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2004
A narrativa da vontade de Deus:
a História do Brasil de frei Vicente do Salvador
(c.1630)
Rio de Janeiro
Maio de 2004
A narrativa da vontade de Deus:
a História do Brasil de frei Vicente do Salvador
(c.1630)
Orientadora:
Professora. Dra. Andréa Daher
Aprovada por:
_______________________________________
Presidente, Professora Dra. Andréa Daher
__________________________________
Professor Dr. Carlos Fico
__________________________________
Professor Dr. Alcir Pécora
__________________________________
Professor Dr. Manoel Luiz Salgado Guimarães (suplente)
Rio de Janeiro
Maio de 2004
Andrade, Luiz Cristiano Oliveira de.
A narrativa da vontade de Deus: a História do Brasil de frei Vicente do
Salvador (c. 1630) / Luiz Cristiano Oliveira de Andrade. Rio de Janeiro:
UFRJ / IFCS, 2004.
xi, 220f.
Orientadora: Andréa Daher
Dissertação (mestrado) – UFRJ / IFCS / Programa de pós-graduação em
história social, 2004.
Referências bibliográficas: f. 204-220.
1. Historiografia brasileira. 2. Frei Vicente do Salvador. 3. Retórica. 4.
ABREU, João Capistrano de. I. DAHER, Andréa. II. Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Instituto de Filososfia e Ciências Sociais, Programa de
pós-graduação em história social. III. Título
RESUMO
A narrativa da vontade de Deus:
a História do Brasil de frei Vicente do Salvador
(c.1630)
Rio de Janeiro
Maio de 2004
ABSTRACT
The God’s will narrative:
the frei Vicente do Salvador’s History of Brazil
(c.1630)
Orientadora:
Professora. Dra. Andréa Daher
Rio de Janeiro
Maio de 2004
Nós, os modernos, nos vamos esquecendo
que essas histórias de classe, de povos, de
raças, são tipos de gabinete, fabricados
para as necessidades de certos edifícios
lógicos, mas que fora deles desaparecem
completamente.
Ao meu pai, que começou esta história nos lúdicos e perspicazes postais,
enviados dos mais diversos pontos do país e que tanto despertaram a minha curiosidade.
Para minha mãe, pois, sem o seu suporte, esta dissertação não teria chegado ao seu
término. Ambos estiveram sempre presentes.
Introdução..............................................................................12
Capítulo I
Uma história de contornos esfumados:
a leitura documentalista e nacionalista da História do Brasil.............51
Capítulo II
Verdade, clareza e juízo:
as essências da história seiscentista.............................................75
Conclusão..............................................................................197
Bibliografia...........................................................................204
INTRODUÇÃO
Michael Baxandall
CAPÍTULO I
Manoel Bomfim2
1
A expressão é do próprio Capistrano de Abreu , escrita na Introdução da primeira edição da História do
Brasil. Cf. nota 15, à frente.
2
BOMFIM, Manoel. O Brasil na América, p. 337.
3
HOBSBAWM, Eric; RANGER, T. The invention of tradition.
4
Sobre o projeto político e civilizatório do IHGB ver: GUIMARÃES, Manuel. Nação e Civilização nos
Trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história Nacional. Sobre as
identidades construídas no Brasil em meados do XIX, após a Proclamação da República e após a
Revolução de 1930, ver o artigo Brasil: Nações Imaginadas. In CARVALHO, José Murilo de. Pontos e
Bordados.
Uma história de “contornos esfumados”
5
BARBOSA, Januário da Cunha. Lembrança do que devem procurar nas províncias os sócios do Instituto
Histórico Brasileiro para remeterem à Sociedade central no Rio de Janeiro. Revista do IHGB, t.1, 1839. O
primeiro tomo contém também as atas das primeiras sessões, nas quais essas propostas foram explicitadas.
6
Na introdução à obra do franciscano, publicada pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Capistrano
critica o Visconde de Porto Seguro: “(...) Varnhagen conseguiu ver o livro de Fr. Vicente, que aliás não cita
quando devia. As maiores e melhores novidades que contém a segunda edição de sua História Geral quanto
ao período anterior à guerra holandeza foram bebidas em nosso primeiro chronista, como se poderá
convencer quem se quizer dar a este trabalho.” Anais da Biblioteca Nacional, v. XIII, p. III.
7
Sobre a transformação do texto de Gabriel Soares de Sousa em documento histórico, ver: CEZAR,
Temístocles. “Quando um manuscrito torna-se fonte histórica: as marcas de verdade no relato de Gabriel
Soares de Sousa (1587). Ensaio sobre uma operação historiográfica.” História em Revista, v.6, 37-58.
53
Uma história de “contornos esfumados”
A narrativa de Frei Vicente fora copiada e enviada ao Brasil por João Francisco
de Lisboa, pesquisador oficial no exterior a partir de 1856, mas somente teria sua
importância reconhecida por Capistrano de Abreu alguns anos mais tarde.
Segundo Arno Wehling, o historiador cearense pertenceu a uma geração, surgida
a partir da Guerra do Paraguai, que “procurou reinterpretar a experiência brasileira, não
em termos do Estado Imperial, como o fizera Varnhagen, mas privilegiando o povo e sua
formação étnica, traduzindo a influência do sociologismo de Comte / Taine e dos
diversos determinismos progressistas.”8
Capistrano de Abreu chegara ao Rio de Janeiro em 1875 e, três anos depois, seria
uma peça chave na reabilitação de Francisco Adolfo de Varnhagen, ao escrever em sua
defesa, no necrológio publicado pelo Jornal do Commercio. Ao longo da década de 1880,
abandonou paulatinamente os métodos deterministas, substituindo-os por uma posição
documentalista. Desse modo, afirma o primado da pesquisa documental sobre as leis
sociais enunciadas a priori. Segundo Wehling, “as insuficiências de cada sistema – e de
todos eles reunidos – reforçou-lhe, portanto, a convicção do primado do objeto sobre o
método.”9 Essa postura certamente estava relacionada ao seu emprego, a partir de 1879,
na Biblioteca Nacional, onde entrou em contato com os documentos sob a guarda da
instituição, que, à época, dedicava-se a publicar manuscritos inéditos nos seus Anais.10
Já em 1881, Capistrano de Abreu participou da organização da Exposição de
História do Brasil, da Biblioteca Nacional, ensejando a reunião de textos impressos e
manuscritos, mapas, estampas, medalhas e moedas, que se encontravam dispersos nas
mãos de colecionadores particulares ou sob a guarda de algumas instituições.11 A obra de
8
WEHLING, Arno. Capistrano de Abreu: a fase cientificista. In A invenção da história, p. 169. O termo
“geração de 1870”, embora consagrado pela historiografia e crítica literária, confere certa homogeneidade a
grupos diversos. É aqui utilizado, uma vez que, de fato, Capistrano iniciou a sua trajetória intelectual na
primeira metade da década de 1870, publicando artigos de crítica literária no Ceará. Tais artigos, conforme
salienta Arno Wehling, caracterizaram-se pela aplicação das idéias positivistas, spencerianas e do
determinismo climático de Buckle. Ainda em 1880, travou um debate veemente com Sílvio Romero em
torno do determinismo (racial para este, e geográfico ou climático para Capistrano).
9
Idem, p. 214.
10
Desde o primeiro volume dos Anais da Biblioteca Nacional, publicado em 1876, a revista não apenas
transcreve documentos, mas também organiza diversos catálogos e inclui estudos de seus funcionários
sobre o acervo. No primeiro volume, após o artigo de Ramiz Galvão sobre Diogo Barbosa Machado, cuja
coleção fora doada à Real Biblioteca da Ajuda e, posteriormente, passaria ao Brasil, tem início o Catálogo
de manuscritos relativos ao Brasil.
11
O catálogo da exposição foi publicado em dois volumes pelo Anais da BN, 1881, v. 9.
54
Uma história de “contornos esfumados”
frei Vicente ingressou na exposição, doada por um livreiro carioca, João Martins Ribeiro,
que desconhecia o manuscrito adquirido entre outros papéis. O historiador cearense
Excluído: va
conclui que o aspecto do códice, indubitavelmente, revelava que
Excluído: ¶
“(...) era um dos numerosos volumes copiados dos arquivos e bibliotecas
lusitanas na era de [18]50 por comissão do governo imperial, confiada primeiro a
Gonçalves Dias e por fim a João Francisco Lisboa. A coleção, depois de ficar
alguns anos na Secretaria do Império, foi remetida para o Instituto Histórico,
donde uma parte escorreu para as mãos dos particulares.”12
12
ABREU, Capistrano de. Nota Preliminar, p. 30. In: SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil,
1982. Na introdução dos Anais da BN, p. III, também há uma descrição da trajetória do manuscrito entre
1850 e 1880: “Mesmo em 1857 ou em 1858 a copia deve ter chegado ao Rio de Janeiro. Conclue-se isto
sabendo que ficou em poder do Marquez de Olinda”, então ministro do Império. Após a morte do Marquês
em 1870, o códice passou aos seus herdeiros, que a leiloaram.
13
ABREU, Capistrano. Anais da Biblioteca Nacional, v. XIII, 1888, p. I. (Grifo nosso)
55
Uma história de “contornos esfumados”
que o eram e os que o não eram. Fr. Vicente representa a reacção contra a
tendencia dominante: Brasil significa para elle mais que expressão geographica,
expressão histórica e social. O seculo XVII é a germinação desta idéia, como o
seculo XVIII é a maturação.” 14
14
ABREU, Capistrano de. Anais da Biblioteca Nacional, v. XIII, 1888, p. XVII.
15
Idem, p. XI
16
Idem, ibidem.
17
Vide a esse respeito: LESTRINGANT, Frank. Le huguenot et le sauvage.
56
Uma história de “contornos esfumados”
de Souza, além de personagens como Martim Soares Moreno e Pero de Campos, segundo
observa o próprio Capistrano de Abreu, que chegou a tangenciar o critério utilizado de
autópsia dos fatos, mas a noção romântica de documento prevaleceu.18
Num regime de historicidade em que se atribui valor exclusivo às fontes
documentais para o estabelecimento da verdade histórica, a ausência do recurso
arquivístico constituiu, assim, o cerne das críticas lançadas por Capistrano a Vicente do
Salvador, no final do século XIX e início do XX.
Nos 30 anos que separam a primeira publicação do franciscano nos Anais da
Biblioteca Nacional e a edição crítica, o historiador cearense desenvolveu intensa
atividade. Em 1899, publicou o artigo Caminhos antigos e o povoamento do Brasil. No
ano de 1907, saíram os Capítulos de História Colonial e a anotação do primeiro volume
da História Geral do Brasil, de Varnhagen. Capistrano de Abreu passou então a ser
reputado “a mais incontrastável autoridade na história pátria.”19
Desde 1883, ano em que ingressou no Colégio Pedro II como lente de Corografia
e História, Capistrano dedicava-se intensamente à pesquisa documental. Em carta ao
Barão de Rio Branco, no mês de abril de 1890, comunicou que havia se decidido a
escrever uma história do Brasil até 1807.
“Parece-me que poderei dizer algumas coisas novas e pelo menos quebrar os
quadros de ferro de Varnhagen que, introduzidos por Macedo no Colégio Pedro
II, ainda hoje são a base do nosso ensino. As bandeiras, as minas, as entradas, a
criação de gado pode dizer-se que ainda são desconhecidas, como, aliás, quase
todo o século XVII, tirando-se as guerras espanholas e holandesas.”20
18
Cf. ABREU, Capistrano de. Anais da Biblioteca Nacional, v. XIII, 1888, p. XIV.
19
RODRIGUES, José Honório (org.). Correspondência de Capistrano de Abreu, p. LIV. O primeiro livro
de Capistrano de Abreu, O Brasil no século XVI, foi publicado em 1880. Após dois anos publicou Sobre o
Visconde de Porto Seguro, além dos diversos estudos publicados na imprensa e pelo IHGB, do qual se
tornara sócio em 1887.
20
Idem, p. 130.
57
Uma história de “contornos esfumados”
21
Sobre a trajetória do livro de Euclides da Cunha e sua transformação num “clássico” da literatura
brasileira, cf. ABREU, Regina. O enigma de Os Sertões.
22
ABREU, João Capistrano de. Caminhos antigos e povoamento do Brasil, p. 65.
23
Os projetos que lhe eram mais caros não foram realizados. Além da história sertaneja, Capistrano
pretendia publicar uma outra edição para os Capítulos de História Colonial, assim como anotar os outros
dois volumes da obra do Visconde de Porto Seguro.
58
Uma história de “contornos esfumados”
Após tratar da fauna, salienta que nenhum dos animais “pareceu próprio ao
indígena para colaborar na evolução social, dando leite, fornecendo vestimenta ou
auxiliando o transporte”, apenas domesticou o papagaio para recreação.27 Capistrano
ainda analisa a divisão das tribos, dividindo-as em grupos lingüísticos. Somente então
aborda a situação portuguesa no século XVI:
24
José Honório Rodrigues observa que, após severas críticas, o Visconde de Porto Seguro optou por iniciar
a segunda edição com a “Descrição do Brasil”, antes na VII seção. Cf. ABREU, Capistrano. Capítulos de
História Colonial, p. 35 (Introdução). O programa de Capistrano também é fruto da importância conferida
por ele aos fatores antropogeográficos, decorrente da leitura de Ratzel.
25
“Como o Cabo de Orange, limite com a Guiana Francesa, dista 37 graus do Chuí, limite com o
Uruguai...”. Idem, p. 43.
26
ABREU, Capistrano de. Capítulos de história colonial, p. 50-51.
27
Idem, p. 51-52.
59
Uma história de “contornos esfumados”
28
ABREU, Capistrano de. Capítulos de história colonial, p. 55. O fator geográfico aqui é novamente
determinante. Na p. 61 afirma que a “posição geográfica de Portugal destinava-o à vida marítima...”
29
Capistrano salienta que a “Igreja dominava soberana” pelo batismo, casamento, sacramentos e pelo
ensino. Cf. p. 55. Em Portugal, apenas para citar os nomes mais conhecidos, o anticlericalismo pode ser
verificado em Alexandre Herculano, Teófilo Braga e Eça de Queirós.
30
Idem, p. 59.
31
Idem, p. 60.
32
Idem, p. 140.
60
Uma história de “contornos esfumados”
33
ABREU, Capistrano. Capítulos de história colonial, p. 141.
34
Idem, ibidem (grifo nosso).
35
Idem, p. 146.
36
Idem, p. 191.
61
Uma história de “contornos esfumados”
62
Uma história de “contornos esfumados”
40
A obra monumental foi sintetizada na História das bandeiras paulistas, em dois volumes publicados em
1951 pela edições Melhoramentos de São Paulo. A brasiliana da Melhoramentos, que incorporou a
Weiszflog irmãos e seus títulos, era composta pela História do Brasil de Frei Vicente do Salvador, História
Geral de Varnhagen, Cultura e Opulência de Antonil – obras tributárias do trabalho de Capistrano de
Abreu. Ademais, a Cia. Melhoramentos publicou a obra de Oliveira Lima.
41
RODRIGUES, José Honório (org.). Correspondência de Capistrano de Abreu, v. I, p. XX.
42
Idem, p. 85.
43
Idem, v. II, p. 77.
63
Uma história de “contornos esfumados”
44
RODRIGUES, José Honório (org.). Correspondência de Capistrano de Abreu, v. II, p. 32
45
Idem, v. I, p. 442.
46
RODRIGUES, José Honório. A pesquisa histórica no Brasil. A primeira edição é de 1952, porém, utilizo
a de 1982. O autor já havia lançado outros livros, entre eles Teoria da História do Brasil, em 1949.
47
Idem, p. 95. Em 1953, o IHGB, em comemoração ao centenário de nascimento do historiador cearense,
realizou uma série de conferências, intituladas Curso Capistrano de Abreu. Entre os conferencistas estavam
Afonso Taunay, Barbosa Lima Sobrinho, Gustavo Barroso, além do próprio Rodrigues. Os respectivos
artigos foram reunidos no número 221 da Revista do Instituto, p. 44-245.
48
Idem, p. 96.
49
Idem, p. 97 (grifo nosso).
64
Uma história de “contornos esfumados”
50
RODRIGUES, José Honório. História da história do Brasil. Contudo, nessa década,um outro modelo
interpretativo passa a ser adotado pelos historiadores do país. Carlos Guilherme Motta, apesar de não tratar
dos escritores coloniais em seu Ideologia da cultura brasileira, opera a leitura dos textos a partir das
condições sociais que o determinaram.
51
RODRIGUES, José Honório. Idem, p. 491.
52
IGLÉSIAS, Francisco. Historiadores do Brasil, p. 119.
53
Idem, p. 31.
