a resignação e o trabalho; o leão é a luta e conquista. Este símbolo é análogo
ao da esfinge dos egípcios, mas é mais próprio para a Cabala dos Hebreus.

Quiromancia |

Arte de ler o futuro com as mãos. Um segredo da Bruxa de Évora.

Rabdomancia |

Método de adivinhação por meio de varinha mágica.

Rubi Mágico |

Agente energético, de uma sutilidade ígnea, revestido da cor e


das múltiplas propriedades do fogo. Também chamado Óleo de Cristo, Óleo de Cristal, é
ainda simbolizado pelo Lagarto heráldico, ou a Salamandra, que vive do fogo e nele
engorda.

Sabá |

Fantástica reunião de bruxos numa clareira da mata. Concepção medieval


sobre os conciliábulos. Sua verdade se perdeu nos tempos, hoje nos restam apenas as
lendas na qual a mais repetida é a do beijo dado no bode durante a reunião: símbolo
diabólico.

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Saturno |

Designa o chumbo. Igualmente, a cor negra da Obra, no estado de


putrefação. Sinônimo do Corvo.

Sefirots |

Atributos mágicos da divindade.

Selo de Salomão |

Representado por dois triângulos entrelaçados, o Selo de Salomão


simboliza a transformação dos processos alquímicos e é considerado um selo ocultista,
usado na bruxaria, magia negra, alquimia, feitiçaria e astrologia. O selo de Salomão é
assim chamado pelo fato do rei Salomão ter um anel com esse desenho, que por ele era
utilizado como forma de afastar os maus espíritos, simbolizando, assim, a proteção
divina. Por isso, acredita-se que esse símbolo tenha poderes mágicos.

Seres invisíveis | Todos têm seus representantes na terra dos mortais. Esse representante
pode ser um objeto, um animal, um perfume ou um vegetal.

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Sete-Estrelo |

Sete-estrelas, plêiades, constelação de órion. No rio Negro são


chamadas Cyiucé. Para os indígenas macuxis é Tamecan. Eram sete crianças que
padeciam fome na casa dos pais, e um dia, pedido auxílio das estrelas Uerê, cantaram e
dançaram, e cantando e dançando, subiram para o céu, onde se tornaram as Plêiades.
Quando o Sete-Estrelo aparece, as aves vão subindo nos poleiros, acompanhando a
ascensão de Cyiucé. Era a estrela dos navegantes no Mediterrâneo.

Salomão, o mago | Mago da Caldéia, dotado de grande sabedoria, poder e altos


conhecimento e, por essa razão, confundido com Salomão o homônimo rei dos Hebreus.

Símbolos mágicos | Revelados a alguns mortais que, pelo seu poder, conseguiram
ultrapassar o véu que separa o mundo material do mundo espiritual e penetrar mesmo em
alguns planos acima dos contíguos ao material. Aquele que os conhecerem e invoca-los
estará em completa harmonia com as potencialidades invisíveis, fazendo com que elas
obedeçam aos seus desejos e satisfaçam suas necessidades.

Tábua de Esmeraldina |

Inicia com a conhecida frase: "O que está em cima é semelhante ao


que está abaixo, e o que está abaixo é semelhante ao que está acima". Segue-se a esta
frase, uma série de outras cujo significado hermético foi interpretado pelos alquimistas
não só árabes, mas, também, europeus. A partir do princípio do que o mais alto provém
do mais baixo e vice-versa, e que tudo é obtido do único por meio da conjunção dos
opostos, a obra, partindo da união do sol com a lua, engendra o sopro vital: o mercúrio,
cuja aura é a terra.

Talismãs | Objeto mágico, de força ativa, como o amuleto é defensivo. Determina uma
ação direta, pondo à disposição do seu portador o serviço de entidades mágicas, ou
facilitando a realização de todos os desejos. A lâmpada de Aladim, o anel de Polícrates,
são talismãs, como o anel ou o selo de Salomão.

Teoria | Forma, doutrina, costume pessoal. Estou indo na minha teoria. Cada homem tem
sua teoria. Artificialismo, exibição, teatralismo. Cheio de teoria. Cantar teoria: para os
cantadores, catar teoria é discutir gramática, história do Brasil, doutrina cristã, ou outro
qualquer ramo do conhecimento.

142
Tetragrammaton |

Ou pentagrama representa o Macrocosmo. No ângulo superior estão


os olhos do Pai, o espírito, poder que dirige e ordena a todas as demais partes; nos braços,
Marte é a força, nos pés, Saturno, onde se apoiam os mestres que graças a morte do ego,
graças a morte dos defeitos psicológicos obtém a perfeição, a mestria, por isso se conhece
Saturno como o símbolo de magia.

