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TRANSCRIÇÃO1 DA AULA DE 01 DE MARÇO DE 20072 –

PROFESSOR LUIZ GONZAGA DE CARVALHO NETO

AVE MARIA

INTRODUÇÃO:
O MODELO DAS NARRATIVAS SOBRE A TRANSFORMAÇÃO DA ALMA

Professor: A classificação indicada no texto 3 é um desdobramento de uma


classificação ternária que é o modelo clássico das narrativas iniciáticas 4, cujo
propósito é descrever o processo de transformação de uma alma de um estágio
inicial em que as forças celestes ou angelicais e as forças diabólicas ou
tenebrosas aparecem como forças iguais em vetores contrários para um cenário
em que a alma vê a realidade e suas devidas proporções. Neste último estágio a
alma passa a ver a força celeste próxima no centro como agente principal e as
forças tenebrosas na periferia com uma influência distante e mínima sobre a alma.
Então, em todas essas narrativas, você tem, em comum, três forças em
jogo:
a) Cristo,
b) a Alma
c) e Satanás.Você tem, de um lado, Deus tentando atrair a alma para um
lado e, de outro, o diabo atraindo para o lado contrário. E, no meio, a alma
oscilando entre essas peripécias até encontrar o eixo da realidade.
Na situação normal humana, o bem e o mal aparecem como duas
opções no mesmo plano. Na alma, o bem e o mal aparecem como duas
possibilidades quase equivalentes. Ao fazer uma escolha, o bem e o mal parecem
pertencer à mesma ordem. E é por isso que você pode representar as forças

1
Transcrição, títulos, notas e trechos entre colchetes feitos por Carlos Eduardo de C. Vargas em
março de 2007. Versão não revista pelo autor da aula [N.T.].
2
Domingo de Ramos [N.T.].
3
Aqui o professor Luiz está fazendo referência ao livro de seu pai, o filósofo Olavo de Carvalho,
sobre o simbolismo do filme O Silêncio dos Inocentes. O resumo do enredo deste filme está no
anexo I. O comentário do modelo ternário está no anexo II [N.T.].
4
Conferir anexo III com explicação detalhada das narrativas iniciáticas [N.T.].
celestes e infernais, em uma obra literária, por vetores que parecem do mesmo
tipo, tendo simplesmente direções contrárias.
Mas o processo mesmo de transformação da alma consiste em mudar o
ponto de vista pelo qual se percebe a realidade. Se as forças celestes e infernais
parecem, no início, duas forças atuantes no mesmo plano, no final as forças
celestes aparecem para a alma como o próprio eixo da realidade e as forças
tenebrosas como um eco distante na periferia da realidade. Isso é indicado no
filme O Silêncio dos Inocentes na situação inicial da Clarice em relação ao chefe
dela e ao psicopata que ela precisa entrevistar 5. Ele se aproxima dos dois quando
precisa conversar com eles, mas, no final do filme, ela está junto com o chefe e o
psicopata está em um local muito distante, incapaz de exercer alguma ação sobre
ela.
O mesmo acontece em qualquer processo de transformação da alma. Em
qualquer processo de assimilação de uma virtude, duas possibilidades de ação
iniciais que era inicialmente consideradas equivalentes, [são vistas em outra
perspectiva] e, no final, uma delas passa a ser considerada natural e espontânea
para o sujeito e a outra se mostra estranha a ele.]
Podemos relacionar isso com o tema da oração da Ave Maria porque os
atributos da Virgem, que são mencionados na prece, correspondem aos diversos
graus em que a alma se afasta dessa situação de estar entre duas forças
equivalentes e passa para um centro onde as forças já não são proporcionais.

CHEIA DE GRAÇA

No começo da oração, o primeiro título da Virgem Maria, Cheia de Graça,


corresponde ao atributo conseqüente daquele primeiro movimento de exclusão de
tudo que é contrário à ordem divina.
A idéia implícita aqui é de que a Graça divina preenche todas as coisas
durante o tempo todo. Basta que a alma esteja vazia e sem nenhum conteúdo
contrário à Graça para que esteja cheia de graça.

5
Conferir o resumo da história no anexo 1 [N.T.].
O SENHOR É CONVOSCO

O segundo atributo já não se refere ao afastamento daquilo que é


contrário à Graça, mas à repetição ritual da lei divina. O segundo atributo é O
senhor é Convosco. A repetição habitual dos mandamentos simplesmente põe em
ação no sujeito uma força ativa que não pertence a ele 6.

BENDITA SOIS VÓS ENTRE AS MULHERES

O terceiro atributo é Bendita sois vós entre as mulheres, que se refere à


perfeição da passividade em relação a Deus. Para modificar a estrutura dos
desejos do sujeito não basta que o sujeito se afaste das ações contrárias, como
fez no primeiro estágio, e que o sujeito comece a repetir ações de acordo com a
lei divina, como fez no segundo estágio.
Os desejos continuarão exatamente iguais, embora o sujeito tenha
decidido não agir de acordo com eles. Para que os desejos mudem, é preciso que
o sujeito alcance a perfeição de passividade absoluta em relação a Deus, o que
deriva da percepção da infinitude divina.
Isto corresponde ao terceiro pedido do Pai Nosso 7, quando o sujeito se dá
conta de que o objeto último dos desejos humanos se encontra no plano divino. E
O único meio do sujeito apaziguar o desejo é o sujeito transpor o objeto para além
dele.

O PRIMEIRO ESTÁGIO: DEUS COMO UM MODO DE PRIVAÇÃO

Nesta primeira perfeição, Cheia de Graça, os atos contrários à lei divina


são justamente aqueles que aparecem como consistentes para a alma. O sujeito
descobriu, nesse primeiro movimento da alma, que está privado da presença

6
Estou descrevendo esses atributos e estágios de maneira resumida porque provavelmente vocês
já podem fazer relações com as aulas anteriores.
7
E ao terceiro atributo principial [N.T.].
divina. Então, Deus lhe aparece como privação. Deus aparece para o sujeito como
essa periferia distante do mundo. Deus está em algum lugar do Céu e eu estou
aqui na Terra. É como se o sujeito imitasse esse modo de privação pelo qual Deus
lhe aparece, e decide-se privar dos atos contrários a Deus.
Esse processo de transformação consiste simplesmente em um processo
de imitação do modo pelo qual Deus aparece ao sujeito em cada momento.
Quando o sujeito toma consciência dos seus pecados, Deus lhe aparece como
algo do qual ele está privado. Por isso que o primeiro movimento é de
esvaziamento.
Aluno: Em Maria isso já está pleno.
Professor: Desde a concepção. Quando se diz Cheia de Graça,
distingue-se a Virgem de todos os outros mortais comuns. Por mais que alguém
se esvazie de seus pecados, a pessoa nunca se esvazia completamente. A
plenitude da Graça é proporcional a uma pureza completa 8. Uma pureza relativa
somente admite uma presença relativa da Graça. Esta é a substância fundamental
das coisas. A Graça é uma espécie de plano de fundo da existência. Na medida
em que o plano mais próximo se destaca na sua mente, o plano de fundo
desaparece. Na medida em que a sua atenção está voltada mais fortemente para
a realidade mais imediata, a raíz 9 dessa realidade mais próxima parece
desaparecer do cenário. Na medida em que você presta atenção em um objeto, a
sala como um todo, na qual está o objeto, parece sumir da sua atenção.
É neste primeiro momento que Deus aparece ao sujeito como
equivalente ao diabo, como se pudesse interferir em sua ação da mesma forma
que o diabo. Se Deus aparecesse ao sujeito como a única força capaz de
persuadí-lo, ele não teria nenhuma dúvida entre o bem e o mal. Se a realidade se
aparecesse desde o começo tal como é, o sujeito não teria nenhuma inclinação
para agir de modo contrário à realidade.

8
Por isso que Nossa Senhora, concebida sem pecado original, é completamente Cheia de Graça,
de tal forma que até o arcanjo Gabriel veio honrá-la por esse atributo, como é descrito no
Evangelho de São Lucas. Ela é tão pura que merece ser descrita como a própria Imaculada
Conceição, como se apresentou a Santa Bernadete em Lourdes em uma aparição que completará
150 anos em 2008 [N.T.].
9
A qual é justamente a Graça como plano de fundo da existência, como o professor explicou acima
[N.T.].
É justamente porque Deus aparece como uma privação ou uma ausência
para o sujeito, que o diabo pode lhe aparecer como uma presença 10, como se
fosse uma força equivalente na alma do sujeito. Em uma narrativa iniciática, do
ponto de vista da ação das forças celestes e infernais, eles nunca se confundem
como forças no mesmo plano. Para o representante das forças celestes, é sempre
evidente que a força infernal não passa de um epifenômeno da sua própria
presença no mundo. No filme O Silêncio dos Inocentes, para o Crawford, que é o
chefe de Clarice, o psicopata nunca aparece como um oponente. Ele aparece
como algo no mesmo plano que Clarice. Entre eles, cada um sabe mais ou menos
o seu papel. O diabo sabe que não é o equivalente de Deus e vice-versa, mas
pode parecer que são equivalentes para a alma que está nesse primeiro estágio.
Aluno: Eles são apenas opções de ir por um caminho ou por outro.

A TENTAÇÃO DO PRIMEIRO ESTÁGIO: IMPLICAÇÕES MORAIS

Professor: São opções. Na primeira delas, Deus aparece como um modo


de esvaziamento. A primeira coisa que Deus parece dizer ao sujeito é que se
precisa mudar de rumo e tomar outra direção como um todo 11. Não basta mudar
apenas mudar uma ação, mas é preciso mudar como um todo. Enquanto, por
outro lado, o diabo não aparece como um modo de privação, mas como um modo
de adesão às suas raízes no tempo:
“Você sempre foi assim. Isso que você é agora é somente um estado
natural do que você sempre foi desde que nasceu. Os seus pecados formam
naturalmente a sua própria história. Você não pode mudar de rumo porque esse é
o seu rumo natural.”
É por isso que, no filme O Silêncio dos Inocentes, o Lecter faz o acordo
com a Clarice de que irá contar tudo sobre o Gumb se ela puder contar toda a sua

10
Como o mal é uma ausência, se o bem também parece uma ausência nesse primeiro estágio,
ambos, bem e mal. podem ser imaginados no mesmo plano, mudando apenas a inclinação do
vetor [N.T.].
11
A primeira etapa exige uma conversão (metanóia), como São João Batista pregava no deserto,
preparando os caminhos para a vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo, o fruto esperado, e como a
Igreja ensina especialmente durante as liturgias do Advento e da Quaresma, marcados pela cor
roxa [N.T.].
história. Assim, ele pretendia lhe mostrar que ela era apenas os componentes
instintivos dessa história e que nunca poderia transcender isso. Quando ele lhe
pede que conte sua história, ele simplesmente quer trazer essa história para a
mente dela a fim de mostrar-lhe que ela é aquela história, como se ela não fosse
um sujeito que, em parte, se reduz a aquela história e, em parte, transcende
aquela história porque a molda.
Aluno: O diabo quer reduzir ao homem.
Professor: Ele quer reduzir o homem aos seus componentes que lhe são
impotentes em relação à sua própria história pessoal. Ele quer reduzir o homem
aos seus componentes que são uma conseqüência do meio e da história, fazendo
com que o homem esqueça que, em si, há componentes que transcendem isso e
podem reorganizar esse conjunto dando um novo rumo àquela história.
A primeira proposta12 que o diabo faz é:
“Você não pode mudar seu rumo, porque esse rumo é o seu ser. Mudar
de rumo é deixar de ser. Se você aceitar a proposta divina e renunciar ao pecado,
você estará renunciando a você. É você que se apagará. 13”
Aluno: Uma proposta historicista.
Professor: Justamente. É como se pedir para um homem renunciar ao
rumo da sua vida como um todo fosse a mesma coisa que pedir para um animal
renunciar a todos os instintos que lhe mantém vivo. Se o homem se reduzisse a
esses instintos, seria exatamente a mesma coisa e aceitar a proposta divina seria
uma auto-aniquilação. Mas como os instintos possuem um papel apenas
instrumental para o indivíduo humano, essa proposta será a auto-realização, em
vez da aniquilação. O sujeito humano é o que ele faz com os seus instintos. Não é
apenas um efeito de seus instintos.

