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AVE MARIA
INTRODUÇÃO:
O MODELO DAS NARRATIVAS SOBRE A TRANSFORMAÇÃO DA ALMA
1
Transcrição, títulos, notas e trechos entre colchetes feitos por Carlos Eduardo de C. Vargas em
março de 2007. Versão não revista pelo autor da aula [N.T.].
2
Domingo de Ramos [N.T.].
3
Aqui o professor Luiz está fazendo referência ao livro de seu pai, o filósofo Olavo de Carvalho,
sobre o simbolismo do filme O Silêncio dos Inocentes. O resumo do enredo deste filme está no
anexo I. O comentário do modelo ternário está no anexo II [N.T.].
4
Conferir anexo III com explicação detalhada das narrativas iniciáticas [N.T.].
celestes e infernais, em uma obra literária, por vetores que parecem do mesmo
tipo, tendo simplesmente direções contrárias.
Mas o processo mesmo de transformação da alma consiste em mudar o
ponto de vista pelo qual se percebe a realidade. Se as forças celestes e infernais
parecem, no início, duas forças atuantes no mesmo plano, no final as forças
celestes aparecem para a alma como o próprio eixo da realidade e as forças
tenebrosas como um eco distante na periferia da realidade. Isso é indicado no
filme O Silêncio dos Inocentes na situação inicial da Clarice em relação ao chefe
dela e ao psicopata que ela precisa entrevistar 5. Ele se aproxima dos dois quando
precisa conversar com eles, mas, no final do filme, ela está junto com o chefe e o
psicopata está em um local muito distante, incapaz de exercer alguma ação sobre
ela.
O mesmo acontece em qualquer processo de transformação da alma. Em
qualquer processo de assimilação de uma virtude, duas possibilidades de ação
iniciais que era inicialmente consideradas equivalentes, [são vistas em outra
perspectiva] e, no final, uma delas passa a ser considerada natural e espontânea
para o sujeito e a outra se mostra estranha a ele.]
Podemos relacionar isso com o tema da oração da Ave Maria porque os
atributos da Virgem, que são mencionados na prece, correspondem aos diversos
graus em que a alma se afasta dessa situação de estar entre duas forças
equivalentes e passa para um centro onde as forças já não são proporcionais.
CHEIA DE GRAÇA
5
Conferir o resumo da história no anexo 1 [N.T.].
O SENHOR É CONVOSCO
6
Estou descrevendo esses atributos e estágios de maneira resumida porque provavelmente vocês
já podem fazer relações com as aulas anteriores.
7
E ao terceiro atributo principial [N.T.].
divina. Então, Deus lhe aparece como privação. Deus aparece para o sujeito como
essa periferia distante do mundo. Deus está em algum lugar do Céu e eu estou
aqui na Terra. É como se o sujeito imitasse esse modo de privação pelo qual Deus
lhe aparece, e decide-se privar dos atos contrários a Deus.
Esse processo de transformação consiste simplesmente em um processo
de imitação do modo pelo qual Deus aparece ao sujeito em cada momento.
Quando o sujeito toma consciência dos seus pecados, Deus lhe aparece como
algo do qual ele está privado. Por isso que o primeiro movimento é de
esvaziamento.
Aluno: Em Maria isso já está pleno.
Professor: Desde a concepção. Quando se diz Cheia de Graça,
distingue-se a Virgem de todos os outros mortais comuns. Por mais que alguém
se esvazie de seus pecados, a pessoa nunca se esvazia completamente. A
plenitude da Graça é proporcional a uma pureza completa 8. Uma pureza relativa
somente admite uma presença relativa da Graça. Esta é a substância fundamental
das coisas. A Graça é uma espécie de plano de fundo da existência. Na medida
em que o plano mais próximo se destaca na sua mente, o plano de fundo
desaparece. Na medida em que a sua atenção está voltada mais fortemente para
a realidade mais imediata, a raíz 9 dessa realidade mais próxima parece
desaparecer do cenário. Na medida em que você presta atenção em um objeto, a
sala como um todo, na qual está o objeto, parece sumir da sua atenção.
É neste primeiro momento que Deus aparece ao sujeito como
equivalente ao diabo, como se pudesse interferir em sua ação da mesma forma
que o diabo. Se Deus aparecesse ao sujeito como a única força capaz de
persuadí-lo, ele não teria nenhuma dúvida entre o bem e o mal. Se a realidade se
aparecesse desde o começo tal como é, o sujeito não teria nenhuma inclinação
para agir de modo contrário à realidade.
8
Por isso que Nossa Senhora, concebida sem pecado original, é completamente Cheia de Graça,
de tal forma que até o arcanjo Gabriel veio honrá-la por esse atributo, como é descrito no
Evangelho de São Lucas. Ela é tão pura que merece ser descrita como a própria Imaculada
Conceição, como se apresentou a Santa Bernadete em Lourdes em uma aparição que completará
150 anos em 2008 [N.T.].
9
A qual é justamente a Graça como plano de fundo da existência, como o professor explicou acima
[N.T.].
É justamente porque Deus aparece como uma privação ou uma ausência
para o sujeito, que o diabo pode lhe aparecer como uma presença 10, como se
fosse uma força equivalente na alma do sujeito. Em uma narrativa iniciática, do
ponto de vista da ação das forças celestes e infernais, eles nunca se confundem
como forças no mesmo plano. Para o representante das forças celestes, é sempre
evidente que a força infernal não passa de um epifenômeno da sua própria
presença no mundo. No filme O Silêncio dos Inocentes, para o Crawford, que é o
chefe de Clarice, o psicopata nunca aparece como um oponente. Ele aparece
como algo no mesmo plano que Clarice. Entre eles, cada um sabe mais ou menos
o seu papel. O diabo sabe que não é o equivalente de Deus e vice-versa, mas
pode parecer que são equivalentes para a alma que está nesse primeiro estágio.
Aluno: Eles são apenas opções de ir por um caminho ou por outro.
10
Como o mal é uma ausência, se o bem também parece uma ausência nesse primeiro estágio,
ambos, bem e mal. podem ser imaginados no mesmo plano, mudando apenas a inclinação do
vetor [N.T.].