54
Idem, ibidem (grifo nosso).
65
Uma história de “contornos esfumados”
“O papel do códice 49, de 425 páginas e do tamanho de 410 x 275 mm, remonta
aos fins do século XVII, apresentando o códice a letra do século XVIII, o escudo
nacional no frontispício, o título e o nome do autor rodeado por uma moldura e
as letras capitais, no texto finamente desenhadas e ornamentadas. A
encadernação do códice 49 é da época, em carneira, e com ferragens; enquanto o
códice 24, de 139 páginas e de 300 x 207 mm, apresenta o papel e a letra do
século XVII e a encadernação em pergaminho da época.”58
O cuidado que parece ter sido devotado à feitura dessa cópia do início do
Setecentos aponta para a permanência da circulação de manuscritos após o advento da
55
Ver ROWËR, frei Basílio. A ordem franciscana no Brasil. Ver ainda os artigos publicados na revista do
Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGPE): WILLECKE, frei Venâncio. O
padre mestre franciscano, v. XLVII, p. 141-155; MÜLLER, frei Bonifácio; TEVES, frei Matias;
WILLECKE, frei Venâncio. Capítulos da história franciscana em Pernambuco, v. XLVI, p. 249-417.
Todos esses estudos utilizam os cronistas da ordem, sobretudo frei Vicente e frei Jaboatão, como
argumento de autoridade para a exaltação da atividade franciscana de catequese e educação durante o
período colonial. Além dessas atividades, destacam o serviço prestado à pátria, como o combate aos
holandeses.
56
WILLECKE, frei Venâncio. Duas palavras. In SALVADOR, frei Vicente. História do Brasil, p. 25.
57
WILLECKE, frei Venâncio. Os franciscanos na história do Brasil, p. 59.
58
WILLECKE, frei Venâncio. Duas palavras. In SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 25
(grifo nosso).
66
Uma história de “contornos esfumados”
59
Roger Chartier assinala, em diversos estudos, os diferentes usos dos impressos e manuscritos na época
moderna. No séculos XVI e XVII, a imprensa era freqüentemente vista como corruptora dos textos. Nas
colônias, em particular na América, pela ausência de tipografias, a circulação dos manuscritos era ainda
mais recorrente. Este ponto será retomado ao fim do capítulo.
60
SALVADOR, frei Vicente do. São Paulo; Rio de Janeiro: Weiszflog irmãos, 1918.
61
ABREU, Capistrano de. Prolegômenos ao livro I, p. 49. In SALVADOR, frei Vicente do. História do
Brasil.
62
Idem, p. 50.
67
Uma história de “contornos esfumados”
Edgard Roquette-Pinto, através dos quais “tem-se procurado conhecer as relações entre as
diferentes tribos.”63
Nos prolegômenos ao segundo livro, alguns procedimentos são repetidos. Desse
modo, o historiador cearense observa que os capítulos 2 e 7 fundam-se em Gandavo e
Pedro Mariz, além de notícias colhidas nas diversas capitanias pelo franciscano.
Acrescenta informações sobre os donatários, colhidas sobretudo em Varnhagen, “que
precisou nossos conhecimentos” em relação ao tema.64
Os exemplos se repetem e seria fatigante enumerá-los todos aqui. Observe-se
apenas, por fim, a atitude de Capistrano de Abreu frente aos capítulos perdidos do livro
V, que esclareceriam os episódios relativos à expulsão dos franceses e conquista do
Maranhão. Para preencher as lacunas deixadas pelas partes perdidas, listou uma
quantidade enorme de fontes, dividindo-as em três blocos: 1613, 1614 e 1615. Tais
documentos já haviam sido publicados nos Anais históricos do Maranhão, de Berredo; na
separata do volume 26 dos Anais da Biblioteca Nacional, intitulada Documentos para a
história da conquista e colonização da costa leste-oeste do Brasil; ou ainda nos
Documentos para a história do Brasil, especialmente do Ceará, do Barão de Studart.
Em síntese, Capistrano de Abreu, imbuído da concepção cientificista da
Excluído: como uma fonte da
disciplina, indagou constantemente se a narrativa de frei Vicente relatava “como as coisas época e
Excluído: , portanto, perguntam-
realmente aconteceram”, e buscou suprir suas lacunas. Em relação a Varnhagen, deu-lhe se constantemente
os louros que merecia, mas cobrou-lhe a falta de rigor em relação ao uso e citação das Excluído: conta
Excluído: ou ainda se a
fontes. Se, nesse caso, a censura foi justa – afinal o Visconde de Porto Seguro, filho de
uma alemão, escreveu a sua obra algumas décadas após a nomeação de Ranke para a
cátedra de história na Universidade de Berlim – em relação a frei Vicente do Salvador, a
utilização dos critérios oitocentistas são um tanto anacrônicos.
Decerto, ao zelo do historiador cearense escapou a importância da dedicatória de
frei Vicente, quiçá porque a menção às autoridades não era parte integrante dos
acontecimentos narrados. Em sua nota preliminar, Capistrano de Abreu apenas tratou de
Manuel Severim de Faria, menosprezando a menção aos “três historiadores portugueses,
63
ABREU, Capistrano de. Prolegômenos ao livro I, p. 52. In SALVADOR, Frei Vicente do. História do
Brasil. Roquette-Pinto então acabara de publicar o seu Rondônia, em 1917.
64
ABREU, Capistrano de. Prolegômenos ao livro II, p. 94. In SALVADOR, Frei Vicente do. História do
Brasil.
68
Uma história de “contornos esfumados”
65
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 43.
66
Cf. CHARTIER, Roger. Os desafios da escrita, p. 94.
67
BOUZA, Fernando. Comunicación, conocimiento y memoria en la España de los siglos XVI y XVII, p.98
(grifo nosso)
68
ABREU, Capistrano de. Nota preliminar, p.38. In SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil.
69
Idem. Prolegômenos ao Livro I, p. 49.
70
Michel de Foucault destaca a historicidade da função autor, situando a sua criação no final do século
XVIII e início do XIX, quando se instaurou um regime de propriedade para os textos. Cf. O que é um
autor? Ver ainda o artigo de João Adolfo Hansen, citado nas notas 76 e 77 da Introdução: Autor.
69
Uma história de “contornos esfumados”
71
FUMAROLI, Marc. L’age de l’eloquence. Rhéthorique et ‘res literaria’ de la Renaissance au seuil de
l’époque classique.
72
ABREU, Capistrano. Nota preliminar, p. 39. In SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil. Sérgio
Buarque de Holanda defendeu que o realismo dos cronistas e historiadores portugueses dos séculos XVI e
XVII era fruto de uma mentalidade antiquada, apegada antes ao mundo sensível do que ao conceitual e
experimental. Para demonstrar a sua hipótese, referendou a postura de Capistrano em relação aos estilo de
frei Vicente do Salvador: “O que disse, por exemplo, Capistrano de Abreu do estilo de Frei Vicente do
Salvador, quando compara suas frases a contas do rosário mecanicamente debulhadas, estende-se à
maneira de narrar os fatos própria do frade historiador. ‘Seu livro, afinal’, disse ainda quem mais pelejou
por exumá-lo, ‘é uma coleção de documentos antes reduzidos que redigidos, mais histórias do Brasil do
que História do Brasil.’ ” Visão do Paraíso, p. 316. A citação é oriunda da nota preliminar de Capistrano.
73
“As línguas estão com o mundo numa relação mais de analogia que de significação; ou, antes, seu valor
de signo e sua função de duplicação se sobrepõem; elas dizem o céu e a terra de que são imagem (...)”
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas, p. 51.
74
SALVADOR, frei Vicente do. Op. Cit., p. 44 (grifo nosso). Esta passagem será analisada com mais
precisão no capítulo II.
70
Uma história de “contornos esfumados”
À acusação de laxidão por não ter examinado arquivos e papéis amarelados, como
desejava Capistrano, estimulado pelos pressupostos de aferição estabelecidos a partir dos
estudos de Leopold Von Ranke, contrapõe-se a inexistência, no Seiscentos, de uma rígida
hierarquia entre o que foi lido, escrito ou ouvido. A legitimidade da noção de testemunho
ocular funda-se justamente na indistinção entre “o que se vê e o que se lê, entre o
observado e o relatado.”75
Os recentes estudos de Fernando Bouza apontam para a ampla utilização política
de textos, vozes e imagens, para diversos fins, assinalando a existência, durante o período
da União Ibérica, de:
Muito embora frei Vicente do Salvador tenha escrito a sua história durante a
dominação dos Felipes, Capistrano de Abreu nem mesmo menciona o episódio nos seus
prolegômenos. Este talvez seja o mais grave, dentre todos os problemas da leitura
nacionalista dos documentos coloniais. Teria sido o franciscano um brasileiro avant la
lettre, que criticava os portugueses, ou as suas críticas dirigiam-se sobretudo aos
espanhóis?
A questão é irrelevante caso não se considere que, mesmo em Espanha e Portugal,
o conceito de nação, nos séculos XVI e XVII, não era definido de forma precisa, ou no
mínimo, não nos nossos termos. Segundo Ricardo García Cárcel,
75
FOUCAULT, Michel. Op. Cit., p. 54.
76
Idem, p. 31.
71
Uma história de “contornos esfumados”
“e um dia lhes disse que se desenganassem de poder fazer presa alguma, porque
estava defronte uma fortaleza, mostrando-lhe uma igreja de Nossa Senhora do
Socorro de muitos milagres, a qual defendia todo aquele circuito, do que muito se
riram, mas enfim se tornaram para o porto sem pilhagem alguma.”79
77
CÁRCEL, Ricardo García. Catalunã y el concepto de Espanã en los siglos XVI y XVII. In
BETHENCOURT, Francisco; CURTO, Diogo Ramada. A memória da nação. Lisboa: Livraria Sá da Costa
Editora, 1991.
78
Sobre o tema, ver o estudo clássico de KANTOROWICZ, Ernst. Os dois corpos do Rei.
79
Salvador, frei Vicente do. Op. Cit, p.373.
72
Uma história de “contornos esfumados”
poderes locais e, sobretudo, do poder central, que via a sua função protectora posta em
causa.”80
No artigo intitulado A sociogénese do sentimento nacional, Francisco Bethencourt
analisa o sentimento de pertença a uma mesma comunidade histórica em Portugal, isto é,
a emergência de estados de comunhão, ensejados pela “percepção de uma solidariedade
mais ampla do que as solidariedades tradicionais (a família e a aldeia).”81 O historiador
português assinala a importância da língua comum na geração de um sentimento
gregário, em uma sociedade ainda caracterizada pela fragmentação e forte valorização da
vida local.
Além da língua, das festas e dos momentos de crise, Bethencourt afirma que os
esforços de identificação política das diversas elites sociais portuguesas engendraram
diversas obras, manuscritas ou impressas, sobretudo relativas aos gêneros históricos, que,
a partir de 1580, passaram a legitimar este reino perante Castela, como a Monarquia
Lusitana, de frei Bernardo de Brito; e para as tentativas de síntese, como os Dialogos de
varia historia, de Pedro de Mariz. Esses esforços, segundo o historiador português:
80
BETHENCOURT, Francisco. A sociogénese do sentimento nacional. In BETHENCOURT, Francisco;
CURTO, Diogo Ramada, Op. Cit., p. 475.
81
Idem, ibidem.
82
Idem, p. 486 (grifo nosso).
73
Uma história de “contornos esfumados”
74
CAPÍTULO II
“Verdade, clareza e juízo”:
as essências da história seiscentista
Sé de Évora, após a renúncia de Baltazar de Faria Severim, seu tio, que se recolheu ao
Convento dos Cartuxos da cidade.1 Mestre em Artes e Doutor em Teologia e Filosofia
pela Universidade Jesuítica, continuou os seus estudos eruditos e passou a reunir, como
parte de seus interesses antiquários, livros e documentos manuscritos que compuseram
excelente “livraria”, aberta aos que desejassem consultá-la.
A estima obtida pelo doutíssimo antiquário levou diversos outros escritores
coevos a mencionarem-no elogiosamente, entre eles Lope de Vega e Manuel de Faria e
Sousa, célebres na corte de Madri. A sua erudição, colocada a serviço do rei e da pátria,
também foi destacada pelos freis Bernardo de Brito, Antônio Brandão e Francisco
Brandão nos sucessivos volumes da Monarquia Lusitana.2 Além dos contatos na Europa,
Manuel Severim de Faria organizou em torno de si uma rede de correspondentes que
enviavam informações da África, América e do Oriente. Os contatos epistolares com os
missionários que partiam para o Ultramar foram mantidos com seu irmão, Cristóvão
Severim ou frei Cristóvão de Lisboa, primeiro Custódio franciscano no Maranhão, a
partir de 1624. Além dos poderes recebidos no reino do Santo Ofício, o frade recebeu do
administrador de Pernambuco, Bartolomeu Ferreira, os de vigário-geral e provisor. Frei
Vicente do Salvador narrou as ações pias do “nosso irmão Frei Cristóvão Severim”:
1
Sobre a nobre família Faria, ver: ZÚQUETE, Afonso Eduardo Martins. Armorial lusitano: genealogia e
heráldica. O próprio Severim de Faria escreveu o Tratado da família dos Farias. Para mais informações
sobre os postos ocupados e os escritos de Manuel Severim de Faria ver a introdução aos Discursos Vários
Políticos, de VIEIRA, Maria Leonor Soares Albergaria.
2
Maria Leonor Soares Albergaria Vieira compilou algumas referências elogiosas a Severim de Faria.
Discursos vários políticos, p. XII-XVIII, nota 11.
77
“Verdade, clareza e juízo”
almas, não sem muito trabalho e perseguições, que por isto padeceu, sabendo que
são bem aventurados os que padecem pela justiça.”3
3
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 377 (grifo nosso).
4
Essa crônica foi primeiramente utilizada por Frei Manuel da Ilha, que, em 1621, escreveu um suplemento
em latim sobre a Custódia de Santo Antônio, tratando também dos missionários anteriores, desde frei
Henrique de Coimbra. O livro do Insulano foi editado em 1975, em uma edição bilíngüe, latina e
portuguesa, pela Editora Vozes. Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão cita a existência da crônica de frei
Vicente, não obstante afirme desconhecer o seu paradeiro.
5
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 44.
6
ÁLVAREZ, Fernando Bouza. Portugal no tempo dos Filipes, p. 91.
7
Idem, p. 191.
78
“Verdade, clareza e juízo”
“(...) em quanto os Reis residiram em Lisboa, sabemos que além das grandes
frotas, que mandavam pera as suas conquistas, todos os anos saíam deste reino
três armadas, uã que andava em guarda da costa dele, outras nas ilhas, e a terceira
no estreito, com as quais conservaram seus estados de maneira, que nunca em
seu tempo chegou inimigo algum a roubar lugar da costa de Portugal, (...). Porém
depois que sua Majestade se ausentou, começou logo a ausência a fazer seus
efeitos, de modo que em poucos anos cessaram todas as armadas, e achando os
inimigos o mar desamparado delas, roubaram as frotas do Brasil, e de Guiné e
muitas naus da Índia, e saquearam toda a costa do Brasil, Ilhas do Cabo Verde,
e dos Açores, e nos tomaram as Molucas, e finalmente entraram no mesmo reino,
onde destruíram Faro e toda a costa do Algarve, e cercaram Lisboa passeando
muitas léguas com um exército per Portugal, o que tudo aconteceu por os Reis
estarem no sertão, e com a sua ausência faltarem as armadas, que defendessem as
costas do Reino, e as frotas que vêm de suas conquistas.”9
79
“Verdade, clareza e juízo”
10
SALVADOR, Frei Vicente do. Op. Cit., p. 43.
11
Idem, ibidem.
12
Idem, ibidem (grifo nosso).
80
“Verdade, clareza e juízo”
Após a metáfora, frei Vicente traça uma analogia com a passagem bíblica na qual
Jacó oferece ao pai, Isaac, uma iguaria de que gostava e, assim, alcança a sua benção:
“Bem enxergou o santo velho, ainda que cego, que Jacó o enganava, pois o
conheceu pela voz: vere quidem vox Jacob est; mas, levado do gosto da iguaria a
que era afeiçoado, depois da inspiração do céu lhe concedeu a benção. Esta peço
eu a Vossa Mercê, e com ela não tenho que temer a maldizentes.”14
Por fim, faz uso de um hipérbato e encerra o trecho com um lugar comum
encomiástico no mundo católico: “Nosso Senhor vida, saúde e estado conserve e aumente
a Vossa Mercê, como os seus lhe desejamos.”15 A saúde e a conservação dos estados
eram duas tópicas recorrentes entre os teólogos da Segunda Escolástica, cuja perspectiva
confessional forneceu as bases à sobrenaturalização da Monarquia Cristã, instrumento da
Providência Divina. Esse emprego mundano da figura sacramental supõe uma relação
13
SALVADOR, frei Vicente do. Op. Cit., p. 44 (grifo nosso).