12
Ou contra-proposta que o diabo oferece depois que Deus ofereceu uma proposta nesse primeiro
estágio.
13
Sendo pai da mentira, o diabo se faz de bonzinho, como se não quisesse tiranizar e escravizar a
alma, mas como se quisesse salvá-la justamente das propostas divinas que, segundo essa
proposta diabólica, levariam a alma à perdição do apagamento. É uma lógica invertida e perversa
que procura enredar a alma em uma rede de mentiras para que ela possa ser arrastada ao inferno
[N.T.].
Aluno: Não é apenas o resultado das circunstâncias. Eu sou eu e minhas
circunstâncias14. Não somente as circunstâncias, nem somente eu.
Professor: Isso nos dará outra nota das narrativas iniciáticas. O
protagonista principal é sempre a própria alma. Nem Deus, nem o diabo aparecem
como o personagem principal. Porque a narrativa iniciática é justamente a história
desse eu amoldando-se ao Espírito e amoldando os instintos em relação a si
mesmo15. Em toda vida humana, o personagem principal é você mesmo. Não há
como você fazer de outra pessoa o personagem principal [da vida que você está
vivendo] porque você não consegue receber exatamente as mesma influências
espirituais que o outro recebe e porque você não consegue amoldar os instintos
do outro a esta influência.
Cheia de Graça se refere a uma perfeição de esvaziamento. A uma
consciência plena da disparidade16 entre a individualidade humana e o conjunto de
instintos ou o aparato material ou quase-material que substancia essa
individualidade nesse mundo. E isso, então, quase sempre se manifesta como
uma ruptura com os rumos de sua história anterior.
Até o momento em que o sujeito se descobre como um individuo diante
das influências celestes, todos os projetos e rumos que ele deu para a sua vida
estão sobrecarregados da sua vida instintiva. É comparável à situação do sujeito
que precisa escolher uma posição social. Por um lado, ele precisa fazer essa
escolha pensando em atender necessidades básicas de alimentação, vestuário,
etc. Também há a família dele afirmando para ele que ele precisa fazer essa
escolha porque não pode mais depender dos outros, precisa ter uma autonomia
financeira, etc. Por outro lado, ele não pode escolher somente com base nesse
fatores. Se escolher somente com base nisso, ele já deu o primeiro passo para se
apagar e deixar de existir. Ele precisa escolher procurando dentro dele algum
princípio de identificação interna com aquilo que escolherá.
Isso não é uma escolha espiritual, mas é um símbolo desta escolha.
Quando o sujeito faz esta escolha, está movido por pressões vindas do plano
14
O aluno estava citando a frase do filósofo Ortega y Gasset: “Eu sou eu e minhas circunstâncias”
[N.T.].
15
Isto é, sendo passivo em relação a Deus e sendo ativo em relação ao mundo [N.T.].
16
Ou da não-identidade.
instintivo, mas precisa incluir nessa escolha elementos vindos da sua própria
identidade e da sua própria consciência de si mesmo.
Por mais estreito que seja a faixa das escolhas que o sujeito possui,
dentro dessa faixa estreita, o sujeito precisa escolher uma que representa a
identidade dele para ele mesmo. Em caso contrário, ele escolherá não ter uma
história para si mesmo, mas continuar uma outra história.
Aluno: É um caminho.
Professor: Esse caminho começa quando o sujeito percebe que possui
uma identidade distinta. É como acontece quando o sujeito percebe que é
responsável pelos seus próprios atos e que estes não possuem uma explicação
anterior a si mesmo. Antes disso, na adolescência, a tendência do sujeito é dar
uma explicação exterior a si mesmo para os seus atos. Ele não justifica seus atos
percebendo-se como sujeito deles.
Se alguém lhe pergunta: “por que você foi ao baile?”, ele provavelmente
dirá: “porque no baile toca música bonita” ou “porque todos meus amigos também
vão ao baile.”
Ele não olha em si, mas olha no objeto. Ele não percebe que as duas
opções estavam em si e a escolha veio dele, não do objeto. Quando o sujeito vive
sua vida assim, não está escrevendo a própria história, mas a história das
influências dos objetos sobre ele. A história é dele, mas ele não percebeu que a
história é dele. Enquanto ele não se dá conta, a história dele pode, na prática,
reduzir-se à história da influência dos objetos. Podem existir histórias humanas
que sejam explicáveis pelas influências dos objetos.
Aluno: E ele nunca se dá conta.
Professor: A história dos animais pode ser quase completamente contada
como história [das influências] do cenário, do habitat.
“Como uma alcatéia de lobos ficou diferente de outra? Simplesmente
porque uma comeu algo que havia no habitat, onde havia tais predadores e tais
presas. E a outra alcatéia possui uma história diferente porque possuía comida,
predadores e presas diferentes.”
É notável a universalidade do absolutismo moral na história humana.
Mesmo quando era inconveniente para os povos, eles se mantinham na postura
do absolutismo moral, o que prova que a história dos povos não se reduz à
influência do ambiente em que se vive.
Quando o sujeito se dá conta de que é o autor da sua história, essa
autoconsciência gera, quase por si mesma, um abismo entre ele e os objetos
enquanto força de motivação. Quando o sujeito percebe que é ele mesmo que
escolhe, por mais atrativos ou repugnantes que os objetos sejam ao redor de si
mesmo, é como se ficasse um hiato entre a atração e a aversão do objeto, por um
lado, e a sua decisão, por outro. É como se houvesse um lapso entre uma coisa e
outra. E é nesse lapso que se faz essa escolha vertical. Esta vai fazer com que ele
perceba que não sabe porque escolhe algumas coisas em vez de outras.
Quando o sujeito percebe que é o autor da sua história, ele também
percebe que não sabe os motivos de suas decisões. Até então, ele foi movido
apenas pela aparência dos objetos. Se algo parece bom, ele pega; se parece
mau, ele não pega. Até esse momento, é como se ele vivesse em uma única
dimensão17. Atrás dele estão os objetos que ele capta como mau e à frente estão
os objetos que ele capta como bons. Ele foge de uma direção e avança na direção
oposta. Quando ele percebe que desconhece a natureza do objeto em relação a
ele, fica um momento de dúvida:
“Aquilo que considero como bom é bom mesmo? Aquilo que considero
como mau é mau mesmo?”
É esta dúvida que abre a porta para a Graça. No momento em que o
sujeito percebe esta dúvida, nota que depende de uma força estranha para
realizar essas escolhas:
“Não posso garantir que ao escolher algo que me parece bom, aquilo me
será um bem. E nem que ao fugir do que me parece mau, estarei livre do mau.”
E, mais ainda, ele percebe que não tem como saber isso na maior parte
dos casos. Nesse momento, as escolhas horizontais entre bem e mal ou entre o

17
Conferir aula anterior sobre os estágios de oração [N.T.].
que parece agradável ou desagradável, são apagadas diante de uma escolha
vertical entre duas hipóteses:
a) “Ou a gente nunca sabe nada e, então, nada vale nada; e o que eu
acho bom passa a ser bom” – e, assim, o sujeito identificou-se com a sua escolha
instintiva.
b) “Ou eu não sei isso, mas existe um pano de fundo que me preservará
da minha própria maldade e eu devo me apegar a isso. Existe algo que está fora
do cenário imediato, mas determina este a meu favor”.
Todo sujeito que pratica uma religião faz isso todo dia. Quando alguém
para e reza não é porque Deus lhe apareceu dizendo que era hora de rezar, mas é
porque não se tem uma consciência clara do que está acontecendo, sem saber se
está escolhendo o bem ou o mal:
“Então, tenho de estar próximo de um princípio que determina o bem e o
mal e que me protegerá”.
O pólo inferior aparece como apelo à história instintiva e o pólo superior
aparece como Graça.
Aluno: Ou Mistério.
Professor: O importante é que nesse primeiro ato os dois pólos aparecem
como hipóteses. Nenhum dos dois aparece como certeza. A certeza ou convicção
somente se consolidará muito depois. Por isso que Santo Agostinho dizia que,
diante dessa primeira escolha, o sujeito percebe-se infundido do temor de Deus.
Este dom consiste justamente em perceber que na maior parte das decisões não
se sabe se aquilo resultará efetivamente em um bem ou não para você mesmo e
para os próximos. Não se tem a onisciência e, por mais escrupulosa que seja a
sua consciência, algumas informações fundamentais podem faltar. E você não
possui um mecanismo interno para se proteger dessa ignorância. Você precisa
recorrer a um princípio externo. E este princípio que aparece, no começo, como
algo do qual não se tem notícia direta, é o primeiro modo pelo qual Deus aparece
a alguém.
Cheia de Graça significa que, na medida em que o sujeito percebe esse
estado de insegurança humana em relação ao bem e ao mal, ele está na Graça. O
objetivo da Graça não é apagar a insegurança, mas mostrar que a segurança não
se encontra no seu próprio ser individual. A segurança está além de você.
Nós tomamos tantas decisões durante o dia que não lembramos que, em
cada uma delas, existe um grau de incerteza em relação ao resultado. Seja no
resultado puramente material até no sentido moral. Muitas vezes na vida,
precisamos tomar decisões sem saber com certeza o efeito moral. Tentamos fazer
o melhor que pudermos, mas, mesmo assim, muitas vezes não podemos garantir
que aquele será o curso de ação correta. Há uma ação ou outra cujo princípio
moral é mais ou menos evidente.
“Por exemplo: se o vizinho está tocando música alta e você fica com
vontade de dar um tiro na cabeça dele, na hora pode-se perceber o princípio de
que matá-lo não será uma reação proporcional.”
Nesse caso, a aplicação do princípio moral foi direta. Mas na maior parte
das situações, as soluções não são evidentes.
“Por exemplo: o processo de educação dos filhos não é tão evidente.
Como você amolda a alma dos seus filhos aos princípios fundamentais da moral?
Isso já é uma técnica mais sutil. Quando devo punir? Quando devo recompensar?
Quando devo explicar? Nada disso é evidente. E, no entanto, são escolhas morais
importantíssimas.”
A margem de erro nessas situações imensas. Diante disso, o que o
sujeito faz?
a) “Ou tudo que sinto é bom. Se sinto que devo punir, eu puno; se sinto
que devo perdoar, eu perdôo;”
b) “Ou faço um esforço máximo e conto com ajuda exterior que corrija o
efeito dos meus erros e poupe-me dos meus próprios pecados porque não possuo
os meios naturais para não me enganar”.
Na primeira hipótese,o sujeito já renunciou à sua própria liberdade, à sua
capacidade de escolher. Ele se dispensou de escolher. Ele fechou o universo em
um pedacinho e fechou uma parte de si mesmo. O universo, para ele, é
simplesmente isso que ele sente. É como diz a teoria emocionalista do valor:
“quando alguém diz que o assassinato é mau, apenas quer dizer que não
gosta de assassinatos”.
E, assim, o sujeito fechou-se para o valor objetivo dos atos humanos
como se este não existisse, restando apenas o próprio sentimento em relação ao
ato. Quando ele faz esta escolha, pode, no máximo, substituir princípios universais
para guiar os comportamentos pessoais por princípios gerais: os sentimentos da
maioria das pessoas passam a ser o que é considerado moral.
“Se a maior parte das pessoas sentir-se contrárias ao assassinato, este
será errado, se os sentimentos mudarem na próxima semana, a moralidade
também mudará”18.
Quando o sujeito fez essa primeira escolha por algo que lhe parecia claro
e definido:
“Ah, eu conheço a minha história instintiva, pois estou diante dela, e não
conheço essa força transcendente que iria me poupar dos meus próprios
enganos.”
Quando o sujeito faz esta escolha, parece que está optando por algo fico
e indefinido, e renunciando a uma coisa indefinida e nebulosa. Mas, na verdade, o
que ele escolheu foi a parte da realidade que é indefinida e nebulosa, que é o
conjunto dos seus instintos. Estes são de um jeito hoje, mas amanhã são de outro
jeito. Embora os instintos se apresentem como absolutos, a verdade é que na
semana seguinte o sujeito terá uma preferência contrária.
Este estágio19 é o primeiro modo pelo qual o sujeito escapa dessa linha
unidimensional entre o bem e o mal, para se colocar no centro de uma esfera
indefinida.