Triângulo | O triângulo representa os três princípios divinos, ou também as substâncias;


Enxofre, Mercúrio, e Sal.

Varinha Misteriosa e da Bolina de Cipriano |

Usada para traçar o círculo para dirigir encantamentos e para


invocações e deve ser feita no dia de Júpiter, na Hora Grande. Serve para comandar
espíritos e forças espirituais, levando-os a realizar as obras e demandas que lhes são
requeridas. Pode ser feita de metal ou madeira. O bastão pode ser de salgueiro,
sabugueiro, carvalho, macieira, pessegueiro, aveleira, cerejeira. Depois de feita e
enfeitada a varinha ou bastão ao seu gosto, consagre-a.

Vitriolo| É o líquido mais importante na alquimia. Foi dele que todas as outras reações
aconteceram. Foi destilado de uma substância oleosa verde formada naturalmente pelo
desgaste sofrido em pedras de enxofre.

*FONTE: Livros populares.

143
Figuras |

Fig. 01 – Verônica entre São Pedro e São Paulo, Fig. 02 – Melancolia, Albrecht Dürer, 1514.
Ugo da Carpi, 1524-1527.

Fig. 03 – Newton, Willian Blake, 1795-1805. Fig. 04– Tetraktys.

Fig. 05 – Anima mundi. Fig. 06 – Sephirot.

144
Fig. 07 – Ponto de Umbanda, Terreiro de Pai Maneco, Curitiba.

Fig. 08 – In Astrologos, Emblematur Libellus, Andrea Alciati, 1535.

Fig. 09 – Frankfurt-am-Main, Emblemata, Fig 10 – Tábua Afonsina, século XIV.


Andrea Alciati, 1567.

145
Fig. 11 – Almanaque Perpetuum, Abrão Zacut, 1496. Fig. 12 –Tábua de Esmeralda, séc. III.

Fig.13 – Astrologia e Paracelso, 1541.

Fig. 14 – Grimório do Papa Honório. Fig. 15 - Rembrandt, Fausto, 1650.

146
Fig.16 – Ilm-al-huruf e Fig.17- Tratado breve nas influências do céu, Abraham Zacut, séc. XV.

Fig. 18 – O Livro de São Cipriano. Fig. 19 – As Clavículas de Salomão.

Fig. 20 – A Cruz de Caravaca.

147
Fig. 21 – Virgem de Valdejimena, Salamanca.

Fig. 22 – Talismãs

Fig. 23 – Evagelhos e Talismãs

148
Fis. 24 e 25 – Infantas Anna e Maria Anna da Áustria, Juan Pantoja de la Cruz, 1604.

Fig. 26 –Nômina

Fig. 27 – Sátira pictórica. Fig. 28 – O enforcado, “Tarô de Carlos VI”, século XV.

149
Fig. 29 – Cerquilha Hashtag

Fig. 30 – Autorretrato para afresco, Kasemir Malevich, 1907 e Fig. 31 – Autorretrato, Kasemir Malevich, 1908.

Fig. 32 – Redentor não pintado à mão, século XII. Fig. 33 – Autorretrato, Kasemir Malevich, 1933.

150
Fig. 34 – Autorretrato, Dürer, 1500.

Fig. 35 – Vitória sobre o sol, cenário, Kasemir Malevich,1913.

Fig. 36 – Esboço dos personagens, Vitória sobre o sol, 1913.

151
Figs. 37 e 38 – Esboço dos personagens, Vitória sobre o sol, 1913

Fig. 39 – Mostra ZER0.DEZ [O.10], Sala de exposições, 1915.

Fig. 40 – Quadrado Vermelho, Kasemir Malevich, 1915.


Fig. 41 – Quadrado Branco, Kasemir Malevich, 1918.

152
Fig. 42 – Cruz Negra e Círculo negro, Kasemir Malevich,1923.

RAUL CÓRDULA:

Figura 43 – Signo de Salomão.

Figura 44 – Araguaia, Raul Córdula, 1968. Figura 45 – Geometria, Raul Córdula, anos 90.

153
Fig. 46 – Atelier de Raul Córdula, Olinda, PE.

Fig. 47 – Geometria, Raul Córdula, 1989.

Fig. 48 – Raul Córdula com seu anel mágico.

154
Fig. 49 – United Dead Nations, Ivan Grubanov, Bienal de veneza. 2015.

155

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