14
Idem, ibidem.
15
Idem, p. 45.
81
“Verdade, clareza e juízo”
análoga entre os homens e seu criador. Assim, a conservação e aumento dos estados –
reciclados e utilizados engenhosamente em louvor a Severim de Faria – são partes da
ordem natural instituída pelo Criador.
“Nessa sua orientação natural para o fim que forneceu a razão de sua Criação, o
mundo encontraria a sua ‘estabilidade fundamental’. E é preciso lembrar que,
nessa perspectiva, tal orientação se compõe com o voluntário do arbítrio, cuja
escolha concorre precisamente para a ordem realizada já na mente de Deus, em
que não há tempo, mas eternidade.”16
“Não, claro, que a Vontade [divina] não possa afirmar-se por si mesma, mas
apenas que, nesse caso, os homens teriam falhado em responder ao mais
generoso chamamento do Ser às suas criaturas: o de fazê-las co-autoras do
16
PÉCORA, Alcir. Teatro do Sacramento, p. 148 (grifo nosso).
17
Idem, p. 140.
82
“Verdade, clareza e juízo”
83
“Verdade, clareza e juízo”
portuguesa, “uã das melhores do mundo” por ser mais chegada ao latim, corrompido por
vários modos em Itália, França e Espanha.20
As questões relativas ao governo político da Monarquia Hispânica também são
tratadas no Discurso Primeiro, no qual advoga a transferência do rei e de sua corte para
Lisboa. A unidade do império espanhol, em virtude de sua abrangência, necessitava de
um centro marítimo que possibilitasse um contato mais eficiente entre a sua cabeça e o
seu corpo:
“(...) claro fica que a nenhum Príncipe importa tanto o poder do mar, como ao de
Espanha, pois só pelo meio das forças marítimas faz um corpo unido de tantas, e
tão distantes Províncias, como são as de sua Coroa, socorrendo-as a tempo, e
recebendo delas com segurança os imensos tesouros com que a enriquecem, os
quais não sendo os Espanhóis senhores do mar, ficam sujeitos a serem roubados
de seus inimigos.”21
20
FARIA, Manuel Severim de. Discursos vários políticos, p. 80.
21
Idem, p. 10.
22
Idem, p.13.
84
“Verdade, clareza e juízo”
“na escritura um só trabalha pela conservação de todos, e faz com ela viver na
lembrança dos homens, aqueles, que pela pátria entregaram liberalmente as
vidas, e conservando a memória das cousas passadas, dá regra para acertar nas
futuras.”26
Esses argumentos sobre o lugar dos escritores na república iniciam a Vida de João
de Barros, na qual Manuel Severim de Faria também expõe minuciosamente as regras
que constituem a ars historica na alta Idade Moderna.
23
FARIA, Manuel Severim de. Discursos vários políticos, p.25.
24
Idem, p.26.
25
Idem, ibidem.
26
Idem, p. 30.
85
“Verdade, clareza e juízo”
logrado êxito na empresa americana, a trajetória do fidalgo foi coroada pelos serviços
prestados na seara das letras, “trabalhando ele toda a vida por ilustrar a pátria, e deixar
de seus naturais gloriosa memória.”27
O projeto original de Barros era amplo e ultrapassava a narração dos feitos
portugueses na Ásia, abrangendo a saga lusa nos quatro continentes, desde a época dos
romanos, passando pela tomada de Ceuta e o descobrimento do Brasil.
A Primeira Década da Ásia foi publicada em 1552. O seu estilo emulava a
história de Roma escrita por Tito Lívio, que compreendia 142 livros divididos em
décadas. Lívio desfrutava de imenso prestígio entre os letrados quinhentistas. Erasmo de
Rotterdan, cujas idéias de fé culta tiveram grande repercussão em Portugal até meados do
século XVI, recomendava a sua leitura aos seus discípulos.28 “Erasmo acreditava que os
princípios do Cristianismo se situavam num plano ético mais elevado do que os
ensinamentos dos antigos filósofos, mas julgava que o estudo dos antigos autores pagãos
conduzia a uma compreensão mais profunda das doutrinas cristãs.”29
Valorizado pela eloqüência de sua obra e pelas máximas morais, o historiador
romano escreveu sobre a ordenação da República e as virtudes necessárias à formação do
Império. A matéria não passou despercebida a Maquiavel, que, entre 1513 e 1517,
escreveu os Discorsi – comentários acerca da primeira década de Tito Lívio com o
objetivo de, com base nos exemplos da Antigüidade, “ordenar uma república, manter um
Estado, governar um reino, comandar exércitos e administrar a guerra ou de distribuir a
justiça aos cidadãos.”30
O prólogo da Primeira Década da Ásia, dedicada ao muito poderoso e
cristianíssimo D. João III, inscreve a obra do português em um funcionamento diverso
daquele proposto pelo florentino às cidades italianas, mais precisamente, entre os
discursos letrados ibéricos caracterizados pela razão de estado antimaquiavélica. Ao
longo do prólogo, João de Barros discorre sobre as diferenças entre as cousas da natureza,
que se renovam de modo cíclico, e os atos humanos, cujo caráter breve e finito fez com
27
FARIA, Manuel Severim de. Discursos vários políticos, p. 30.
28
Cf. BURKE, Peter. Da popularidade dos historiadores antigos: 1450-1700 “Lívio foi encarado como
conselheiro político, e isto porque a linha divisória entre a moral e a política parecia ser, neste período,
difícil de traçar, tal como tinha acontecido na Antigüidade Clássica.” In O mundo como teatro, p. 186
29
HIRSH, Elisabeth Feist. Damião de Góis, p. 6
30
MAQUIAVEL. Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio, p.17.
86
“Verdade, clareza e juízo”
que buscassem um “divino artificio, que representásse em futuro, o que elles obrávam em
presente.”31 A escrita, desse modo, teria a função de “guardar em futuro nóssas óbras
pera com ella aproveitarmos em bom exemplo (...) pera cõmu e temporal proveito de
nóssos naturaes.”32
Os quatro primeiros livros acerca dos feitos que os Portugueses fizeram no
descobrimento e conquista dos mares e terras do Oriente tratam desde a conquista da
Espanha pelos Árabes e a transformação de Portugal em reino, até o descobrimento da
Índia por Vasco da Gama. A origem portuguesa, segundo João de Barros, teve início com
o dote concedido por D. Henrique a D. Afonso Henriques, na ocasião de seu casamento
com Dona Tereza. O dote consistia em:
“todalas terras q naquelle tempo eram tomadas aos mouros nesta parte da
Lusitania que ora e reyno de Portugal cõ todalas mais que elle podesse conquistar
delles. Em q entraram alguas de Andalusia, porque em todas estas elle e seu filho
el rey dom Afonso Anrriquez verterã seu sangue por as ganhar das mãos e poder
dos mouros.”33
“Posto que nesse passado capitulo dissemos que toda a térra de Ásia era habitáda
destas quatro nações de gente, Christãos, Judeus, Mouros e Gentios: as primeiras
duas podemos dizer que naquellas partes sam mais cativos que livres, pois por
razam de sua habitaçam sam subdictos dos mouros ou gentios q ocupam toda
aquella terra (...)” 34
31
BARROS, João de. Ásia. Primeira Década, p. 1.
32
Idem, p. 2.
33
Idem, p. 8.
34
Idem., p. 347.
87
“Verdade, clareza e juízo”
Mas a ars historica, pela narrativa dos feitos humanos, fornecia exemplos que
deviam ensinar os homens a agir com prudência, baseados na razão em detrimento das
paixões. Nesse sentido, o capítulo XVI do livro primeiro, intitulado Das feições da pesoa
do infante Dom Anrique e dos costumes que teve em todo o discurso de sua vida, inicia a
profusão de exemplos veiculados nas Décadas. O infante foi caracterizado pela limpeza
da alma, pela inclinação às letras e aos estudos, foi magnífico em despender e edificar,
ainda que despendesse da própria fazenda, “toda a sua vida pareceo hua perfecta religiã:
nam lhe faleceram pensametos de áltas impresas e obras de generoso animo, quaes
convem aos de real sangue.”36 E Barros, após descrever diversas realizações na África do
infante D. Henrique, paradigma de conduta ao governante cristão, conclui que:
35
BARROS, João de. Op. Cit., p. 348-349(grifo nosso).
36
Idem, p. 61.
88
“Verdade, clareza e juízo”
“mostrando em estas e outras cousas que cometeo de bem comu, ter no coraçam
plantáda a vontáde de bem fazer, como elle trazia per móto de sua divisa nestas
palávras francesas: Talant de bien faire. (...) Posto que nos principios deste
descobrimento ouve grandes dificuldades, e foy muy murmurado: teve tanta
constancia e fé na esperança que lhe o seu espirito favorecido de deos prometia,
que nunca desestio deste descobrimento (em quanto pode) per espáço de
quorenta anos. ”37
37
BARROS, João de. Op. Cit, pp. 61-62 (Grifo nosso).
38
CURTO, Diogo Ramada. A literatura e o império: entre o espírito cavaleiroso, as trocas da corte e o
humanismo cívico, p. 453. In BETHENCOURT, Francisco; CHAUDURI, Kirti (dir.) História da Expansão
portuguesa, v.1.
89
“Verdade, clareza e juízo”
que o gosto do vulgo não se governa por razão, mas sim pelo apetite, e que o bom de
ordinário contenta aos menos.”39
Os livros históricos eram apreciados apenas pelo público governado pela razão,
pelos gentis homens que controlavam as suas paixões e instintos. Destarte, os exemplos
fornecidos pela prosa historiográfica eram utilíssimos aos discretos que desejassem
exercitar a eloqüência necessária aos negócios da corte e do império. Segundo Manuel
Severim de Faria:
“Em todos estes gêneros é esta história de João de Barros admirável, porque além
do sujeito que trata ser nobilíssimo pela variedade, grandeza, e novidade dos
casos admiráveis, guardou com suma inteireza todas as leis da história, assi
as essências que nela se requerem, que são verdade, clareza, e juízo, como as
outras partes a que chamam integrantes.”41
39
FARIA, Manuel Severim de. Discursos vários políticos, p. 46 (grifo nosso).
40
Idem, ibidem (grifo nosso).
41
Idem, ibidem (grifo nosso).
42
Idem, ibidem.
90
“Verdade, clareza e juízo”
diversos papéis para a empreitada, além de ter mandado buscar crônicas dos reis do
Oriente e ter se valido das informações dos pilotos portugueses. O ânimo verdadeiro, para
o chantre de Évora, era claro nas Décadas, “onde com suma liberdade reprova so vícios,
e louvas as virtudes que alguns Capitães tiveram, dando a cada um o seu (...).”43 Ainda
que apontasse os vícios, Barros não ampliou miúdezas e se manteve ao essencial da
história.
A clareza, de acordo com Severim de Faria, era uma das características da pena de
João de Barros. Descrevia tudo como se visse diante dos olhos e comparava, segundo as
regras da Arte Memorativa, os elementos desconhecidos nas distantes províncias a algum
sinal conhecido. Com esse procedimento, fazia com que os leitores compreendesem “a
figura, ou cousa de que trata, com suma distinção.”44
43
FARIA, Manuel Severim de. Discursos vários políticos, p. 48.
44
Idem, p.49.
45
Idem, pp. 48-49 (grifo nosso).
91
“Verdade, clareza e juízo”
“Foi varão de vida exemplar, e mui pio, como se vê bem de suas obras, que
podem ser nisto exemplo a outros escritores modernos; os quais compõem seus
livros com tal esquecimento das cousas divinas, que lidos eles não se pode
determinar, se é o Autor Cristão, se gentio, como já se disse de Joviano Pontano,
e de outros.”49
46
FARIA, Manuel Severim de. Discursos vários políticos, p.49.
47
Idem, ibidem (grifo nosso).
48
Idem, p. 50.
49
Idem, p.62.
92
“Verdade, clareza e juízo”
50
ARISTÓTELES. Poética, IX, p. 39 (grifo nosso).
51
FARIA, Manuel Severim de. Discursos vários políticos, p. 121.
93
“Verdade, clareza e juízo”
foi desterrado da corte. De acordo com o antiquário, o poeta partiu para a Índia em 1553
e de lá regressou, já com Os Lusíadas, em 1569 – ano da Grande Peste em Lisboa, que
lhe fez esperar até 1572 para imprimir o poema.
O excelente uso que Camões fez do épico lhe valeu os louvores somente
aplicados a mais três poetas desde o “princípio do mundo”: “Homero, entre os Gregos,
Virgílio nos Latinos, Torquato Tasso entre os italianos, e o nosso Poeta em Espanha.”52
Manuel Severim de Faria ratifica que a diferença entre o Poeta Heróico e o Historiador
residia no número de ações a serem imitadas:
“(...) Vasco da Gama rodeou a maior parte da terra, vencendo com singular valor
as forças dos elementos, as traições, e armas dos inimigos, fomes, sedes,
estranheza de climas, injúrias dos tempos, e mostrou ao mundo o verdadeiro
conhecimento de si mesmo, em que desde o seu princípio até então estivera
ignorante achando novas estrelas, e novos mares, comunicando o Oriente com o
Ocidente, de que se seguiu dar aos povos da Europa a notícia de tantas drogas,
frutos, e pedras em que a natureza se mostrou maravilhosa, e benigna para os
mortais, e aos moradores da Ásia o conhecimento das Artes, polícia, ciências de
Europa, e sobre tudo do verdadeiro Deus, de que os mais deles estavam
52
FARIA, Manuel Severim de. Discursos vários políticos, pp. 121-122.
53
Idem, p. 122.
54
Idem, p. 124.
94
“Verdade, clareza e juízo”
A ação era a mais digna de ser imitada, pois os portugueses revelaram aos demais
povos cristãos as maravilhas da natureza e, principalmente, aos hereges, infiéis e idólatras
a verdadeira fé. Em resposta aos que afirmavam que Camões teria profanado a
honestidade da ação por invocar as Musas, “indecentes a Poeta Católico”, e não os
santos, Severim de Faria argumenta que a poesia não é outra coisa “senão uã imitação, ou
fábula, a qual traz sempre consigo, como parte essencial, a invocação das Musas do
Parnaso.”56 Assim, os poemas heróicos invocavam Calíope, uma das musas que, mesmo
os antigos, adoradores de deuses gentílicos, tinham por fingida. A decisão de não
introduzir santos e anjos no poema foi acertada nesse sentido, pois era necessário
“escrever deles com toda a reverência, e decência devida, que não se compadece misturar
cousas sagradas com as profanas.”57
Mas como o livro de Camões tratava de argumentos verdadeiros, era necessário
diferenciar os verdadeiros milagres dos fabulosos, “com que os leitores ignorantes,
podem cair em erro de não conhecerem quais devem de ser cridos.”58 Da mesma forma, a
gravidade dos seus argumentos não prescindia de episódios alegóricos, como os
esposórios celebrados na Ilha de Santa Helena entre Vasco da Gama e seus soldados e as
ninfas do Oceano, “pera entreter os leitores.”59
Além de deleitar, o poema devia ser útil – utile et dulci. E a utilidade dos
Lusíadas era a de fornecer exemplos virtuosos, “porque não há ninguém que o leia que
não fique inflamado de um admirável desejo de glória, e de empregar a vida em feitos
ilustres, aventurando-a pela fé, pelo Rei, e pela pátria.”60 Assim, Vasco da Gama constitui
o modelo de capitão prudente e heróico. Segundo Severim de Faria, deste poema,
55
FARIA, Manuel Severim de. Discursos vários políticos, p. 125.
56
Idem, ibidem.
57
Idem, p. 126.
58
Idem, ibidem.
59
Idem, p. 128.
60
Idem, p.129.
95
“Verdade, clareza e juízo”
fundado sobre história verdadeira, “se podem tirar excelentes regras para a vida política,
e moral.”61
Não obstante tratasse de acontecimentos verdadeiros, a dispositio épica obedecia
a regras de composição específicas em relação à prosa historiográfica. Ao contrário deste
discurso, narrado in ordo naturalis, o decoro da poesia heróica não prescreve que as
ações sejam dispostas de forma linear:
Assim, Luís de Camões recebeu o epíteto de Príncipe dos Poetas e passou a ser
celebrado em todo o mundo pelos “melhores Poetas, Históricos e Oradores, de maneira
que sua gloriosa memória durará igualmente com os séculos vindouros.”63 Embora não
fosse preceptista, o poeta português passou a ser o exemplo máximo, no Seiscentos
ibérico, de emprego da arte.