A PERFEIÇÃO DO SEGUNDO ESTÁGIO: A ADESÃO PIEDOSA20 A UM


CORPO DE LEIS SAGRADAS

18
Como argumentam aqueles que defendem ou contestam uma proposta de lei sobre o aborto,
por exemplo, apelando para a maioria das opiniões a favor ou contra, mas abstraindo o valor
objetivo daquele ato sobre o qual se legisla [N.T.].
19
Representado pelo título Cheia de Graça [N.T.].
20
Uso este adjetivo para fazer referência ao segundo dom do Espírito Santo e de suas relações
explicadas nas aulas sobre o Pai Nosso e sobre o Gênesis [N.T.].
Naturalmente, depois de fazer isso, o sujeito pode se perguntar:
“Eu posso pedir para Deus me poupar dos meus pecados, mas não existe
um jeito de Deus fazer isso antecipadamente, poupando-me de cometer os
pecados? Não existe um meio de diminuir a margem de incerteza?”
Aluno: Vai pelas regras.
Professor: O segundo passo do sujeito é justamente aderir a um corpo de
leis. Porque este o torna semelhante ao mesmo princípio que o poupa dos
pecados. O corpo de leis é como se fosse a transcrição das perfeições morais da
consciência dele. Estas existem nesse plano de incerteza humana. É preciso que
seja um corpo de leis que tenham, em si mesma, um caráter contrário ao pecado.
Assim, é preciso que o sujeito tenha à sua disposição um conjunto de ações nas
quais, em si mesmas, contenham um componente sagrado para abaixo do qual
ele não possa sair21. Todos os ritos são assim. Por que o sujeito faz a oração do
Pai Nosso e não uma oração espontânea que lhe ocorra no momento?
Justamente porque o Pai Nosso, como oração divinamente instituída, possui, na
sua própria forma, algo de sagrado que o sujeito, de uma maneira ou outra, efetiva
cada vez que realiza aquela oração. Mesmo que o sujeito tenha alguma incerteza,
a própria ação possui, na sua forma, algo que garante um bom efeito para ele. É
isso que ´significado pelo título O Senhor é Convosco. Nestas ações, o Senhor
está com o sujeito.
Aluno: Sempre tendo a Virgem Maria como referência.
Professor: Sim, porque ela é modelo de plenitude. Quando o anjo disse O
Senhor é Convosco, quis dizer que todos os atos dela possuíam este caráter
[sagrado].
Aluno: E nós imitamos estes atos.
Professor: E nós fazemos por imitação estes atos divinamente instituídos,
reconhecendo esse grau humanamente máximo em Nossa Senhora. Um grau de
plenitude adâmica. Ela é uma pessoa cuja alma estava no Paraíso. Tudo que ela
fazia era ritual e Deus estava com ela. Quando nós rezamos o Pai Nosso, Deus
está conosco porque Ele compôs esta oração.
21
Dividindo as águas daquela esfera inicial entre águas superiores e inferiores, entre céu e terra,
como ocorreu no segundo dia da criação. Conferir aula do professor Luiz sobre o Gênesis [N.T.].
O LOUVOR ÀS QUALIDADES PERFEITAS

Aluno: A atitude de quem reza deve ser de reverência ao santo ou deve


ser orientada ao próprio crescimento?
Professor: Quando o sujeito faz uma Ave Maria, ele está pedindo para
assimilar aquelas virtudes e para que a Virgem Maria esteja diante de Deus como
se fosse ele mesmo. Na medida em que se assimila aquela qualidade, a postura
que a Virgem Maria tem diante de Deus passa a ser a sua. Ela está diante de
Deus é você estar diante de Deus 22. Depois de enunciarmos os atributos de Nossa
Senhora, pedimos:
“Rogai por nós pecadores, agora e na hora de nossa morte”.
Assim, você pede que ela se coloque diante de Deus no seu lugar. Você
tem que assimilar essas qualidades nesse lugar [onde você está]. Louvar uma
qualidade é a semente para assimilá-la. Quando você capta uma qualidade e você
a louva é porque existe uma semente de semelhança entre você e aquela
qualidade. E o louvor é como a água que você joga para que essa mesma
qualidade germine.
Quando você elogia alguém, qual é a vantagem do seu elogio para o
elogiado? Pode ser tanto uma vantagem como uma desvantagem. Pode ser o
elogio que cegará o sujeito para os seus próprios defeitos e fazê-lo achar que já é
Deus e já chegou lá:
“Já saí da escala humana, tanto que os seres humanos me louvam”.
Por natureza, alguém elogia uma qualidade no outro porque vê no outro
uma plenitude que é potência em si. Alguém vê no outro uma qualidade que
poderia ser aprimorada em si mesmo. Também se pode louvar as más ações, se é
isso que se deseja que cresça em si mesmo. O louvor traz em si um desejo de

22
Assim, a pessoa passa a estar unida com o Corpo Místico de Cristo. Sua própria noção de eu
fica integrada com um conjunto maior da realidade,que inclui as outras pessoas unidas no Amor de
Cristo, o que inclui a Igreja Triunfante, especialmente a Virgem Maria. Em termos psicológicos, isso
parece corresponder ao nível transpessoal e o nível unitivo de que trata Ken Wilber em Projeto
Atman, por exemplo [N.T.].
assimilação de todo atributo que é louvado. Todo louvor espontâneo é um reflexo
de uma semente de semelhança e de um desejo de imitação.
Aluno: Uma inspiração.
Professor: Como se a semente daquela qualidade tivesse entrado em
você e, pelo louvor, você estivesse regando-a.
Aluno: Você elogia no outro.
Aluno: O que mostra que você também quer aquela qualidade.
Professor: Por outro lado, toda relação humana é bilateral. Quando você
elogia uma qualidade perfeita no outro, também é um elogio à semente da
qualidade que há em você também. Todo louvor a um santo visa o
reconhecimento da qualidade, mas também visa essa onda de retorno. O santo
também louva essa qualidade em você, em troca 23.
A gente nunca pode esquecer que a humanidade do Cristo é a
humanidade da Virgem Maria. Quando a gente fala nascido da Virgem Maria24,
significa que o Verbo Divino assumiu a natureza humana.
Que natureza humana? De quem? Onde ele assumiu a natureza
humana?
Ele assumiu a humanidade dela, da Virgem Maria. Isso quer dizer que o
cristão possui na Virgem Maria o modelo da sua própria humanidade 25. A Virgem
Maria é inteira aquilo que cada ser humano é em fragmento. Cada cristão observa
as qualidades de Cristo e percebe que:
“algumas delas são para meditar e outras são para contemplar. Não
posso simplesmente passar a agir como se eu já fosse o Verbo Divino. Mas posso
ter a consciência de que o Verbo Divino aparece para o cristão por meio da

23
Os santos estão constantemente louvando a Deus e essas qualidades que alguém “tem”
procedem de Deus, merecendo louvor dos santos [N.T.].
24
O que corresponde a uma das frases da fórmula do Credo [N.T.].
25
Cada cristão visa ter algumas qualidades. Ele poderá contemplar essas qualidades na pessoa da
Virgem Maria, tendo assim um modelo seguro. Este foi o segredo de tantos cristão que tiveram
sucesso em seu desenvolvimento espiritual, como, por exemplo, o beato frei Antônio Sant’ana
Galvão, que será canonizado pelo Papa Bento XVI como o primeiro santo nascido em território
brasileiro. Ele chegou a fazer um pacto de sangue com a Virgem Maria para buscar suas
qualidades. A lista poderia ser aumentada indefinidamente, incluindo, por exemplo, uma das
grandes referências da vida cultural e mística brasileira, o beato José de Anchieta, cuja vida foi
descrita pelos sacerdotes jesuítas Quirício Caxa e Pero Rodrigues [N.T.].
Virgem Maria. Na medida em que sou semelhante a ela, ele aparece para mim,
assumindo a minha humanidade”.

A TENTAÇÃO NO SEGUNDO ESTÁGIO: LIBERDADE E VERDADE

Se na primeira opção, o diabo aparecia como o passado do sujeito e a


sua história, nessa segunda opção, ele aparece como o futuro:
“Se você submeter-se à lei divina,você perderá várias opções futuras.
Você não poderá fazer aquilo que poderia ser a sua história futura.”.
Se, no começo, ele argumenta dizendo que você não tem liberdade,
agora ele argumenta com a idéia contrária. Agora que o sujeito se deu conta de
que possui liberdade, ele afirma que é a essa liberdade que não se deve renunciar
aceitando a lei divina. O diabo sempre se veste de um bem já conhecido. É como
se ele se revestisse de um bem que você já conhece e apresentasse Deus como o
mal contrário àquele bem.
Como o sujeito deve responder nesse segundo estágio?
“Liberdade não é estar aberto a indefinidas opções futuras. Liberdade é
plena consciência das minhas possibilidades imediatas. Liberdade é plena
consciência do que sou agora. Não é uma consciência relativa e fragmentária das
minhas possibilidades futuras.”
Quando o sujeito renuncia com liberdade a algumas possibilidades
futuras, está renunciando por causa do caráter de incerteza intrínseco a elas. O
sujeito que faz essa segunda escolha já não é mais o mesmo que o sujeito que fez
a primeira.
Esse aqui já é o sujeito que se distinguiu da sua natureza instintiva.
Aluno: Ele decidiu que pode decidir o próximo ato?
Professor: Ele decidiu que a liberdade não é a possibilidade de ficar
passando de uma opção para outra entre as inúmeras possibilidades presentes,
mas a liberdade é estar maximamente cônscio dele mesmo em cada ato. Essa
liberdade somente é adquirida submetendo-se a uma lei divina. A liberdade não se
baseia nas dúvidas do futuro, mas nas certezas do presente:
“Restringir certos cursos de ação não cerceia a minha liberdade porque
se eu depender da minha própria consciência para determinar cada um desses
cursos de ação, eu não sei quais são as conseqüências de cada um deles. Mas
se eu aceito esse curso de ação conforme os mandamentos da lei divina, eu sei a
conseqüência última de cada um desses atos. Cada um desses atos é realizado
livremente porque posso antecipar as suas conseqüências últimas. Para todos os
outros atos, posso antecipar algumas conseqüências imediatas, mas não [posso
antecipar] conseqüências últimas.”
Então, quando o sujeito se prepara para fazer uma ação ritual ou um
mandamento da lei divina, ele sabe exatamente em que irá resultar aquele ato no
final. Como ele sabe qual será o resultado final, ele está efetivamente livre para
decidir se ele quer aquele ato final ou não.
Para todos os outros atos, existe uma área próxima no tempo e nas
conseqüências, há uma zona crepuscular em que ele tem alguma idéia das
conseqüências, mas ele não sabe quais serão as conseqüências daquele ato para
ele mesmo daqui a 20, 30 anos ou depois da morte. Para esses atos, ele é
parcialmente livre. É livre dentro dessa zona crepuscular em que ele possui
alguma idéia das conseqüências26. É assim para cada um de nossos atos.
A gente vem aqui, assiste a essa aula. A gente tem idéia de alguma das
conseqüências daqui a alguns dias, meses ou daqui a alguns anos. Mas temos
idéia de todas? A gente não tem. A gente não sabe efetivamente se era mais
importante estar fazendo outra coisa para conseqüências mais amplas e mais

