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FACULDADE CATÓLICA DE FORTALEZA

BACHARELADO EM FILOSOFIA

ADRIANO DE LIMA NEPOMUCENO

A ECONOMIA POLÍTICA EM ADAM SMITH

FORTALEZA 2023
ADRIANO DE LIMA NEPOMUCENO

A ECONOMIA POLÍTICA EM ADAM SMITH

Monografia submetida à Coordenação do


Curso de Bacharelado em Filosofia da
Faculdade Católica de Fortaleza, para
obtenção do grau de bacharel em
Filosofia.
Orientador: Prof. Dr. Daniel Benevides
Soares.

FORTALEZA 2023
ADRIANO DE LIMA NEPOMUCENO

A ECONOMIA POLÍTICA EM ADAM SMITH

Monografia submetida à Coordenação do


Curso de Bacharelado em Filosofia da
Faculdade Católica de Fortaleza, para
obtenção do grau de bacharel em
Filosofia.

Aprovado em / /

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. Daniel Benevides Soares.

Orientador

Prof.ª Ma. Kercya Nara Felipe de Castro Abrantes

Membro - Leitora
Dedico este trabalho monográfico a São
José, a todos os estudantes, professores
e profissionais do âmbito filosófico e
econômico que, com o empenho de suas
vidas, buscam a verdade e a consolidam
no bem comum.
AGRADECIMENTOS

Ao Senhor, Nosso Deus, que merece todo o amor do mundo e que me


agraciou com uma magnífica vocação. Sou Lhe imensamente grato pelo dom da
vida consagrada e por poder ofertar-me livremente, por amor à sua santa vontade,
neste belo e profundo caminho de preparação para o sacerdócio; para mim, a
Eucaristia – o Corpo e Sangue, Alma e Divindade de Cristo – é, por excelência, a
verdadeira e única Riqueza das Nações. À Virgem Maria, Rainha da Paz e a São
José.

À minha família, de modo particular aos meus pais, José dos Santos
Nepomuceno e Maria José de Lima, que sempre me abençoam e me acompanham
em minha vocação. Ao meu irmão Paulo César e minha irmã Maria Jacilene que,
mesmo distantes, incentivam-me e me apoiam mediante o seu amor e cuidado.

À Comunidade Católica Shalom, que é minha família espiritual, e aos


fundadores, Moysés Azevedo e Emmir Nogueira, pela docilidade tão fecunda a voz
de Deus.

Ao Setor dos Sacerdotes e Seminaristas – Padre Denys, Padre Hintz, Padre


Marcelo, Conceição e Idelvani que, com tanto empenho, zelam pelo nosso caminho
formativo. Igualmente fica a gratidão aos benfeitores dos seminaristas, que nos
apadrinham e se dedicam com sua oração e ajuda material.

Aos meus irmãos seminaristas da Comunidade Católica Shalom,


especialmente: Daniel Pereira, David Gadelha, Erlindo Trovão, Felipe Ricardo,
Lorenzo Jr., Samuel Briois, Victor Elias, Yuri Moraes e José Igor, seminarista
diocesano. Minha gratidão pela Providência Divina que nos permitiu iniciar juntos os
estudos da Filosofia.

Ao meu formador pessoal – Padre Francisco –; às minhas irmãs formadoras


comunitárias – Danyelle Rocha, Fabiana Oliveira, Raquel Bastos e Lucimara Batista
– que, com suas orações e cuidado, muito me ajudaram no caminho vocacional.

Aos irmãos do Economato Geral da Diaconia Shalom e da missão de


Fortaleza – Leandro Formolo, Padre Adalto, Geysa Américo, Aline Souza, Paula
Karine, Julieta
Morais, Diác. Wiradam, Arlen Patrik e Diogo Rocha –, por todo o apoio, intercessão
e incentivo no desenvolvimento deste trabalho.

Aos irmãos da Missão da Comunidade Católica Shalom de Macapá, por me


acompanhar desde o ingresso no seminário.

Aos irmãos da Residência Geral 2, da Diaconia Geral Shalom, que me


acolheram no início dos estudos e muito ajudaram na preparação para minhas
primeiras promessas no Carisma e nos primeiros votos no Celibato pelo Reino dos
Céus.

Aos irmãos da Residência Geral 4, da Diaconia Geral Shalom, que tanto


contribuíram no meu processo de maturidade humana, espiritual e vocacional.

Aos irmãos da Residência Casa da Paz da Missão de Fortaleza, que se


fizeram tão presentes na reta final deste trabalho com sua intercessão e apoio
fraternos.

Aos profissionais da Faculdade Católica de Fortaleza pelo empenho e


dedicação na formação de cada um de nós, especialmente: Padre Tiago, Prof.ª
Lisieux, Prof. Antônio Carlos, Prof. Hálwaro Freire, Padre Francisco Thallys, Padre
Antônio Augusto, Prof. Marcos Caetano, Prof.ª Alessandra Holanda.

À Prof.ª Kercya Nara, por seu acolhimento, solicitude e ajuda na leitura deste
trabalho. Ao meu orientador e estimado irmão, Prof. Daniel Benevides Soares que,
devido o seu amor aos alunos e ‘virtú’ do ensino acadêmico, abriu caminhos e
apontou profundos horizontes de amor à sabedoria; a vocês minha gratidão e
minhas orações.

A São Padre Pio, por sua amizade e constante intercessão.


Deus [...] o grande Condutor do universo, cuja benevolência e sabedoria, desde toda
a eternidade, planejou e conduziu a imensa máquina do universo, a fim de produzir a
maior quantidade possível de felicidade é, certamente, de todos os objetos de
contemplação humana, de longe, o mais sublime. Em comparação a este, todo outro
pensamento mostra-se necessariamente insignificante. – Adam Smith
RESUMO

O propósito deste trabalho é apresentar o surgimento da economia política na


perspectiva de Adam Smith – filósofo do século XVIII –. Para atingir este objetivo,
adentramos nos conceitos de simpatia, espectador imparcial e homem prudente que
autor destaca em suas obras Teoria dos Sentimentos Morais e Riqueza das Nações.
Diante do sistema econômico que se desenvolvia em sua época, sua análise
descritiva sobre a divisão do trabalho se deu modo exemplar, pelo fato de ter
realçado que o aspecto do qual provém a riqueza é o trabalho especializado. Smith
também travou um debate filosófico com pensadores do seu tempo a respeito da
economia, tais como fisiocratas e Bernard de Mandeville, até chegar à formulação da
sua própria concepção de valor e defender a noção de autorregulamentação dos
mercados. Objetivando trabalhar estes conceitos, a presente monografia propõe três
capítulos. O primeiro se debruça sobre os conceitos de simpatia e espectador
imparcial, explicitando o fundamento moral da ação humana no filósofo. O segundo
capítulo aborda tanto o conceito smithiano de divisão do trabalho quanto a sua
crítica aos fisiocratas franceses e a Mandeville. No terceiro capítulo é apresentada a
discussão de Smith sobre a relação entre trabalho e valor, bem como a sua noção
de autorregulamentação.

Palavras chaves – Economia política; Adam Smith; trabalho; autorregulamentação.


ABSTRACT

The purpose of this work is to present the emergence of political economy from the
perspective of Adam Smith – the 18th century philosopher –. In order to achieve this
goal, we delve into the concepts of sympathy, impartial spectator and prudent man
that the author highlights in his works The Theory of Moral Sentiments and The
Wealth of Nations. Faced with the economic system that was developing in his time,
his descriptive analysis of the division of labour was exemplary, as he stressed that
the aspect from which wealth comes is specialized labour. Smith also engaged in a
philosophical debate with thinkers of his time about the economy, such as the
physiocrats and Bernard de Mandeville, until he formulated his own concept of value
and defended the notion of self-regulating markets. In order to work on these
concepts, this monograph proposes three chapters. The first looks at the concepts of
sympathy and impartial spectatorship, explaining the moral foundation of human
action in the philosopher. The second chapter deals both with Smith's concept of
division of labor and his criticism of the French physiocrats and Mandeville. The third
chapter presents Smith's discussion of the relationship between labor and value, as
well as his notion of self-regulation.

Keywords: Political economy; Adam Smith; sympathy; work; self-regulation.


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO....................................................................................................... 11

2. BREVE CONTEXTO HISTÓRICO.........................................................................13

2.1 O CONCEITO DE SIMPATIA...............................................................................14

2.2 O ESPECTADOR IMPARCIAL.............................................................................16

2.3 A BUSCA PELA AUTORREALIZAÇÃO E O CONCEITO DE HOMEM PRUDENTE......19

3 A DIVISÃO DO TRABALHO...................................................................................23

3.1 O CONCEITO DE TRABALHO PRODUTIVO E IMPRODUTIVO.........................26

3.2 A CRÍTICA AOS FISIOCRATAS E A BERNARD MANDEVILLE.........................28

4 NOÇÃO DE TRABALHO E VALOR.......................................................................31

4.1 A MÃO INVISÍVEL E A AUTORREGULAMENTAÇÃO.........................................34

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................39

REFERÊNCIAS......................................................................................................... 41
11

1 INTRODUÇÃO

Adam Smith (1723 – 1790) nasceu em Kirkcaldy, Fifeshire, na Escócia, lugar


em que permaneceu durante bom período de sua trajetória. Estudou Filosofia na
escola superior de Edimburgo, Glasgow e, em 1740, mudou-se para o Balliol College
– escola superior de Oxford; lecionou as disciplinas de Lógica e Filosofia Moral em
Glasgow de 1751 a 1764. Em 1759, divulgou uma de suas principais obras: A Teoria
dos sentimentos morais – uma convenção de filosofia social e moral. Quando esteve
na França (de 1764 a 1766), conheceu alguns célebres intelectuais franceses que o
auxiliaram a aprofundar sua investigação sobre como se dava o crescimento
econômico na França, dos quais se destacam os fisiocratas Quesnay e Turgot. Sua
obra A Riqueza das Nações, publicada em 1776, foi a mais importante.

Tendo como pergunta de partida: como se deu o surgimento da Economia


Política? O objetivo do nosso trabalho é mostrar a contribuição de Smith para a
compreensão do surgimento da Economia Política, através de suas obras Teoria dos
Sentimentos Morais e Riqueza das Nações. Além da base que são essas duas
obras smithianas, utilizar-se-á na pesquisa bibliográfica, método o qual foi utilizado
na pesquisa, alguns comentadores como Ana Maria Bianchi, Denise dos Santos,
César Augusto, Solange Marin. Para esse fim, dividimos de forma didática este
breve estudo em três capítulos.