11
A primeira etapa exige uma conversão (metanóia), como São João Batista pregava no deserto,
preparando os caminhos para a vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo, o fruto esperado, e como a
Igreja ensina especialmente durante as liturgias do Advento e da Quaresma, marcados pela cor
roxa [N.T.].
história. Assim, ele pretendia lhe mostrar que ela era apenas os componentes
instintivos dessa história e que nunca poderia transcender isso. Quando ele lhe
pede que conte sua história, ele simplesmente quer trazer essa história para a
mente dela a fim de mostrar-lhe que ela é aquela história, como se ela não fosse
um sujeito que, em parte, se reduz a aquela história e, em parte, transcende
aquela história porque a molda.
Aluno: O diabo quer reduzir ao homem.
Professor: Ele quer reduzir o homem aos seus componentes que lhe são
impotentes em relação à sua própria história pessoal. Ele quer reduzir o homem
aos seus componentes que são uma conseqüência do meio e da história, fazendo
com que o homem esqueça que, em si, há componentes que transcendem isso e
podem reorganizar esse conjunto dando um novo rumo àquela história.
A primeira proposta12 que o diabo faz é:
“Você não pode mudar seu rumo, porque esse rumo é o seu ser. Mudar
de rumo é deixar de ser. Se você aceitar a proposta divina e renunciar ao pecado,
você estará renunciando a você. É você que se apagará. 13”
Aluno: Uma proposta historicista.
Professor: Justamente. É como se pedir para um homem renunciar ao
rumo da sua vida como um todo fosse a mesma coisa que pedir para um animal
renunciar a todos os instintos que lhe mantém vivo. Se o homem se reduzisse a
esses instintos, seria exatamente a mesma coisa e aceitar a proposta divina seria
uma auto-aniquilação. Mas como os instintos possuem um papel apenas
instrumental para o indivíduo humano, essa proposta será a auto-realização, em
vez da aniquilação. O sujeito humano é o que ele faz com os seus instintos. Não é
apenas um efeito de seus instintos.
12
Ou contra-proposta que o diabo oferece depois que Deus ofereceu uma proposta nesse primeiro
estágio.
13
Sendo pai da mentira, o diabo se faz de bonzinho, como se não quisesse tiranizar e escravizar a
alma, mas como se quisesse salvá-la justamente das propostas divinas que, segundo essa
proposta diabólica, levariam a alma à perdição do apagamento. É uma lógica invertida e perversa
que procura enredar a alma em uma rede de mentiras para que ela possa ser arrastada ao inferno
[N.T.].
Aluno: Não é apenas o resultado das circunstâncias. Eu sou eu e minhas
circunstâncias14. Não somente as circunstâncias, nem somente eu.
Professor: Isso nos dará outra nota das narrativas iniciáticas. O
protagonista principal é sempre a própria alma. Nem Deus, nem o diabo aparecem
como o personagem principal. Porque a narrativa iniciática é justamente a história
desse eu amoldando-se ao Espírito e amoldando os instintos em relação a si
mesmo15. Em toda vida humana, o personagem principal é você mesmo. Não há
como você fazer de outra pessoa o personagem principal [da vida que você está
vivendo] porque você não consegue receber exatamente as mesma influências
espirituais que o outro recebe e porque você não consegue amoldar os instintos
do outro a esta influência.
Cheia de Graça se refere a uma perfeição de esvaziamento. A uma
consciência plena da disparidade16 entre a individualidade humana e o conjunto de
instintos ou o aparato material ou quase-material que substancia essa
individualidade nesse mundo. E isso, então, quase sempre se manifesta como
uma ruptura com os rumos de sua história anterior.
Até o momento em que o sujeito se descobre como um individuo diante
das influências celestes, todos os projetos e rumos que ele deu para a sua vida
estão sobrecarregados da sua vida instintiva. É comparável à situação do sujeito
que precisa escolher uma posição social. Por um lado, ele precisa fazer essa
escolha pensando em atender necessidades básicas de alimentação, vestuário,
etc. Também há a família dele afirmando para ele que ele precisa fazer essa
escolha porque não pode mais depender dos outros, precisa ter uma autonomia
financeira, etc. Por outro lado, ele não pode escolher somente com base nesse
fatores. Se escolher somente com base nisso, ele já deu o primeiro passo para se
apagar e deixar de existir. Ele precisa escolher procurando dentro dele algum
princípio de identificação interna com aquilo que escolherá.
Isso não é uma escolha espiritual, mas é um símbolo desta escolha.
Quando o sujeito faz esta escolha, está movido por pressões vindas do plano
14
O aluno estava citando a frase do filósofo Ortega y Gasset: “Eu sou eu e minhas circunstâncias”
[N.T.].
15
Isto é, sendo passivo em relação a Deus e sendo ativo em relação ao mundo [N.T.].
16
Ou da não-identidade.
instintivo, mas precisa incluir nessa escolha elementos vindos da sua própria
identidade e da sua própria consciência de si mesmo.
Por mais estreito que seja a faixa das escolhas que o sujeito possui,
dentro dessa faixa estreita, o sujeito precisa escolher uma que representa a
identidade dele para ele mesmo. Em caso contrário, ele escolherá não ter uma
história para si mesmo, mas continuar uma outra história.
Aluno: É um caminho.
Professor: Esse caminho começa quando o sujeito percebe que possui
uma identidade distinta. É como acontece quando o sujeito percebe que é
responsável pelos seus próprios atos e que estes não possuem uma explicação
anterior a si mesmo. Antes disso, na adolescência, a tendência do sujeito é dar
uma explicação exterior a si mesmo para os seus atos. Ele não justifica seus atos
percebendo-se como sujeito deles.
Se alguém lhe pergunta: “por que você foi ao baile?”, ele provavelmente
dirá: “porque no baile toca música bonita” ou “porque todos meus amigos também
vão ao baile.”