26
Nas primeiras aulas desse curso, o professor Luiz ofereceu uma antropologia cultural que
culminava com a descrição da inteligência e da vontade. A liberdade está relacionada com o
intelecto e com a vontade, sendo esta entendida como um movimento que decorre da percepção
das estruturas universais e permanentes. Eram a inteligência e a vontade que distinguiam
maximamente os homens e os animais. É pela falta de percepção das conseqüências mais
distantes que esses são mais facilmente dominados e condicionados, como o burro que corre atrás
da cenoura. O ser humano, por sua vez, pode perceber as conseqüências últimas. Ao cumprir uma
obrigação sagrada, pode-se ficar em dúvida quanto aos fatores imediatos: “devo abandonar minha
cama para ir na Igreja rezar? Não seria mais útil trabalhar mais quinze minutos e deixar de rezar o
terço?”, mas ele pode ter certeza quanto aos resultados últimos. No dia do juízo final, ele poderá
receber os frutos. E as ações mundanas? Delas sabemos seus resultados imediatos, mas ficamos
em dúvida sobre os efeitos últimos. Sei que um curso pode me trazer algum certificado e que um
trabalho pode resultar em um pagamento, mas cada um deles irá colaborar na salvação da minha
alma? [N.T.].
distantes no tempo. A gente toma todas essas decisões em uma zona muito
pequena de consciência.
[Aluno oferece justificativas para confiar nas conseqüências ´últimas deste
curso.]
Professor: É natural que a gente tome essas decisões, mas não somos
plenamente livres porque não temos plena consciência das conseqüências. Mas
quando o sujeito decide que fará algo porque Deus ordenou, ele amplia a esfera
das conseqüências conhecidas até o infinito: a conseqüência última desse ato é a
salvação, além da qual não existe nenhuma outra conseqüência. A salvação é o
estado a partir do qual os estados não mudam. Todas as conseqüências dos
outros atos são provisórias. Por isso que se diz que a Lei Divina é firme. É um
princípio de firmeza e estabilidade. Porque o sujeito ciclicamente está realizando
certos atos que acabam sedo a baliza última da vida deles:
“Estou fazendo esses atos porque depois da morte acontecerá tais
conseqüências”.
Quando você tem essa conseqüência de uma linha de conseqüência que
raia o infinito, você é perfeitamente livre para escolher ou rejeitar algum ato. Todos
os outros valores são apenas provisórios.
Você faz, tem algum efeito provisório, depois você vai lá e conserta.
Sempre existe reparação ou conserto. Diante das outras escolhas, [no
primeiro estágio], Deus aparece como a Graça que irá lhe garantir contra as
conseqüências de seus atos. Nessa etapa, Deus é a força que dá efetividade aos
seus atos. Quando você faz as outras coisas de acordo com os seus juízos
baseados no conhecimento que você tem dos fatos, você pode se enganar.
E você pede a Deus para que Ele te proteja nos casos em que você
possa se enganar. Pede que Ele anule as conseqüências dos atos errados.
Diante dessa situação, Deus aparece como um continente protetor. No
ato ritual de cumprimento da lei divina, Ele aparece como a força interna que
garante a efetividade do ato. Esse ato aqui terá essa conseqüência porque quem
o afirma em última análise é Deus. Nesse atributo 27, Deus aparece como uma

27
Da vIrgem Maria, “O Senhor é Convosco” [N.T.].
presença que fortalece e dá firmeza. É por isso que um dos atributos da Virgem
Maria é
O Senhor é Convosco,
Porque em cada ato dela, ela não estava diante dessa zona crepuscular
de consciência, mas ela estava realizando um ato que era, para ela, ordenado
ritualmente por Deus.
Aluno: Os atos guiados pelo Espírito possuem uma firmeza maior do que
os atos guiados pela mente ou pelo corpo, resultando na posição hierárquica
superior do Espírito em relação à mente e ao corpo.
Professor: Exatamente. Os outros atos todos são inseguros pela própria
natureza deles.
[Aluno cita o Servo de Deus João Paulo II como um defensor da noção de
Liberdade aliada com a Verdade28.]
Professor: A liberdade é estar nessa Lei Divina. Não há liberdade sem a
Verdade. Não há como ser livre estando em uma zona crepuscular onde não se
sabe nada sobre as conseqüências das suas decisões. Mesmo a liberdade que se
pode encontrar nos outros atos, há dentro dessa esfera em que você pode
antecipara as conseqüências.
E importante saber e lembrar que estar nessa zona de incerteza é
intrínseco à nossa natureza. Se alguém não está nessa zona de incerteza, é por
um milagre, por uma intervenção sobrenatural que somente acontecem com os
profetas e não com a gente. Para os profetas, cada um de seus atos é normativo,
é um rito, Para a gente não, apenas a repetição dos atos deles é um rito.

28
Algumas frases do Servo de Deus João Paulo II sobre o assunto: 1.- "Estamos no mundo sem
ser do mundo, constituídos entre os homens como sinais da verdade e da presença de Cristo para
o mundo. Entregamo-lhe todo nosso ser concreto como expressão sua, para que Ele continue
fazendo o bem". (Cf. At 10,38). 2.- "O verdadeiro conhecimento e autêntica liberdade encontram-se
em Jesus. Deixai que Jesus sempre faça parte de vossa fome de verdade e justiça, e de vosso
compromisso pelo bem-estar de vossos semelhantes". 3.- "A liberdade, em todos seus aspectos,
deve se basear na verdade. Quero repetir aqui as palavras de Jesus: "E a verdade vos libertará"
(Jo 8,32). É, pois, meu desejo que vosso senso de liberdade possa estar sempre de mãos dadas
com o um profundo senso de verdade e honestidade sobre vós mesmos e das realidades de vossa
sociedade". 4.- "Só a liberdade que se submete à Verdade conduz a pessoa humana a seu
verdadeiro bem. O bem da pessoa consiste em estar na Verdade e em realizar a Verdade". (Enc.
Esplendor da Verdade). Fonte: http://www.acidigital.com/juanpabloii/pensamento.htm#19.
REVISÃO DOS DOIS PRIMEIROS ESTÁGIOS

Esses dois atributos se dão no curso da ação:


a) A primeira é “não faça isso sem o conhecimento da sua incerteza”;
b) o segundo é “faça isso e tenha consciência de que nesse ato você tem
certeza”.
Neste caso, pouco importa se você se sente bem ou mal fazendo os atos
sagrados indicados na segunda etapa ou evitando os atos indicados no começo. É
claro que ninguém se sente bem ao se dar conta da sua incerteza que vem das
conseqüências de seus atos.
Aluno: Mas todo mundo se sente bem ao fazer algo certo.
Professor: Na segunda você já se sente melhor. Você se sente firme, em
um caminho seguro. Mas esse sentir bem não é “positivo”, é apenas um alívio por,
no ato de cumprir uma lei, não ter de se preocupar com as conseqüências. É o
alívio de estar livre daquela incerteza naquele ato.
Aluno: Pode ter mais.
Professor: Pode, mas, por si, o ato apenas traz o alívio.
[Aluno pede mais uma explicação.]

BENDITOS ATOS: ANTECIPANDO AS RECOMPENSAS CELESTES

Professor: Quando o sujeito faz um ato conforme à lei divina, ele sempre
se sente bem e feliz?
Aluno: Ele pode se sentir bem, mas pode acontecer algo mais.
Professor: Neste caso, ocorreu alguma outra coisa ali, que é o fruto
daquele ato, além da perfeição que é simplesmente estar fazendo ali um ato ritual.
Pode estar acontecendo ali uma conformidade entre o sentimento dele e de Deus,
em um certo sentido. Assim, ele não somente cumpriu a Lei, mas é como se ele
tivesse entrado em contato, por um momento que seja, com o Reino de Deus que
está dentro dele. Para o sujeito sentir-se efetivamente contente e deleitar-se com
aquele ato, é preciso que ele antecipe em alguma medida o que normalmente é
apenas uma conseqüência futura daquele ato ritual. Isso é a benção do bendito
sois v[os entre as mulheres. Dependendo do estado interior da pessoa, ele
antecipa as conseqüências futuras daquele ato. É como se ele sentisse a
proximidade do Paraíso ao realizar aquele ato, mas isso é uma benção que
complementa.
Aluno: Mais do que um alívio, é uma plenitude.
Professor: Mas isso não acontece sempre. O que pode acontecer sempre
que o indivíduo estiver consciente de sua liberdade é o alívio por não estar sujeito
ao fardo das incertezas. Se o sujeito fica somente nesse alívio, ele acaba
reproduzindo os mandamentos mecanicamente.
Aluno: E a incerteza é inescapável.
Professor: Porque não existe um conjunto de mandamentos que abarque
todas as situações da sua vida como se fosse possível prever tudo que iria
acontecer com alguma pessoa. Isso nunca vai acontecer. Seria tirar alguém da
escala humana.

“O REINO DOS CÉUS ESTÁ DENTRO DE VÓS”: A RENOVAÇÃO DA


NATUREZA ESPIRITUAL

Em que consiste essa benção que antecipa a conseqüência de um ato?


Essa benção pode vir:
a) tanto por ter cumprido um mandamento da Lei divina,
b) quanto por ter renunciado a um ato contrário a ela.
O sujeito que simplesmente decide fazer algo que não é contrário a Deus
ou a não usar o seu organismo instintivo como critério último de suas decisões, já
é capaz de receber esta benção. Esta deriva de que o sujeito esteja consciente
momentaneamente de que sua natureza é espiritual e não instintiva.
Nessas duas primeiras escolhas, o sujeito esteve retomando a sua
natureza espiritual para si mesmo. Ele percebeu que tem uma identidade própria
que não deriva do conjunto de acidentes que me constitui. Mas até agora ele não
havia prestado muita atenção no que é essa natureza. Até agora ele agiu para
recuperar essa natureza. Uma vez que ele a recupera, com essas duas atitudes
iniciais, o que se renova é a sua natureza espiritual.
Até então, a sua natureza espiritual era algo quase exterior a ele. Por isso
que Deus lhe aparecia como uma proposta de uma Graça de fundo que pode
salvá-lo de seus erros ou como uma determinação específica que também vem de
fora e lhe diz: “aja assim”.
Até agora a sua identidade espiritual estava em Deus, que lhe aparecia
de fora dizendo:
“Faça assim! Você ainda não sabe, mas você é assim”.
Uma vez que ele começa a fazer assim, em alguns momentos ele renova
essas duas promessas e recebe uma resposta de dentro de si. Pela primeira vez,
Deus lhe aparece como uma Graça que vem de dentro de si. Então, aquelas
simples preocupações exteriores podem virar um gosto interno. Agora Deus
aparece de dentro dele e não de fora dele, como nos dois primeiros estágios. É
por isso que se fala:
Bendita sois vós entre as mulheres.
Aqui devemos lembrar que as Sagradas Escrituras muitas vezes fazem
uma analogia entre o mundo interno e o mundo externo, entre o microcosmos e o
macrocosmos. A Bíblia muitas vezes fala do mundo externo como se fosse o
mundo interno ou a alma29. Por exemplo: ao contar a história de Moisés e da fuga

29
Tradicionalmente distingue-se quatro sentidos para o texto bíblico: literal, alegórico, moral e
anagógico. O sentido literal ou histórico é o fundamento para o estudo e edificação da mente.
Antes de tudo, no estudo, é preciso aprender a história e a verdade dos fatos, sendo capaz de
saber:
a) O FATO: o que foi feito?
b) O TEMPO: quando?
c) O LUGAR: onde?
d) A PESSOA: por quem?
Não se deve desprezar esses detalhes. “Quem despreza as coisas mínimas se definha
aos poucos” (Hugo de São Vítor- HSV). De alguns detalhes dependem aquilo que deve ser
conhecido por si mesmo. “Aprenda tudo e verá, depois, que nada é supérfluo. O saber limitado não
é alegre” (HSV). Exemplos: Gênesis, Josué, Juízes, Crônicas, 4 Evangelhos, Atos.
O sentido alegórico exige mentes maduras com “inteligência espiritual” em vez de “sentidos
lerdos e idiotas” (“non tardos et hebetes sensus”). Exige sutileza na investigação com prudência e
discernimento. “É comparável a uma comida forte: precisa ser mastigada para ser bem engolida”
(HSV). Deve-se evitar ser temerário na conjectura (Sl 7, 13) ou presunçoso. Não admite
contradição com o sentido literal. Forma uma edificação estrutural para ter uma construção unitária
conhecendo cada gênero. Exemplos: Gênesis (criação), Isaías, Jó, Salmos, Cânticos, S. Mateus,
S. João, S. Paulo e Apocalipse.
de Israel do Egito, considera-se Moisés, os judeus e os egípcios como
personagens dentro da alma humana.
Quando se fala a coletividade toda das mulheres, está se referindo a
elementos da alma da Virgem Maria. Essa que é bendita é a própria identidade
espiritual da Virgem Maria, que ao realizar a primeira e a segunda promessas
sempre tem uma resposta interna de Deus. Enquanto isso não acontece com o
sujeito é difícil explicar a frase:
“O reino dos Céus está dentro de vós” (Lc 17,21).
A fonte da devoção espontânea é o próprio Deus. O mesmo que te
ampara de fora30 e determina de fora que você faça essa ou aquela ação 31 faz
nascer dentro de você essa alegria.
Essa alegria não é um gozo estético do ato, como são as outras alegrias
normais. Todas as outras alegrias normais têm sua origem no objeto e ecoam ou
reverberam no sujeito, mas sem o objeto acabou a reverberação.
Quando ocorre com o sujeito esse movimento espontâneo de devoção
esse movimento deriva da forma do próprio ato. Ele responde de dentro do ato.
Normalmente, a identidade espiritual do sujeito, na medida em que este
começa a se dar conta, sempre responde assim a esse ato, sempre responde
assim à Lei Divina. Mas essa identidade espiritual geralmente está fora do cenário
da consciência do sujeito. Quando o sujeito repete um ato espiritual, essa benção
está inserida, mas nem sempre o sujeito está realizando esse papel central que é
do personagem da identidade espiritual dele.
Aluno: Quando ele não está em si, ele não flui. Está somando, mas ele
não percebe porque não está no seu centro.
Professor: Exatamente. O ser humano tem, em si, um mundo interior. E
esse mudo tem, em si, todos os personagens do mundo exterior. Há momentos
em que você, no fundo da sua alma, encontra o personagem mais próximo do