Alcir Pécora defende que Camões, bem como o padre Antônio Vieira,
compreendem a sua respectiva arte – a épica e o sermão – “como estímulo, louvor e
documento das proezas memoráveis dos antepassados, de virtudes sublimes dos heróis e
de esperanças futuras do Reino.”64 A lembrança dos feitos passados, quando alia o
engenho ao domínio técnico dos preceitos, permite conceber outro feito ainda maior por
vir. Segundo Pécora:
61
FARIA, Manuel Severim de. Discursos vários políticos, p. 130.
62
Idem, p. 134.
63
Idem, p. 152.
64
PÉCORA, Alcir. As artes e os feitos. In Máquina de gêneros, p. 138.
96
“Verdade, clareza e juízo”
“O Império, a que tanto Camões quanto Vieira pretendiam servir, não era, de
modo algum, o da língua apenas – que foi, afinal, o que puderam ter –, a não ser
na medida em que da língua esperavam, com confiança e audácia desmedidas, o
fogo capaz de animar o seu movimento universal. Era em territórios objetivos
que pensavam, como objetiva supunham a ordem divina que impregnava a
geografia mundial.”67
65
PÉCORA, Alcir. As artes e os feitos. In Máquina de gêneros, p. 139.
66
Idem, p. 141.
67
Idem, p. 145.
68
Idem, p. 162.
97
“Verdade, clareza e juízo”
“E diz Diogo do Couto, que até seu tempo [de D.Constantino] durou naquele
Estado a primitiva Índia, em que os homens pretendiam somente ser valerosos, e
honrados, e desprezavam o interesse; e que dali por diante começou a ser
idolatrada a avareza, ao qual vício chama a Sabedoria Divina: Raiz de todos os
males; e como este se foi apoderando daquele Estado, tem introduzido nele
98
“Verdade, clareza e juízo”
tantos, que parece já agora irremediável a sua cura, se Deus milagrosamente lhe
não acode.”69
Diogo do Couto fora testemunha ocular da inflexão, pois embarcou para a Índia
em 1556, onde militou durante alguns anos, “mostrando com particular valor que as letras
não impedem, antes favorecem as armas.”70: O título de Cronista da Índia lhe foi
conferido por Felipe II de Espanha, conhecedor da importância dos gêneros
historiográficos nos negócios do governo e desejoso de legitimar a sua majestade frente à
percepção do declínio português, marcado pelo desaparecimento de D. Sebastião no norte
da África e pela união das coroas ibéricas:
“Sucedendo el-Rei Dom Filipe I na Coroa destes Reinos, como era Príncipe
tão prudente, e que sempre trazia nos olhos o bem comum de seus vassalos,
desejou de mandar prosseguir a história da Índia, do tempo em que a deixou o
nosso João de Barros, e que se continuassem as suas Décadas com o mesmo
título, e estilo, pelo grande aplauso com que as três primeiras foram recebidas em
toda Europa.”71
69
FARIA, Manuel Severim de. Discursos vários políticos, p. 119.
70
Idem, p. 171.
71
Idem, p. 172.
72
Idem, ibidem.
73
Idem, 173.
99
“Verdade, clareza e juízo”
Manuel Severim de Faria informa que até 1616, ano de falecimento do cronista da
Índia, apenas foram impressas da quarta à sétima Década, sendo que da sexta apenas
restaram seis volumes em virtude de um incêndio ocorrido na casa do impressor. Mas ao
antiquário interessava tratar ainda da elocutio decorosa mobilizada nestes livros:
“O estilo que nestas Décadas guardou Diogo do Couto é muito claro, e chão,
mas cheio de sentenças, com que julga as ações de cada um, e mostra as causas
dos sucessos adversos, e prósperos que naquelas partes tiveram os Portugueses.
Porém ainda que nesta parte pode ser comparado na verdade do que escreve,
que é a alma da história, no que trata dos Príncipes do Oriente, nos costumes
daqueles povos e remotas províncias, na situação da sua verdadeira geografia,
levou a muitos conhecida ventagem, como se pode claramente ver das suas
Décadas, nas quais se mostram os erros que nestas matérias tiveram os que antes
dele escreveram as cousas do Oriente.”74
74
FARIA, Manuel Severim de. Discursos vários políticos, p. 173 (grifo nosso).
75
Idem, pp. 173-174 (grifo nosso).
100
“Verdade, clareza e juízo”
publicado de cada conquista dos romanos, em particular, tinha composto a sua universal
história.” 76
Por fim, mas não menos importante, Diogo do Couto representa um modelo a ser
seguido pelo “grande zelo do bem público da pátria” que o acompanhou desde o início.77
Como cronista, apontou os inconvenientes que existiam no governo da República “e
principalmente no Estado da Índia, onde ele assistia, e onde por ausência dos Reis, e
excessos dos ministros, iam as desordens em maior crescimento.”78
76
FARIA, Manuel Severim de. Discursos vários políticos, p. 174.
77
Idem, p. 175.
78
Idem, ibidem.
101
“Verdade, clareza e juízo”
79
ARISTÓTELES. Retórica, Livro I, II, p. 33.
80
FARIA, Manuel Severim de. Discursos vários políticos, pp. 53-54 (grifo nosso).
102
“Verdade, clareza e juízo”
81
Pero de Magalhães Gandavo não havia nem mencionado a presença dos frades menores na esquadra de
Cabral, tampouco que frei Henrique de Coimbra rezara a primeira missa na terra descoberta. Cf.
GANDAVO, Pero de Magalhães. História da Província Santa Cruz, pp. 78-79. Em seu livro, publicado em
1576, Gandavo apenas contempla a atuação dos jesuítas desde 1549, quando os primeiros padres chegaram
junto com o governador geral, Tomé de Sousa.
103
“Verdade, clareza e juízo”
construção de um Convento na cidade. Até o início do século XVII, os padres seráficos Excluído: tentariam covertê-los
ao cristianismo
ainda fundariam casas em Igaraçu (1588), Paraíba (1589), Vitória (1591), Recife (1606)
e, finalmente, no Rio de Janeiro (1606).
A abertura de novos territórios missionários na América e no Oriente e,
conseqüentemente, a profusão de conventos, ensejaram uma preocupação com a narrativa
sistemática das atividades seráficas. Desde 1619, o Ministro Geral da ordem, frei
Benigno de Gênova, havia ordenado que todas as províncias nomeassem um de seus
religiosos para escrever a sua própria história. No caso da Custódia do Brasil, frei Manuel
da Ilha foi incumbido da tarefa, apesar de nunca ter pisado na América. O insulano
baseou-se nos relatos dos frades que voltavam ao reino e, sobretudo, na Crônica da
Custódia do Brasil, escrita por Frei Vicente Salvador alguns anos antes.83
Escrita em latim, a Narrativa da Custódia de S. Antônio do Brasil inicia-se com a
decisão, tomada em 1584, de “enviar novos operários do santo evangelho para aquele
novo Portugal.”84 A crônica discorre sobre a fundação dos conventos e das missões a
cargo dos franciscanos, fornecendo relatos de martírios e necrológios dos frades que se
destacavam na milícia espiritual. Refere-se ainda aos irmãos seráficos que estiveram
anteriormente no Brasil, como o frei Henrique de Coimbra, os dois protomártires de
Porto Seguro e o frei Pedro Palácios, fundador do santuário de N. S. da Penha na
capitania do Espírito Santo.
82
Para a história dos franciscanos na América Espanhola, ver: PÉREZ, Antolín. Los Franciscanos en
América. O papel da ordem de São Francisco na descoberta e colonização do Novo Mundo é conhecido. Os
Excluído: Em meados do século
frades do Convento de la Rábida – sobretudo Frei Juan Pérez, confessor de Isabel, e Frei Antônio de
XVIII, Frei Antônio de Santa
Marchena, Custódio de Sevilha – não só acolheram os projetos de Colombo como facilitaram o seu acesso Maria Jaboatão (1695 – 1779) foi
à corte. Desde a segunda viagem do genovês à América, em 1493, os franciscanos estiveram presentes ao encarregado de escrever a história
lado dos conquistadores, e foram os primeiros a estabelecer uma organização permanente no Novo Mundo. da ordem no Brasil, percorrendo
todos os arquivos conventuais da
Em 1502, foi criada a Província de Santa Cruz de las Indias, com sede em São Domingos. Em 1543, o
colônia a fim de realizar tal tarefa.
primeiro convento da ordem foi criado em terra firme. Sua obra, Novo Orbe Seráfico
83
Ver a nota 4 deste capítulo. Brasílico, constitui o mais
84 completo relato sobre a atuação
ILHA, frei Manuel. Narrativa da Custódia de Santo Antônio do Brasil ou relação e número das casas e
dos franciscanos durante os três
das doutrinas nela existentese outras coisas dignas de menção, etc. ou, originalmente, Divi Antonii
séculos de colonização e,
Brasiliae Custodiae enarratio seu relatio numerique domorum et doctrinarum quae in illa sunt, necnom certamente, será também
aliarum rerum narrationes dignarum, etc, p. 13. considerada nesta pesquisa.
104
“Verdade, clareza e juízo”
A questão de maior relevo no livro de frei Manuel da Ilha talvez seja a querela
que envolveu, no fim do século XVI, franciscanos e jesuítas nas missões da Paraíba. A
questão tomou um vulto maior para os frades menores, pois esta era a primeira doutrina
da ordem na América portuguesa. O custódio, frei Melchior de Santa Catarina, aceitou a
conversão do gentio da aldeia de Pyraiuba ou Piragibe, não obstante os jesuítas já
tivessem construído uma capela e erguido cruzes no local. Os padres da Companhia não
residiam na aldeia, pois, segundo o Insulano, esperavam os estipêndios régios para iniciar
a sua missão. Nessa primeira menção, o episódio encerrou-se, aparentemente de forma
serena, após os frades menores deixarem a aldeia,:
“O Custódio agiu desse modo porque desejava manter a paz com estes e
todos os demais religiosos e fugir a qualquer ocasião de perdê-la, o que
procurava fazer sempre de novo o demônio, inimigo da nossa salvação e da paz.
Deixando, portanto essa doutrina, dirigiu-se imediatamente às outras, pelas quais
ele e seus companheiros foram acolhidos de braços abertos.”85
85
ILHA, frei Manuel da. Narrativa da Custódia de Santo Antônio do Brasil, p. 82.
105
“Verdade, clareza e juízo”
86
ILHA, frei Manuel. Op. Cit., pp. 117-118.
87
Idem, p. 119.
88
Idem, ibidem.
89
Idem, pp. 123-124.
106
“Verdade, clareza e juízo”
“Elles sont avant tout des oeuvres d’autoprésentation des missionaries. L’analyse
des procédés narratifs montre que l’histoire de chacun est un mythe construit à
l’interieur de chaque ordre par l’effet des ‘générations de chroniques’, et par
90
SILVEIRA, frei Ildefonso, O.F.M. Introdução. In ILHA, frei Manuel. Op. Cit., p. 10.
91
SINKEVISQUE, Eduardo. Retórica e política: a prosa histórica dos séculos XVII e XVIII, p. 212.
92
GIRARD, Pascale. Les religieux occidentaux en Chine à l’époque moderne, p. 143 (tradução nossa).
107
“Verdade, clareza e juízo”
93
GIRARD, Pascale. Les religieux occidentaux en Chine à l’époque moderne, p. 142.
94
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 56.
95
Idem, ibidem (grifo nosso). Em 1584, o padre jesuíta José de Anchieta, em sua Informação do Brasil e de
suas capitanias, já afirmava que os franciscanos foram os primeiros religiosos que vieram ao Brasil, mas
não tratou da primeira missa, apenas dos protomártires de Porto Seguro. O trecho intitula-se Dos frades que
antes e depois da Companhia vieram ao Brasil. Cf. ANCHIETA, José de. Cartas: informações fragmentos
históricos e sermões.
108
“Verdade, clareza e juízo”
“Bem quiseram nossos frades, pela facilidade que nisto mostraram para
aceitarem nossa fé católica, ficar-se ali, pera os ensinarem e batizarem, mas o
capitão-mor, que os levava pera outra seara não menos importante, se partiu daí a
poucos dias com eles pera a Índia, deixando uma cruz ali levantada como
também dois portugueses degredados pera que aprendessem a língua (...)”96
O trecho, sem dúvida, poderia constar de uma hagiografia. Mas os freis Henrique
de Coimbra e Pedro Palácios apenas precediam e sinalizavam as gloriosas obras da
ordem de São Francisco de Assis, cujo estabelecimento definitivo e institucional fornece
matéria ao quarto livro, que abrange o período entre 1582 e 1612. Neste livro, o
franciscano dedica, sucessivamente, quatorze capítulos – do terceiro ao décimo sexto – às
tentativas de conquista da capitania da Paraíba.
96
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, pp. 56-57.
97
Idem, p. 109.
109
“Verdade, clareza e juízo”
98
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 236 (grifo nosso).
110
“Verdade, clareza e juízo”
“Também neste tempo e era do Senhor de 1587 (sic) vieram ao Brasil fundar
conventos os religiosos da nossa província capucha de Santo Antônio, com o
irmão frei Melchior de Santa Catarina, religioso de muita autoridade e bom
púlpito, por comissário, por um breve do senhor papa Xisto Quinto, e patente do
nosso reverndíssimo padre geral frei Francisco Gonzaga, que faz do breve
relação do fim do livro que fez de nossa seráfica ordem, e por virem à instância
de Jorge de Albuquerque, senhor de Pernambuco, fizeram lá o primeiro
convento, pela qual causa, e por termos naquela capitania quatro conventos, se
fazem nela os nossos capítulos e congregações custodiais.”100
Não surpreende que frei Vicente do Salvador tenha errado a data de chegada da
própria ordem ao Brasil. Assim, o advento dos franciscanos passava a coincidir com a
formação de um novo governo que anuncia um período benfazejo à política imperial.
Destarte, o capítulo seguinte discorre sobre como Cristóvão de Barros, logo após a
formação dessa espécie de junta provisória, organizou um contra-ataque às três naus
inglesas que haviam tomado os navios que se encontravam no porto da Bahia e
bombardeado a cidade.
No capítulo vigésimo, a reviravolta em andamento nos negócios brasílicos fica
ainda mais evidente. A matéria é a “guerra tão justa”101 aos índios de Ceregipe, dada com
licença régia e, portanto, da qual os portugueses esperavam trazer muitos escravos. Este
gentio era responsável pela morte do pai de Cristóvão de Barros, Antônio Cardoso de
99
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 250.
100
Idem, p. 251. Os franciscanos chegaram à vila de Olinda em 1585. No ano de 1587, houve o lançamento
da pedra Fundamental do Convento de São Francisco, em Salvador. Em nota, Capistrano de Abreu informa
que os quatro conventos citados localizavam-se em Olinda, Igaraçu, Recife e Ipojuca.
101
Idem, p. 253.
111
“Verdade, clareza e juízo”
Barros, o primeiro provedor-mor do Brasil, “que ali mataram e comeram indo pera o
reino com o primeiro bispo desta Bahia (...).”102
102
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 253.
103
Idem, p. 255 (grifo nosso).
104
Idem, p. 258.
105
Idem, p. 261.
112
“Verdade, clareza e juízo”
“Não houve igreja que não pintasse, aceitando todas as confrarias que lhe
ofereciam, murou a cidade de taipa de pilão que depois caiu com o tempo, e fez
três ou quatro fortalezas de pedra e cal, que hoje duram; as principais, que têm
presídios de soldados e capitães pagos são a de Sto. Antônio na boca da barra e a
de São Filipe na ponta de Tapuípe (...). E tudo então podia fazer porque tinha
provisão de el-rei, pera que, quando não bastasse o dinheiro dos dízimos, que é
só o que cá se gasta a el-rei, o pudesse tomar de emprétimo a qualquer outra parte
(...). Porém a nem um outro governador a passou depois tão ampla, antes os
apertou tanto que nem dívidas velhas deel-rei podem pagar sem nova provisão,
nam fazer alguma despesa extraordinária. O motivo que el-rei teve pera alargar
tanto a mão de D.Francisco foi por as guerras da Paraíba, e por os muitos
cossários que então custavam esta costa do Brasil, como veremos em capítulos
seguintes.”106
Frei Vicente, portanto, passa a discorrer sobre o sucesso obtido nas guerras da
Paraíba, às pazes com os potiguares e, sucessivamente, com os índios aimorés. O frade
baiano faz uma síntese das ações de polícia estabelecida pela coroa para as capitanias do
norte. Entretanto, o louvor de D. Francisco Sousa deve-se ainda a motivos assinalados no
relato de frei Manuel da Ilha e, muito provavelmente, em algum dos capítulos perdidos da
História do Brasil.107
O Insulano descreve um milagre ocorrido em 1595, quando franceses luteranos
partiram para tomar e arrasar a cidade de Salvador da Bahia. Em resumo, os hereges
passaram pela fortaleza portuguesa de Arguim, na África, assassinaram os portugueses e
roubaram uma imagem do Santo Antônio de Lisboa, colocando-a no convés do navio.