Ele não olha em si, mas olha no objeto. Ele não percebe que as duas
opções estavam em si e a escolha veio dele, não do objeto. Quando o sujeito vive
sua vida assim, não está escrevendo a própria história, mas a história das
influências dos objetos sobre ele. A história é dele, mas ele não percebeu que a
história é dele. Enquanto ele não se dá conta, a história dele pode, na prática,
reduzir-se à história da influência dos objetos. Podem existir histórias humanas
que sejam explicáveis pelas influências dos objetos.
Aluno: E ele nunca se dá conta.
Professor: A história dos animais pode ser quase completamente contada
como história [das influências] do cenário, do habitat.
“Como uma alcatéia de lobos ficou diferente de outra? Simplesmente
porque uma comeu algo que havia no habitat, onde havia tais predadores e tais
presas. E a outra alcatéia possui uma história diferente porque possuía comida,
predadores e presas diferentes.”
É notável a universalidade do absolutismo moral na história humana.
Mesmo quando era inconveniente para os povos, eles se mantinham na postura
do absolutismo moral, o que prova que a história dos povos não se reduz à
influência do ambiente em que se vive.
Quando o sujeito se dá conta de que é o autor da sua história, essa
autoconsciência gera, quase por si mesma, um abismo entre ele e os objetos
enquanto força de motivação. Quando o sujeito percebe que é ele mesmo que
escolhe, por mais atrativos ou repugnantes que os objetos sejam ao redor de si
mesmo, é como se ficasse um hiato entre a atração e a aversão do objeto, por um
lado, e a sua decisão, por outro. É como se houvesse um lapso entre uma coisa e
outra. E é nesse lapso que se faz essa escolha vertical. Esta vai fazer com que ele
perceba que não sabe porque escolhe algumas coisas em vez de outras.
Quando o sujeito percebe que é o autor da sua história, ele também
percebe que não sabe os motivos de suas decisões. Até então, ele foi movido
apenas pela aparência dos objetos. Se algo parece bom, ele pega; se parece
mau, ele não pega. Até esse momento, é como se ele vivesse em uma única
dimensão17. Atrás dele estão os objetos que ele capta como mau e à frente estão
os objetos que ele capta como bons. Ele foge de uma direção e avança na direção
oposta. Quando ele percebe que desconhece a natureza do objeto em relação a
ele, fica um momento de dúvida:
“Aquilo que considero como bom é bom mesmo? Aquilo que considero
como mau é mau mesmo?”
É esta dúvida que abre a porta para a Graça. No momento em que o
sujeito percebe esta dúvida, nota que depende de uma força estranha para
realizar essas escolhas:
“Não posso garantir que ao escolher algo que me parece bom, aquilo me
será um bem. E nem que ao fugir do que me parece mau, estarei livre do mau.”
E, mais ainda, ele percebe que não tem como saber isso na maior parte
dos casos. Nesse momento, as escolhas horizontais entre bem e mal ou entre o
17
Conferir aula anterior sobre os estágios de oração [N.T.].
que parece agradável ou desagradável, são apagadas diante de uma escolha
vertical entre duas hipóteses:
a) “Ou a gente nunca sabe nada e, então, nada vale nada; e o que eu
acho bom passa a ser bom” – e, assim, o sujeito identificou-se com a sua escolha
instintiva.
b) “Ou eu não sei isso, mas existe um pano de fundo que me preservará
da minha própria maldade e eu devo me apegar a isso. Existe algo que está fora
do cenário imediato, mas determina este a meu favor”.
Todo sujeito que pratica uma religião faz isso todo dia. Quando alguém
para e reza não é porque Deus lhe apareceu dizendo que era hora de rezar, mas é
porque não se tem uma consciência clara do que está acontecendo, sem saber se
está escolhendo o bem ou o mal:
“Então, tenho de estar próximo de um princípio que determina o bem e o
mal e que me protegerá”.
O pólo inferior aparece como apelo à história instintiva e o pólo superior
aparece como Graça.
Aluno: Ou Mistério.
Professor: O importante é que nesse primeiro ato os dois pólos aparecem
como hipóteses. Nenhum dos dois aparece como certeza. A certeza ou convicção
somente se consolidará muito depois. Por isso que Santo Agostinho dizia que,
diante dessa primeira escolha, o sujeito percebe-se infundido do temor de Deus.
Este dom consiste justamente em perceber que na maior parte das decisões não
se sabe se aquilo resultará efetivamente em um bem ou não para você mesmo e
para os próximos. Não se tem a onisciência e, por mais escrupulosa que seja a
sua consciência, algumas informações fundamentais podem faltar. E você não
possui um mecanismo interno para se proteger dessa ignorância. Você precisa
recorrer a um princípio externo. E este princípio que aparece, no começo, como
algo do qual não se tem notícia direta, é o primeiro modo pelo qual Deus aparece
a alguém.
Cheia de Graça significa que, na medida em que o sujeito percebe esse
estado de insegurança humana em relação ao bem e ao mal, ele está na Graça. O
objetivo da Graça não é apagar a insegurança, mas mostrar que a segurança não
se encontra no seu próprio ser individual. A segurança está além de você.
Nós tomamos tantas decisões durante o dia que não lembramos que, em
cada uma delas, existe um grau de incerteza em relação ao resultado. Seja no
resultado puramente material até no sentido moral. Muitas vezes na vida,
precisamos tomar decisões sem saber com certeza o efeito moral. Tentamos fazer
o melhor que pudermos, mas, mesmo assim, muitas vezes não podemos garantir
que aquele será o curso de ação correta. Há uma ação ou outra cujo princípio
moral é mais ou menos evidente.
“Por exemplo: se o vizinho está tocando música alta e você fica com
vontade de dar um tiro na cabeça dele, na hora pode-se perceber o princípio de
que matá-lo não será uma reação proporcional.”
Nesse caso, a aplicação do princípio moral foi direta. Mas na maior parte
das situações, as soluções não são evidentes.
“Por exemplo: o processo de educação dos filhos não é tão evidente.
Como você amolda a alma dos seus filhos aos princípios fundamentais da moral?
Isso já é uma técnica mais sutil. Quando devo punir? Quando devo recompensar?