O primeiro capítulo será dividido em três partes. Na primeira parte veremos os


conceitos estabelecidos por Smith, em sua obra A Teoria dos Sentimentos Morais, a
fim de favorecer uma melhor compreensão do comportamento das pessoas, diante
de seus hábitos e costumes, que interferem na construção da sociedade. Na
segunda parte, apresentamos o conceito de espectador imparcial que traz grande
contribuição analítica diante do comportamento das pessoas que buscam aprovação
social. Na terceira parte, expomos a relação de busca dos indivíduos por um
prestígio social e o conceito de homem prudente que, para Smith, reflete a perfeição
das virtudes morais.

O segundo capítulo será dividido em três partes. Na primeira, veremos sobre


o aspecto da divisão do trabalho na obra A Riqueza das Nações. Na segunda parte,
abordaremos o conceito do trabalho produtivo e improdutivo, de que modo ambos
estão interligados e um gera valor e o outro não. Na terceira parte, apresentamos
12

alguns aspectos dos fisiocratas que, de algum modo, influenciaram Smith e que
possibilitaram um posicionamento diferente sobre a concepção de riqueza e a crítica
a Bernard Mandeville.

No terceiro capítulo, apresentamos, na primeira parte, os aspectos de noção


de trabalho e valor. Na segunda parte, denotaremos a metáfora de mão invisível
utilizada por Smith em sua obra Riqueza das Nações e como se dá o processo de
autorregulamentação dos preços das mercadorias.

Em 11 de março de 2020, a COVID-19 foi caracterizada pela OMS como uma


pandemia. Devido a este acontecimento, houve uma grande mudança no
comportamento social e no desenvolvimento econômico das nações, pois devido as
orientações das autoridades competentes na área da saúde, estabeleceu-se o
lockdown em muitos lugares. Muitas das formas de encontros entre as pessoas,
passou-se a acontecer de forma on-line. O comércio e diversas empresas sofreram
o impacto econômico desta catástrofe, fato que ocasionou demissões em larga
escala e muitas pessoas tiveram que fechar suas empresas. Daí a relevância deste
nosso trabalho, pois, assim como aconteceu uma grande revolução social e
econômica na época de Smith, também aconteceu em nosso tempo contemporâneo.
Durante a aula de Introdução a Economia, na Faculdade Católica de Fortaleza, com
o professor Daniel Benevides, que acontecia de modo on-line, conhecer a teoria de
divisão do trabalho de Smith, foi de tamanha importância para esta pesquisa que,
aborda primeiro aspectos relacionados ao ser humano e, posteriormente, a atividade
do trabalho que ele desenvolve.

Assim, Smith se destaca de outros economistas que o antecederam por ter


sido o primeiro a desenvolver um modelo abstrato completo e relativamente
coerente das raízes, das estruturas e funcionamento do sistema capitalista.
Percebeu as importantes relações entre as principais classes sociais, os diversos
setores de produção, a forma como se distribuía a riqueza e a renda, o comércio, a
movimentação da moeda, os procedimentos para a formação dos preços e os
procedimentos de expansão econômica.

Com as Considerações Finais, apresenta-se uma apuração em que se verifica


se a pergunta inicial foi respondida satisfatoriamente.
13

2. BREVE CONTEXTO HISTÓRICO

O período da Revolução Industrial, que se iniciou na Inglaterra e na Escócia


por volta do século XVIII e início do século XIX, alastrou-se por várias partes da
Europa Ocidental. Em torno de 1700 e 1770, houve um vasto crescimento dos
mercados externos comparado ao mercado interno dos ingleses; devido a esse
rápido crescimento na busca de produtos industrializados dos ingleses,
desencadeou-se a Revolução Industrial e, tal fato, ocasionou uma das
transformações mais significativas da história da humanidade. A indústria têxtil, a
indústria metalúrgica, o investimento de muitos empresários e a invenção do motor a
vapor tiveram importante contribuição para essa ascensão da indústria. Esta
Revolução Industrial transformou a Inglaterra em um país com diversos centros
urbanos industriais; a produtividade desenvolveu- se rapidamente e colocou a
Inglaterra no destaque de maior potência econômica e política do século XIX (HUNT;
LAUTZENHEISER, 2013, p.79-81).
Neste contexto, a obra que marca o início da ciência econômica é a Riqueza
das Nações, de Adam Smith, apresentada pela primeira vez, em 1776. Esta obra
desenvolvida por Smith - e, por consequência, a economia política -, apareceu no
decorrer do processo de vários elementos que foi conhecido como "A Grande
Transformação", simultâneo ao aparecimento da sociedade de mercado. Essa modo
de economia e de sociedade manifestou-se pela primeira vez na história da
humanidade. Vale ressaltar que a transformação mencionada é multifacetada e a
econômica é apenas uma. Esta grande transformação alcançou o clímax de uma
revolução ética profunda e extensiva, onde valores tradicionais ganharam novos
aspectos ao serem questionados. Desse modo, destacamos em nossa apresentação
o fato de que, o fundador da Economia Política, Adam Smith, foi também professor
de Filosofia Moral na Escócia.
Assim, para melhor compreensão da Riqueza das Nações, precisamos
adentrar, brevemente, na obra anterior de Smith, a Teoria dos Sentimentos Morais,
publicada em 1759. Parte dessa exposição será aplicada no contexto em que Smith
foi formado, que resplandece em sua primeira obra: numa parte, o influxo de seu
grupo de filósofos éticos do Reino Unido, dentre eles David Hume, seu docente e
amigo, autor do qual expomos mais adiante uma breve comparação a respeito do
conceito de simpatia abordado por ele; na outra parte o influxo de Bernard de
Mandeville, que tinha uma ética de resultados, de natureza teleológica, que se
preocupa mais com as
14

consequências das ações do que com o caráter de conduta moral de quem pratica as
ações (BIANCHI; SANTOS, 2005, p. 1-2).

2.1 O CONCEITO DE SIMPATIA

Nesta seção adentraremos em alguns conceitos que Smith apresenta em sua


obra Teoria do Sentimentos Morais, pois é de grande importância a conduta moral
das pessoas no processo de construção da sociedade.
De acordo com Smith (2015, p. 22), o relacionamento dos homens entre si é
umas das questões que têm maior relevância quando se busca compreender como
ele está fundamentado no corpo social e quais são os seus princípios de aprovação.
Ele questiona o porquê de alguns indivíduos serem considerados agradáveis e
outros não, e o porquê de certos modos de condutas serem dignos de recompensas
enquanto outros de críticas.
Três fatores são analisados por Smith, na obra Teoria dos Sentimentos
Morais, por Smith a respeito da aprovação social. Uma primeira causa está
relacionada à tendência das ações que fazem com que a vida atuante do sujeito seja
julgada de modo prazeroso ou de modo desprezível. Em outros termos, o egoísmo
predomina diante de suas ações.

Por mais egoísta que se suponha o homem, evidentemente, há alguns


princípios em sua natureza que o fazem interessar-se pela sorte de outros,
e considerar a felicidade deles necessária para si mesmo, embora nada
extraia disso senão o prazer de assistir a ela. Dessa espécie é a piedade, ou
compaixão, emoção que sentimos ante a desgraça dos outros, quer quando
a vemos, quer quando somos levados a imaginá-la de modo muito vivo
(SMITH, 2015, p. 83).

A segunda causa está ligada ao aspecto da razão, pois por ela é possível
fazer a distinção entre os afetos e as ações que poderiam ser apontadas como
pertinentes ou impertinentes, e, por último, se aplica a respeito do sentimento que é
gerado como consequência das ações alheias, podendo ser satisfatória ou não. “A
razão numa criatura é uma faculdade de ampliar as regras e intenções do uso de
todas as suas forças muito além do instinto natural, e não conhece limites algum
para os seus projetos” (KANT, 2013, p. 5), e se não fosse por ela, de acordo com
Smith (2015, p. 20), os juízos morais elaborados pelos cidadãos poderiam ser
condicionados aos sentimentos e emoções, os quais passam por oscilações diante
de diversas situações
15

e que não são capazes de, por si só, estabelecer uma via segura de conduta, o que
difere de sua capacidade racional.
Em relação ao ensino de que a razão é utilizada como preceito de aprovação,
para Smith (2015, p. 21), esse argumento é válido até certo ponto, visto que, a vida
virtuosa tem uma relação inerente com a razão, pois as pessoas, por meio do
intelecto, compreendem as normas justas que legitimam suas ações e condutas.
Além do mais, a vida moral, para Smith (2015, p. 29), faz parte de uma junção entre
a indução e a experiência do indivíduo que, diante de várias circunstâncias, observa
quais ações agradam ou desagradam suas virtudes morais. Para o filósofo escocês,

[...] toda e qualquer experiência sobre as quais se fundamentam as regras


gerais e o princípio da aprovação são, antes, objetos originados de sentidos
e sentimentos imediatos, do que da razão. Para ele, a “simpatia” –
entendida como um conceito que surge a partir da análise de fenômenos
empíricos, isto é, do modo como as pessoas, com suas experiências
(primeiro aspecto fundamental da visão do homem construída por Smith) na
vida em sociedade incorporam sentidos de moralidade – é suficiente para
explicar o princípio da aprovação (SANTOS; MARIN, 2014, p. 4).

Assim, as pessoas, ao imaginar-se umas na conduta das outras, acercam-se


de sua capacidade de vivenciar uma unidade de sensações e, através delas,
desenvolvem um juízo moral a respeito das paixões, que originam as atitudes, e que
são refletidas na individualidade do outro; até mesmo entre os malfeitores, este
sentimento de colocar-se no lugar do outro está presente.

Embora nosso irmão esteja sendo torturado, enquanto nós mesmos


estamos tranquilos, nossos sentidos jamais nos informarão sobre o que ele
sofre. Pois não podem, e jamais poderão levar-nos para além de nossa
própria pessoa, e apenas pela imaginação nos é possível conceber, em
parte, quais as suas sensações. (...) nossa imaginação apenas reproduz as
impressões de nossos sentidos, e não as alheias. Por intermédio da
imaginação podemos nos colocar no lugar do outro, concebemo-nos
sofrendo os mesmos tormentos, é como se entrássemos no corpo dele e de
certa forma nos tornássemos a mesma pessoa, formando assim, alguma
ideia das suas sensações, e até sentindo algo que, embora em menor grau,
não é inteiramente diferente delas. (...) pois assim como sentir uma dor ou
uma aflição qualquer provoca a maior tristeza, do mesmo modo conceber ou
imaginar que a estamos sofrendo provoca certo grau da mesma emoção, na
medida da vivacidade ou embotamento dessa concepção (SMITH, 2015, p.
84).