O sentido moral ou tropológico relaciona o significado dos atos e das palavras


conforme o tempo, o lugar e os costumes. Supõe que conhecendo o que as coisas são, sabemos o
que devemos fazer. Quem interpreta este sentido procura conhecer a virtude e o bem viver
(caminho reto) por meio dos exemplos das ações virtuosas e não pela pompa ou pelo estilo.
Exemplos: Eclesiástico, Provérbios, Salmos, Sermão da Montanha e São Paulo [N.T.].
30
Primeiro estágio ou primeiro atributo [N.T.].
31
Segundo estágio ou segundo atributo [N.T.].
diabo. Nesse momento você odeia tudo, sente ódio por tudo, mas você não é
inteiro assim. Esse é apenas um dos componentes que está dentro de você. No
começo do desenvolvimento espiritual, a sua identidade espiritual também é um
componente que fica dentro de você.
A alma é como um palco onde está sendo realizada uma peça com
diversos papéis. Você pode passar de um papel para o outro. Você é todos s
atores, mas você não é todos ativamente o tempo todo. No momento em que você
sente uma Graça assim, que pode acontecer em qualquer momento e não apenas
quando estiver realizando um ato ritual, é simplesmente o momento em que você
está representando o papel que é central na peça. Naquele momento, ele é ele
mesmo como será no Céu. É por isso que ele percebe o Céu como o Céu é,
ainda que em uma escala menor. O Céu é uma vivência perpétua desse papel
principal.

A TENTAÇÃO DO TERCEIRO ESTÁGIO

Imediatamente, nesse processo, no período posterior a uma Graça


dessas, o sujeito também sente uma alegria diferente, cujo centro ou raíz está no
próprio ato e não no objeto. Mas ele também se recorda do número de coisas
agradáveis às quais ele renunciou por ter dado este rumo à sua vida. O que o
diabo irá lhe dizer agora? Não irá dizer que o sujeito perdeu a sua liberdade, pois
este já sabe que não perdeu, mas ganhou a liberdade. Ele irá dizer que você
perdeu outras coisas. Ele irá dizer que estes gozos espirituais jamais poderão
substituir os gozos perdidos.
Aluno: Então foi um mal negócio! Essa é a malícia completa!
Aluno: O argumento é bom!
Professor: O argumento é sempre bom, nunca é estúpido.
Aluno: E agora?
Professor: Agora ele, o diabo, não pode mais apresentar Deus como um
mal e ele como um bem. Não dá mais para dizer que Deus é a prisão e ele é a
liberdade. Ele não pode falar que ele é você mesmo e Deus é um estranho. Mas
ele pode falar que:
“Deus é um bem e eu sou outro”.
Embora, em um certo sentido, a escolha entre dois bens não se exponha
de um modo tão rigoroso para um ser humano quanto a escolha de um bem e de
um mal, ela é capaz de deixar o sujeito em um impasse por muito mais tempo.
Aluno: Não está mais em jogo toda a vida do sujeito.
Professor: Em nenhum lado se perde tudo. Quando é tudo ou nada, essa
escolha se apresenta com mais tensão, mas se resolve mais facilmente na alma
humana. Quando o sujeito tem um bem por um lado e outro bem por outro, fica
mais difícil. O sujeito ficará estacionado nessa dúvida por muito mais tempo.
De um lado, estão os gozos que nascem de dentro do sujeito e, de outro,
estão todos os outros objetos aprazíveis dos quais ele se separou ao se conformar
com a Lei divina. Por isso que as religiões tendem a tolerar muito mais essa
tensão. É esse pecado que o Cristo falou que sempre perdoa. Ele disse:
“Todo pecado que for cometido contra o Filho do Homem será perdoado,
mas o pecado cometido contra o Espírito Santo não será perdoado” (Lc 12, 10).
Quer dizer que se o sujeito não consegue fazer os dois primeiros passos,
ele não será perdoado. Todo pecado nesse terceiro estágio será perdoado porque
é difícil renunciar completamente a um bem. E também porque é difícil o sujeito
captar que os bens exteriores que se apresentam reduzem-se ao primeiro bem 32.
É difícil captar que tudo aquilo que foi deixado de lado por causa de Deus já está
contido em Deus. E será recebido de volta. É difícil entender, o sujeito se
pergunta:
“Se o objeto é um pecado como irei recebê-lo de volta em Deus?”
É por isso que essa oscilação entre esses dois bens é tolerável no ser
humano. Ele cumpre, depois peca; cumpre, depois peca. Mas quando ele peca,
ele não retorna ao ponto anterior. Sempre que ele peca nesse contexto é porque
ele é temporariamente obcecado por um objeto que é um bem 33. É pelo caráter
32
Dado no gozo interior e espiritual [N.T.].
33
Como escreveu São João da Cruz: "A mosca que pousa no mel não pode voar; a alma que fica
presa ao sabor do prazer, sente-se impedida em sua liberdade e contemplação." E ainda: "Os
apetites causam à alma um duplo prejuízo: primeiro, privam-na do espírito de Deus; segundo, a
aprazível daquele bem. Ele não está, com esse ato, afirmando que seus instintos
são o critério por excelência do comportamento. Ele não deixa, de pois de fazer
isso, de voltar a cumprir a Lei divina.
Aluno: Por isso existe a confissão.
Professor: Porque é inevitável. Dar esse terceiro passo é quase um passo
certo na direção da santidade, a qual, na prática, não se realizará para a imensa
maioria dos indivíduos neste mundo.
Ao completar esse terceiro salto, o sujeito percebe que não há dois bens.
Há um Bem e uma imagem dele multifacetada em um espelho. Há um Bem que é
a origem do gozo espiritual e há esse mesmo Bem, que é o Criador de todas as
coisas, refletindo-se nestas de inúmeros modos.
O sujeito, nesta consciência, reduzirá o número de pecados completos
até o ponto de substancialmente neutralizá-los. Irá neutralizar a capacidade de
perturbar a alma. A pior coisa do pecado para um religioso é o grau em que aquele
pecado perturba a alma e serve de obstáculo para retomar o caminho.
Aluno: E essa é uma função do demônio.
Professor: Ele tenta e ainda diz quando o sujeito cai:
“Está vendo? Não adianta nada! Você nunca conseguirá avançar nesse
caminho!”
O grande perigo espiritual neste estado é que, em vez de oscilar entre
estado de cumprimentos da Lei divina e estados de descumprimento, o sujeito se
afunde na desesperança pensando que o seu caso não tem solução. Ou ele
chega a conclusão de que é indiferente pecar ou não pecar. Essas duas tentações
podem levá-lo de volta ao primeiro estágio. Ele pode perder o que já fez. Então,
toda a arte espiritual nesse estágio consiste em manter na consciência que todos
os bens relativos são imagens refletidas do Bem absoluto, de maneira suficiente
para que a sua mente retorne à Paz depois de pecar e possa retomar à Lei divina.
Os Santo Padres sempre diziam34:

afadigam, atormentam, obscurecem, mancham e a enfraquecem. Estes dois efeitos são causados
por qualquer ato desordenado". Mais frases em http://www.oração centrante.org/sjcruz.htm.
34
Para outras frases dos Padres da Igreja, especialmente dos Padres do Deserto, conferir
http://www.padresdodeserto.net/dizeres.htm.
“Uma consciência muito escrupulosa é quase tão inimiga do crescimento
espiritual como uma consciência grosseira”.
Porque se a pessoa toma cuidados demais com os próprios pecados, o
sujeito fica preso. Ele esquece que o diabo não pode anular Deus. O meu pecado
não pode anular a obra da Salvação. O problema quando o sujeito iguala esses
dois bens é que o sujeito acaba por igualar o pecado dele e a obra da salvação.
Ele termina por colocar essas duas coisas no mesmo plano e atribuir as duas a
mesma potência.
Aluno: Há uma soberba aí.
Professor: Exatamente. E esquece a hierarquia: a obra da Salvação e o
meu pecado não são forças no mesmo plano. Um dos propósitos principais do
diabo é convencer o ser humano de que Deus e o diabo são antagonistas. E que
são eles que lutam um contra o outro, enquanto você é somente a munição. Mas,
na realidade:
“Os antagonistas são eu e o diabo. É a mim que ele quer desafiar e não a
Deus. E, portanto, é natural que, nesse combate, haja momentos em que a guerra
penda para o lado dele e outros momentos em que a guerra penda para o meu
lado”.
Essa alternância é natural. Essa alternância entre pecado e
arrependimento, entre cumprimento da Lei divina e desvio, é um instrumento do
progresso espiritual. Um instrumento para que o sujeito se dê contra da realidade.
É isso que Cristo quer dizer:
“Não vos preocupeis, Eu venci o mundo” (Jo 16, 33).
Aluno: Por isso que o C.S. Lewis chama o cristianismo de “religião para o
homem concreto”35.
Professor: Exatamente, não é uma religião para um homem abstrato que
seja um anjo ou um demônio ou que seja capaz de tornar-se um anjo ou um
demônio.
O que acontece no decorrer desta transformação espiritual é que:

35
Mesma expressão usada por Mário Ferreira dos Santos para se referir ao cristianismo na obra
“Cristianismo, a religião do homem”. Conferir no site
http://www.academus.pro.br/filosofo/marioferreira/.
a) a atração pelos gostos espirituais diminui o número de pecados;
b) por outro lado, a certeza da consistência dessa salvação diminui o
impacto do pecado sobre a alma como um todo.
Por isso que, quando termina a Santa Missa, o padre afirma:
“Ide em Paz e que o Senhor vos acompanhe”.
Essa Paz é a mesma Paz que o Cristo passou para os discípulos (Jo 14,
27). Essa paz é justamente a serenidade da consciência da verificabilidade da
realidade. Ela deriva do sujeito saber que:
“Não importa para qual lado a batalha está pendendo agora, o resultado
final já está pré-determinado. Talvez o meu papel nesta batalha seja morrer como
bom soldado. Aparentemente, morri como um soldado. Do ponto de vista histórico,
eu posso sucumbir sob os meus pecados, mas na minha consciência interna eu
sou o sujeito que morreu lutando pelo lado certo. Nem todos soldados se tornam
heróis de guerra. Os santos são os heróis de guerra. Nessa guerra, eles fizeram
coisas heróicas, as quais estão muito acima da média. O papel de um grande
número de soldados é de morrer em batalha como um bom soldado. E, talvez, o
meu seja esse. E se o sujeito olhar somente a minha história exterior é a história
de alguém que sucumbiu ao pecado. Se alguém olhar a minha história interior,
verá que é a história do soldado mais fraco, incompetente, mas que, no entanto,
lutou nessa batalha até a morte.”
A Paz que o Cristo fala é justamente a Paz do sujeito que sabe que está
lutando do lado certo da batalha. Não é a paz do sossego do seu lar. Não é a paz
de alguém que não esteja sem nenhum perigo de levar algum tiro ou de cometer
algum pecado mortal. Não é essa paz. Ele mesmo falou que quem se atribui essa
paz já não está no Espírito Santo. É a Paz de ter simplesmente a certeza de que,
nessa guerra, lutou do lado certo. É simplesmente provável e natural que eu
simplesmente morra na guerra e não veja o resultado final. Não veja a minha
própria felicidade neste mundo.
[Aluno comenta sobre o ideal de São Bernardo de humilhar-se como
escudo de Cristo, aceitando apagar-se desde que Cristo seja mais louvado.]
Professor: Os grandes heróis dessa guerra foram justamente os que
possuíam a noção de estar cometendo atos de traição e covardia durante o tempo
todo. Não eram sujeitos que perderam essa consciência. Eram simplesmente
sujeitos em que a consciência de que a raíz dos bens relativos está no Bem
absoluto era tão grande que atraía constantemente a sua atenção para o Bem
absoluto.
O que pode acontecer ao receber essas Graças interiores e espirituais?
Ele pode se ver tão interessado por essas Graças que os bens relativos perdem
muito do interesse. O sujeito que fica santo é o sujeito cuja concupiscência
concentrou-se nesses bens espirituais. Então, o pecado dele é querer esses
gozos espirituais.
Aluno: Já imaginou?
Professor: Os santos eram assim. Mas isso também é pecado. Os gozos
espirituais são bens relativos assim como os bens externos. Deus é o mesmo
aparecendo para mim ou não. Então, os santos são aqueles soldados cujo nível
de competência estava em outra categoria. Nosso pecado é assim:
“Hoje eu fiquei com preguiça de limpar a arma e não conseguir dar um
tiro”.
E pecado do santo é parar para ficar contemplando como a arma dele é
boa. Mas as duas coisas são desvios em relação ao objetivo fundamental que é
usar a arma para dar tiros nos inimigos.

O QUARTO ESTÁGIO: “BENDITO É O FRUTO DO SEU VENTRE,


JESUS”

Daí vem a quarta glória da Virgem Maria exaltada na oração da Ave


Maria:
“E Bendito é o fruto do seu ventre, Jesus”.
No sujeito em que se despertou em um grau suficiente esse atração pelos
bens interiores, estes tomam uma forma clara. [Entretanto,] quando a gente tem
um gozo na oração e procura o objeto desse gozo, a gente não encontra um
objeto definido.
“Por exemplo: estou fumando agora e se eu prestar atenção no gosto que
esse ato me dá, eu encontro a raíz em um objeto definido, o próprio cigarro.”
E o gozo espiritual não é sempre assim. Ás vezes a gente vai, procura e
não encontra um objeto definido. Então, não há um método de reprodução
definido do gozo espiritual como há um método de reprodução do gozo do cigarro:
basta comprar um outro cigarro igual. O sujeito que foi atraído pelos bens
interiores encontra nele mesmo uma forma desses gozos, uma forma da caridade.
Geralmente isso é um dos doze frutos do Espírito Santo 36, que são formas
definidas do amor divino. Uma vez que o sujeito encontra isso, aquilo lhe serve de
critério para a reprodução daquele gosto. E é por isso que é usado uma analogia
dessa forma com o próprio Filho dela. Quando ela queria recordar a forma do fruto
dela, ele via o próprio Filho. E ela via essa ponte. Isso, na verdade, acontece até
com os pecadores. Essa forma acaba se constituindo na vida dos próprios
pecadores que perseveram até o fim. Simplesmente, como não houve, da parte
dele, um esforço deliberado e consciente para retomar esse gozo, esta forma se
constitui de maneira tão natural nele, que nem se percebe que essa é uma virtude
sobrenatural nele que ele possui constantemente.
Se o sujeito passa vinte anos cumprindo uma determinada religião, ele
passa a possuir um certo tipo de virtude que ele nem percebe. Pode ser o
segundo fruto do Espírito Santo, o gozo. E toda vez que alguém o chama para
rezar o terço, surge nele um gozo que ele nem percebe como uma virtude.
Toda pessoa que pratica a religião por bastante tempo tem uma virtude
que é tão espontânea, que até parece que ela está amoldada com aquela
36
Os frutos do Espírito Santo são listados na Epístola de São Paulo aos Gálatas (capítulo 5,
versículo 22). São doze: “1- Caridade - ordena a alma no seu ato de amor, 2- Alegria -
conseqüência normal do amor verdadeiro, 3- Paz - fruto da perfeita alegria, tanto interior quanto
exterior, 4- Paciência - o equilíbrio da alma que não se perturba com o mal, 5- Bondade - boa
vontade para com o próximo, 6- Benevolência - agir procurando sempre o bem do próximo, 7-
Longanimidade - perseverança na vida da virtude, 8- Mansidão - suporta o mal sem se alterar, 9-
Fidelidade - não usa de fraude ou enganos, 10- Modéstia - bons modos nas coisas exteriores, 11-
Continência - a alma aprende a renunciar aos prazeres do corpo lícitos, 12- Castidade - a alma
conserva seu corpo e seu coração puros, fugindo dos prazeres ilícitos”. Fonte:
http://www.capela.org.br/Catecismo/bemaventura.htm. O Catecismo da Igreja Católica trata do
assunto no parágrafo 1832: http://angelgireh.tripod.com/tp02.html.
característica. Então, pode ser o gozo porque surge nele algum gosto por algum
ato da religião. Pode ser também, por exemplo, a paciência em relação a
determinado sofrimento. Há algum mal na vida dele e ele se mantém paciente,
sem sequer ver aquilo como uma virtude. Ele não vê aquilo como um dom
sobrenatural. Ele nem percebe direito que os outros não são tão constantes
naquela obra ou naquela virtude.
Um sujeito que está em processo deliberado de santificação dificilmente
não iria perceber isso. Mas na maioria das pessoas que perseveram na religião,
isso ocorrerá tão espontaneamente que Deus não deixará que ele perceba essa
virtude. A própria pessoa pensa que não, pensa que peca em todas as áreas
possíveis de sua vida. Ele não sabe que tem uma obra diante da qual ele nunca
peca.
Em outros, é a continência. Há um determinado desejo pecaminoso que
se repete na vida dele e ele sempre resiste a esse desejo devido a uma operação
sobrenatural. Nos outros desejos não é assim, às vezes ele resiste e às vezes
não.
Aluno: Isso já é o fruto?
Professor: Isso já é um fruto do Espírito Santo. É aquilo que o menino
Jesus foi para a Virgem Maria. É um ato próprio da misericórdia de Deus para o
indivíduo humano. O ser humano está em condição de miséria em relação ao
pecado. Não há uma espécie de pecado em relação a qual o ser humano possa
dizer que está, por natureza, livre de cometer. Mesmo ao receber alguma virtude
sobrenatural, estas são limitadas e não se manifestam em algumas circunstâncias.
Não existe nenhuma obra virtuosa na qual o ser humano é, por natureza,
naturalmente constante. Mas acaba surgindo uma misericórdia na sua vida. Deus
o liberta dessa miséria do pecado.
Isso é exatamente o que a esmola é para o mendigo. Este é miserável,
está em uma situação em que ele não tem os meios de obter aquilo que precisa.
Ele sta completamente destituído daquilo. E, de repente, alguém lhe dá esmola e
ele passou a ter aquilo que precisava, do nada.
Com esses frutos também é assim: o sujeito passa a ter aquela virtude e
nem percebe o que está acontecendo. Os sinais são tão sutis que, às vezes, o
sujeito não possui sequer os critérios fenomenológicos, por assim dizer, para
identificar aquilo.
Em outros sujeitos, é a fé. Todos têm algum momento de descrença em
sua vida, mas há um sujeito ou outro que se mantém firme e nem percebe. Isso é
uma coisa que é mais fácil de perceber nos outros do que em si mesmo. É mais
fácil observar nos outros uma qualidade constante do que em si mesmo.

A TENTAÇÃO NO QUARTO ESTÁGIO

Professor: Para este sujeito, que percebeu a sua virtude sobrenatural, a


tentação é achar que já é Deus. O diabo irá lhe dizer:
“Está vendo? Você já é Deus! Isso que está presente em você durante o
tempo todo é você”
Aluno: Conduzindo à soberba!
Professor: E é por isso que a imensa maioria dos fiéis passa a vida toda
sem perceber isso, porque não resistiria à tentação.

EPÍLOGO: O QUINTO E O SEXTO ATRIBUTOS

[Aluno avisa que o tempo da aula está terminando.]


Professor: Com tão pouco tempo, eu preferia não falar das outras duas
qualidades da Virgem Maria. Somente estas duas últimas gastam quase tanto
tempo quanto a gente demorou até agora. E elas são muito sutis. Elas se
manifestam de uma maneira muito sutil na imensa maioria dos fiéis. Vejam que
essa quarta qualidade ela quase já não e percebida pela maioria mesmo quando
ela já está presente. E as outras duas são do mesmo tipo, mas muito mais sutis.
Então, eu preferia não entrar nesse assunto com tão pouco tempo.
[Aluno lembra do plano de estudar temas relacionados à estética.]
Professor: Um plano interessante seria ler relatos do tipo iniciático e
identificar ali aquela esquemática apontada pelo meu pai 37.
[Alunos aprovam a idéia e perguntam qual será o livro escolhido.]
Professor: Eu sugiro um de meus favoritos: A Tempestade de
Shakespeare38.
Aluno: Vamos lá!

ANEXO I
Do livro “Símbolos e Mitos no Filme O Silêncio dos Inocentes” de Olavo
de Carvalho.