Quando devo explicar? Nada disso é evidente. E, no entanto, são escolhas morais
importantíssimas.”
A margem de erro nessas situações imensas. Diante disso, o que o
sujeito faz?
a) “Ou tudo que sinto é bom. Se sinto que devo punir, eu puno; se sinto
que devo perdoar, eu perdôo;”
b) “Ou faço um esforço máximo e conto com ajuda exterior que corrija o
efeito dos meus erros e poupe-me dos meus próprios pecados porque não possuo
os meios naturais para não me enganar”.
Na primeira hipótese,o sujeito já renunciou à sua própria liberdade, à sua
capacidade de escolher. Ele se dispensou de escolher. Ele fechou o universo em
um pedacinho e fechou uma parte de si mesmo. O universo, para ele, é
simplesmente isso que ele sente. É como diz a teoria emocionalista do valor:
“quando alguém diz que o assassinato é mau, apenas quer dizer que não
gosta de assassinatos”.
E, assim, o sujeito fechou-se para o valor objetivo dos atos humanos
como se este não existisse, restando apenas o próprio sentimento em relação ao
ato. Quando ele faz esta escolha, pode, no máximo, substituir princípios universais
para guiar os comportamentos pessoais por princípios gerais: os sentimentos da
maioria das pessoas passam a ser o que é considerado moral.
“Se a maior parte das pessoas sentir-se contrárias ao assassinato, este
será errado, se os sentimentos mudarem na próxima semana, a moralidade
também mudará”18.
Quando o sujeito fez essa primeira escolha por algo que lhe parecia claro
e definido:
“Ah, eu conheço a minha história instintiva, pois estou diante dela, e não
conheço essa força transcendente que iria me poupar dos meus próprios
enganos.”
Quando o sujeito faz esta escolha, parece que está optando por algo fico
e indefinido, e renunciando a uma coisa indefinida e nebulosa. Mas, na verdade, o
que ele escolheu foi a parte da realidade que é indefinida e nebulosa, que é o
conjunto dos seus instintos. Estes são de um jeito hoje, mas amanhã são de outro
jeito. Embora os instintos se apresentem como absolutos, a verdade é que na
semana seguinte o sujeito terá uma preferência contrária.
Este estágio19 é o primeiro modo pelo qual o sujeito escapa dessa linha
unidimensional entre o bem e o mal, para se colocar no centro de uma esfera
indefinida.
18
Como argumentam aqueles que defendem ou contestam uma proposta de lei sobre o aborto,
por exemplo, apelando para a maioria das opiniões a favor ou contra, mas abstraindo o valor
objetivo daquele ato sobre o qual se legisla [N.T.].
19
Representado pelo título Cheia de Graça [N.T.].
20
Uso este adjetivo para fazer referência ao segundo dom do Espírito Santo e de suas relações
explicadas nas aulas sobre o Pai Nosso e sobre o Gênesis [N.T.].
Naturalmente, depois de fazer isso, o sujeito pode se perguntar:
“Eu posso pedir para Deus me poupar dos meus pecados, mas não existe
um jeito de Deus fazer isso antecipadamente, poupando-me de cometer os
pecados? Não existe um meio de diminuir a margem de incerteza?”
Aluno: Vai pelas regras.
Professor: O segundo passo do sujeito é justamente aderir a um corpo de
leis. Porque este o torna semelhante ao mesmo princípio que o poupa dos
pecados. O corpo de leis é como se fosse a transcrição das perfeições morais da
consciência dele. Estas existem nesse plano de incerteza humana. É preciso que
seja um corpo de leis que tenham, em si mesma, um caráter contrário ao pecado.
Assim, é preciso que o sujeito tenha à sua disposição um conjunto de ações nas
quais, em si mesmas, contenham um componente sagrado para abaixo do qual
ele não possa sair21. Todos os ritos são assim. Por que o sujeito faz a oração do
Pai Nosso e não uma oração espontânea que lhe ocorra no momento?
Justamente porque o Pai Nosso, como oração divinamente instituída, possui, na
sua própria forma, algo de sagrado que o sujeito, de uma maneira ou outra, efetiva
cada vez que realiza aquela oração. Mesmo que o sujeito tenha alguma incerteza,
a própria ação possui, na sua forma, algo que garante um bom efeito para ele. É
isso que ´significado pelo título O Senhor é Convosco. Nestas ações, o Senhor
está com o sujeito.
Aluno: Sempre tendo a Virgem Maria como referência.
Professor: Sim, porque ela é modelo de plenitude. Quando o anjo disse O
Senhor é Convosco, quis dizer que todos os atos dela possuíam este caráter
[sagrado].
Aluno: E nós imitamos estes atos.
Professor: E nós fazemos por imitação estes atos divinamente instituídos,
reconhecendo esse grau humanamente máximo em Nossa Senhora. Um grau de
plenitude adâmica. Ela é uma pessoa cuja alma estava no Paraíso. Tudo que ela
fazia era ritual e Deus estava com ela. Quando nós rezamos o Pai Nosso, Deus
está conosco porque Ele compôs esta oração.
21
Dividindo as águas daquela esfera inicial entre águas superiores e inferiores, entre céu e terra,
como ocorreu no segundo dia da criação. Conferir aula do professor Luiz sobre o Gênesis [N.T.].
O LOUVOR ÀS QUALIDADES PERFEITAS
22
Assim, a pessoa passa a estar unida com o Corpo Místico de Cristo. Sua própria noção de eu
fica integrada com um conjunto maior da realidade,que inclui as outras pessoas unidas no Amor de
Cristo, o que inclui a Igreja Triunfante, especialmente a Virgem Maria. Em termos psicológicos, isso
parece corresponder ao nível transpessoal e o nível unitivo de que trata Ken Wilber em Projeto
Atman, por exemplo [N.T.].
assimilação de todo atributo que é louvado. Todo louvor espontâneo é um reflexo
de uma semente de semelhança e de um desejo de imitação.
Aluno: Uma inspiração.
Professor: Como se a semente daquela qualidade tivesse entrado em
você e, pelo louvor, você estivesse regando-a.