É interessante analisar que a perspectiva de David Hume traz como valor de


que o conceito de simpatia, explanado por ele, está mais relacionado ao fato da
pessoa reconhecer um benefício ou prejuízo, de ganho ou de perda diante de uma
16

ação recebida de outrem, o que diferencia de Smith, que o tem como o


compartilhamento dos sentimentos entre os indivíduos. Assim, para Smith (2015, p.
33), ela pode ser utilizada para expressar a solidariedade diante de qualquer paixão.
“Dor e alegria, por exemplo, intensamente expressas no olhar ou gestos de qualquer
pessoa, imediatamente afetam o espectador com uma semelhante emoção dolorosa
ou agradável” (SMITH, 2015, p. 85).
Diante dos relacionamentos que são construídos no corpo social, nos
julgamentos elaborados pelas pessoas, Smith traz, também, o conceito do
espectador imparcial como exemplo que sinaliza as ações dos homens que se
adequam no convívio social. Abordaremos a seguir como esse conceito tem grande
relevância para uma melhor compreensão da análise smithiana das diversas
relações, costumes e o auto interesse das pessoas na sociedade.

2.2 - O ESPECTADOR IMPARCIAL

Dentro das relações que vão se constituindo entre as pessoas no corpo social, é
reconhecido por Smith que em cada indivíduo existem os sentimentos, afetos e
desapreços que fazem parte do seu ser e que esses aspectos podem interferir
diante de um julgamento justo, por isso, faz-se necessário um distanciamento para
uma avaliação imparcial.

Esse distanciamento é concretizado, em Adam Smith, através da


apresentação do espectador imparcial (impartial spectator), emblemático da
capacidade de auto refletividade, aquela que apreende e pondera
julgamentos considerando o conjunto dos elementos envolvidos num
acontecimento. De fato, ao instituir esse recurso Smith não contempla
apenas um espectador externo, mas também interno, que define como o “o
homem dentro do peito – o grande juiz e árbitro de suas condutas –
(RODRIGUES, 2013, p. 126).

Refere-se, assim, ao próprio eu de cada indivíduo, que observa a si e aos


demais, e que cria um diálogo interior com sua consciência para poder julgar. De
acordo com Smith o espectador imparcial é aquele que nos mostra “o que nos diz
respeito em sua forma e dimensões apropriadas; ou que poderemos estabelecer
uma comparação apropriada entre nossos interesses e os de outras pessoas”
(SMITH,
17

2015, p. 234). Realmente, o esforço próprio pelo autodomínio é valorizado pelo


espectador imparcial, pois possibilita que o indivíduo tenha ações prudentes no
tempo presente e contemple suas consequências no tempo vindouro (id, 2015, p.
244).
Diante da observação estabelecida por Smith, os comportamentos e atitudes
dos indivíduos na sociedade precisam da aprovação, não apenas daqueles que lhes
são próximos, mas faz-se necessária uma análise de um espectador imparcial, que
estabelece um critério de julgamento conforme a sua consciência particular,
consciência que se forma como um produto social (VIVENZA apud SANTOS;
MARIN, 2014, p. 7).

Mas o único modo de fazermos isso é tentar divisá-los com os olhos de


outras pessoas, isto é, como provavelmente outras pessoas os veriam. Todo
juízo que formemos sobre eles, portanto, deverá guardar necessariamente
uma secreta relação, seja com o que é, seja com o que seria em certas
condições – ou com o que imaginamos deveria ser – o juízo dos outros.
Empenhemo- nos em examinar nossa própria conduta como imaginamos
que outro espectador imparcial e leal a examinaria. Se, colocando-nos em
seu lugar, conseguimos compartilhar inteiramente as paixões e motivos que
a determinaram, nós a aprovamos por simpatia com a aprovação desse
suposto equitativo juiz. Se, ao contrário, compartilhamos sua desaprovação,
condenamos essa conduta (SMITH, 2015, p. 210-211).

Para Smith (2015, p. 210), não seria possível pessoa alguma viver sem um
referencial de uma outra pessoa, pois o seu processo de maturidade humana
poderia ficar comprometido e a análise de suas ações, o fato de pensar sobre si –
caráter, sentimento, os próprios valores morais – não alcançariam seu pleno
potencial por falta de um parâmetro. “Tragam-na para a sociedade, e será
imediatamente provido do espelho de que antes carecia; (...) é aí que, pela primeira
vez, verá a conveniência ou inconveniência de suas próprias paixões, a beleza ou
deformidade de seu espírito” (SMITH, 2015, p. 211).

O espectador imparcial forma seus juízos a partir dos reflexos de sua


imagem no conjunto de espelhos em que se mira. A experiência e a
observação em sociedade ensinam cada um a julgar com razoável
neutralidade o conteúdo moral de diversas situações de sua vida, com um
grau tolerável de proximidade do que seria o juízo do espectador imparcial
(SANTOS; BIANCHI, 2007, p. 639).

No modo das relações morais analisadas por Smith, o fato de a simpatia


possuir uma singularidade no compartilhamento das emoções entre as pessoas,
sendo uma força atrativa das emoções, o espectador imparcial atua como uma
forma de controlar
18

essa força atrativa. Diante da relação desses dois aspectos presentes em cada
indivíduo, simpatia e espectador imparcial, torna-se possível a relação social entre
as pessoas e a existência de ações virtuosas entre si (QUINTANA apud SANTOS;
MARIN, 2014, p. 7). E qual é a motivação que as pessoas têm na busca pela
virtude? Esse apreço por uma conduta virtuosa, assim como as paixões humanas,
estão relacionadas a uma busca individual de reconhecimento e aprovação dos
demais. Essa aprovação será efetiva quando não houver questionamentos a
respeito da conduta que não sofreria alterações, mesmo sendo analisado por
quaisquer observadores imparciais (SANTOS; MARIN, 2014, p. 8 ). “Portanto,
parecerá merecedor de recompensa quem, para alguma pessoa ou pessoas, é
objeto natural de uma gratidão que todo o coração humano esteja disposto a
experimentar, e, por essa razão, a aplaudir” (SMITH, 2015, p. 160)
Essa busca de reconhecimento e aprovação que faz parte do desejo humano,
é analisado por Smith (2015, p. 118), que, até certo ponto comunga com o
estoicismo, segundo cuja interpretação, todo homem busca primeiramente um
autocuidado em relação aos seus interesses e nas coisas que dizem respeito
àqueles que lhe são mais próximos. Ao acontecer alguma tragédia ou uma situação
adversa com pessoas desconhecidas, ele não terá o mesmo grau de sentimento de
dor, de preocupação; o que seria diferente se acontecessem tais situações consigo.
O espectador imparcial jamais poderá concordar com um ato de auto preservação
de um indivíduo, que, para evitar algum infortúnio ou até sua própria ruína, coloca
em detrimento a vida de outros (SANTOS; MARIN, 2014, p. 8).

Naturalmente o homem não apenas deseja ser amado, mas amável; ou ser
objeto natural e apropriado de amor. Naturalmente não apenas teme ser
odiado, mas ser odioso; ou ser objeto natural e apropriado de ódio. Não
deseja apenas louvor, mas o que é digno de louvor; ou, ainda que não
louvado por ninguém, ser objeto natural e apropriado de louvor. Tem horror
não apenas à censura, mas ao que é digno de censura; ou, embora
ninguém o censure, ser, contudo, objeto natural e apropriado de censura;
(...) o amor e admiração que naturalmente concebemos por aqueles cujo
caráter e conduta aprovamos predispõe-nos, necessariamente, a desejar
nos convertermos em objetos dos mesmos sentimentos agradáveis, e
sermos tão amáveis e admiráveis quanto aqueles a quem mais amamos e
admiramos;(...) para obtermos essa satisfação devemos nos tornar
espectadores imparciais de nosso próprio caráter e conduta. É preciso nos
esforçarmos para vê-los com os olhos de outras pessoas, ou como outras
pessoas provavelmente os verão. Vistos nessa luz, se nos aparecem como
desejamos, ficamos felizes e contentes (SMITH, 2015, p. 214).
19

Conforme exposto acima, é possível intuir que, para Smith, por ser os indivíduos
agentes sociais, eles não ignoram o julgamento formado pelos demais indivíduos a
respeito de sua conduta e se esforçam na busca de aprovação. Com esse intuito, de
modo natural as pessoas regulam seus hábitos e comportamentos. Assim,
apresentamos o conceito de homem prudente elaborado por Smith na obra Teoria
dos Sentimentos Morais.

2.3 A BUSCA PELA AUTORREALIZAÇÃO E O CONCEITO DE HOMEM PRUDENTE

Ao ser analisada por Smith (2015, p. 331) a conexão de caráter pessoal e a


sua busca por uma autorrealização, depreende-se que, diante do desenvolvimento
das pessoas, elas amadurecem seu pensamento, tornando consciente a importância
de se desenvolver e garantir os meios necessários, diante de suas necessidades
naturais – a fome e a sede –, e fazem o necessário para se adaptar às circunstâncias
de frio e calor, sendo preventivos e cautelosos em obter o prazer e evitar a dor. "Na
orientação adequada desse cuidado e previsão consiste a arte de conservar e
intensificar o que se chama a sua fortuna externa" (SMITH, 2015, p. 331).
Mesmo que a fortuna externa tenha como finalidade a provisão básica para a
subsistência do ser humano, este compreende que alcança um prestígio social e
admiração das outras pessoas conforme o nível de posse, ou aparência de posse,
de sua fortuna externa (SMITH, 2015, p. 331). Baseado neste reconhecimento,
Smith investiga a origem desse sentimento, presente no homem, e o relaciona ao
modo de que:

O homem de honra e distinção é notado por todos. Todos anseiam por


contemplá-lo, e conceber, por simpatia, a alegria e exultação que suas
condições naturalmente inspiram. Suas ações são objeto de atenção
pública. Dificilmente lhe escapa um gesto ou uma palavra que passe
despercebido. Numa grande reunião, é a pessoa para a qual todos dirigem
seus olhares. É isso que, não obstante a consequente perda de liberdade,
confere grandeza ao objeto de inveja, e compensa na opinião dos homens
todas a fainas, todas as ansiedades, todas essas mortificações a que deve
se submeter quem busca a atenção geral. Essa aquisição o faz perder o
direito a todo o ócio e toda a tranquilidade (SMITH, 2015, p. 138).
20

Smith indica três maneiras diferentes que proporcionam, direta ou


indiretamente, a busca das pessoas por um prestígio da sociedade – o desejo pela
sabedoria, a vivência das virtudes morais e a busca pela fama e riqueza financeira
(SANTOS; MARIN, 2014, p. 11) –; “Mais ainda, é sobretudo por considerarmos os
sentimentos da humanidade que perseguimos a riqueza e evitamos a pobreza”
(SMITH, 2015, p. 137); conforme seu pensamento, o condicionamento de pessoas
famosas e mais favorecidas de fortunas externas, estimulam o anseio de outros
indivíduos a conquistarem semelhantes condicionamentos, que os buscam como
meta final de suas aspirações (SMITH, 2015, p. 129-142).