Em seguida, os franceses “fizeram com ela tamanha abominações e maldades, indignas
até de luteranos.”108 Além de chacotear e ofender o santo, deram-lhe várias cutiladas, e,
por fim, instigaram-no de forma jocosa a levar o navio para a Bahia. Após faltar gêneros
alimentícios à esquadra, outros castigos vieram:
106
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, pp. 261-262 (grifo nosso).
107
Os capítulos que não constam da História são o 26, 27, 28, 29 e parte do trigésimo do Livro IV. Esses
capítulos, considerando a narrativa in ordo naturalis, tratam do período entre 1591 e 1597.
108
ILHA, frei Manuel. Op. Cit., p. 34.
113
“Verdade, clareza e juízo”
109
ILHA, frei Manuel. Op. Cit, p. 37
114
“Verdade, clareza e juízo”
que logo decretou que a cidade tomasse Santo Antônio por seu padroeiro e que
em sua honra anualmente se celebrasse uma festa solene.”110
110
ILHA, frei Manuel. Op. Cit., p. 34
111
O trecho do Santuário Mariano que trata dos respectivos milagres de Santo Antônio são transcritos por
Willecke e inseridos ao fim do Livro IV, pp. 303-306.
115
“Verdade, clareza e juízo”
“(...) E meu companheiro lhe mandou o cordão com que estava cingido, o
qual penduraram do bordo até o mar, e quis Nosso Senhor que a caravela
incontinente se quietasse e moderasse o vento e os mares, de modo que ao dia
seguinte entramos com bonança.
O que visto pelos castelhanos não quiseram tornar o cordão, dizendo que por
ele esperavam de ir seguros de tempesdades ao rei da Prata. Nem foi só a vez,
mas infinitas, as que Deus por meio do cordão de nosso seráfico padre São
Francisco há livrado a muitos de naufrágios e feitas outras muitas
maravilhas, pelo que sejam dadas infinitas graças e louvores.”112
Em relação aos jesuítas, que haviam sido seus primeiros mestres no Colégio de
Salvador, frei Vicente destaca, com certa veneração, as figuras de Nóbrega, Anchieta,
Fernão Cardim e Luís Figueira. Conquanto as questões que envolveram os padres
inacianos e os frades menores na capitania da Paraíba não sejam mencionadas na
História, o franciscano, em uma passagem, não deixa de enaltecer a experiência destes no
trato com o gentio.
O exemplo da eficiência franciscana provém da mesma capitania da Paraíba, onde
um índio chamado Surupiba, após descer o rio apregoando a paz, foi preso em ferros
pelos portugueses, os quais lhe conferiram bom tratamento pela “persuasão dos padres da
Companhia, posto que contradizendo-o o nosso irmão frei Bernardino, que conhecia
bem suas traições e enganos.”113 Afinal, o índio foi solto, prometeu apaziguar o gentio
potiguar e trazê-lo aos católicos. Ao invés de entregarem-se, os potigures armaram mais
uma emboscada para os soldados portugueses.
Nas demais passagens em que trata dos frades menores, frei Vicente sempre tece
elogios ao auxílio prestado às autoridades lusitanas, em virtude da perícia na língua
brasílica e da facilidade em converter o gentio. A menção aos franciscanos não se fazia
sem um epíteto encomiástico. Assim, o frei Cosme de Damião é descrito como “varão
prudente e observantíssimo de sua regra” e frei Manuel da Piedade como letrado e
112
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, pp. 349-350 (grifo nosso).
113
Idem, p. 268 (grifo nosso).
116
“Verdade, clareza e juízo”
114
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, pp. 337-338.
115
Idem, p. 343 (grifo nosso).
117
“Verdade, clareza e juízo”
trecho que, segundo o frei Venâncio Willecke, constaria também da Crônica de Vicente
do Salvador, visto que se encontra também na Narrativa de frei Manuel:
116
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 285 (grifo nosso). Em nota ao trecho entre
colchetes, Willecke afirma pertencer à Crônica, conforme Capistrano de Abreu supunha. Infere ainda que
todo o capítulo 39, com exceção das estatísticas, faziam parte da Crônica escrita em 1617 pelo frei Vicente
do Salvador.
118
CAPÍTULO III
1
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 77. Neste capítulo, apenas foi utilizada a edição de
1982, que incorporou a crítica documental de frei Venâncio Willecke, realizada para a 5ª edição, após
consulta do apógrafo guardado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa.
2
GRUZINSKI, Serge. Os mundos misturados da monarquia católica e outras connected histories, p.184.
3
SALVADOR, frei Vicente do. Op. Cit., p. 56.
4
Idem, ibidem.
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
“Porém, como o demônio com o sinal da cruz perdeu todo o domínio que tinha
sobre os homens, receando perder também o muito que tinha em os desta terra,
trabalhou que se esquecesse o primeiro nome e lhe ficasse o de Brasil, por causa
de um pau com que tingem panos, do qual há muito, nesta terra, como que
importava mais o nome de um pau assim chamado de cor abrasada e vermelha
com que tingem panos que o daquele divino pau, que deu tinta e virtude a todos
os sacramentos da Igreja, e sobre que ela foi edificada e ficou tão firme e bem
fundada como sabemos”.6
5
AQUINO, São Tomás de.Suma teológica, p. 442.
6
SALVADOR, frei Vicente do. Op. Cit., p. 57 (grifo nosso).
7
Idem, ibidem.
8
Idem, ibidem.
121
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
9
SALVADOR, frei Vicente do. Op. Cit., pp. 57-58 (grifo nosso).
10
ARISTÓTELES. A Política, pp. 58-59.
122
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
“Da largura que a terra do Brasil tem para o sertão não trato, porque até
agora não houve quem a andasse por negligência dos portugueses, que, sendo
grandes conquistadores de terras, não se aproveitam delas, mas contentam-se de
as andar arranhando ao longo do mar feito caranguejos.”13
11
ARISTÓTELES. A Política, p. 5.
12
Idem, p. 64.
13
SALVADOR, frei Vicente do. Op. Cit., p. 59. No Livro IV, ao tratar da Ilha de Santa Catarina, o frade
baiano afirma que estava despovoada “por ser os portugueses que não sabem povoar nem aproveitar-se das
terras que conquistam.” Idem, p. 218.
123
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
Ao gentio são dedicados os últimos seis capítulos deste primeiro livro, ainda que a
necessidade de catequese dos pagãos perpasse toda a História do Brasil. Nas linhas
acima, o franciscano combina duas reprimendas aos súditos da Coroa no Brasil. Refere-
se, primeiramente, ao desinteresse pelos metais e pedras preciosas, que, se descobertos,
serviriam para fortalecer e aumentar o poder da Monarquia Católica. Da mesma forma, o
tratamento que era conferido aos indígenas não estava de acordo com as leis imperiais e
romanas, as quais estabeleciam que a escravidão dos indígenas só seria permitida quando
fossem movidas guerras justas.
Os argumentos utilizados para descrever os índios e seus costumes, analisados
mais adiante, fazem parte da descrição minuciosa dos elementos naturais à terra. No que
se refere à natureza, frei Vicente discorre sobre o clima em primeiro lugar, pois era
14
SALVADOR, frei Vicente do. Op. Cit., p. 59.
15
Capistrano de Abreu informa que essas estampas foram perdidas. No entanto, de acordo com frei
Venâncio Willecke: “Parece que nunca chegou a haver as estampas previstas, mas sim que frei Vicente as
pretendia encomendar em Portugal.” Cf. Prolegômenos ao Livro I da História do Brasil, p. 49.
16
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, pp.62-63 (grifo nosso).
124
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
17
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 62.
18
Idem, p.68.
19
Idem, p. 76.
125
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
20
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, Livro II: “Posto que el-rei D. Manuel, quando soube a
nova do descobrimento do Brasil (...), andava mui ocupado com as conquistas da Índia Oriental, (...) não
deixou, quando teve ocasião, de mandar uma armada de seis velas (...).”, p. 103. Livro III: “Depois que El-
Rei soube da morte de Francisco Pereira Coutinho (...) determinou povoá-la e fazer nela uma cidade (...).”,
p.143. Livro IV: “Como a Majestade de El-Rei Filipe Segundo de Castela e Primeiro de Portugal foi jurado
nele por rei no fim do ano de 1580, (...) mandou como governador a Manuel Teles Barreto (...).”, p. 216.
Por fim, o Livro V inicia-se com as seguintes palavras: “Sabida por sua Majetasade a nova da morte de D.
Francisco de Sousa, tornou a juntar todo o governo do Brasil em um e o deu a Gaspar de Sousa.”, p. 336. O
livro primeiro, embora informe que Pedro Álvares Cabral navegava “por mandado de el-rei Dom Manoel”,
inicia-se de forma diferente: “A terra do Brasil, que está na América, uma das quatro partes do mundo
(...)”, p. 56.
21
Idem, p. 104.
126
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
“Toma esta capitania o nome de Bahia por ter uma tão grande que por
antonomásia e excelência se levanta com o nome comum e apropriando-se a si se
chama a Bahia, e com razão, porque tem maior recôncavo, mais ilhas e rios
dentro de si que quantas são descobertas no mundo, (...); nem há terras que
tenha tantos caminhos por onde se navega.
As ilhas que tem dentro de si tem, entre grandes e pequenas, trinta e duas: só
tem um senão que é não se poder defender a entrada dos corsários, porque tem
duas bocas ou barras uma dentro da outra: (...).
Está esta baía a treze graus e um terço, e tem em seu circuito a melhor terra
do Brasil; (...) pelos que os índios velhos comparam o Brasil a uma pomba,
cujo peito é a Bahia, e as asas outras capitanias, porque dizem que na Bahia
está a polpa da terra, e assim dá o melhor açucar que há nestas partes”.22
“Mas hão se aqui por fim deste advertir duas coisas: a primeira que não
guardei nele a ordem de tempo e antiguidade das capitanias e povoações, senão a
do sítio, contiguação de umas com outras, começando do sul pera o norte, o que
não farei nos seguintes livros, em que seguirei a ordem do tempo e sucesso das
coisas. A segunda, que não tratei das do Rio de Janeiro, Serigipe, Paraíba e
outras, porque estas se conquistaram depois e povoaram por conta del-rei,
por ordem dos seus capitães e governadores gerais, e terão o seu lugar quando
tratarmos deles, em os livros seguintes”.23
22
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 112 (grifo nosso).
23
Idem, p.129 (grifo nosso).
127
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
24
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 143 (grifo nosso).
25
Idem, p. 145.
26
Idem, p. 147.
27
Idem, p. 146.
128
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
Entre todos os governos tratados no terceiro livro, o de Mem de Sá, que esteve à
frente do Brasil durante 15 anos, decerto recebe mais encômios, posição defendida
primeiramente pelo padre Manoel da Nóbrega e reafirmada, desde então, pelos jesuítas.
Os louvores, contudo, não se devem apenas ao tempo que fora dedicado aos serviços
prestados à Coroa. Mem de Sá, segundo frei Vicente do Salvador, “com razão pode ser
espelho de governadores do Brasil, porque, concorrendo nele letras e esforço, se sinalou
muito na guerra e justiça.”28 O franciscano refere-se aos conflitos nas capitanias do Rio
de Janeiro, Espírito Santo e Pernambuco, contra o gentio e seus aliados franceses.29
Entretanto, a linearidade da narrativa dos governos é composta ainda de algumas
digressões que relacionam os acontecimentos do ultramar ao reino, ou, mais
precisamente, à cabeça do império. Nesse sentido, após discorrer sobre cinco naus,
capitaneadas por D. João de Menezes de Sequeira que arribaram na Bahia antes de
seguirem para as Índias, frei Vicente do Salvador conclui o capítulo com a primeira
referência a Felipe II:
28
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p.151.
29
As tópicas do bom governo e da guerra justa serão analisadas posteriormente, ainda neste capítulo.
30
Idem, p. 149.
129
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
“Tão zeloso era el-rei D. Sebastião da honra de Deus e de guerrear por ela
contra os infiéis, que só por isto aceitava o casamento (a que não era afeiçoado) e
não queria outro dote. Mas, não se concluindo este matrimônio, que tantos males
e desventuras pudera escusar, casou com ela Henrique de Bourbon, duque de
Vandoma e príncipe de Biarne, e el-rei D. Sebastião continuou com suas guerras,
que era o que desejava sobre todas as coisas da vida, até que nelas a perdeu.”34
31
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 151.
32
Idem, p. 193.
33
Idem, p. 154.
34
Idem, p. 177. A morte do donatário de Pernambuco está na página 173.
35
Idem, p. 178.
130
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
36
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 193. Refere-se ainda aos pais dos pretendentes ao
trono.
37
Idem, ibidem (grifo nosso).
38
Idem, p. 194 (grifo nosso).
131
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
“Hei dito estas coisas em suma, não sem prepósito, senão para declarar o
achaque ou ocasião da morte do governador do Brasil Lourenço da Veiga, que,
como se prezava de português, sentiu tanto haver seu irmão Tristão Vaz da Veiga
entregue a torre de São Gião da maneira que temos visto, que ouvindo a nova
enfermou e morreu.
E assim acabou o governador Lourenço da Veiga, e nós com ele acamos
também este livro.”39
132
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
133
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
134
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
43
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 301.
44
Idem, p. 354.
45
Idem, p. 361 (grifo nosso). Ver ainda p. 373: “O que eu sei como testemunha de vista, porque neste
tempo estava cativo nesta nau (...)”; ou p. 352: “(...) segundo alcancei algumas vezes que com ele falei em
135
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
Lisboa, onde me achei em aquele tempo (...).” Nos livros anteriores, frei Vicente do Salvador recorre ainda
a “uma mulher de crédito”ou a “um soldado de crédito”.
46
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 389.
136
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
neste e no capítulo seguintes se verão as obras, das quais, mais que dos
nomes, se colige a verdadeira nobreza.
Juntas pois estas armadas em o Cabo Verde, e feitas suas salvas militares e
cortesãos cumprimentos, se partiram daí em 11 de fevereiro de 1625 em dia de
entrudo pera esta Bahia, à qual chegaram em 29 de março, véspora de Páscoa, a
salvamento.”47
47
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 391 (grifo nosso).
48
Cf. LAUSBERG, Heinrich. Elemementos de retórica literária.
49
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 355 (grifo nosso).
137
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
“E a nós deixaram pera nos trocarem pelos seus que estavam cativos dos assaltos,
sobre o que andavas um português, morador da terra, que falava a língua
flamenga, o qual depois acharam que lhe era tredo e os enganava, pelo que o
prenderam e o enforcaram com um irmão seu e um mulato que os acompanhava,
e a nós se ficaram dilatando as espqranças da nossa liberdade, de tal sorte que
meu companheiro teve por melhor arriscar-se a ir a nado, o que eu ainda que
quisera não podia fazer, porque quem não sabe nadar vai-se ao fundo.”50
“As pessoas que tendem para o excesso na ânsia de gracejar são consideradas
bufões vulgares, esforçandos-se por provocar o riso a qualquer preço; seu
interesse maior é provocar uma gargalhada, e não dizer o que é conveniente e
evitar o desgosto naquelas pessoas que são o objeto de seus gracejos. Aquelas
que, ao contrário, são incapazes de fazer um gracejo e não suportam aqueles que
o fazem, são consideradas enfadonhas e grosseiras. As pessoas, porém, que
gracejam com bom gosto, são chamadas espirituosas, ou seja, dotadas de
presença de espírito, que se traduz em repentes pertinentes; tais repentes são
considerados movimentos do caráter, e da mesma forma que o corpo é apreciado
por seus movimentos, o caráter também o é.”51
50
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 375 (grifo nosso).
51
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, p. 190.
138
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
52
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 422.
53
Sobre os corsários, ver, por exemplo, no Livro Quarto, os capítulos I, que trata da presença de naus
francesas e inglesas no Rio de Janeiro e São Vicente; XIX, no qual informa sobre três naus inglesas na
BahiaXLII, que discorre sobre uma nau flamenga na capitania do Espírito Santo; e, no Livro Quinto, os
capítulos VI e IX, que tratam de holandeses e franceses.
139
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
“No distrito desta terra e capitania cai a terra dos Aitacases, que é toda baixa
e alagada, onde estes gentios vivem mais à maneira de homens marinhos que
terrestres. E assim nunca se puderam conquistar, posto que a isso foram algumas
vezes do Espírito Santo e Rio de Janeiro, porque, quando se há de vir às mãos
com eles, metem-se dentro das lagoas, onde não há entrá-los a pé nem a cavalo.