Aluno: Você elogia no outro.
Aluno: O que mostra que você também quer aquela qualidade.
Professor: Por outro lado, toda relação humana é bilateral. Quando você
elogia uma qualidade perfeita no outro, também é um elogio à semente da
qualidade que há em você também. Todo louvor a um santo visa o
reconhecimento da qualidade, mas também visa essa onda de retorno. O santo
também louva essa qualidade em você, em troca 23.
A gente nunca pode esquecer que a humanidade do Cristo é a
humanidade da Virgem Maria. Quando a gente fala nascido da Virgem Maria24,
significa que o Verbo Divino assumiu a natureza humana.
Que natureza humana? De quem? Onde ele assumiu a natureza
humana?
Ele assumiu a humanidade dela, da Virgem Maria. Isso quer dizer que o
cristão possui na Virgem Maria o modelo da sua própria humanidade 25. A Virgem
Maria é inteira aquilo que cada ser humano é em fragmento. Cada cristão observa
as qualidades de Cristo e percebe que:
“algumas delas são para meditar e outras são para contemplar. Não
posso simplesmente passar a agir como se eu já fosse o Verbo Divino. Mas posso
ter a consciência de que o Verbo Divino aparece para o cristão por meio da
23
Os santos estão constantemente louvando a Deus e essas qualidades que alguém “tem”
procedem de Deus, merecendo louvor dos santos [N.T.].
24
O que corresponde a uma das frases da fórmula do Credo [N.T.].
25
Cada cristão visa ter algumas qualidades. Ele poderá contemplar essas qualidades na pessoa da
Virgem Maria, tendo assim um modelo seguro. Este foi o segredo de tantos cristão que tiveram
sucesso em seu desenvolvimento espiritual, como, por exemplo, o beato frei Antônio Sant’ana
Galvão, que será canonizado pelo Papa Bento XVI como o primeiro santo nascido em território
brasileiro. Ele chegou a fazer um pacto de sangue com a Virgem Maria para buscar suas
qualidades. A lista poderia ser aumentada indefinidamente, incluindo, por exemplo, uma das
grandes referências da vida cultural e mística brasileira, o beato José de Anchieta, cuja vida foi
descrita pelos sacerdotes jesuítas Quirício Caxa e Pero Rodrigues [N.T.].
Virgem Maria. Na medida em que sou semelhante a ela, ele aparece para mim,
assumindo a minha humanidade”.
26
Nas primeiras aulas desse curso, o professor Luiz ofereceu uma antropologia cultural que
culminava com a descrição da inteligência e da vontade. A liberdade está relacionada com o
intelecto e com a vontade, sendo esta entendida como um movimento que decorre da percepção
das estruturas universais e permanentes. Eram a inteligência e a vontade que distinguiam
maximamente os homens e os animais. É pela falta de percepção das conseqüências mais
distantes que esses são mais facilmente dominados e condicionados, como o burro que corre atrás
da cenoura. O ser humano, por sua vez, pode perceber as conseqüências últimas. Ao cumprir uma
obrigação sagrada, pode-se ficar em dúvida quanto aos fatores imediatos: “devo abandonar minha
cama para ir na Igreja rezar? Não seria mais útil trabalhar mais quinze minutos e deixar de rezar o
terço?”, mas ele pode ter certeza quanto aos resultados últimos. No dia do juízo final, ele poderá
receber os frutos. E as ações mundanas? Delas sabemos seus resultados imediatos, mas ficamos
em dúvida sobre os efeitos últimos. Sei que um curso pode me trazer algum certificado e que um
trabalho pode resultar em um pagamento, mas cada um deles irá colaborar na salvação da minha
alma? [N.T.].
distantes no tempo. A gente toma todas essas decisões em uma zona muito
pequena de consciência.
[Aluno oferece justificativas para confiar nas conseqüências ´últimas deste
curso.]
Professor: É natural que a gente tome essas decisões, mas não somos
plenamente livres porque não temos plena consciência das conseqüências. Mas
quando o sujeito decide que fará algo porque Deus ordenou, ele amplia a esfera
das conseqüências conhecidas até o infinito: a conseqüência última desse ato é a
salvação, além da qual não existe nenhuma outra conseqüência. A salvação é o
estado a partir do qual os estados não mudam. Todas as conseqüências dos
outros atos são provisórias. Por isso que se diz que a Lei Divina é firme. É um
princípio de firmeza e estabilidade. Porque o sujeito ciclicamente está realizando
certos atos que acabam sedo a baliza última da vida deles:
“Estou fazendo esses atos porque depois da morte acontecerá tais
conseqüências”.
Quando você tem essa conseqüência de uma linha de conseqüência que
raia o infinito, você é perfeitamente livre para escolher ou rejeitar algum ato. Todos
os outros valores são apenas provisórios.
Você faz, tem algum efeito provisório, depois você vai lá e conserta.
Sempre existe reparação ou conserto. Diante das outras escolhas, [no
primeiro estágio], Deus aparece como a Graça que irá lhe garantir contra as
conseqüências de seus atos. Nessa etapa, Deus é a força que dá efetividade aos
seus atos. Quando você faz as outras coisas de acordo com os seus juízos
baseados no conhecimento que você tem dos fatos, você pode se enganar.
E você pede a Deus para que Ele te proteja nos casos em que você
possa se enganar. Pede que Ele anule as conseqüências dos atos errados.
Diante dessa situação, Deus aparece como um continente protetor. No
ato ritual de cumprimento da lei divina, Ele aparece como a força interna que
garante a efetividade do ato. Esse ato aqui terá essa conseqüência porque quem
o afirma em última análise é Deus. Nesse atributo 27, Deus aparece como uma
27
Da vIrgem Maria, “O Senhor é Convosco” [N.T.].
presença que fortalece e dá firmeza. É por isso que um dos atributos da Virgem
Maria é
O Senhor é Convosco,
Porque em cada ato dela, ela não estava diante dessa zona crepuscular
de consciência, mas ela estava realizando um ato que era, para ela, ordenado
ritualmente por Deus.