Pois de onde, então, origina-se essa emulação que perpassa todas as


diferentes ordens de homens, e a que benefícios aspiramos com esse
grande propósito da vida humana a que chamamos melhorar nossa
condição? Ser notado, servido, tratado com simpatia, complacência e
aprovação, são todos os benefícios a que podemos aspirar. É a vaidade,
não o bem-estar ou prazer que nos interessa. Mas a vaidade sempre se
funda sobre a crença de que somos objeto de atenção e aprovação (SMITH,
2015, p. 137).

Esta admiração dos indivíduos por pessoas famosas e de melhores


condições, chega a se equiparar a uma forma de idolatria e busca excessiva pelos
mesmos benefícios daqueles que aparentam desfrutar de semelhantes condições.
Os indivíduos de classes sociais inferiores, mesmo almejando por melhores
condições, são conscientes que ela é disponível apenas para alguns, e que, para
alcançar essa estima e se destacar na sociedade, será preciso empenhar um grande
esforço para conquistá-lo (SANTOS; MARIN, 2014, p. 11).
Assim, Smith (2015, p. 142-143) exemplifica que os indivíduos originários de
classes mais simples, expõem-se a diversas fadigas corporais e mentais, no intuito
de se destacar na vida profissional e alcançar um elevado status na sociedade.
Exercem um contínuo esforço para alcançar esse objetivo, na perspectiva de até
mesmo superar os demais concorrentes. Ao chegar na meta, buscam os meios para
manifestá-los na sociedade, e perseguem, durante todo o tempo, a ideia de
estabelecer um descanso artificial e bem-apresentado.

Deverá adquirir um conhecimento superior em sua profissão, e uma


superior indústria no exercício dela. Deverá ser paciente no trabalho, firme
nas aflições. Precisará trazer tais talentos à vista do público, pela
dificuldade, importância e ao mesmo tempo discernimento de seus
empreendimentos, e pela severa e incansável aplicação com que os
persegue. Probidade e
21

prudência, generosidade e franqueza deverão caracterizar seu


comportamento em todas as ocasiões comuns (SMITH, 2015, p. 143).

Esta índole relacionada às virtudes que caracteriza o comportamento dos


indivíduos refletirá, como vimos, no “cuidado de si, que inclui aspectos como saúde,
reputação, posição, reconhecimento, fortuna no sentido de riqueza, depende
teoricamente da virtude da prudência, que varia em graus e reduz os riscos,
aumentando a segurança” (SANTOS, 2012, p. 124). O homem prudente reúne em si
diversas características que influenciam objetivamente em suas relações sociais,
concebendo positivamente a aceitação das demais pessoas, pois possui a
capacidade de adquirir conhecimentos concretos em sua vida profissional por sua
habilidade de integrar bem seus negócios, sendo moderado em suas despesas
(RODRIGUES, 2013, p. 124-125). Smith ainda destaca:

O homem prudente é sempre sincero, e sente horror ao mero pensamento


de expor-se à desgraça que se segue à descoberta da falsidade. Ainda que
sempre sincero, contudo, nem sempre é franco e aberto, (...) é cauteloso em
suas ações, também é reservado no seu discurso, e jamais expressa
precipitada ou desnecessariamente sua opinião sobre coisas ou pessoas. O
homem prudente, embora nem sempre se destaque pela mais delicada
sensibilidade, é sempre capaz de manter amizades (...) constantes e fiéis,
com poucos companheiros bem examinados e bem escolhidos, em cuja
escolha não é guiado pela frívola admiração das realizações brilhantes, mas
pela sóbria estima da modéstia, discrição e boa conduta. Ele odeia a ideia
de ser culpado de petulância ou grosseria; nunca é impertinente em relação
a quem quer que seja e, em todas as ocasiões comuns, de boa vontade
coloca- se antes abaixo do que acima dos seus iguais. O homem prudente é
sempre amparado e recompensado pela inteira aprovação do espectador
imparcial, o homem que o peito encerra (SMITH, 2015, p. 333- 334).

Por sua ampla aprovação nas relações sociais, a perda da comodidade é, às


vezes, necessária ao homem prudente; Smith explica que a prudência, não é vista
como uma das virtudes mais caras ou nobres, “ela conquista certa estima fria, mas
não parece ter direito a um ardente amor e admiração” (SMITH, 2015, p. 333). Essa
prudência é definida como a conduta sábia e judiciosa que pode ser orientada para
os cuidados mais nobres que os de si; a prudência também pode designar uma
prudência superior, sinônimo de perfeição, indicando arte, talento ou disposição para
agir (RODRIGUES, 2013, p. 125). “Trata-se da extrema perfeição de todas as
virtudes morais e intelectuais, unindo cabeça e coração, o caráter do homem sábio"
(SMITH, 2015, p. 336).
22

Ao contrário do homem prudente, Smith explica, também, sobre o homem


imprudente:

A mera imprudência, ou a mera falta de capacidade de cuidar de si mesmo,


é para os generosos e humanos objeto de compaixão; para os de
sentimentos menos delicados, de negligência ou, pior, de desprezo, mas
nunca de ódio ou indignação. Quando combinada a outros vícios, porém,
agrava sobremaneira a infâmia e desgraça que por outras razões os
acompanhariam; [...] Um homem tolo, perverso e indigno apresenta-se
sempre como o mais odioso e o mais desprezível dentre todos os mortais.
Do mesmo modo como a prudência, combinada com as outras virtudes,
constitui o mais nobre dos caracteres, a imprudência, combinada com
outros vícios, constitui o mais vil (SMITH, 2015, p. 337-338).

O pensamento smithiano (2015, p. 332), ressalta que o valor de prestígio


social de cada indivíduo considerado virtuoso deveria provir de seu caráter humano,
de sua boa conduta, e não do modo superficial relacionado a sua fortuna ou
aparência de fortuna externa que ele venha possuir.

Disto, surge o conceito smithiano de homem prudente, cujo caráter é capaz


de personificar a maioria das pessoas; [...] é possível argumentar que, para
ele, é a prudência, e não o egoísmo, o princípio humano responsável pela
propensão a troca, o aprimoramento da divisão do trabalho e o
desenvolvimento de instituições como a Moeda e os Mercados, analisadas
por ele na RN (SANTOS; MARIN, 2014, p. 13-14).

Para Smith, a causa primária que fundamenta a aprovação dos indivíduos na


sociedade, não está relacionada ao egoísmo ou à sua capacidade intelectual – mas
ao sentimento. Ao se colocarem uns nos lugares dos outros, compartilham um
mesmo conjunto de sentimentos e, através deles, estabelecem os julgamentos
mútuos. É colocando-se no lugar do outro, que Smith estabelece o conceito de
simpatia, que, em conjunto ao conceito de espectador imparcial, torna-se possível a
conduta virtuosa dos indivíduos dentro da sociedade.
Portanto, para aprofundar o conceito de auto interesse ou amor-próprio que
está na obra Riqueza das Nações, foi necessária essa prévia de alguns aspectos da
abordagem moral presentes na obra Teoria dos Sentimentos Morais. Esse empenho
na busca por aprovação motiva a divisão do trabalho, como veremos a seguir.
23

3. A DIVISÃO DO TRABALHO

Para o filósofo smithiano, fundamentador da economia política, a base da


riqueza das nações se constitui na divisão do trabalho, dado que a capacidade de
cada indivíduo de se especializar, contribui de modo privilegiado no benefício da
produtividade (BIANCHI; SANTOS, 2005, p. 10). Assim, “o aprimoramento das
forças produtivas do trabalho, e a maior parte da habilidade, destreza e bom senso
com os quais o trabalho é em toda parte dirigido ou executado, parecem ter sido
resultados da divisão do trabalho” (SMITH, 1996, p. 17).

Se antes um homem precisava ele mesmo construir sua casa, fazer suas
roupas, preparar sua comida e seus utensílios, numa sociedade com divisão
do trabalho, ele pode dedicar-se exclusivamente ao ofício em que se tornará
mais produtivo, de modo que poderá trocar sua produção por muito mais
bens do que se ele tivesse tentado ele mesmo produzir cada bem
(BIANCHI; SANTOS, 2005, p. 10).

Smith (1996, p. 11) explica que o empenho trabalhista de cada nação


fornecerá os bens necessários e o bem-estar material que serão consumidos
anualmente e, de acordo com o empenho produtivo, terão maiores ou menores
índices de consumo conforme o número dos indivíduos consumidores diante de
suas necessidades; em cada nação essa proporção se regula de duas formas:

Primeiro – pela habilidade, destreza e bom senso com os quais seu trabalho
for geralmente executado; segundo – pela proporção entre o número dos
que executam trabalho útil e o dos que não executam tal trabalho. Qualquer
que seja o solo, o clima ou a extensão do território de uma determinada
nação, a abundância ou escassez do montante anual de bens de que
disporá, nessa situação específica, dependerá necessariamente das duas
circunstâncias que acabamos de mencionar (SMITH, 1996, p. 11).

O processo da divisão trabalhista tem base na disposição de troca, que Smith


atribui como algo natural aos homens. Por sua vez, esta divisão do trabalho está
vinculada no auto interesse de cada indivíduo que, ao se capacitar e aumentar a sua
produção para a troca, poderá, no final, obter um modo de consumo maior,
comparado àquele em que se esforçasse por produzir sozinho os bens de que
necessita (BIANCHI; SANTOS, 2005, p. 10). Conforme o filósofo escocês, “a divisão
do trabalho,
24

na medida em que pode ser introduzida, gera, em cada ofício, um aumento


proporcional das forças produtivas do trabalho; o trabalho que é necessário para
fabricar um produto completo quase sempre é dividido entre grande número de
operários” (SMITH, 1996, p. 18).
Esse processo, que divide o trabalho, desenvolve uma proliferação de
diferentes trabalhos concretos, que estabelecem condições históricas que
possibilitam dar um passo a mais à noção de trabalho abstrato, noção que abstrai
características particulares diante de cada modo de trabalho (NUNES, 2010, p. 7).
Diante da necessidade de produção para o consumo dos indivíduos, Marx contribui
com a seguinte análise:

A produção não apenas fornece à necessidade um material, mas também


uma necessidade ao material. O próprio consumo, quando sai de sua
rudeza e imediaticidade originais – e a permanência nessa fase seria ela
própria o resultado de uma produção aprisionada na rudeza natural –, é
mediado, enquanto impulso, pelo objeto. A necessidade que o consumo
sente do objeto é criada pela própria percepção do objeto. O objeto de arte
– como qualquer outro produto – cria um público capaz de apreciar a arte e
de sentir prazer com a beleza. A produção, por conseguinte, produz não
somente um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto.
Logo, a produção produz o consumo, na medida em que 1) cria o material
para o consumo; 2) determina o modo do consumo; 3) gera como
necessidade no consumidor os produtos por ela própria postos
primeiramente como objetos. Produz, assim, o objeto do consumo, o modo
do consumo e o impulso do consumo. Da mesma forma, o consumo produz
a disposição do produtor, na medida em que o solicita como necessidade
que determina a finalidade (MARX, 2011, p. 66).