São grandes buzios e nadadores e a braços tomam o peixe ainda que sejam
tubarões, pera os quais levam em uma mão um pau de palmo pouco mais ou
menos, que lhes metem na boca direito e, como o tubarão fique com a boca
aberta, que a não pode cerrar com o pau, com a outra mão lhe tiram por ela as
entranhas, e com elas a vida, e o levam pera a terra, não tanto pera os comerem
como pera dos dentes fazerem as pontas de suas frechas, que são peçonhentas e
mortíferas (...).
Estas e outras incredíveis se contam deste gentio; creia-as quem quiser, que
o que daqui eu sei é que nunca foi alguém a seu poder que tornasse com vida
para as contar.”54
A mesma fabulação pode ser exemplificada pelo caso da cobra, iguaria servida
pelo franciscano, ainda no Livro Primeiro:
54
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 107 (grifo nosso).
55
Idem, p. 72. Há outras passagens igualmente deleitosas, como por exemplo: “E não hei de deixar aqui o
que me contou um soldado desta companhia que fez um principal destes que vieram, o qual diz-se foi à
estrebaria onde estava um cavalo dos nossos e assentando-se pôs-se a falar com ele e dizer-lhe que o
tomava por compadre (...).”, p. 257.
140
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
56
HANSEN, João Adolfo. Prefácio. In PÉCORA, Alcir. Teatro do Sacramento, p. 29. Sobre o conceito de
ut pictura poesis, ver também: MUHANA, Adma. A epopéia em prosa seiscentista: uma definição de
gênero; SINKEVISQUE, Eduardo. Retórica e política: a prosa histórica dos séculos XVII e XVIII.
Introdução a a um debate sobre gênero.
57
IGLÉSIAS, Francisco. Historiadores do Brasil, pp. 29-30.
58
Idem, p. 29.
59
ABREU, J. Capistrano de. Nota preliminar, p. 39. In SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil.
60
No caso dos gêneros historiográficos, ver a dissertação de SINKEVISQUE, Eduardo. Retórica e política:
a prosa histórica dos séculos XVI e XVII – introdução a um debate sobre gênero.
141
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
“Tel est en effet le Dieu de Saint Thomas d’Aquin. Non pas seulement le
principe, mais le créateur, et non pas seulement le Bien, mais le Pére. Sa
providence s’étend jusqu’au moindre détail de l’être, parce que sa providence
n’est que sa causalité. (...) Ce qu’il est éternellement em soi-même, le Dieu de
Saint Thomas le reste donc comme cause des événements. (...) L’homme pèche
et se perd, mais le Verbe se fait chair pour sauver l’homme: il nomme Dieu
son Rédempteur. Toute cette histoire se développe selon le temps e dans un
monde qui change, mais Dieu lui-même n’en est pas plus changé qu’une
colonne qui passé de droite à gauche selon que nous allons et venons devant
elle.”63
61
Confissões, p. 325.
62
GILSON, Étienne. Le thomisme, pp. 205-206.
63
Idem, p. 205 (grifo nosso).
142
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
“E deu por causa o Monsiur a quem lhe perguntou por que se retirara, que viram
muita gente na trincheira donde os nossos saíram e temera que vindo socorro lhes
não poderiam escapar, não tendo por possível que tão poucos homens tivessem
cometido a tantos senão com as costas quentes (como diziam), e confiados nos
muitos que trás eles saíram. E os muitos eram vinte soldados que haviam ficado
por não terem pólvora e munição, e se assumavam por cima da trincheira a ver de
64
SALVADOR, frei Vicente. História do Brasil, pp. 66-67.
143
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
palanque a briga, que na praia se fazia, mas melhor causa dera se dissera que o
quis assim Deus. E foi esta vitória como um presságio da que havia de
conseguir no Maranhão (...).”65
“(...) Enfim estas eram as guerras civis que havia entre as cabeças, e não eram
menos as que havia entre os cidadãos, prognóstico certo da dissolução da
cidade, pois o disse a suma verdade, Cristo Senhor Nosso, que todo o reino
onde as houvesse entre os naturais e moradores seria assolado e destruído.
Outro prognóstico houve também, que foi arruinarem-se as casas del-rei,
em que o governador morava, de tal maneira que, se as não sustentaram com
espeques, se vieram todas ao chão, sendo assim que eram de pedra e cal, fortes e
antigas, sem nunca até este tempo fazerem alguma ruína.”66
“(...) é necessário dizer que todas as coisas estão sujeitas à providência divina,
não só em geral, mas também no particular. O que assim se demonstra: como
todo agente age em vista a um fim, a ordenação dos efeitos ao fim deve se
estender tanto quanto se estende a causalidade do primeiro agente. Por isso
acontece nas obras de um agente que algo provenha sem ser ordenado ao fim,
porque este efeito procede de alguma outra causa fora da intenção do agente.
Ora, a causalidade de Deus, o agente primeiro, se estende a todos os entes, não
65
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, pp. 338-339 (grifo nosso).
66
Idem, p. 361 (grifo nosso)
144
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
“O intento que Gabriel Soares levava nesta jornada era chegar ao rio de São
Francisco e depois por ele até a lagoa Dourada, donde dizem que tem seu
nascimento, e pera isto levava por guia um índio chamado Guaraci, que quer
dizer sol, o qual também se lhe pôs e morreu no caminho, ficando de todo as
minas obscuras até que Deus, verdadeiro sol, queira manifestá-las.”68
Nesse ponto reside uma das diferenças mais importantes entre os católicos
tomistas e os luteranos ultra-agostinianos. Estes pregavam a idéia do Deus absconditus,
cuja vontade seria incompreensível aos homens, pela sua natureza decaída. Em oposição
aos hereges, os tomistas defendiam o bem inerente ao homem, redimido do pecado
original pela Encarnação de Deus em Cristo. Desse modo, apesar dos seus pecados e
fraquezas morais, os homens eram portadores da graça e, portanto, capazes de
compreender os sinais divinos e, em virtude do seu livre-arbítrio, atuar – como causa
segunda – no sentido da sua realização.
A concepção tomista, difundida pelas universidades ibéricas e pelos colégios
jesuítas no ultramar, constitui o parâmetro de frei Vicente do Salvador ao narrar as ações
67
AQUINO, São Tomás de. Suma teológica, questão 22, 2, p. 442 (grifo nosso).
68
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 264 (grifo nosso).
145
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
“Também é tradição antiga entre eles [os índios] que veio o bem-aventurado
apóstolo São Tomé a esta Bahia, e lhes deu a planta da mandioca e das bananas
de São Tomé (...); e eles, em paga deste benefício e de lhes ensinar que
adorassem e servissem a Deus e não ao demônio, que não tivessem mais de uma
mulher e comessem carne humana, o quiseram matar e comer, seguindo-o com
efeito até uma praia donde o santo se passou de uma passada à ilha de Maré (...).
Devia ser indo pera a Índia, que quem tais passadas dava bem podia correr todas
estas terras, e quem as havia de correr também convinha que desse tais passadas.
Mas, como estes gentios não usem de escrituras, não há disto mais outra
prova ou indícios que achar-se uma pegada impressa em uma pedra em aquela
praia, que diziam ficara do santo quando passou à ilha, onde em memória fizeram
os portugueses no alto uma ermida do título e invocação de São Tomé.”69
69
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 112.
70
AQUINO, São Tomás de. Suma teológica, questão 22, 3, pp. 445-446.
71
Idem, p. 446.
146
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
“É próprio, com efeito, da providência ordenar as coisas a seus fins. Ora, depois
da bondade divina, que é o fim transcendente, o principal bem imanente às coisas
é a perfeição do universo; perfeição que não existiria caso todos os graus de ser
não se encontrassem nas coisas.”73
Na História do Brasil, Deus está sempre do lado português, tanto nas lutas contra
o gentio como contra os hereges. A primazia lusitana adquire contornos nítidos pela
intervenção dos santos nos combates. Segundo Francisco Bethencourt, “a invocação de
anjos e santos protetores assume, numa sociedade imersa em referências quotidianas ao
sagrado, uma função primordial de securização do reino.”74 Frei Vicente cita uma das
tantas guerras contra os tamoios, “industriados pelos franceses”:
“Os tamoios, não ainda bem começada a batalha, viraram as costas, (...) e
meteram os nossos, que atrevidamente os iam seguindo, em a cilada, donde
saíram as mais canoas inimigas e subitamente as cercaram por todas as partes.
Mas nem por isso perderam o ânimo os portugueses, antes resistiram
valerosamente ajudados do divino favor, o qual ainda das coisas que parecem
adversas sabe tirar prósperos sucessos, como aqui se viu que, acaso
acendendo-se a pólvora em uma das nossas canoas, chamuscou a alguns dos
72
Mateus, 28. 19. Jesus, depois de sua ressurreição, apareceu aos discípulos e falou-lhes: “Portanto, ide,
ensinai todas as nações, batizando-as em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo;”ou ainda em
Mateus, 24.14; Lucas 24.47; Marcos, 16.15.
73
AQUINO, São Tomás de. Suma teológica, questão 22, 4, p. 447.
74
BETHENCOURT, Francisco. A sociogênese do sentimento nacional. In BETHENCOURT, Francisco;
CURTO, Diogo Ramada. A memória da nação, p. 479.
147
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
inimigos que a tinham abordada. Com o que e com a chama que levantou a
pólvora se alterou tanto a mulher do general tamoio que, dando gritos e vozes
espantosas, atemorizou a todos e, sendo seu marido o primeiro que fugiu com ela,
os seguiram os mais, deixando livres os nossos, os quais, tornando às suas
fronteiras, deram graças a Deus por tão grande benefício, e por os haver livres de
perigo tão grande pela voz e assombro de uma fraca mulher, ainda que depois
declararam os inimigos que não fora por isto, senão por haverem visto um
combatente estranho, de notável postura e beleza que, saltando atrevidamente nas
suas canoas, os enchera de medo. Donde creram os portugueses que era o
bem-aventurado São Sebastião, a quem haviam tomado por padroeiro desta
guerra.”75
“Ora, é próprio à providência permitir alguma deficiência nas coisas que lhe
estão sujeitas, como acima foi dito. Por isso, sendo os homens destinados à vida
eterna pela providência divina, cabe igualmente à providência permitir que
alguns não alcancem este fim. É o que chamamos reprovar.
75
SALVADOR, frei Vicente. História do Brasil, p. 161 (grifo nosso).
148
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
Deve-se salientar que, para São Tomás de Aquino, Deus apenas permite o pecado,
deixando intacto o livre arbítrio dos homens, “pelo qual o efeito da predestinação se
realiza de maneira contingente.”78 O mal, todavia, não é uma manifestação dicotômica no
que se refere à perfeição do universo, à qual “são requeridos diversos graus de coisas,
sendo que umas se encontram num alto nível e outras no mais baixo nível do universo.”79
O Senhor – que sabe de todas as escolhas, embora não seja responsável por elas – permite
alguns males para evitar que muitos bens deixem de acontecer.
Mas se a predestinação é parte da Providência, ela apenas se realiza pelas orações
e boas obras neste mundo, conforme transparecia nas palavras do fundador da
76
AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica, questão 23, 3, pp. 454- 455. É preciso não confundir com o
emprego luterano desta categoria, que constituiu um dos pontos de divergências com os católicos.
77
Idem, questão 21,4, pp. 436-437.
78
AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica, questão 23,6, p. 463.
79
Idem, questão 23, 5, p. 461.
149
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
Companhia de Jesus, Santo Inácio de Loiola: “Trabalha como se tudo dependesse de ti;
reza como se tudo dependesse de Deus.”80 Em suma, a predestinação é uma potência de
realizar a Providência, de ser instrumento dos desígnios divinos. Nas palavras de São
Tomás de Aquino:
O universo só existe para Deus, que nos homens realiza o seu fim. Frei Vicente do
Salvador articula os conceitos de providência Divina, livre-arbítrio e graça, a fim de
vincular o tempo de sua narrativa ao tempo contínuo e escatológico que a transcende,
porém no qual todos os episódios narrados se inserem. Os portugueses – “tão firmes na fé
da santa igreja católica romana e tão leais a seus reis como são”82 – agiam na direção
providencial, o que lhes conferia certamente um papel proeminente na história da
salvação humana.
Diretamente relacionado ao sentido transcendente conferido à história pela
concepção tomista, frei Vicente do Salvador pinta uma profusão de cenas de morte, pois,
como magistra vitae, era fundamental que a história lembrasse a fugacidade da vida
humana e, portanto, o inexorável acerto de contas com o Senhor, momento em que os
efeitos encontram a sua Causa. A morte, não raro, propicia um derradeiro comentário
acerca das obras do morto em vida. Segundo o franciscano, “todos os contentamentos do
mundo são aguados”.83 A oposição entre a vida neste mundo e a vida eterna aparece na
passagem em que discorre sobre a morte do governador Manuel Teles Barreto, em 1587:
80
Citado por MULLET, Michael. A contra-reforma, p. 20.
81
AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica, questão 23, 8, p. 469.
82
SALVADOR, frei Vicente. História do Brasil, p. 364.
83
Idem, p. 249.
150
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
“Como o governador Manuel Teles Barreto era tão velho, ainda antes de ver
o fim destas guerras, enfermou e passou desta vida, que também é uma
contínua guerra, como diz o santo Jó; quereria Deus que fosse pera a
triunfante, donde tudo é uma suma paz, glória e bem aventurança. Foi este
governados mui amigo e favorável aos moradores e o que mais esperas concedeu
pera que os mercadores não os executassem nas fábricas de suas fazendas (...)”.84
Esse discurso, confeccionado com base nos preceitos retóricos do XVII, produz
uma hierarquia dotada de lugares específicos para cada um dos súditos do império,
hierarquia temporal que se articula no plano teológico, à medida que fornece exemplos de
ações convergentes ao sentido salvífico cristão. João Adolfo Hansen assinala a unidade
dos discursos seiscentistas no Brasil:
84
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 251 (grifo nosso).
85
Idem, p. 363 (grifo nosso).
151
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
86
HANSEN, João Adolfo. Colonial e Barroco, pp. 358-359 (grifo nosso).
152
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
153
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
91
ARISTÓTELS. Ética a Nicômaco, p. 193.
92
Idem, p. 173.
93
Idem, ibidem.
94
Idem, p. 178.
95
Idem, p. 180.
154
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
96
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 146. Já foi afirmado que o tempo dos governadores
gerais fornece os marcos da narrativa.
97
ARISTÓTELES. A Política, p. 89.
98
Idem, p. 91.
99
Idem, p. 92.
155
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
“Este, pondo os pés no Brasil que foi o ano de 1557, nenhuma coisa do seu
regimento executou primeiro que o que el-rei lhe mandava em favor da religião.
Pera isto mandou logo chamar os principais índios das aldeias vizinhas desta
baía, e assentou com eles pazes com condição que se abstivessem de comer carne
humana, ainda que fosse de inimigos presos ou mortos em justa guerra, e que
recebessem em suas terras os padres da Companhia e os outros mestres da fé, e
lhes fizessem casas em suas aldeias onde se recolhessem, e templos onde
100
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 147.
101
Idem, p. 151.
156
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
Por um lado, Mem de Sá promoveu guerras justas contra o gentio, nas quais
perdeu o seu sobrinho, Estácio de Sá, e o seu filho, Fernão de Sá – “depois de haver feito
grandes coisas em armas contra a multidão destes bárbaros”103 – perdas que
exemplificam o seu empenho em bem servir ao rei. Por outro, o terceiro governador
zelou pela justiça no trato com os índios, permitindo apenas a escravidão daqueles que
recusavam a catequese e eram cativos nas guerras justas. Mas o zelo pela justiça era uma
tarefa ainda mais ampla. Nesse sentido, frei Vicente discorre sobre a medida exata para o
bom desempenho nos negócios públicos:
102
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, pp. 151-152 (grifo nosso).
103
Idem, p. 153
104
Idem, p. 152 (grifo nosso).
105
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, p. 205.
157
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
“O primeiro dia que [Gaspar de Sousa] foi presidir na relação fez uma prática
aos desembargadores, acerca das queixas que deles tinha ouvido, que não ficaram
mui contentes e, se as de ouvido lhes não ficaram no tinteiro, menos lhes ficou
depois alguma, se havia, que logo a não repreendesse.