Aluno: Os atos guiados pelo Espírito possuem uma firmeza maior do que
os atos guiados pela mente ou pelo corpo, resultando na posição hierárquica
superior do Espírito em relação à mente e ao corpo.
Professor: Exatamente. Os outros atos todos são inseguros pela própria
natureza deles.
[Aluno cita o Servo de Deus João Paulo II como um defensor da noção de
Liberdade aliada com a Verdade28.]
Professor: A liberdade é estar nessa Lei Divina. Não há liberdade sem a
Verdade. Não há como ser livre estando em uma zona crepuscular onde não se
sabe nada sobre as conseqüências das suas decisões. Mesmo a liberdade que se
pode encontrar nos outros atos, há dentro dessa esfera em que você pode
antecipara as conseqüências.
E importante saber e lembrar que estar nessa zona de incerteza é
intrínseco à nossa natureza. Se alguém não está nessa zona de incerteza, é por
um milagre, por uma intervenção sobrenatural que somente acontecem com os
profetas e não com a gente. Para os profetas, cada um de seus atos é normativo,
é um rito, Para a gente não, apenas a repetição dos atos deles é um rito.
28
Algumas frases do Servo de Deus João Paulo II sobre o assunto: 1.- "Estamos no mundo sem
ser do mundo, constituídos entre os homens como sinais da verdade e da presença de Cristo para
o mundo. Entregamo-lhe todo nosso ser concreto como expressão sua, para que Ele continue
fazendo o bem". (Cf. At 10,38). 2.- "O verdadeiro conhecimento e autêntica liberdade encontram-se
em Jesus. Deixai que Jesus sempre faça parte de vossa fome de verdade e justiça, e de vosso
compromisso pelo bem-estar de vossos semelhantes". 3.- "A liberdade, em todos seus aspectos,
deve se basear na verdade. Quero repetir aqui as palavras de Jesus: "E a verdade vos libertará"
(Jo 8,32). É, pois, meu desejo que vosso senso de liberdade possa estar sempre de mãos dadas
com o um profundo senso de verdade e honestidade sobre vós mesmos e das realidades de vossa
sociedade". 4.- "Só a liberdade que se submete à Verdade conduz a pessoa humana a seu
verdadeiro bem. O bem da pessoa consiste em estar na Verdade e em realizar a Verdade". (Enc.
Esplendor da Verdade). Fonte: http://www.acidigital.com/juanpabloii/pensamento.htm#19.
REVISÃO DOS DOIS PRIMEIROS ESTÁGIOS
Professor: Quando o sujeito faz um ato conforme à lei divina, ele sempre
se sente bem e feliz?
Aluno: Ele pode se sentir bem, mas pode acontecer algo mais.
Professor: Neste caso, ocorreu alguma outra coisa ali, que é o fruto
daquele ato, além da perfeição que é simplesmente estar fazendo ali um ato ritual.
Pode estar acontecendo ali uma conformidade entre o sentimento dele e de Deus,
em um certo sentido. Assim, ele não somente cumpriu a Lei, mas é como se ele
tivesse entrado em contato, por um momento que seja, com o Reino de Deus que
está dentro dele. Para o sujeito sentir-se efetivamente contente e deleitar-se com
aquele ato, é preciso que ele antecipe em alguma medida o que normalmente é
apenas uma conseqüência futura daquele ato ritual. Isso é a benção do bendito
sois v[os entre as mulheres. Dependendo do estado interior da pessoa, ele
antecipa as conseqüências futuras daquele ato. É como se ele sentisse a
proximidade do Paraíso ao realizar aquele ato, mas isso é uma benção que
complementa.
Aluno: Mais do que um alívio, é uma plenitude.
Professor: Mas isso não acontece sempre. O que pode acontecer sempre
que o indivíduo estiver consciente de sua liberdade é o alívio por não estar sujeito
ao fardo das incertezas. Se o sujeito fica somente nesse alívio, ele acaba
reproduzindo os mandamentos mecanicamente.
Aluno: E a incerteza é inescapável.
Professor: Porque não existe um conjunto de mandamentos que abarque
todas as situações da sua vida como se fosse possível prever tudo que iria
acontecer com alguma pessoa. Isso nunca vai acontecer. Seria tirar alguém da
escala humana.
29
Tradicionalmente distingue-se quatro sentidos para o texto bíblico: literal, alegórico, moral e
anagógico. O sentido literal ou histórico é o fundamento para o estudo e edificação da mente.
Antes de tudo, no estudo, é preciso aprender a história e a verdade dos fatos, sendo capaz de
saber:
a) O FATO: o que foi feito?
b) O TEMPO: quando?
c) O LUGAR: onde?
d) A PESSOA: por quem?
Não se deve desprezar esses detalhes. “Quem despreza as coisas mínimas se definha
aos poucos” (Hugo de São Vítor- HSV). De alguns detalhes dependem aquilo que deve ser
conhecido por si mesmo. “Aprenda tudo e verá, depois, que nada é supérfluo. O saber limitado não
é alegre” (HSV). Exemplos: Gênesis, Josué, Juízes, Crônicas, 4 Evangelhos, Atos.
O sentido alegórico exige mentes maduras com “inteligência espiritual” em vez de “sentidos
lerdos e idiotas” (“non tardos et hebetes sensus”). Exige sutileza na investigação com prudência e
discernimento. “É comparável a uma comida forte: precisa ser mastigada para ser bem engolida”
(HSV). Deve-se evitar ser temerário na conjectura (Sl 7, 13) ou presunçoso. Não admite
contradição com o sentido literal. Forma uma edificação estrutural para ter uma construção unitária
conhecendo cada gênero. Exemplos: Gênesis (criação), Isaías, Jó, Salmos, Cânticos, S. Mateus,
S. João, S. Paulo e Apocalipse.
de Israel do Egito, considera-se Moisés, os judeus e os egípcios como
personagens dentro da alma humana.