Assim, como observa Smith (1996, p. 26-7), não é da boa vontade do


açougueiro, do cervejeiro, do padeiro que aguardamos a nossa refeição, mas sim da
atenção que ele tem diante de seus próprios interesses, que produzem, não para ver
os consumidores satisfeitos, mas para obter algo em troca. Para Smith “é muito
vantajoso ganhar tempo na produção não alterando a função do trabalho, quanto
mais uma pessoa se dedicar a um tipo de trabalho, mais ela produzirá” (SMITH,
1996, p. 20).

Esse grande aumento da quantidade de trabalho que, em consequência da


divisão do trabalho, o mesmo número de pessoas é capaz de realizar, é
devido a três circunstâncias distintas – em primeiro lugar, devido à maior
destreza existente em cada trabalhador; em segundo, à poupança daquele
tempo que, geralmente, seria costume perder ao passar de um tipo de
trabalho para outro; finalmente , à invenção de um grande número de
máquinas que facilitam e abreviam o trabalho, possibilitando a uma única
25

pessoa fazer o trabalho que, de outra forma, teria que ser feito por muitas –
(SMITH, 1996, p. 19).

Este procedimento, relacionado à troca, é uma atividade exclusivamente


humana e de nenhuma forma ela será encontrada em outra raça de animais, que
não demonstram conhecimento em questões de contratos e agem de comum acordo
(SMITH, 1996, p. 24). “O homem tem necessidade quase constante da ajuda dos
semelhantes, e é inútil esperar esta ajuda simplesmente da benevolência alheia. Ele
terá maior probabilidade de obter o que quer, se conseguir interessar a seu favor a
autoestima dos outros” (id, 1996, p. 25). Podemos, assim, alegar que a base última
da riqueza das nações é o auto interesse, pois estimula o processo de divisão do
trabalho. Mesmo que os indivíduos tenham interesses particulares, não significa
dizer que eles são puramente egoístas, ou que não tenham a capacidade de se
colocar no lugar do outro, mesmo em sua vida financeira (BIANCHI; SANTOS, 2005,
p. 11). A crítica smithiana tem uma outra vertente:

Smith exalta o comportamento dos indivíduos parcimoniosos e prudentes,


que deixam de gastar para investir seu capital em atividades produtivas. No
outro extremo, ele condena as classes sociais que empregam trabalho não-
produtivo, alimentadas pela atitude preguiçosa e dissipativa da aristocracia
e sua tendência a empregar vastas quantias de dinheiro em serviços
domésticos e itens supérfluos, ao invés de investi-las para gerar lucro
(BIANCHI; SANTOS, 2005, p. 11).

Desse modo, o homem prudente é o principal protagonista da nova classe


social comercial, que não vê, na fortuna externa, uma fonte de devassidão, e sim
uma ferramenta para alcançar a segurança econômica, principal objeto da
prudência. Aí se encontra a conexão entre as duas obras de Smith; o modo de
proceder do homem de negócios prudente é acolhido como uma espécie de boa
conduta moral (BIANCHI; SANTOS, 2005, p. 12).
Considera-se, como vimos acima, que a pergunta de partida foi respondida
nesta seção, pois a divisão do trabalho tem como base o auto interesse e este traz
benefícios, tanto para o indivíduo que se especializa, quanto para toda a sociedade
em que se encontra inserido. É oportuno destacar, em comunhão com o
pensamento do Papa São João Paulo II, que, “é como pessoa, pois, que o homem é
sujeito do trabalho. É como pessoa que ele trabalha e realiza diversas ações que
fazem parte
26

do processo do trabalho; estas, independentemente do seu conteúdo objetivo,


devem servir todas para a realização da sua humanidade” (1981, p. 9) e, ele, como
pessoa, jamais pode ser tratado como uma mercadoria ou ser desconstituído do seu
valor de pessoa, pois se assim o for, correr-se-á o risco de não alcançar a realização
de uma vida plena, virtuosa e tornar-se-á produto de sua própria invenção.
Através do trabalho, do aprimoramento técnico de produção, os
trabalhadores são auxiliados no contínuo progresso de desenvolvimento das
ciências para que as pessoas tenham o necessário para sua subsistência e a
capacidade prudente de contribuir para o bem de toda a sociedade; e para que
ninguém seja excluído do seu âmbito social, a economia deve ser colocada em
prática, segundo o Papa Francisco, “como uma economia diferente, que faz viver e
não mata, inclui e não exclui, humaniza e não desumaniza, cuida da criação e não a
devasta” (2020, p. 1).
Veremos na próxima etapa a respeito do conceito de trabalho produtivo e
improdutivo para Smith.

3.1 O CONCEITO DE TRABALHO PRODUTIVO E IMPRODUTIVO

Para o filósofo escocês, existe um modo de trabalho que agrega um valor ao


produto sobre o qual é fabricado e um outro que não tem o mesmo efeito. O
primeiro, por agregar valor, é chamado de produtivo; o outro, de trabalho improdutivo
(SMITH, 1996, p. 333). Por este aspecto da divisão do trabalho, os indivíduos estão
inseridos “num processo produtivo que o mantém em conexão com os demais, pois
são muito poucas as necessidades que o homem consegue atender com o produto
de seu próprio trabalho. A maior parte delas deverá ser atendida com o produto do
trabalho de outros” (CERQUEIRA, 2004, p. 435).

Assim, o trabalho de um manufator geralmente acrescenta algo ao valor dos


materiais com que trabalha: o de sua própria manutenção e o do lucro de
seu patrão. Ao contrário, o trabalho de um criado doméstico não acrescenta
valor algum a nada. Uma pessoa enriquece empregando muitos operários, e
empobrece mantendo muitos criados domésticos. O trabalho destes últimos
não deixa de ter o seu valor, merecendo sua remuneração tanto quanto o
dos primeiros. Mas o trabalho do manufator fixa-se e se realiza em um
objeto específico ou mercadoria vendável, a qual perdura, no mínimo, algum
tempo depois de encerrado o trabalho (SMITH, 1996, p. 333).

O trabalho produtivo é exemplificado por Smith, de diversas formas e, algumas


27

delas encontram desafios por conta da extensão do mercado, por exemplo, as


pessoas que vivem numa aldeia montanhosa mais distante, têm o dever de aprender
muitos ofícios para subsistir naquela região, devido a distância e a escassez de
profissionais; de um modo autônomo elas desenvolvem a capacidade de se
especializar em grande número de ofícios e trabalhos, para os quais, se estivessem
próximas a regiões mais desenvolvidas e mais povoadas, acionariam pessoas mais
capacitadas para prestar esses serviços (SMITH, 1996, p. 27-28).
Diante de trabalhos que estão inseridos em categorias sociais mais
veneráveis, Smith (1996, p. 334) faz uma comparação análoga ao trabalho dos
criados domésticos
– eles não possuem nenhum valor produtivo, pois suas atividades não geram
nenhuma mercadoria que possa ser vendida e que permaneça após encerrar seu
expediente.

O soberano, por exemplo, com todos os oficiais de justiça e de guerra que


servem sob suas ordens, todo o Exército e Marinha, são trabalhadores
improdutivos. Servem ao Estado, sendo mantidos por uma parte da
produção anual do trabalho de outros cidadãos. Seu serviço, por mais
honroso, útil ou necessário que seja, não produz nada com o que igual
quantidade de serviço possa posteriormente ser obtida. A proteção, a
segurança e a defesa da comunidade, o efeito do trabalho dessas pessoas,
neste ano, não comprarão sua proteção, segurança e defesa para o ano
seguinte. Na mesma categoria devem ser enquadradas algumas das
profissões mais sérias e mais importantes, bem como algumas das mais
frívolas: eclesiásticos, advogados, médicos, homens de letras de todos os
tipos, atores, palhaços, músicos, cantores de ópera, dançarinos de ópera
etc. O trabalho de qualquer dessas pessoas, mesmo da categoria mais
medíocre, tem um certo valor, regulado exatamente pelos mesmos
princípios que regulam o de qualquer outro tipo de serviço; e aquela das
mais nobres e mais úteis nada produz que pudesse posteriormente comprar
ou obter uma quantidade igual de trabalho. Paralelamente ao que ocorre
com a declamação do ator, a fala do orador ou a melodia do músico, o
trabalho de todos eles morre no próprio instante de sua produção (id., 1996,
p. 334).

Por isso, “a presença de mãos improdutivas é relacionada a padrões feudais


e ao estilo de vida ocioso e desfrutável da aristocracia agrária, enquanto a sociedade
atual é mais industriosa por haver menos gente empregada na manutenção da
ociosidade” (BIANCHI; SANTOS, 2005, p. 12), e os trabalhadores produtivos
constituem-se como aquela classe que produz “a riqueza imediata, material,
consistente em mercadorias, todas as mercadorias, excetuada a constituída pela
própria forma de trabalho” (MARX, 1980, p. 140). Embora haja o interesse particular
de cada indivíduo, Smith não deixa de considerar trabalho produtivo o que é gerado
28

por cooperação, como o do supervisor, do gerente, do auxiliar de escritório, que


participam de forma coletiva e que geram um produto final (NETO, 2013, p. 9).
Assim, Smith exalta a conduta do homem prudente que tem responsabilidade
diante dos seus investimentos de trabalhos produtivos, que geram benefícios para a
sociedade, e se contrapõe à conduta dos preguiçosos que se acomodam por possuir
terras. A seguir, veremos a crítica que Smith faz aos fisiocratas e a Bernard
Mandeville.