“1 – Clarice Starling, policial estagiária, exercita-se num bosque atrás da


sede de FBI, em Quantico. Chamada para uma entrevista com o chefe do
Departamento de Ciências do Comportamento, ela cruza a entrada do bosque,
onde três cartazes de madeira cravados nas árvores exortam o aspirante a
suportar a dor, a agonia e o sofrimento. Um quarto cartaz ordena: Ame.
2 – Vestida com uma blusa azul-celeste, ela sobe pelo elevador, rodeada de
sete aspirantes homens, todos de blusa vermelha.
No escritório do chefe, ela vê pelas paredes os recortes de jornal em que o
assassino conhecido como “Buffalo Bill” é apontado como autor de crimes
hediondos: pela quinta vez, ele acaba de matar uma jovem e esfolar o cadáver,
abandonando-o num rio.
O chefe, Jack Crawford, que fora professor de Clarice na universidade,
propõe a ela um serviço que pode ajudá-la a obter uma promoção para agente
especial: fazer um perfil psicológico de outro assassino, Hannibal Lecter, que está
preso no manicômio judiciário. Lecter, famoso psiquiatra, se tornara ainda mais
célebre pelo caráter monstruoso de seus crimes: ele matava as pessoas a
dentadas e comia partes do corpo das vítimas, sendo por isso apelidado
“Hannibal, o Canibal” (Hannibal the Cannibal, o que em inglês rima). Por seus
conhecimentos e sua astúcia, Lecter era um tipo difícil para os psicólogos do
manicômio e não colaborava com as tentativas de sondar sua mente.
Clarice aceita a oferta, e Crawford lhe adverte que tome muito cuidado com
Lecter, evitando especialmente contar a ele qualquer coisa de sua vida pessoal.
3 – Acompanhada pelo Dr. Frederick Chilton, diretor do manicômio, um
fanfarrão metido a conquistador, Clarice desce ao porão do manicômio para
entrevistar-se com Lecter. Como Chilton diz que Lecter o odeia e o considera sua
37
O professor Luiz está pensando nas idéias que aparecem nos anexos desta transcrição [N.T.].
38
A próxima aula ficou marcada para o dia 22 de abril de 2007, data que, por coincidência, é
véspera do aniversário de falecimento de Shakespeare e mesma data em que ele comemorava o
seu aniversário (apesar de ter sido registrado no dia 26 de abril) [N.T.].
Nêmesis, Clarice prefere fazer a entrevista sozinha. Ela atravessa o “corredor da
morte”, onde loucos assassinos a espreitam de dentro das grades. Um deles,
Miggs, apelidado “Miggs Múltiplas” (subentendendo-se: “Múltiplas Ereções”), lhe
grita obscenidades.
No fim do corredor, ela avista o Dr. Hannibal, numa cela que, em vez de por
grades (por onde ele poderia enfiar as mãos), está separada do corredor por um
grosso vidro blindado, com buraquinhos para a respiração.
Muito polido, mas com um sorriso maligno, Lecter procura sondar a mente
de Clarice em vez de se deixar sondar por ela. Por um breve exame de suas
roupas e pelo cheiro do perfume ele traça seu perfil socioeconômico e daí conclui
traços de sua personalidade: por trás de seu “bom gosto adquirido” e de sua
aparência de profissionalismo e maturidade, ele revela em Clarice a mocinha
interiorana tímida e ambiciosa.
Clarice aceita sem objeções o perfil traçado e, reconhecendo o saber
psicológico de Lecter, diz que deseja aprender com ele. Lecter diz então que
Crawford, no fundo, não a enviara ali senão para obter informações psicológicas
sobre Buffalo Bill. Apesar das amabilidades, Lecter recusa responder aos testes
que Clarice lhe entrega, reage com impaciência quando ela o desafia a conhecer-
se a si mesmo tão bem quanto conhecia a ela, e se despede dela em tom de
arrogância desdenhosa.
Quando Clarice vai saindo pelo corredor, Miggs Múltiplas procura chamar
sua atenção, dizendo que acabava de morder o próprio pulso para se suicidar. Ela
chega perto para olhar e, mal acaba de reparar que Miggs está se masturbando,
recebe em cheio um jato de esperma no rosto.
Lecter, do fundo do corredor, percebe o que se passa, chama Clarice de
volta, pede-lhe desculpas pela grosseria de Miggs e oferece-lhe algo como um
prêmio de consolação pela tentativa fracassada de sondá-lo: enfatizando a frase
“Olhe dentro de si mesma”, ele lhe fornece o nome de uma de suas ex-pacientes,
Miss Mofet (dando a entender que era uma pista para pegar Buffalo Bill).
4 – Ela sai da entrevista perturbada, e passam por sua mente recordações
de seu pai, um policial morto por bandidos quando ela tinha dez anos.
No dia seguinte, ela fica sabendo por Crawford que Miggs se suicidara
durante a noite, induzido por Lecter.
Clarice investiga o caso Hannibal, mas, como o psiquiatra destruíra seu
arquivo, ela nada descobre sobre a tal Miss Mofet. Lembrando-se, entretanto, da
expressão “olhe dentro de si mesma”, ela tem a idéia de ir investigar um conjunto
de depósitos chamado Yourself (“você mesma”), e aí descobre um armazém
alugado anos antes por uma Miss Hester Mofet, o qual permanecera fechado
desde então.
No depósito, ela encontra, entre velhos álbuns de fotografias e manequins
vestidos com roupas femininas extravagantes, uma cabeça humana decepada,
conservada num vidro de formol.
5 – Ela volta ao porão para uma segunda entrevista com Lecter. Quer saber
por que ele a ludibriou ao mesmo tempo que a ajudou: afinal, segundo ela
descobrira, Miss Hester Mofet não existia, era apenas um anagrama de the rest of
me (“o resto de mim”). De quem era o cadáver?
Lecter cumprimenta-a por sua argúcia, e lhe informa que a cabeça era de
um seu ex-paciente, Benjamin Raspail, que fora amante de Buffalo Bill, então “um
assassino principiante em mutação” (Lecter não explica o que quer dizer com isto).
Lecter, ao mesmo tempo que oferece ajuda para capturar Buffalo Bill,
continua a tentar sondar a mente de Clarice. Desta vez quer saber do interesse
sexual de Crawford por ela. Como sempre, ela responde com franqueza.
No fim da entrevista, Lecter diz que Buffalo Bill já está no encalço da
próxima vítima
6 – Buffalo Bill seqüestra sua nova vítima. Após desacordá-la, rasga sua
blusa e, extasiado, examina a pele das costas. A única testemunha do seqüestro é
um gatinho.
7 – Novamente Clarice interrompe um treino para atender ao chamado de
Crawford. Ele a convoca para fazer a autópsia de um cadáver de moça,
encontrado sem pele e boiando num rio em West Virginia.
No caminho, Clarice esboça teorias sobre a psicologia de Buffalo Bill.
Crawford admite implicitamente que não a mandara entrevistar Lecter senão com
o propósito de obter informações sobre o assassino das moças, desculpando-se
de não a haver informado sobre o intuito da missão: ele explica que, se ela
estivesse consciente desse propósito, Lecter poderia ler seus pensamentos e
manipulá-la.
No velório de Elk River, West Virginia, Clarice fica na sala, rodeada de sete
guardas de uniforme preto, enquanto Crawford conversa com o delegado local.
Num compartimento contíguo há pessoas acompanhando o velório de um morto
jovem. Clarice novamente lembra-se do pai.
Com a ajuda de Crawford e de funcionários locais, Clarice faz a autópsia da
moça encontrada. Na garganta da vítima, ela encontra um casulo de mariposa,
que não teria podido ir parar ali naturalmente.
8 – Num Museu de História Natural, um entomologista identifica para
Clarice o casulo: pertence a um tipo de mariposa, a Acherontia styx, que vive na
Ásia e só pode ter vindo parar em West Virginia pelas mãos de algum criador.
Enquanto isso, na casa de Buffalo Bill, ouve-se uma voz desesperada que,
do fundo de um poço, clama por socorro.
9 – Pela TV, Clarice fica sabendo que a moça recém-seqüestrada por
Buffalo Bill (a sétima vítima) ainda deve estar viva: é Catherine Martin, filha da
senadora Ruth Martin, que, por uma rede nacional, emite dramáticos apelos à
compaixão e generosidade de Buffalo Bill.
10 – Clarice volta pela terceira vez ao porão do manicômio, onde aplica um
ardil concebido por Crawford: diz a Lecter que a senadora lhe oferecia a
transferência para uma prisão mais confortável se ele ajudasse a capturar Buffalo
Bill. Lecter, curioso e verdadeiramente fascinado por Clarice, propõe uma troca:
taco a taco (quid pro quo, como ele diz), ele dirá tudo o que ela deseja saber sobre
Buffalo Bill, se ela disser tudo o que ele deseja saber sobre ela. Contrariando as
instruções de Crawford, ela aceita. Começa então a falar de sua infância, narra a
morte da mãe e do pai, e sua vida infeliz de órfã em casa de parentes.
Em troca, Lecter diz que a mariposa é um símbolo de transformação.
Buffalo Bill aspira à transformação e à beleza. Ele não é assassino de nascença;
tornara-se assassino graças a “maus tratos sistemáticos” sofridos na infância.
Odiava sua identidade e procurava mudá-la. Imaginava-se um transexual, mas
não o era. Era, no fundo, algo de inquietante e sinistro.
11 – Buffalo Bill, em casa, está costurando alguma coisa a máquina. Do
fundo do poço, os gritos soam cada vez mais angustiados. Indiferente aos gritos,
Buffalo Bill joga um vidro de loção ao fundo do poço, ordenando que Catherine
passe a loção nas costas. Catherine, enlouquecida de medo, obedece.
12 – O Dr. Chilton, que, enciumado por ver-se excluído das investigações,
gravara por um microfone escondido a última conversa de Clarice com Lecter,
resolve tirar proveito da situação. Entra em contato com a senadora, denunciando
o ardil em que Crawford envolvera o nome dela, e obtém dela uma oferta similar,
desta vez autêntica. Prevendo o sucesso e prestígio que obterá com esta
manobra, ele transmite a oferta a Lecter. Este aceita, mas exige um encontro
direto com a senadora.
13 – Em camisa de força e com uma máscara de hóquei à guisa de
focinheira – o que lhe dá uma aparência monstruosa, compatível com a sua
psique –, Lecter tem um encontro com a senadora no aeroporto de Memphis,
Tennessee. Ele lhe dá informações falsas sobre a identidade e o paradeiro de
Buffalo Bill e ainda faz com ela um gracejo sinistro sobre um de seus seios, que,
segundo ele percebe, fora extirpado logo após a amamentação de Catherine. A
senadora fica profundamente abalada.
14 – Lecter é transferido para uma jaula no 5 o andar do Fórum do Condado
de Shelby, Tennessee, enquanto aguarda remoção para a cadeia mais confortável
que lhe fora prometida.
Clarice vai procurá-lo, contra a vontade dos guardas, para protestar pela
falsidade das informações dadas à senadora (ela percebera que o nome fornecido
por Lecter era apenas um anagrama de sulfeto de ferro, a pirita ou “ouro dos tolos”
– fora tudo uma piada). Ela exige a informação verdadeira. Lecter lembra o seu
trato, e exige por sua vez novas informações sobre a infância de Clarice. Clarice,
angustiada pela urgência, pois sabe que em poucos minutos virão buscar Lecter,
consente em responder.
Ela conta então que, na fazenda onde fora morar após a morte do pai,
despertou uma noite ouvindo gritos de medo. Foi até o celeiro, e verificou que os
gritos vinham de cordeiros e ovelhas que estavam sendo abatidos pelo fazendeiro.
Então ela abriu o portão para os cordeiros fugirem, mas, atarantados, eles não
fugiram: ficaram apenas ali, gritando. Clarice pegou um deles no colo e fugiu com
ele para o mato, na esperança de poder salvar pelo menos um. Mas foi inútil: a
polícia acabou por apanhá-la, e o cordeiro, devolvido ao dono, foi abatido como os
outros.
Lecter diz então que, ao tentar salvar Catherine das mãos de Buffalo Bill,
Clarice está tentando repetir a utópica boa ação da infância: salvar todo o rebanho
numa só ovelha. Ele adivinha que ela, ainda agora, acorda às vezes de
madrugada ouvindo o grito aterrorizado das ovelhas. Clarice, como sempre,
admite que ele tem razão.
Quando Clarice lhe cobra sua parte no acordo, Lecter começa a falar sobre
Buffalo Bill. Ele recomenda a Clarice, citando o filósofo Marco Aurélio, que se
atenha à essência do problema, descartando o acidental. O assassino, em Buffalo
Bill, é acidental: o essencial é a cobiça, e “só cobiçamos o que vemos com
freqüência”.
Quando Clarice exige enfim o nome do assassino, é demasiado tarde: o Dr.
Chilton já vem entrando com os guardas para retirá-la.
Puxada para fora pelos guardas, Clarice, aos gritos, cobra ainda de Lecter o
nome do assassino, e ele lhe responde, com tranqüilidade enervante, que tudo já
está no dossiê sobre Buffalo Bill que lhe fora entregue pela própria Clarice. Ela
desvencilha-se dos guardas e volta correndo para apanhar os papéis da mão de
Lecter. Este então aproveita para tocar, com o dedo indicador, a mão de Clarice.
15 – Lecter é bem tratado em sua nova residência. Em sua jaula de Shelby
ele tem livros, um gravador que toca as Variações Goldberg, de Bach, e boa
comida. Sobre a mesa, estão seus desenhos (ele é artista exímio): um deles
mostra Clarice, com um halo de luz em torno da cabeça e um cordeirinho no colo.
Como um ícone.
Lecter pedira um segundo jantar, e os guardas vêm trazê-lo: costeletas de
carneiro mal passadas. O que eles ignoram é que Lecter, sabe-se lá como,
roubara uma caneta do Dr. Chilton e com a presilha fizera uma chave. Quando
eles o algemam num canto da jaula para colocar a bandeja sobre a mesa, ele
facilmente se liberta, algema um dos guardas nas grades da jaula e avança sobre
o outro, matando-o a mordidas, sacudindo sua cabeça entre os dentes como um
cão que devora um rato. Em seguida volta-se contra o outro e o mata a pauladas.
Ouvem-se tiros, soa o alarme. Um valente sargento avança pelos
corredores, armado, e ao chegar à jaula vê, horrorizado, um dos guardas
crucificado nas grades, com o rosto dilacerado e as tripas à mostra, enquanto o
outro agoniza no chão.
Uma equipe da SWAT vasculha o prédio em busca de Lecter. Encontram no
teto do elevador um corpo que julgam ser de Lecter, mas, enquanto isso, Lecter,
na ambulância, tira o escalpo de um dos guardas, com que cobrira o próprio rosto,
e devora os paramédicos, fugindo. Fora ele quem disparara os tiros, para pôr a
polícia na pista falsa, vestindo-se de guarda em seguida.
16 – Clarice conversa com a amiga Ardelia Mapp, e assegura que Lecter
não virá procurá-la, pois seria “demasiado vulgar para ele”. Ardelia encontra no
dossiê uma anotação de Lecter, sobre o mapa que mostrava os lugares onde se
tinham encontrado os cadáveres das vítimas de Bill. O computador não encontra
nenhum padrão de regularidade na distribuição desses locais, e Lecter escrevera:
“Não parece haver uma desordem proposital na escolha dos locais?” Isso era
tudo.
Trocando idéias com Ardelia, Clarice lembra-se da frase de Lecter: “Só
cobiçamos o que vemos com freqüência.” Ela puxa do dossiê a fotografia da
primeira vítima de Bill, Frederika Bimmel. “Então ele a conhecia!”, exclama Ardelia.
17 – Clarice dá uma busca na casa de Frederika. Um gatinho mia
procurando a dona. No quarto, Clarice vê um vestido formado, nas costas, de um
padrão de losangos, iguais ao formato dos cortes feitos na pele de uma das
vítimas. Frederika era costureira. De súbito, tudo se esclarece: Bill era costureiro
também, conhecia Frederika de algum lugar. Ele estava fazendo “vestido de
mulher” com a pele das vítimas. Rejeitado nos centros de cirurgia para mudança
de sexo por não apresentar os traços de personalidade do autêntico transexual,
ele estava procurando fazer com seus próprios meios a “transformação” a que
aspirava.
18 – Clarice comunica o resultado das investigações a Crawford, mas este,
a bordo de um avião, já está indo para a cidade de Calumet City, Ohio, onde
acredita localizar Buffalo Bill. Já tem a identidade dele: chama-se Jame Gumb, é
de fato costureiro, e é criador de mariposas. Crawford localizara na alfândega um
carregamento de ovos de mariposa Acherontia styx, remetido a Jame Gumb,
Calumet City. Buffalo Bill só pode estar lá. Crawford agradece a Clarice a ajuda, e
o avião começa a aterrissar.
Em Calumet City, monta-se um vasto esquema para a invasão da casa de
Gumb e o regaste de Catherine. Enquanto isso, nos arredores da casa de
Frederika, Clarice continua a investigar. Descobre que Frederika trabalhava para
uma Mrs. Lippman, e vai procurar sua casa.
Em Calumet City, a SWAT arromba a casa de Gumb, e encontra tudo vazio.
Na casa da Sra. Lippman, soam os gritos de Catherine, no porão. Ela acaba de
agarrar a cadelinha de estimação de Gumb, e ameaça matá-la se Gumb não a
libertar ou não lhe entregar um telefone para ela chamar a polícia. Gumb, num
acesso de fúria, vai buscar seu revólver para dar cabo de Catherine. De sob uma
bandeira nazista jogada entre os manequins e vestidos, ele retira um enorme Colt
niquelado, e está voltando ao poço quando soa a campainha. É Clarice.
Gumb atende-a com tranqüilidade, diz que comprara essa casa da Sra.
Lippman dois anos antes, e, quando a pedido de Clarice ele vai vasculhar uns
cartões de visita para achar o endereço do filho da Sra. Lippman, Clarice vê uns
carretéis de linha sobre a mesa e, esvoaçando em torno deles, uma mariposa
Acherontia styx. Ela saca o revólver e dá voz de prisão a Gumb, mas este foge
pela cozinha, apanha o Colt e desaparece pelo porão.
Clarice, de arma em punho, vasculha o porão sombrio, encontra numa
banheira uma espécie de múmia (a Sra. Lippman), e enfim encontra Catherine,
que grita por socorro enquanto a cadelinha não pára de latir. Clarice continua
procurando Gumb, e as luzes se apagam. Ela tateia no escuro enquanto Gumb a
espreita por trás de binóculos militares infravermelhos. Ela treme e se encosta à
parede. Gumb, na escuridão, quase lhe toca os cabelos. De repente ela ouve o
clique do Colt que Gumb engatilha, e, sem ver nada, dispara nessa direção toda a
carga de sua Magnum. Um dos tiros atinge a janela, e, pela luz que entra, ela vê
Gumb, que agoniza no chão.
A polícia chega, e Catherine é libertada, saindo amparada pelos guardas,
enrolada num cobertor, e com a cadelinha branca de Gumb no colo. Clarice vem
logo atrás.
19 – No Ministério da Justiça, os novos agentes especiais do FBI, entre eles
Clarice e Ardelia, recebem seus diplomas. Crawford, modesto, assiste do fundo do
corredor.
Depois os colegas oferecem uma festa em homenagem a Clarice.
Crawford, discreto, diz a ela que não é de festas e que tem de ir embora. Ele a
cumprimenta, dizendo com emoção contida que o pai dela se orgulharia do que
ela fez. Em seguida eles se despedem. Vemos-lhes as mãos, que se tocam.
Clarice é chamada ao telefone. É o Dr. Lecter. Diz que não vai procurá-la,
porque “com ela o mundo é mais interessante”, e pede que ela também tenha a
fineza de não o procurar. Ela responde: “O senhor sabe que isso eu não posso
prometer.” Lecter se despede, dizendo que está esperando um amigo “para o
jantar”, e desliga. Clarice chama-o, mas o telefone está mudo.
O Dr. Lecter, disfarçado de turista, aparece em algum lugar da África ou do
Haiti. De um avião desembarca, todo preocupado com a segurança, o “amigo” que
ele espera “para o jantar”: é o Dr. Chilton. Lecter segue-o de longe.”