Quando se fala a coletividade toda das mulheres, está se referindo a
elementos da alma da Virgem Maria. Essa que é bendita é a própria identidade
espiritual da Virgem Maria, que ao realizar a primeira e a segunda promessas
sempre tem uma resposta interna de Deus. Enquanto isso não acontece com o
sujeito é difícil explicar a frase:
“O reino dos Céus está dentro de vós” (Lc 17,21).
A fonte da devoção espontânea é o próprio Deus. O mesmo que te
ampara de fora30 e determina de fora que você faça essa ou aquela ação 31 faz
nascer dentro de você essa alegria.
Essa alegria não é um gozo estético do ato, como são as outras alegrias
normais. Todas as outras alegrias normais têm sua origem no objeto e ecoam ou
reverberam no sujeito, mas sem o objeto acabou a reverberação.
Quando ocorre com o sujeito esse movimento espontâneo de devoção
esse movimento deriva da forma do próprio ato. Ele responde de dentro do ato.
Normalmente, a identidade espiritual do sujeito, na medida em que este
começa a se dar conta, sempre responde assim a esse ato, sempre responde
assim à Lei Divina. Mas essa identidade espiritual geralmente está fora do cenário
da consciência do sujeito. Quando o sujeito repete um ato espiritual, essa benção
está inserida, mas nem sempre o sujeito está realizando esse papel central que é
do personagem da identidade espiritual dele.
Aluno: Quando ele não está em si, ele não flui. Está somando, mas ele
não percebe porque não está no seu centro.
Professor: Exatamente. O ser humano tem, em si, um mundo interior. E
esse mudo tem, em si, todos os personagens do mundo exterior. Há momentos
em que você, no fundo da sua alma, encontra o personagem mais próximo do
afadigam, atormentam, obscurecem, mancham e a enfraquecem. Estes dois efeitos são causados
por qualquer ato desordenado". Mais frases em http://www.oração centrante.org/sjcruz.htm.
34
Para outras frases dos Padres da Igreja, especialmente dos Padres do Deserto, conferir
http://www.padresdodeserto.net/dizeres.htm.
“Uma consciência muito escrupulosa é quase tão inimiga do crescimento
espiritual como uma consciência grosseira”.
Porque se a pessoa toma cuidados demais com os próprios pecados, o
sujeito fica preso. Ele esquece que o diabo não pode anular Deus. O meu pecado
não pode anular a obra da Salvação. O problema quando o sujeito iguala esses
dois bens é que o sujeito acaba por igualar o pecado dele e a obra da salvação.
Ele termina por colocar essas duas coisas no mesmo plano e atribuir as duas a
mesma potência.
Aluno: Há uma soberba aí.
Professor: Exatamente. E esquece a hierarquia: a obra da Salvação e o
meu pecado não são forças no mesmo plano. Um dos propósitos principais do
diabo é convencer o ser humano de que Deus e o diabo são antagonistas. E que
são eles que lutam um contra o outro, enquanto você é somente a munição. Mas,
na realidade:
“Os antagonistas são eu e o diabo. É a mim que ele quer desafiar e não a
Deus. E, portanto, é natural que, nesse combate, haja momentos em que a guerra
penda para o lado dele e outros momentos em que a guerra penda para o meu
lado”.
Essa alternância é natural. Essa alternância entre pecado e
arrependimento, entre cumprimento da Lei divina e desvio, é um instrumento do
progresso espiritual. Um instrumento para que o sujeito se dê contra da realidade.
É isso que Cristo quer dizer:
“Não vos preocupeis, Eu venci o mundo” (Jo 16, 33).
Aluno: Por isso que o C.S. Lewis chama o cristianismo de “religião para o
homem concreto”35.
Professor: Exatamente, não é uma religião para um homem abstrato que
seja um anjo ou um demônio ou que seja capaz de tornar-se um anjo ou um
demônio.
O que acontece no decorrer desta transformação espiritual é que:
35
Mesma expressão usada por Mário Ferreira dos Santos para se referir ao cristianismo na obra
“Cristianismo, a religião do homem”. Conferir no site
http://www.academus.pro.br/filosofo/marioferreira/.
a) a atração pelos gostos espirituais diminui o número de pecados;
b) por outro lado, a certeza da consistência dessa salvação diminui o
impacto do pecado sobre a alma como um todo.
Por isso que, quando termina a Santa Missa, o padre afirma:
“Ide em Paz e que o Senhor vos acompanhe”.
Essa Paz é a mesma Paz que o Cristo passou para os discípulos (Jo 14,
27). Essa paz é justamente a serenidade da consciência da verificabilidade da
realidade. Ela deriva do sujeito saber que:
“Não importa para qual lado a batalha está pendendo agora, o resultado
final já está pré-determinado. Talvez o meu papel nesta batalha seja morrer como
bom soldado. Aparentemente, morri como um soldado. Do ponto de vista histórico,
eu posso sucumbir sob os meus pecados, mas na minha consciência interna eu
sou o sujeito que morreu lutando pelo lado certo. Nem todos soldados se tornam
heróis de guerra. Os santos são os heróis de guerra. Nessa guerra, eles fizeram
coisas heróicas, as quais estão muito acima da média. O papel de um grande
número de soldados é de morrer em batalha como um bom soldado. E, talvez, o
meu seja esse. E se o sujeito olhar somente a minha história exterior é a história
de alguém que sucumbiu ao pecado. Se alguém olhar a minha história interior,
verá que é a história do soldado mais fraco, incompetente, mas que, no entanto,
lutou nessa batalha até a morte.”
A Paz que o Cristo fala é justamente a Paz do sujeito que sabe que está
lutando do lado certo da batalha. Não é a paz do sossego do seu lar. Não é a paz
de alguém que não esteja sem nenhum perigo de levar algum tiro ou de cometer
algum pecado mortal. Não é essa paz. Ele mesmo falou que quem se atribui essa
paz já não está no Espírito Santo. É a Paz de ter simplesmente a certeza de que,
nessa guerra, lutou do lado certo. É simplesmente provável e natural que eu
simplesmente morra na guerra e não veja o resultado final. Não veja a minha
própria felicidade neste mundo.