3.2 CRÍTICA AOS FISIOCRATAS E A BERNARD MANDEVILLE

A fisiocracia (do grego “Governo da Natureza”), surgida na França, é uma


teoria econômica que defendia o valor das terras agrícolas e o desenvolvimento das
terras, como único fator de geração de riquezas (FISIOCRACIA, 2023). Os
fisiocratas, seguidores do pensamento de François Quesnay (1694-1774),
constituíam-se como uma classe de franceses que, inseridos no âmbito de trabalhos
econômicos, interessavam-se pela reforma política da França; buscavam afligir as
associações de artesãos e de profissionais independentes e abolir os impostos que
atrapalhassem o comércio e a indústria. Esta reforma proposta pelos fisiocratas
encontraria obstáculos, pois eles não questionavam o direito da nobreza diante dos
rendimentos de suas terras, enquanto estes percebiam o empobrecimento dos
proprietários de terras e o crescimento da classe capitalista (HUNT;
LAUTZENHEISER, 2013, p. 71-72). E, de acordo com este fundamento, “os autores
prescrevem as regras supostamente mais vantajosas para a administração dos
negócios do Estado e para a convivência dos homens em sociedade” (BIANCHI,
1988, p. 102). De acordo com Quesnay,

Seus zig-zags descrevem o processo de circulação do produto líquido entre


as três classes da sociedade: a classe produtiva, integrada pelos
fazendeiros; a classe dos proprietários de terra, inclusive governo e
autoridades eclesiásticas; e a classe estéril, constituída pelos trabalhadores
da indústria. No quadro de Quesnay, a circulação de dinheiro e de produtos
é sujeita a leis, num processo cíclico, que se reproduz; (...) na circulação de
riqueza, o papel crucial cabe à classe produtiva, integrada pelos
fazendeiros. São estes os verdadeiros empresários, condutores e
organizadores do trabalho alheio. Para o melhor funcionamento do conjunto,
é necessário remover todos os obstáculos à livre exportação de cereais e
outras matérias-primas agrícolas, inclusive corvéias, guildas e outras
sobrevivências feudais. O comércio andaria melhor se deixado à própria
sorte com ampla liberdade de organização (BIANCHI, 1988, p. 103).
29

E Quesnay atribuiu à terra como fonte da qual provinha a riqueza; “mas


conseguiu distinguir a terra como fonte de poder e fator de conservação do status
quo, como patrimônio imobilizado, da terra como geradora de produto, graças à qual
a sociedade é nutrida pelo trabalho e pela iniciativa humana” (BIANCHI, 1988, p.
104).
Conforme alguns comentadores, esse contato que Smith teve com os
fisiocratas causou uma certa influência em seu pensamento diante do
desenvolvimento da obra Riqueza das Nações (HUNT; LAUTZENHEISER, 2013, p.
8), o qual estava de acordo com uma concepção liberal, diferente do sistema
mercantilista; esta concepção atribui ao Estado uma menor influência diante do
funcionamento livre do mercado, onde o comércio fluiria melhor se deixado à própria
sorte e com ampla liberdade para se organizar (BIANCHI, 1988, p. 103).

Por sua vez, a noção do trabalho produtivo como trabalho que produz
mercadorias serve para distingui-lo em relação aos mercantilistas e aos
fisiocratas. Os mercantilistas consideravam que a forma substancial de
constituição do valor se manifestava na forma dinheiro, e os fisiocratas
entendiam a terra como princípio constitutivo do valor; já Adam Smith
considerava a mercadoria como fundamento de toda a sua teoria do valor.
Enquanto fisiocratas e mercantilistas debatiam acerca da oposição entre
valor de uso (terra) e valor de troca (dinheiro), Smith consegue articular
valor de uso com valor de troca e apontar como produtivo todo trabalho que
produza mercadorias. Isso significa que a medida do valor das mercadorias
era determinada pelo tempo de trabalho social universal (NETO, 2013, p.
9).

Logo, “só pode ser produtivo o trabalho que tem lugar em um domínio tal que
a força natural do instrumento de trabalho patentemente permite ao trabalhador
produzir mais valores do que o que ele consome” (MARX, 1980, p. 409). Desse
modo, diferentemente da noção de riqueza constituída pelos fisiocratas, “o trabalho é
a medida real do valor de troca de todas as mercadorias” (SMITH, 1996, p. 87).

Era claramente diferente da realidade económica e social da França do


tempo dos fisiocratas, aquela que caracterizava a Inglaterra do tempo de
Adam Smith. E este conseguiu aperceber-se de algumas diferenças
fundamentais: por um lado, no que toca à agricultura, deu-se conta de que
os rendeiros (capitalistas) arrecadavam um rendimento que não era um
salário; por outro lado, conseguiu compreender que este lucro capitalista
não se confinava à agricultura: o lucro surgia agora de forma clara na
indústria, atividade em que o capital vinha encontrando o seu mais amplo
campo de aplicação (NUNES, 2010, p. 5).

Assim, se para o filósofo escocês a riqueza não provém da terra, como para
os fisiocratas, muito menos ela provinha dos vícios, como para Bernard Mandeville.
30
Este
31

último foi um filósofo economista holandês que, em 1714, publicou uma obra
conhecida como A fábula das abelhas, que narra a história de uma colmeia que
representa os homens inseridos na sociedade; “e que viviam em grande
prosperidade, com base no cultivo de três vícios: a fraude, a luxúria e o orgulho”
(BIANCHI, 2005, p. 8); em sua obra, Mandeville expôs o aspecto estranho de que os
vícios, “se praticados por todos, resultariam em maior proveito para o público. Ele
afirmava que o egoísmo, a ambição, e o comportamento aquisitivo tenderiam a
contribuir para a industrialização e para uma economia próspera” (HUNT;
LAUTZENHEISER, 2013, p. 67) e, nas próprias palavras de Smith,

É assim que trata como vaidade tudo o que guarde alguma referência com o
que são ou deveriam ser os sentimentos alheios; e é por meio desse
sofisma que estabelece sua conclusão favorita, de que vícios privados são
benefícios públicos. Se o amor à magnificência – um gosto pelas artes
elegantes, pelas melhorias na vida humana, por tudo o que seja agradável
em roupas, móveis ou equipagem, por arquitetura, escultura, pintura e
música – for considerado luxúria, sensualidade e ostentação, mesmo nos
homens cuja situação permita, sem inconveniência, a indulgência para com
essas paixões, certamente a luxúria, sensualidade e ostentação serão
benefícios públicos. No entanto, sem as qualidades às quais julga
apropriado atribuir nomes tão infamantes, as artes refinadas jamais
poderiam encontrar estímulo, e teriam de languescer por falta de uso.
Algumas doutrinas populares ascéticas, que foram correntes antes de sua
época e as quais faziam a virtude residir na total extirpação e aniquilação de
nossas paixões, constituíram o verdadeiro fundamento desse sistema
licencioso (SMITH, 2015, p. 451-452).

Segundo Smith, Mandeville teve facilidade de provar que a conduta virtuosa


do homem e a aniquilação das paixões não existiam e que, se isso de fato
acontecesse, seria o fim do comércio e da indústria; “pareceu provar que não
haveria verdadeira virtude, e o que pretendia passar-se por virtude nada mais era
senão logro e impostura; e, que vícios privados seriam benefícios públicos, pois sem
eles nenhuma sociedade poderia prosperar ou florescer” (id, 2015, p. 452). “A ética
da fábula de Mandeville é uma ética de resultados, de natureza teleológica,
preocupada menos com o caráter da conduta do que com suas consequências”
(BIANCHI; SANTOS, 2005, p. 2).

Tal é o sistema do Dr. Mandeville, que de uma feita causou tanto alarido no
mundo, e que, embora talvez nunca criasse mais vícios além dos que
existiriam sem ele, no mínimo ensinou esse vício oriundo de outras causas
a mostrar-se com mais insolência, e a manifestar a corrupção de seus
motivos com uma audácia libertina de que jamais teve notícia antes (SMITH,
2015, p. 452).
32

Portanto, vimos, no início do nosso trabalho, o quanto Smith preza pela


conduta virtuosa do indivíduo na sociedade e que, através do trabalho especializado,
proporciona uma melhor qualidade de produção de mercadorias, gerando maiores
riquezas e mais trabalho. Veremos no próximo capítulo, a noção smithiana de
trabalho e valor e o princípio de autorregulamentação do mercado.

4. NOÇÃO DE TRABALHO E VALOR

Adam Smith não encontrou nenhum sistema que tivesse a produção da terra
como fonte única de riqueza e de receita nos países que ele conheceu; tal intento,
para ele, só existiu na especulação e ingenuidade dos fisiocratas. Os agricultores
proporcionam uma produção líquida, distinguem-se com honra e são denominados
como uma classe produtiva, cujos trabalhos se diferenciam dos artesãos e
manufatores; ambos têm formas de lucro e despesas divergentes. Estes últimos,
junto com os seus arrendamentos comuns, apenas repõem o seu capital, enquanto
os cultivadores propiciam uma produção anual de seus produtos. Estas formas de
trabalho estão interligadas e, para o cultivo das terras, os comerciantes não
possuem tanta relevância, por se tratar de um trabalho específico distante da cidade,
e a grande contribuição que um país agrícola pode dar ao comércio é a mais perfeita
liberdade aos artesãos, manufatores e comerciantes (SMITH, 2013, p.105-117).
Aqueles que se dedicam aos trabalhos comerciais, nos quais estão inseridas
as funções de troca de bens têm um papel fundamental, pois a moeda é
representada como uma forma que engloba todo o comércio; Smith se dispõe a
examinar os modos em que os indivíduos, de forma natural, relacionam-se nesta
troca de bens, seja produto por produto, seja produto por dinheiro. Esses modos
determinam o valor relativo ou o valor de troca, entendimento distinguido por Smith
como valor de uso (NUNES, 2010, p. 8 - 9), e nas palavras de Smith,

Deve-se observar que a palavra VALOR tem dois significados diferentes;


umas vezes exprime a utilidade de um determinado objeto; outras, o poder
de compra de outros objetos que a posse desse representa. O primeiro
pode designar-se por ‘valor de uso’; o segundo por ‘valor de troca’. As
coisas que têm o maior valor de uso, têm, em geral, pouco ou nenhum valor
de troca; e, pelo contrário, as que têm o maior valor de troca têm,
geralmente, pouco ou nenhum valor de uso. Nada é mais útil do que a água:
mas com ela praticamente nada pode comprar-se; praticamente nada pode
obter-se em troca dela. Pelo contrário, um diamante não tem praticamente
qualquer valor
33

de uso; no entanto, pode normalmente obter-se grande quantidade de


outros bens em troca dele (SMITH, 1996, p. 85-86; grifo do autor).

São avaliados por Smith, não a busca da causa, do fundamento ou a origem


do valor, mas o aspecto da medida do valor dos bens, a justa medida do valor de
troca ou a busca do verdadeiro preço de todos os bens. Esta problemática teve
grande importância, desde que passou a reconhecer o excedente das
movimentações financeiras não apenas na agricultura e o critério dos fisiocratas
sobre a comparação da quantidade dos bens da agricultura existentes, tornou-se
inadequado (NUNES, 2010, p. 9). “O momento da valorização é aqui inteiramente
descartado, e produção e consumo são simplesmente postos em oposição, ou seja,
pressupõe-se produção baseada diretamente no valor de uso, e não no capital”
(MARX, 2011, p. 546).
O ponto de origem da teoria de valor smithiana admite que, em todos os
ambientes sociais, o modo de trabalho produtivo pode ser abreviado como múltiplos
esforços dos indivíduos. Diferentemente dos animais que se adaptam às
circunstâncias naturais diante de suas necessidades de subsistência, os seres
humanos transformam o ambiente natural de um modo que lhes seja apropriado
para subsistir. Os avanços dos trabalhos produtivos estão inseridos na dinâmica da
divisão do trabalho que findam na produção de um determinado produto e esse
avanço contribuiu para a criação de novos acessórios (HUNT; LAUTZENHEISER,
2013, p. 90). “Se cada homem consumisse apenas os bens por si próprio
produzidos, o valor dos bens utilizados corresponderia ao esforço do nosso próprio
corpo para os produzir: o verdadeiro preço de todas as coisas é o esforço e a fadiga
que é necessário dispender para as obter” (NUNES, 2010, p. 9).