É incrível o cuidado com que Gaspar de Sousa vigiava sobre todos os
ministros e ofícios de justiça e fazenda, da milícia e da república, sem lhe escapar
o erro ou descuido do almotacé ou de algum outro, que não emendasse. Esta era a
sua ocupação, não jogos e passatempos, com que outros governadores diziam
evitam a ociosidade, os quais ele desculpava, dizendo que teriam mais talento,
pois, com lidar e trabalhar de dia e de noite nas coisas do governo, confessava de
si que não acabava de remediá-las.”107
Mas além da justiça, Mem de Sá, “espelho dos governadores do Brasil”, fundou a
cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Se São Salvador, fundada na parte central da
costa brasileira, auxiliou a conquista efetiva das capitanias do norte, a cidade de São
Sebastião inicialmente investiu-se da função de garantir a ocupação da parte meridional
da América portuguesa e rechaçar a ameaça herege francesa. Ambas constituíam as
cabeças das primeiras capitanias da Coroa, enquadravam-se na sentença aristotélica
acerca da boa localização da cidade e, estrategicamente, situavam-se em baías que
possibilitavam a defesa de seus portos. Frei Vicente discorre sobre a escolha do sítio para
a fixação do núcleo português na Baía de Guanabara:
106
Idem, ibidem.
107
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, pp. 348-349.
158
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
barra ou entrada do Rio com dois; chamou a cidade de São Sebastião, não só
por ser nome do seu rei, senão por benefícios recebidos do santo (...).
O sítio em que Mem de Sá fundou a cidade de São Sebastião foi o cume de
um monte, donde facilmente se podiam defender dos inimigos; mas depois,
estando a terra de paz, se estendeu pelo vale ao longo do mar (...).
Fundada pois a cidade pelo governador Mem de Sá em o dito outeiro,
ordenou logo que houvesse nela oficiais e ministros da milícia, justiça e
fazenda.”108
“Neste mesmo ano (...), que foi o de 1571, morreu de sua enfermidade o
governador Mem de Sá, que o estava esperando pera ir-se pera o reino, mas
quereria Nosso Senhor levá-lo pera outro reino melhor, que é o do céu, como por
sua vida e morte principalmente pela misericórdia divina se pode confiar.”110
108
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 166 (grifo nosso).
109
Idem, p. 167.
110
Idem, p. 175.
111
Idem, p. 192.
159
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
“(...) foi o mais benquisto governador que houve no Brasil, junto com o ser mais
respeitado e venerado; porque, com ser mui benigno e afável, conservara a sua
autoridade e majestade admiravelmente. E sobre tudo o que o fez mais famoso
foi sua liberalidade e magnificência, porque tratando os mais do que hão de
levar e guardar, ele só tratava do que havia de dar e gastar, e tão inimigo era do
infame vício da avareza que, querendo fugir dele, passava muitas vezes o meio
que a virtude da liberalidade consiste e inclinava pera o extremo da
prodigalidade, dava a bons e a maus, pobres e ricos, sem lhes custar mais do que
pedi-lo, donde costumava dizer que era ladrão quem lhe pedia a capa, porque
pelo mesmo caso lha levava dos ombros.”112
112
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 261 (grifo nosso).
113
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, p. 178.
114
Sobre a formação de um sistema integrado de defesa e as suas relações com a formação urbana de
Salvador, ver: ANDRADE, Luiz Cristiano de. A cidade Real: história urbana de Salvador da Bahia (1549-
1649). Em Salvador os fortes de Santo Antônio e São Felipe, atual Fortaleza de Nossa Senhora de Monte-
Serrate, foram construídos pelo governador Manuel Teles Barreto. Os fortins de Santo Alberto, São Tiago e
São Francisco foram erigidos durante o governo de D. Francisco de Sousa.
160
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
como a traça do forte de Santa Maria, ao leste da ilha de São Luís.115 Segundo Fernando
Bouza, desde pelo menos o século XVI, em Portugal, havia uma tradição consolidada de
unir o saber arquitetônico à cortesania:
Ainda de acordo com Bouza, na época de Felipe II, passou a ser uma obrigação de
quem governava Portugal “ter de se ocupar de traças e despachar com engenheiros e
desenhadores, já que o próprio monarca seguia de muito perto a prossecução de obras em
palácios, fortalezas, igrejas ou mosteiros.”117 Pois essa idiossincrasia do ethos cortesão
português também pôde ser observada no ultramar. Entre as boas obras que fez Diogo de
Mendonça Furtado, governador que era “liberal e gastava muito em esmolas”118, frei
Vicente do Salvador destaca as fortificações, traçadas também pelo arquiteto-mor,
Francisco de Frias.
Entretanto, as atividades de governo da América portuguesa não eram exercidas
apenas pelas autoridades seculares, mas também pelas eclesiásticas. Afinal, não havia
uma separação nítida entre a cruz e a espada, nem mesmo no que se refere à competência
jurisdicional. De fato, em situações emergenciais, os bispos poderiam assumir o governo
e tomar a frente dos assuntos militares, como no episódio da prisão do governador pelos
holandeses, em que “elegeu o povo e aclamou por seu capitão-mor que os governasse o
bispo D. Marcos Teixeira, o qual a primeira coisa que intentou foi recuperar a cidade se
pudesse”, nomeando coronéis e determinando a entrada na cidade.119 O bispo assentou o
seu arraial a uma légua dos muros de Salvador e, de lá, ordenou vários assaltos contra os
hereges.
115
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, respectivamente, p. 223 e p. 339.
116
BOUZA, Fernando. Portugal no tempo dos Filipes, p. 27.
117
Idem, p. 29.
118
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 359.
119
Idem, p. 366.
161
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
E como as contendas não se definiam apenas neste mundo, o bispo orou muito
pedindo que Deus desse vitória aos católicos, “que não só governava estas guerras com
sua indústria, conselho e agência, como Josué e outros famosos capitães, mas com
lágrimas e orações como Moisés.”123 Por fim, o frade baiano conta que D. Marcos
Teixeira entendia a tomada da cidade como castigo divino causado pelos vícios e pecados
de seus moradores, por esse motivo
“(...) fazia tão áspera penitência que nunca mais fez a barba nem vestiu
camisa, senão uma sotaina de burel, dormia mui pouco e jejuava muito, pegava e
120
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 378.
121
Idem, ibidem.
122
Idem, ibidem (grifo nosso).
123
Idem, p. 379.
162
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
exortava a todos à emenda de suas culpas pera que aplacassem a divina ira, até
que destes trabalhos o tirou Deus pera o descanso da bem-aventurança, como se
pode confiar em sua divina misericórdia.”124
O frade baiano narra com prudência as situações de discórdia. Se, neste primeiro
caso, imputou a culpa ao demônio, outras contendas, como as diferenças e desgostos
entre o bispo D. Antônio Barreiros – “homem benigno, esmoler e dotado de muitas
virtudes” – e o governador Luís de Brito, foram representadas de outra forma.126 A
discórdia girou em torno da prisão de um homem chamado Sebastião da Ponte, que,
conquanto fosse honrado e rico, castigava os seus servos – brancos ou negros – de
124
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 379.
125
Idem, p. 148 (grifo nosso).
126
Idem, p. 183.
163
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
maneira cruel. Um dos brancos foi marcado com o ferro das vacas e solicitou justiça ao
rei, que ordenou ao governador que prendesse e enviasse ao reino o tal Sebastião da
Ponte:
127
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 183 (grifo nosso).
128
Idem, p. 258.
164
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
“Mas não foi este o mal, que o governador lhes reservou seis mil cruzados
pera correr a obra da sé, senão que do dia que chegou o bispo a esta cidade, que
foi a 8 de dezembro de 1622, desconcordaram estas cabeças, não querendo o
governador achar-se no ato de recebimento e entrada do bispo, senão se houvesse
de ir debaixo do pálio praticando com ele, no que o bispo não quis consentir,
dizendo que havia de ir revestido da capa de asperges, mitra e báculo, lançando
bênçãos ao povo, como manda o cerimonial romano, e não era decente ir
praticando. Por isto não foi o governador, mas mandou o chanceler e os
desembargadores, e depois o foi visitar à casa (...).”130
129
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 359.
130
Idem, ibidem (grifo nosso).
165
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
“Donde se colige o gosto que seria depois vermos nossas lágrimas tornadas
em alegria e restituído o nosso pão de cada dia que é o mesmo Deus em espécies
de pão, ao qual depois de havermos dados as graças as dávamos também ao
nosso católico rei por haver sido por meio de suas armas o instrumento deste
bem, conhecendo todos que, se o seu reino de Espanha se pinta em figura de uma
donzela mui formosa, com a espada na mão e espigas de trigo em a outra, não é
pera denotar a sua fortaleza e fertilidade, mas pera significar como pelas armas
de seus exércitos se goza este divino trigo em todas as terras de sua
conquista.”131
131
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 405 (grifo nosso).
132
Idem, p. 336.
166
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
censuras não eram feitas às autoridades, mas às ações que resultavam em discórdia entre
as partes do corpo imperial. Nessas ocasiões, frei Vicente do Salvador, com urbanitas et
elegantia, sugeria tacitamente pelos exemplos que as diferenças fossem resolvidas para
que todos, em concórdia, caminhassem em uma única direção, conforme os desígnios
divinos.
133
Diálogo da conversão do gentio. In Cartas do Brasil, p. 230.
167
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
franceses em São Luís e dos holandeses em Salvador, a questão dos índios faz-se
presente.
Mas é no primeiro livro que frei Vicente do Salvador define a natureza do gentio
a ser catequizado. Com base na Miscelânea Austral, de D. Diogo de Avalos, informa que
essa gente bárbara habitava, em tempos remotos, as serras de Altamira em Espanha, onde
já comiam carne humana. Os espanhóis teriam lhes movido uma guerra na Andaluzia e os
sobreviventes migraram para as Ilhas Canárias, depois Cabo Verde e, finalmente, ao
Brasil. “Saíram dois irmãos por cabo desta gente, um chamado Tupi e outro Guarani; este
último, deixando o Tupi povoando o Brasil, passou a Paraguai com a sua gente e povoou
o Peru.”134
Segundo o franciscano, esta opinião não era certa, porém havia outras que não
tinham nenhum fundamento: “o certo é que essa gente veio de outra parte, porém donde
não se sabe, porque nem entre eles há escrituras, nem houve algum autor antigo que deles
escrevesse.”135 A falta da escrita entre esses povos significava, concomitantemente, a
ausência de história e, portanto, a sua exclusão do processo escatológico cristão. Esses
elementos condicionam a escolha do ano de 1500 como marco inicial da História do
Brasil, em conjunto com a instituição do tempo imperial.
A escrita era, contudo, apenas mais uma lacuna observada entre os gentios. Da
mesma forma, não possuíam médicos, mas feiticeiros, nem números “por onde contem
até mais que cinco”, tampouco utilizavam de pesos ou medidas.136 O conjunto de faltas,
que lhes definia como bárbaros, era expresso no lugar comum veiculado em tantos outros
discursos, como a História de Pero de Magalhães Gandavo:
“Mas nenhuma palavra pronunciam com f, l ou r, não só das suas mas nem
ainda das nossas, porque, se querem dizer Francisco, dizem Pancicu e, se querem
dizer Luís, dizem Duí; e o pior é que também carecem de fé, de lei e de rei, que
se pronunciam com as ditas letras.”137
134
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 77.
135
Idem, ibidem.
136
Idem, p. 82.
137
Idem, p. 78.
168
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
A natureza do gentio era belicosa, mas a guerra dos índios não era justa como a
dos católicos, pois não eram justos os seus motivos, tampouco o tratamento que era
conferido aos cativos:
“Os que podem cativar na guerra levam para vender aos brancos, os quais
lhes compram por um machado ou foice cada um, tendo-os por verdadeiros
cativos, não tanto por serem tomados em guerra, pois não conta da justiça
dela, quanto por a vida que lhe dão, que é maior bem que a liberdade.
Porque, se os brancos os não compram, os primeiros senhores os têm em prisões
atados pelo pescoço e pela cinta com as cordas de algodão grossas e fortes, e dão
a cada um por mulher a mais formosa moça que há na casa, a qual tem o cuidado
de o regalare lhe dar de comer até que engorde e esteja pera o poderem comer.
138
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 83.
169
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
139
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 87.
140
Idem, p. 113.
141
Idem, p. 114.
170
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
De acordo com o franciscano, o único donatário que obteve êxito foi Duarte
Coelho. Se a capitania de Tamaracá fornece matéria para dois capítulos e todas as outras
apenas para um, frei Vicente dedica três capítulos a Pernambuco, nos quais destaca as
diversas guerras movidas tanto aos gentios como aos franceses. Os seus feitos indicavam
o caminho a ser seguido pelos portugueses a fim de participar dos desígnios divinos para
essa terra:
“Com estas e outras vitórias, alcançadas mais por milagres divinos que
por forças humanas, cobrou Duarte Coelho tanto ânimo que não se contentou
ficar na sua povoação pacífico, senão ir-se em suas embarcações pela costa
abaixo até o rio São Francisco, entrando nos portos de sua capitania, onde achou
naus francesas que estavam ao resgate de pau-brasil com o gentio e as fez
despejar os portos e tomou algumas lanchas de franceses (...). E contudo não se
quis recolher até não alimpar a costa destes ladrões e fazer pazes com os
mais dos índios, e isto feito se tornou pera sua povoação com muitos escravos
que lhes deram os índios, dos que tinham tomados em suas guerras que uns lá
tinham com os outros, o que o fez muit temido e estimado dos circunvizinhos de
Olinda, dizendo todos que aquele homem devia ser algum diabo imortal, pois se
não contentava de pelejar em sua casa com eles e com os franceses, mas
ainda ia buscar fora com quem pelejar.”142
142
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 118 (grifo nosso).
143
Idem, p. 143.
171
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
“Não sei eu com que justiça e razão homens cristãos, que professavam
guardá-la, quiseram aqui que pagasse o justo pelo pecador, trazendo cativo o
gentio que não lhes havia feito mal algum nem lhes constava que houvessem
feito aos vendedores injustiça deixando em sua liberdade os rebeldes e homicidas
que lhes haviam feito tanta guerra e traições.”145
144
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 181 (grifo nosso).
145
Idem, p. 192 (grifo nosso).
172
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
línguas para propor que os índios da região fossem pacíficos e não salteassem os
engenhos, nem inquietassem o gentio que já estava sujeito:
“(...) Ao que eles com muita arrogância responderam que não o haviam com os
brancos nem com ele, senão com aqueles que eram seus inimigos e contrários
antigos; mas, se os brancos queriam por eles tomar pendências, ainda tinha
braços pera se defenderem de uns e de outros.
Tornados os línguas com esta resposta, fez Duarte de Albuquerque Coelho
uma junta de oficiais da câmera e mais pessoas da governança, onde se
julgou ser causa bastante pera se lhes fazer guerra justa e os cativar a
todos.”146
146
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 172 (grifo nosso).
147
Idem, 173
148
Idem, ibidem.
173
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
no Brasil os despojos dos soldados, e ainda o soldo, porque o gentio não possui
outros bens, nem os que vão a estas guerras recebem outro soldo, logo o
governador mandou os capitães Simão Fernandes Jácome e Gomes de Abreu
Soares, e por cabo deles Gregório Lopes de Abreu, com suas companhias.”149
“Confesso que é trabalho labutar com este gentio com a sua inconstância,
porque no princípio era gosto ver o fervor e devoção com que acudiam à igreja, e
quando lhes tangiam o sino à doutrina ou à missa corriam com um ímpeto e
estrépito que pareciam cavalos, mas em breve tempo se começaram a esfriar de
modo que era necessário levá-los à força, e se iam morar nas suas roças e
lavouras, fora da aldeia, por não os obrigarem a isto. Só acodem todos com muita
vontade nas festas em que há alguma cerimônia, porque são mui amigos de
novidades, como o dia de São João Batista, por causa das fogueiras e capelas
(...).”150
149
Idem, pp. 407-408 (grifo nosso).
150
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p.286 (grifo nosso).
174
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
“ ‘Vós, irmãos, filhos e parentes meus, bem conheceis e sabeis quem eu sou,
e a conta que sempre de mim fizestes assim na paz como na guerra. E isto é o que
agora me obrigou a vir dentre os brancos a dizer-vos que, se quereis ter vida e
quietação e estar em vossas casas e terras com vossos filhos e mulheres, é
necessário sem mais outro conselho irdes logo comigo ao forte dos brancos a
falar com Jerônimo de Albuquerque, capitão dele, e com os padres, e fazer com
eles pazes, as quais serão sempre fixas, como foram as que fizeram com o
braço de peixe e com os mais tobajaras, e o costumam fazer em todo o Brasil,
que os que se metem na igreja não os cativam, antes o doutrinam e
defendem, o que os franceses nunca nos fizeram e menos os farão agora, que
têm o porto impedido com a fortaleza, donde não podem entrar sem que os
matem e lhes metam com a artilharia no fundo os navios’ ”.152
151
Sobre as representações do índio docilmente convertível, veiculadas pelo capuchinho francês Claude
d’Abbeville e pelo huguenote Jean de Léry, ver o artigo de DAHER, Andréa. Do selvagem convertível.