[Aluno comenta sobre o ideal de São Bernardo de humilhar-se como
escudo de Cristo, aceitando apagar-se desde que Cristo seja mais louvado.]
Professor: Os grandes heróis dessa guerra foram justamente os que
possuíam a noção de estar cometendo atos de traição e covardia durante o tempo
todo. Não eram sujeitos que perderam essa consciência. Eram simplesmente
sujeitos em que a consciência de que a raíz dos bens relativos está no Bem
absoluto era tão grande que atraía constantemente a sua atenção para o Bem
absoluto.
O que pode acontecer ao receber essas Graças interiores e espirituais?
Ele pode se ver tão interessado por essas Graças que os bens relativos perdem
muito do interesse. O sujeito que fica santo é o sujeito cuja concupiscência
concentrou-se nesses bens espirituais. Então, o pecado dele é querer esses
gozos espirituais.
Aluno: Já imaginou?
Professor: Os santos eram assim. Mas isso também é pecado. Os gozos
espirituais são bens relativos assim como os bens externos. Deus é o mesmo
aparecendo para mim ou não. Então, os santos são aqueles soldados cujo nível
de competência estava em outra categoria. Nosso pecado é assim:
“Hoje eu fiquei com preguiça de limpar a arma e não conseguir dar um
tiro”.
E pecado do santo é parar para ficar contemplando como a arma dele é
boa. Mas as duas coisas são desvios em relação ao objetivo fundamental que é
usar a arma para dar tiros nos inimigos.
ANEXO I
Do livro “Símbolos e Mitos no Filme O Silêncio dos Inocentes” de Olavo
de Carvalho.
ANEXO II
Do livro “Símbolos e Mitos no Filme O Silêncio dos Inocentes” de Olavo
de Carvalho.
GUMB CLARICE
BODES
ANEXO III
Do livro “Símbolos e Mitos no Filme O Silêncio dos Inocentes” de Olavo
de Carvalho.
“Epopéias sacras e mitológicas são aqueles poemas narrativos que, para toda
uma civilização, têm o prestígio de verdades reveladas; no início dos tempos, eles
fixam a cosmovisão, os valores, as leis e os princípios educacionais que vão
orientar os homens e moldar os costumes enquanto durar essa civilização.
Narrativas iniciáticas são histórias inventadas em época mais tardia, e que, sem
terem a autoridade de revelações primordiais, são admitidas, por certos grupos ou
indivíduos, como uma espécie de ensinamento espiritual ou religioso. As
narrativas iniciáticas versam geralmente sobre aspectos ou partes das epopéias
sacras, que elas prolongam, ilustram, comentam e especificam, adaptando o
fundo da mensagem espiritual à mentalidade e linguagem de uma nova época.
Elas revigoram e atualizam certas potencialidades espirituais contidas na
revelação, que arriscariam enfraquecer-se à medida que a passagem dos tempos
e as mudanças da linguagem vão dificultando às novas gerações a compreensão
direta da epopéia sacra. São narrativas iniciáticas a Divina Comédia, de Dante, A
Flauta Mágica, de Mozart, o Fausto, de Goethe, a tragédia grega em sua
totalidade, Os Lusíadas, de Camões, A Rainha das Fadas, de Spenser; e, em
nosso tempo, José e seus Irmãos, de Thomas Mann. São epopéias sacras os
poemas de Homero, o Baghavad-Gita, o Corão, o Antigo Testamento, os
Evangelhos etc.
A diferença entre epopéia sacra e narrativa iniciática consiste
fundamentalmente em que os heróis da primeira são deuses, semideuses ou, num
quadro monoteísta estrito, aspectos de Deus ou forças de origem divina. Os heróis
da narrativa iniciática, sem terem poderes divinos nem falarem diretamente em
nome de Deus, são seres humanos de excepcional envergadura, protegidos ou
guiados de perto por forças divinas, cuja presença e atuação no mundo eles
representam de maneira mais ou menos sutil e indireta.
Tanto na epopéia sacra quanto na narrativa iniciática as personagens de
mestres ou gurus representam sempre o Espírito divino, que conhece tudo de
antemão e dirige do alto a caminhada de um discípulo, o qual personifica a Alma
humana em vias de se espiritualizar ou divinizar. Uma diferença marcante entre os
dois gêneros é que, na epopéia sacra, o mestre é o Espírito divino, de modo literal
e integral (na Odisséia, Mentes é Minerva, deusa da sabedoria; no Baghavad Gita,
Krishna é um aspecto de Brahma etc.); ao passo que, na narrativa iniciática, a
personagem do mestre é apenas um ser humano ligado mais ou menos de perto a
um saber divino; é um sacerdote, um mago, um sábio, e não um ser divino; por
isso, guiando “divinamente” o discípulo, não está isento de falhas humanas. Por
exemplo, Merlin, no Santo Graal, perde temporariamente a parada para Morgana
Le Fay; Sarastro é temporariamente derrotado pela Rainha da Noite etc.
A narrativa iniciática, embora possuindo leis estruturais que a
definem, pode ser enxertada numa infinidade de gêneros narrativos: na literatura
novelística, no teatro, na poesia épica ou no cinema. Sua estrutura profunda é
compatível com os revestimentos mais diversos, do fantástico ao “realista”. Os
únicos elementos indispensáveis são o mestre, o discípulo, o adversário, e as
peripécias que purificam a alma do discípulo ou lhe revelam um conhecimento. O
adversário pode ser uma pessoa (como na Flauta Mágica a Rainha da Noite) ou
uma situação adversa e diabólica que desafia a inteligência do herói ou tenta sua
alma, como no Processo Maurizius, de Jakob Wasserman. O mestre também pode
ser uma personagem de carne e osso (como Sarastro), uma alusão mitológica
(Vênus em Os Lusíadas) ou um simples aspecto superior da alma do próprio
discípulo (o mágico pressentimento que guia Etzel Andergast no romance de
Wasserman). O ponto que interessa, o critério diferencial que nos certifica de
estarmos em presença de uma narrativa desse gênero, não é o conteúdo material
dos eventos, mas a relação entre as forças, em suma: a estrutura da trama.”