O preço real de cada coisa – ou seja, o que ela custa à pessoa que deseja
adquiri-la – é o trabalho e o incômodo que custa a sua aquisição. O valor
real de cada coisa, para que a pessoa que a adquiriu e deseja vendê-la ou
trocá- la por qualquer outra coisa, é o trabalho e o incômodo que a pessoa
pode poupar a si mesma e impor a outros. O que é comprado com dinheiro
ou com bens, é adquirido pelo trabalho, tanto quanto aquilo que adquirimos
com o nosso próprio trabalho. Aquele dinheiro ou aqueles bens na realidade
nos poupam este trabalho. Eles contêm o valor de uma certa quantidade de
trabalho que permutamos por aquilo que, na ocasião, supomos conter o
valor de uma quantidade igual. O trabalho foi o primeiro preço, o dinheiro de
compra original que foi pago por todas as coisas. Não foi por ouro ou prata,
mas pelo trabalho, que foi originalmente comprada toda a riqueza do
mundo; e o valor dessa riqueza, para aqueles que a possuem, e desejam
trocá-la por novos produtos, é exatamente igual à quantidade de trabalho
que essa riqueza lhes dá condições de comprar ou comandar (SMITH,
1996, p. 36).
34

Desse modo, tanto os acessórios ou outras formas de produção, quanto o


trabalho são produtivos e ambos contribuem para a produção posterior. Smith
reconhecia que os acessórios advêm do trabalho de outros e que essa contribuição
produtiva é simplesmente uma contribuição humana dada a produtividade. Um
artesão que fabrica um tear contribui, de fato, com múltiplas despesas no trabalho,
que alcança a produção de tecido; por essa lógica, o tear se torna uma forma de
trabalho que intermedia a quantidade de tecido que se produz e que pode ser
calculada; esse é o ponto de partida da teoria de valor-trabalho smithiana (HUNT;
LAUTZENHEISER, 2013, p. 90); e é sobre esta dinâmica, entre o trabalho produtivo
e as trocas, que Smith desenvolve sua teoria, de que, derivado da atividade humana,
o almejado desenvolvimento da riqueza, se dá pela distribuição do trabalho. O
trabalho produtivo e a relação de troca estão interligados, pois é a inclinação dos
indivíduos à troca e às vantagens que originam a distribuição do trabalho, que acaba
se tornando o aspecto condutor que gera a riqueza universal (CERQUEIRA, 2004, p.
431- 432);

Entretanto, a teoria do valor-trabalho vai além disso. Afirma que o valor de


troca de uma mercadoria é determinado pela quantidade de trabalho contido
nessa mercadoria, mais a alocação relativa, em diferentes ocasiões, da mão
de obra indireta (o trabalho que produziu os meios usados na produção da
mercadoria) e da mão de obra direta (o trabalho que usa os meios para a
produção da mercadoria) usadas na produção. Smith conseguiu ver o
trabalho como o determinante do valor de troca apenas nas economias
iniciais pré-capitalistas, nas quais não havia capitalistas nem proprietários
de terras (HUNT; LAUTZENHEISER, 2013, p. 90).

Em suma, “nas sociedades baseadas na troca, o valor de qualquer


mercadoria se mede pela quantidade de trabalho que ela permite comprar ou
dominar. O trabalho constitui a única, a verdadeira medida do valor de troca de todos
os bens” (NUNES, 2010, p. 11), todavia, Smith explicita que há graus diferentes
diante das operações de troca:

Embora o trabalho seja a medida real do valor de troca de todas as


mercadorias, não é essa a medida pela qual geralmente se avalia o valor
das mercadorias. Muitas vezes é difícil determinar com certeza a proporção
entre duas quantidades diferentes de trabalho. Não será sempre só o tempo
gasto em dois tipos diferentes de trabalho que determinará essa proporção.
Deve- se levar em conta também os graus diferentes de dificuldade e de
engenho empregados nos respectivos trabalhos. Pode haver mais trabalho
em uma tarefa dura de uma hora do que em duas horas de trabalho fácil;
como pode haver mais trabalho em uma hora de aplicação a uma ocupação
que custa dez anos de trabalho para aprender, do que em um trabalho de
um mês em uma ocupação comum e de fácil aprendizado. Ora, não é fácil
encontrar um
35

critério exato para medir a dificuldade ou o engenho exigido por um


determinado trabalho. Efetivamente, ao permutar entre si produtos
diferentes de tipos diferentes de trabalho, costuma-se considerar uma certa
margem para os dois fatores. Essa, porém, é ajustada não por medição
exata, mas pela pechincha ou regateio do mercado, de acordo com aquele
tipo de igualdade aproximativa que, embora não exata, é suficiente para a
vida diária normal (SMITH, 1996, p. 88).

Essa medida de troca direta entre mercadorias pode ser intermediada por
troca de moeda, e, quando é suspensa a troca direta, a moeda passa a ser um
mecanismo amplo do comércio (NUNES, 2010, p.12), o “dinheiro se torna o
instrumento comum, é mais frequente trocar cada mercadoria específica por
dinheiro, do que qualquer outro bem” (SMITH, 1996, p. 37), mas é advertido por
Smith:

o ouro e a prata, como todos os outros bens, têm valor variável, sendo umas
vezes mais baratos, outras vezes mais caros, umas vezes mais fáceis de
adquirir, outras mais difíceis. A quantidade de trabalho que uma certa
quantidade desses metais permite adquirir ou dominar, ou a quantidade de
outros bens por que é possível trocá-los, depende, em qualquer momento,
da abundância ou escassez das minas conhecidas por essa altura (SMITH,
1996, p. 38).

A conversão da moeda em valor geral de troca, estabelece um limite


produtivo entre os valores de uso e os valores de troca, “ou que a riqueza real tem
que adotar uma forma determinada, distinta dela própria e, portanto, forma
absolutamente não idêntica a ela, para se tornar objeto da produção” (MARX, 2011,
p. 550).

4.1 A MÃO INVISÍVEL E A AUTORREGULAMENTAÇÃO

Em Adam Smith, “a metáfora da mão invisível é, seguramente, a imagem


mais impactante de toda a história do pensamento econômico (...) é quase um
choque notar que a expressão mão invisível aparece uma única vez em Riqueza das
Nações, e mesmo assim já da metade para o fim de seu longo texto (BIANCHI;
SANTOS, 2005, p. 6). Eis as palavras onde Smith explicita o termo:

ao dirigir essa indústria de tal forma que seu produto atinja o maior valor, ele
tem em mente apenas seu próprio ganho; neste como em muitos outros
casos, ele está guiado por uma mão invisível para promover um fim que não
era parte de sua intenção. Nem sempre é pior para a sociedade que tal
intenção dele não faça parte. Perseguindo seu próprio interesse, ele
36

frequentemente promove aquele da sociedade mais efetivamente do que


quando de fato intenta fazê-lo (SMITH, 1996, p. 438).

Esta metáfora utilizada por Smith, traz-nos o entendimento de que modo os


indivíduos na sociedade, inseridos na dinâmica da divisão trabalhista e nas relações
vantajosas de trocas, geram resultados inesperados de uma riqueza universal. Ela
manifesta a relação de um aspecto específico econômico, que tem coerência em sua
operação interna e que se desenvolve com o sentido de produzir o bem para os
indivíduos (CERQUEIRA, 2004, p. 438). Nesta teoria, embora as pessoas pudessem
agir com interesses egoístas, buscando benefícios próprios ou em favor de pessoas
mais próximas, estabelece-se semelhante a uma lei natural ou divina providência,
que conduz essa operação para o bem social. A mão invisível não faz parte de um
desígnio qualquer, por ela se estabelece o desempenho sistemático de leis naturais
(HUNT; LAUTZENHEISER, 2013, p. 83), onde, “cada indivíduo, agindo apenas em
nome de seu próprio interesse, acaba contribuindo, sem o saber, para o bem
comum, que, em nenhum momento, tinha sido seu objetivo declarado” (BIANCHI;
SANTOS, 2005, p. 6).
Importa esclarecer o que essa metáfora utilizada por Smith não é. Ela não se
restringe ao fato de que, em todas as ocasiões, a atitude de cada pessoa na busca
pelo seu interesse e pelo de todos terá como finalidade o bem comum, pois Smith
entendia que situações adversas podem acontecer e, desse modo, ele não ignora
que consequências opostas de uma ação benéfica poderiam gerar algum resultado
(id, 2005, p. 7).

Qual é, precisamente, a afirmação de Smith no único trecho da Riqueza das


Nações em que menciona a mão invisível? (...), ele está discutindo um
ponto concreto, em relação ao qual, para defender seu ponto de vista,
recorre, retoricamente, à metáfora de uma mão invisível. Na famosa
passagem, o argumento de Smith tem a ver com crescimento econômico.
Diz ele que, como é do interesse de cada indivíduo enriquecer, e como cada
indivíduo sabe melhor do que outras pessoas julgar seu próprio interesse e
decidir sobre os melhores meios de atingi-lo, o melhor que ele tem a fazer é
buscar seu próprio interesse. Ao agir dessa forma, esse indivíduo
enriquecerá. Ora, se todos agirem assim, todos enriquecerão e, portanto, o
país como um todo enriquecerá (...) o interesse individual não é antagônico
ao interesse geral. Muito pelo contrário, sob essa ótica, o interesse geral é
simples soma dos interesses individuais. Eis o segredo da conciliação de
interesses numa condição bem definida: ela ocorre por simples agregação,
em um contexto que a viabiliza (BIANCHI; SANTOS, 2005, p. 7).
37