ANEXO II
Do livro “Símbolos e Mitos no Filme O Silêncio dos Inocentes” de Olavo
de Carvalho.

“Mas, aqui, o modelo ternário dos Autos medievais aparece revisto e


potencializado pelo acréscimo de um toque original, que o cura do seu
esquematismo congênito, da sua “ingenuidade”, e lhe dá uma força dramática fora
do comum: é que cada um dos três arquétipos – Cristo, Diabo e Homem – não
aparece simplesmente representado por uma personagem, mas duplicado,
desdobrado em dois aspectos opostos e complementares, formando o seu
encontro um cruzamento altamente explosivo de três eixos de contradições. Mais
do que qualquer explicação, um diagrama pode dar conta da estrutura complexa e
firmemente amarrada desta história.
Este diagrama deve ser imaginado como um disco horizontal, atravessado
por um eixo vertical I e cortado horizontalmente por outros dois eixos, II e III:
CARNEIROS
1
3 2
CRAWFOR LECTER
D

GUMB CLARICE

BODES

O Eixo I é o da culpa e da inocência: em cima, as vítimas de Gumb; em


baixo, as de Lecter.
O Eixo II representa o Mal, o III o Bem. Mas o disco horizontal tem também
uma parte branca, que representa o Espírito, ou as forças universais, e uma parte
escura, que representa o mundo da corporalidade, onde se desenrolam as ações
particulares. Há portanto um mal espiritual (Lecter) e um mal corporal (Gumb), que
disputa com um bem espiritual (Crawford, ou do conhecimento) e com um bem
corporal (Clarice, ou a ação moral) a posse da alma, dividida por sua vez entre a
culpa (bodes) e a inocência (carneiros). O ponto central ou neutro, não é preciso
dizer, é Catherine, que tem em si a potência da culpa e da inocência.
Creio que não é preciso explicar mais detalhadamente esse
diagrama, que fala por si.”

ANEXO III
Do livro “Símbolos e Mitos no Filme O Silêncio dos Inocentes” de Olavo
de Carvalho.

“Epopéias sacras e mitológicas são aqueles poemas narrativos que, para toda
uma civilização, têm o prestígio de verdades reveladas; no início dos tempos, eles
fixam a cosmovisão, os valores, as leis e os princípios educacionais que vão
orientar os homens e moldar os costumes enquanto durar essa civilização.
Narrativas iniciáticas são histórias inventadas em época mais tardia, e que, sem
terem a autoridade de revelações primordiais, são admitidas, por certos grupos ou
indivíduos, como uma espécie de ensinamento espiritual ou religioso. As
narrativas iniciáticas versam geralmente sobre aspectos ou partes das epopéias
sacras, que elas prolongam, ilustram, comentam e especificam, adaptando o
fundo da mensagem espiritual à mentalidade e linguagem de uma nova época.
Elas revigoram e atualizam certas potencialidades espirituais contidas na
revelação, que arriscariam enfraquecer-se à medida que a passagem dos tempos
e as mudanças da linguagem vão dificultando às novas gerações a compreensão
direta da epopéia sacra. São narrativas iniciáticas a Divina Comédia, de Dante, A
Flauta Mágica, de Mozart, o Fausto, de Goethe, a tragédia grega em sua
totalidade, Os Lusíadas, de Camões, A Rainha das Fadas, de Spenser; e, em
nosso tempo, José e seus Irmãos, de Thomas Mann. São epopéias sacras os
poemas de Homero, o Baghavad-Gita, o Corão, o Antigo Testamento, os
Evangelhos etc.
A diferença entre epopéia sacra e narrativa iniciática consiste
fundamentalmente em que os heróis da primeira são deuses, semideuses ou, num
quadro monoteísta estrito, aspectos de Deus ou forças de origem divina. Os heróis
da narrativa iniciática, sem terem poderes divinos nem falarem diretamente em
nome de Deus, são seres humanos de excepcional envergadura, protegidos ou
guiados de perto por forças divinas, cuja presença e atuação no mundo eles
representam de maneira mais ou menos sutil e indireta.
Tanto na epopéia sacra quanto na narrativa iniciática as personagens de
mestres ou gurus representam sempre o Espírito divino, que conhece tudo de
antemão e dirige do alto a caminhada de um discípulo, o qual personifica a Alma
humana em vias de se espiritualizar ou divinizar. Uma diferença marcante entre os
dois gêneros é que, na epopéia sacra, o mestre é o Espírito divino, de modo literal
e integral (na Odisséia, Mentes é Minerva, deusa da sabedoria; no Baghavad Gita,
Krishna é um aspecto de Brahma etc.); ao passo que, na narrativa iniciática, a
personagem do mestre é apenas um ser humano ligado mais ou menos de perto a
um saber divino; é um sacerdote, um mago, um sábio, e não um ser divino; por
isso, guiando “divinamente” o discípulo, não está isento de falhas humanas. Por
exemplo, Merlin, no Santo Graal, perde temporariamente a parada para Morgana
Le Fay; Sarastro é temporariamente derrotado pela Rainha da Noite etc.
A narrativa iniciática, embora possuindo leis estruturais que a
definem, pode ser enxertada numa infinidade de gêneros narrativos: na literatura
novelística, no teatro, na poesia épica ou no cinema. Sua estrutura profunda é
compatível com os revestimentos mais diversos, do fantástico ao “realista”. Os
únicos elementos indispensáveis são o mestre, o discípulo, o adversário, e as
peripécias que purificam a alma do discípulo ou lhe revelam um conhecimento. O
adversário pode ser uma pessoa (como na Flauta Mágica a Rainha da Noite) ou
uma situação adversa e diabólica que desafia a inteligência do herói ou tenta sua
alma, como no Processo Maurizius, de Jakob Wasserman. O mestre também pode
ser uma personagem de carne e osso (como Sarastro), uma alusão mitológica
(Vênus em Os Lusíadas) ou um simples aspecto superior da alma do próprio
discípulo (o mágico pressentimento que guia Etzel Andergast no romance de
Wasserman). O ponto que interessa, o critério diferencial que nos certifica de
estarmos em presença de uma narrativa desse gênero, não é o conteúdo material
dos eventos, mas a relação entre as forças, em suma: a estrutura da trama.”

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