As relações que são constituídas nas formas de governos têm uma


importância particular para qualquer sociedade. Smith era convicto da existência de
quatro ciclos diferentes de avanço social e econômico: a caça, o pastoreio, a
agricultura e o comércio. Compreender as formas de produção e divisão dos bens
econômicos para a sociedade, em cada ciclo, era o modo eficaz de entender os
governos e suas instituições sociais (HUNT; LAUTZENHEISER, 2013, p. 83), por
isso que o título original de Riqueza das Nações é “Investigação sobre a Natureza e
as Causas da Riqueza das Nações; Smith esclarece que o aumento de
produtividade acarretado pela especialização está por trás daquela opulência
universal que se estende até as camadas mais baixas do povo” (SANTOS; BIANCHI,
2007, p. 645).
A caça, para Smith (1996, p. 285), não tinha divisão do trabalho e constituía
um estágio mais baixo na sociedade, pois as trocas aconteciam raramente e cada
um supria suas próprias necessidades; não era necessário acumular algum capital
para gerar um bem comum. Cada um desenvolvia seu trabalho de acordo com as
necessidades ocasionais; quando uma pessoa sentia fome, saía para caçar na
floresta e quando necessitava de algum vestuário, utilizava-se da pele dos animais
abatidos na caça.
Os pastores, quase sempre, não davam importância ao uso do dinheiro, pois
os animais pastoreados constituíam-se como capital no comércio e medida de valor
em relação a outras mercadorias. Assim, o conceito de riqueza para os pastores
baseava-se no gado (SMITH, 1996, p. 416). No pastoreio, “a economia permitia
maiores agrupamentos sociais. A produção baseava-se na domesticação de animais
e a criação exigia uma existência nômade. Nesse tipo de sociedade, encontramos,
pela primeira vez, uma forma de riqueza que pode ser acumulada – o gado –”
(HUNT; LAUTZENHEISER, 2013, p. 84).
Para os agricultores, conforme vimos anteriormente em nosso trabalho, a
fonte de riqueza era a terra e que, apesar da divisão do trabalho, continha algumas
limitações, como grandes quantidades de terra estar sob o cuidado de pessoas
simples; o desafio de pessoas que não tinham motivação para o trabalho e estímulo
para fertilizar o solo e a alternância das estações do ano (SMITH, 1996, p. 32); “o
fisiocrático põe uma determinada forma de trabalho – agricultura – como a forma
criadora de riqueza, e põe o próprio objeto não mais sob o disfarce do dinheiro, mas
como produto em geral, como resultado universal do trabalho” (MARX, 2011, p. 82).
38

O comércio tem grande influência sobre os costumes das pessoas, pois todas
as vezes que ele é introduzido em alguma nação, é acompanhado de honestidade e
assiduidade. O comerciante estabelece sua relação de compra e venda com tal
rotatividade, que o valor da honestidade passa a ser a melhor direção (SMITH, 1996,
p. 31). O desenvolvimento das cidades modificou o trabalho agrícola e fez crescer o
trabalho comercial da sociedade, gerando oportunidades nos quais os proprietários
de terras podiam trocar seus produtos excedentes (HUNT; LAUTZENHEISER, 2013,
p. 86).

A finalidade do comércio não é diretamente o consumo, mas o ganhar


dinheiro, valor de troca. Com essa duplicação da troca – a troca para o
consumo e a troca pela troca – tem origem uma nova desproporção. O
negociante, em sua troca, é determinado simplesmente pela diferença entre
compra e venda das mercadorias; mas o consumidor precisa repor
definitivamente o valor de troca da mercadoria que compra (MARX, 2011, p.
146).

Para Smith (2013, p. 24) a economia política pretende-se a duas finalidades:


fornecer uma receita com fartura para as pessoas, ou melhor, para capacitá-las a
alcançar uma autonomia produtiva e prover ao Estado ou a sociedade nacional com
as receitas que atendam as demandas necessárias dos serviços públicos. Assim, o
comércio contribui de modo eficaz para o avanço econômico e o enriquecimento da
sociedade; continua Smith:

Que a riqueza consiste em dinheiro, ou em ouro e prata, é uma noção


popular que surge naturalmente da dupla função do dinheiro, como
instrumento de comércio e como medida de valor. Em consequência de ser
o instrumento do comércio, quando temos dinheiro, podemos obter com
mais facilidade qualquer outra coisa de que ocasionalmente necessitemos
do que por meio de qualquer outra mercadoria. A grande questão, e que
sempre acabamos por constatar, é arranjar dinheiro. Quando o obtemos,
não há dificuldade para fazer qualquer aquisição subsequente. Como
consequência de ser a medida de valor, estimamos o valor de outras
mercadorias pela quantidade de dinheiro pela qual poderão ser trocadas
(SMITH, 2013, p. 24-25).

As forças que possibilitaram o avanço econômico e social, ao ser avaliadas


por Smith, permitiram-lhe desenvolver uma forma que esboçava os aspectos sociais
mais relevantes do sistema capitalista que se dividia em duas formas simples de
produção – a agricultura e a indústria –. Esta produção necessitava da terra, do
trabalho e do capital. Os proprietários de terras, os trabalhadores e os capitalistas,
obtinham formas
39

diferentes de custos e de lucros, e conforme essa variação, determinavam-se os


preços dos produtos (HUNT; LAUTZENHEISER, 2013, p. 99). Sobre o preço das
mercadorias, Smith faz a seguinte análise:

Quanto mais determinada mercadoria sofre uma transformação


manufatureira, a parte do preço representada pelos salários e pelo lucro se
torna maior em comparação com a que consiste na renda da terra. Com o
progresso da manufatura, não somente cresce o volume de lucros, mas
também cada lucro subsequente é maior do que o anterior, pois o capital do
qual provém o lucro deve ser sempre maior [...]. Assim como o preço ou
valor de troca de cada mercadoria específica, considerada isoladamente,
decompõe-se em algum dos três itens ou nos três conjuntamente, da
mesma forma o preço ou valor de troca de todas as mercadorias que
constituem a renda anual completa de um país — considerando-se as
mercadorias em seu complexo total — deve decompor-se nos mesmos três
itens, devendo esse preço ser dividido entre os diferentes habitantes do
país, ou como salários pelo trabalho, como lucros do capital investido, ou
como renda da terra. Assim sendo, o que é anualmente obtido ou produzido
pelo trabalho de cada sociedade, ou — o que é a mesma coisa — o preço
total disso, é originariamente distribuído entre alguns dos membros da
sociedade. Salários, lucro e renda da terra, eis as três fontes originais de
toda receita ou renda, e de todo valor de troca. Qualquer outra receita ou
renda provém, em última análise, de um ou de outro desses três fatores
(SMITH, 1996, p.52-53).

Desse modo, para Smith, o nível de produtividade dependia do número de


trabalhadores e da divisão dos trabalhos e, consequentemente, com o aumento da
produção de mercadorias, o comércio se estende e traz benefícios econômicos e
sociais (HUNT; LAUTZENHEISER, 2013, p. 100). Assim sendo, concluímos o
presente capítulo com as próprias palavras de Smith sobre este sistema econômico
analisado por ele:

Portanto, tendo sido completamente afastados todos os sistemas de


preferência ou de restrição, o sistema óbvio e simples de liberdade natural
se estabelece por si mesmo. Todo homem (…) fica perfeitamente livre para
buscar seus próprios interesses, à sua própria maneira, e para concorrer,
com seu esforço e com seu capital, com o esforço e o capital de outros
homens ou tipos de homem. O soberano fica completamente livre do dever
de supervisionar o esforço particular das pessoas e de dirigi-lo para as
finalidades mais adaptadas ao interesse da sociedade (SMITH, 1996, p. 34).
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A contribuição de Adam Smith em suas obras Teoria dos Sentimentos Morais


e Riqueza das Nações marcam o início da ciência econômica. Certamente, Smith
não concebeu a engrenagem que faz girar o mercado, mas a destreza de sua
inteligência e capacidade de observação foram de tal modo relevantes que
estabeleceu uma distinção significativa da operação das forças produtivas e as
respectivas demandas.
40

No primeiro capítulo foi apresentado o conceito de simpatia que, na


perspectiva smithiana, significa colocar-se no lugar do outro através da imaginação.
As relações entre as pessoas se dão, de forma privilegiada, dentro da sociedade e
Smith destaca que as pessoas, tendo umas às outras como referência, buscam
conquistar uma aprovação social. Suas condutas podem ser movidas por interesses
particulares ou não, e nenhuma delas deixa de agir sem algum tipo de interesse.
Essa aprovação social buscada pelas pessoas é avaliada conforme a sua conduta
moral que pode ser virtuosa ou desprezível; esse critério é percebido devido à
análise racional que distingue a motivação da ação pois, se não fosse por ela, os
juízos morais poderiam estar condicionados aos sentimentos, às emoções e não
seria possível trilhar uma via de conduta segura.
Para auxiliar as pessoas a não exercer suas ações pela ondulação das
emoções, o espectador imparcial contribui de modo eficaz no julgamento da conduta
das pessoas, pois se faz necessário um olhar externo, de alguém que esteja a certa
distância e avalie se a conduta das pessoas é virtuosa ou não. Esse recurso, para
Smith, não é apenas externo, mas também interno e faz a própria pessoa capaz de
uma autocrítica. Assim, o homem que têm uma conduta virtuosa e prudente, sempre
terá a aprovação do espectador imparcial pois, conforme Smith, a prudência trata-se
da extrema perfeição das virtudes morais e intelectuais.
No segundo capítulo, vimos como se constituiu, para Smith, a divisão do
trabalho e o quanto este contribuiu para gerar bens econômicos e sociais. Diante do
auto interesse de cada pessoa, haverá um empenho na especialização do trabalho
para favorecer maior produtividade e riquezas, tanto para si quanto para a
sociedade, pois quanto mais houver a subdivisão do trabalho, maior será a
qualidade do tempo aproveitado durante o processo de produção. Assim, o trabalho
produtivo é interligado a uma série de outras contribuições até a concretização de
um determinado produto. A riqueza de uma nação provém do trabalho e não precisa
ter como fonte os vícios, as fraudes e o orgulho, conforme defendia, por exemplo,
Mandeville.
Para Smith, as noções de trabalho e valor vão além do sistema pensado
pelos fisiocratas. Assim, trouxemos, no terceiro capítulo, que é mais vantajosa, de
acordo com Smith, a divisão do trabalho que se dá no comércio, pelo fato de se
abranger maior produção de mercadorias e consequentemente produção de
riquezas. Nesta relação comercial, Smith busca a justa medida do valor, o justo
preço das mercadorias e exemplifica através do valor da água e valor de um
diamante. Desse modo, em seu
41

pensamento, quanto mais exigente for produzir uma determinada mercadoria,


quanto mais for o empenho manufatureiro, maior será o valor que a mercadoria terá.
A metáfora da mão invisível consiste no fato de que, diante das relações de divisão
do trabalho na sociedade, ainda que as pessoas ajam sem essa finalidade, elas
acabam contribuindo de um modo particular na geração de uma riqueza universal.
Diante do exposto em nosso trabalho, considera-se que a pergunta de partida
da presente pesquisa foi respondida satisfatoriamente no capítulo sobre a divisão do
trabalho, levando em consideração que foi apresentado o problema do surgimento
da economia em Adam Smith.
Adam Smith teve um papel muito importante na história da economia política
que, devido à sua investigação, abriu caminhos de estudos e de organização
sistêmica do modo da divisão do trabalho, a partir do que muitos outros economistas
puderam seguir os seus passos. Ele é considerado o pai da economia política pela
maioria dos filósofos contemporâneos, como Eric Weil; o próprio Karl Marx rende
homenagem a Smith pelo fato de este ter assinalado de maneira bastante fina o
desenvolvimento das forças produtivas do trabalho.
42

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