152
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 273.
153
Idem, p. 249.
175
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
mor da Fazenda, dizendo, como experimentado nas traições deste gentio, que
se lhes respondesse que se queriam vir viessem embora, e seriam bem recebidos
e favorecidos em tudo, mas que lhes não davam soldados, porque lhes não
fizessem alguns agravos, como costumam. E o mesmo votaram os mais
experimentados.
Porém pôde tanto a importunação e a autoridade dos terceiros, alegando a
importância da salvação daquelas almas que se queriam vir ao grêmio da Santa
Madre Igreja, que o bom governador lhes veio a conceder o que pediam e lhes
deu cento e trinta soldados brancos e mamalucos que os acompanhassem com os
quais e com alguns indíos das aldeias e doutrinas dos padres se partiram mui
contentes aos embaixadores (...).”154
176
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
do Brasil contra os inimigos hereges e os negros. Sobre estes, contudo, paira um silêncio
significativo na História do Brasil. Ao contrário dos índios, os negros são tratados
esporadicamente pela pena do franciscano e sempre de forma fugaz, como no capítulo
sobre a capitania de Porto Seguro em que informa sobre a existência de muito zimbo,
“dinheiro de Angola, que são uns buziozinhos mui miúdos de que levam pipas cheias e
trazem por elas navios de negros”157, ou ainda em uma passagem na qual discorre sobre o
retorno dos homens do capitão Simão Falcão da Paraíba a Pernambuco, “onde lhes
morreram muitos cavalos e escravos à míngua.”158 Os negros aparecem mais na tomada
de Salvador, como eventuais traidores à espera de uma ocasião para se rebelar contra os
seus senhores:
Em uma única ocasião, o franciscano cita o nome de um negro, “que nos servia na
horta, chamado Bastião”.160 Este também se meteu com os holandeses, mas porque
queriam lhe tomar um facão, saiu da cidade. O descrédito parece ser a marca
característica da natureza dos negros, conforme narra frei Vicente de Salvador:
“Mas, como Bastião levava ainda seu facão (...) o escondeu em o peito de
um, e matando-o lançou a correr pelo caminho que vai pera o rio Vermelho, onde
encontrou uns criados de Antônio Cardoso de Barros, os quais informados do
caso fingiram também que fugiam com o negro e se foram todos embrenhar
157
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 110.
158
Idem, p. 223.
159
Idem, p. 365.
160
Idem, ibidem.
177
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
adiante, donde depois que os holandeses passaram lhes saíram nas costas e os
foram levando até um lamarão e atoleiro, onde mataram quatro e cativaram um.
E será bem saber-se pela glória dos valentes que o era tanto um dos mortos,
homem já velho, que metido no atoleiro quase até à cinta ali guardava as frechas
tão destramente com a espada que todas as desviava e cortava no ar, o que visto
por Bastião se meteu também no lodo e lhe deu com um pau nos braços
atormentando-lhos de modo que não pôde mais manear a espada.”161
Portanto, cabia conferir aos negros traidores, que se aliaram aos holandeses, os
mais severos castigos, embora estes não fossem matéria importante a constar em sua
História do Brasil. Frei Vicente do Salvador descreve apenas um desses castigos para
tratar de um desafio feito aos holandeses:
“Não trato dos assaltos que se deram aos negros seus confederados, que
algumas vezes saíram fora pelas roças, como quem bem as sabia e os caminhos, a
buscar frutas pera lhes venderem, dos quais foram alguns tomados, e a um destes
cortou o capitão Padilha ambas as mãos e o tornou a mandar pera a cidade com
um escrito pendurado ao pescoço, em que desafiava o capitão Francisco, que era
o mais conhecido (...).”162
Se, por um lado, negros e índios – os quais adquiriam a salvação de suas almas
em virtude dos sacramentos administrados pelas pias mãos portuguesas – deviam ser
tratados, a priori, com amor e misericórdia, por outro, era preciso agir com justiça
quando erguessem obstáculos à realização dos desígnios divinos. Todavia, nesse caso, a
principal lição que se tira da História é a de que os primeiros são traidores e os segundos
inconstantes e, portanto, era necessário prudência no trato com esses homens nitidamente
inferiores na hierarquia providencial do mundo, incapazes de entender os mais elevados
fins do império católico.
161
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 365 (grifo nosso).
162
Idem, p. 385.
178
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
163
BETHENCOURT, Francisco. A sociogênese do sentimento nacional. In BETHENCOURT, Francisco;
CURTO, Diogo Ramada. A memória da nação, pp. 474-475.
179
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
dos fatores de insegurança dos povos – além das epidemias e crises de subsistência –,
mas, por outro, suscitava forte sentimento de solidariedade por parte da comunidade e
dos poderes locais e, “sobretudo, do poder central, que via a sua função protetora posta
em causa.”164 Bethencourt acrescenta que esses sentimentos foram ensejados, no
Quinhentos, também pelas atividades de corsários franceses e ingleses, ao longo da faixa
costeira do reino, ilhas atlânticas e Brasil.
Os franceses já são mencionados no Livro II da História, relacionados à extração
do pau-brasil ao longo da costa, com a qual quebravam o legítimo monopólio da coroa
portuguesa – prática prescrita pela Política de Aristóteles para aquisição de recursos
financeiros pelos Estados.165 Contudo, passaram a representar um risco mais grave à
conservação do Estado do Brasil quando tentaram se fixar no Rio de Janeiro, em aliança
com os índios tamoios. Posteriormente, os franceses se aliaram aos potiguares na Paraíba,
o que levou os portugueses a lhes atribuir responsabilidade nos levantes gentílicos
ocorridos no último quartel do século XVI. O ápice narrativo da presença francesa na
América – possessão luso-espanhola, no início do Seiscentos – constitui a fundação de
São Luís do Maranhão, à qual todos os outros episódios contados fornecem o preâmbulo.
Segundo frei Vicente do Salvador, os franceses chegaram ao Rio de Janeiro no
ano de 1556, terra que “esteve por povoar até que Nicolau Villaganhon, homem nobre de
França e cavaleiro do hábito de São João”, fortificou-lhe a entrada, “solicitou o gentio e
fez liga e amizade com eles.”166 Ordenado pela rainha D. Catarina, que então governava
Portugal, Mem de Sá, auxiliado pela providência divina na figura de São Sebastião,
iniciou a restituição desta terra à Coroa. Mais adiante, o franciscano informa que
acompanhava Villegagnon um herege calvinista chamado João Bouller, o qual, após a
vitória católica, fugiu para a capitania de São Vicente, onde fingiu professar a verdadeira
fé: “dourava as pílulas e encobria o veneno aos que o ouviam e viam morder algumas
vezes na autoridade do Sumo Pontífice, no uso dos sacramentos, no valor das
164
BETHENCOURT, Francisco. A sociogênese do sentimento nacional, p. 475.
165
De acordo com o Filósofo: “Em geral, o monopólio é um meio rápido de fazer fortuna. Assim, algumas
cidades, quando precisam de dinheiro, usam desse recurso. (...) É bom que os que governam os Estados
conheçam esse recurso, pois é preciso dinheiro para as despesas públicas e para as despesas domésticas, e o
Estado está menos do que ninguém em condições de dispensá-lo.” A Política, pp. 30-31.
166
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 154.
180
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
“Achou-se ali pera ajudar a bem morrer o padre José de Anchieta (...), posto
que no princípio achou rebelde, não premitiu a divina providência que se
perdesse aquela ovelha fora do rebanho da igreja, senão que o padre com
suas eficazes razões, e principalmente com a eficácia da graça, o reduzisse a
ela. Ficou o padre tão contente deste ganho, e por conseguinte tão receoso de o
tornar a perder que, vendo ser o algoz pouco destro em seu ofício e que se
detinha em dar a morte ao réu e com isso angustiava e o punha em perigo de
renegar a verdade que já tinha sido confessada, repreendeu o algoz e o
industriou que fizesse com presteza seu ofício, escolhendo antes pôr-se a si
mesmo em perigo de incorrer nas penas eclesiásticas, de que logo se absolveria,
que arriscar-se aquela alma às penas eternas.”168
“Durou esta moléstia dois anos, sem que força alguma pudesse reprimir o
atrevimento dos bárbaros insolentes, que cada dia crescia com o favor e ajuda
dos franceses com que já se não contentavam do mal que faziam aos outros
índios, mas a todos os moradores de São Vicente ameaçavam com cruel
guerra, e aprestavam uma armada de canoas pera por mar e por terra os
combaterem.”170
167
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil p. 167.
168
Idem, ibidem (grifo nosso).
169
Idem, p. 158.
170
Idem, ibidem (grifo nosso).
181
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
171
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 174.
172
Idem, p. 216.
173
Idem, ibidem.
182
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
A ocupação efetiva da ilha de São Luís, a partir de 1612, fornece matéria aos
primeiros capítulos do Livro V da História do Brasil. Os franceses alegavam que tinham
direito ao Maranhão, “pois Adão o não deixara em testamento mais a uns que a outros, e
com este pretexto trouxeram doze religiosos da nossa ordem dos capuchinhos pera
174
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 217.
175
Idem, p. 127 (grifo nosso).
183
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
converterem os gentios.”176 Em que pese a ajuda dos católicos, essa tentativa de ocupação
era liderada pelo “general Daniel de Touche, que era Monsiur de Reverdière e
calvinista.”177 Em resposta, o governador-geral, Gaspar de Sousa, enviou Jerônimo de
Albuquerque a fim de reconquistar essa possessão, o qual ajuntou o “nosso gentio
pacífico”e solicitou religiosos franciscanos da Custódia de Santo Antônio do Brasil. A
expedição obteve sucesso e, enfim, foram feitas as pazes entre os dois lados da contenda,
cujos termos encontram-se transcritos no capítulo 4 deste último livro.
Os capuchinhos de França deixaram a ilha, “vendo o pouco fruto que faziam na
doutrina dos gentios por lhe não saberem a língua.”178 Frei Vicente do Salvador descreve
a admiração mútua entre os religiosos de ambos os reinos, não obstante estivessem os
franceses em companhia de hereges. Em seguida, depois de enviados reforços
capitaneados por Francisco Caldeira de Castelo Branco, a questão foi finalmente
resolvida. Para o franciscano, o gentio do Maranhão já estava inclinado a ajudar os
lusitanos, “porém, eles se resolveram em largar tudo o mais sem contenda, dando-lhes
embarcações em que se fossem pera a França, pelo que se passaram os nossos pera a
ilha.”179
A conquista do Maranhão aos franceses, posto que comandada pelo calvinista La
Ravardière, não proporciona a construção efetiva de um inimigo cruel e que em tudo se
opunha aos portugueses, certamente pela presença de capuchinhos de França, entre outros
“católicos romanos que ouviam missa, confessavam-se e comungavam.”180 Não obstante,
frei Vicente, alguns capítulos adiante, afirma que frei Cristóvão Severim, enviado como
custódio franciscano, vigário-geral e provisor do estado do Maranhão, em 1624,
“queimou muitos livros que achou dos franceses hereges e muitas cartas de tocar e
orações supersticiosas de que muitos usavam.”181
A construção retórica do invasor herege, em oposição ao bem que representava a
povoação portuguesa, é coroada, sem as tensões apresentadas acima, pela narrativa da
tomada de Salvador pelos holandeses. De fato, frei Vicente já havia assinalado sinais que
176
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 336
177
Idem, p. 340.
178
Idem, ibidem.
179
Idem, p. 346.
180
Idem, p. 343.
181
Idem, p. 377.
184
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
prenunciavam o episódio no capítulo em que trata das urcas flamengas que, embora
proibidas pelo rei, vinham ao Espírito Santo e ao Cabo Frio com o intuito de carregar
pau-brasil. Já no Livro V, informa ainda sobre uma armada de holandeses que passou
pelo Rio de Janeiro. Os riscos potenciais à conservação do Estado do Brasil são
enunciados na passagem acerca da vinda de Diogo de Mendonça Furtado, governador
geral enviado para tempos de guerra, conforme pode ser interpretado pelas suas primeiras
preocupações:
“Em 12 de outubro de 1621, a uma terça-feira, que o vulgo tem por dia
aziago, chegou o governador Diogo de Mendonça Furtado, que foi o duodécimo
governador do Brasil, à Bahia, e desembarcando foi levado a sé com
acompanhamento solene e daí a sua casa, onde, antes de subir a escada, foi ver o
almazém das armas e pólvora que estava na sua loge, demonstração de se prezar
mais de soldado e capitão que de outra coisa. E na verdade esta era em aquele
tempo a mais importante de todas, por se haverem acabado as pazes ou
tréguas entre Espanha e os holandeses, e se esperarem novas guerras nestas
partes transmarinas, que estas são sempre as que pagam por nossos pecados
e ainda pelos alheios, e assim é necessário que as ilhas e costas do mar
estejam sempre em arma.”182
182
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 354 (grifo nosso).
183
Idem, p. 360
185
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
inimigos, não os quiseram esperar.”184 O medo, “como mal contagioso”, espalhou-se aos
moradores, cuja maior parte fugiu antes mesmo da queda do núcleo da cidade. Em meio à
pusilanimidade que se abateu sobre as milícias lusas, frei Vicente destaca ações virtuosas
em outra frente de combate, na qual destaca-se um franciscano que participou
devidamente protegido pela Providência:
“‘Senhor, já estou bom, que neste tempo os enfermos saram e tiram forças da
fraqueza’, ânimo por certo que os próprios inimigos deveram ter respeito e assim,
depois que o souberam, mostraram pesar, pondo a culpa à diabólica arma de
fogo, que aos mais valentes mata primeiro, e como raio onde fortaleza acha faz
mais dano. O pelouro lhe deu pelas queixadas, e ainda lhe deu lugar a se
184
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 362.
185
Idem, pp. 362-363 (grifo nosso).
186
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
186
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 363.
187
Idem, p. 363.
187
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
188
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 364 (grifo nosso).
189
Idem, p. 368 (grifo nosso).
190
Idem, p. 373.
188
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
A descrição das primeiras medidas tomadas por Matias de Albuquerque, tão logo
recebeu a provisão do governo, em substituição a Diogo de Mendonça Furtado, destaca
quem eram as cabeças responsáveis pelas decisões sobre o governo do Brasil. Segundo
frei Vicente:
189
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
reputação.”193 A partir desse capítulo, frei Vicente inicia a distribuição de louvores aos
discretos fidalgos ou às pessoas qualificadas que, ao travarem os primeiros combates para
restituir a cidade de São Salvador, prestaram excelente serviços ao império. Esses
atributos lhes transformavam em potenciais alvos encomiásticos do escritor, em
prováveis agraciados pelas mercês régias e, por fim, mas não menos importante, esses
serviços garantiam a salvação das suas almas. Desse modo, conta que os governadores do
reino de Portugal, D. Diogo de Castro e D. Diogo da Silva, enviaram os capitães
Francsico Gomes de Melo e Pero Cadena a Pernambuco; Salvador Correia de Sá e
Benevides ao Rio de Janeiro, D. Francisco de Moura, que já havia sido governador de
Cabo Verde, à Bahia.
A integração mística do império católico evidencia-se de forma mais clara nos
momentos de socorro às partes que o compunham. A construção retórica da unidade
substancial e transcendente desse corpo teológico-político inclui, além das ações
empreendidas pela aristocracia ultramarina, o apresto das armadas de Portugal, Biscaia e
Castela. Em Portugal, D. Afonso de Noronha, fidalgo velho, eleito vice-rei da Índia, foi o
primeiro a se alistar na jornada. O posto de capitão-mor da esquadra portuguesa foi
ocupado pelo fidalgo Tristão de Mendonça Furtado.
O capítulo 34 fornece uma listagem, dividida hierarquicamente em duas partes,
dos mais importantes fidalgos que embarcaram a fim de libertar a Bahia do jugo
protestante. A primeira parte da lista destaca os nomes daqueles que ocuparam os postos
de comando, como o próprio Tristão de Mendonça Furtado ou Antônio Moniz Barreto,
que vinha investido das patentes de capitão e mestre de campo na galeão Conceição. Em
alguns casos, frei Vicente do Salvador fornece o nome, patente e, quando necessário,
ascendência do súdito que embarcava:
193
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 381.
190
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
194
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 386.
195
Idem, ibidem.
196
Idem, ibidem.
197
Idem, p. 388.
198
Idem, p. 389.
191
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
199
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 389.
200
Idem, ibidem.
201
Idem, p. 390.
202
Idem, p. 391.
203
Idem, p. 393 (grifo nosso).
192
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
“Nem deixavam com toda esta ocupação os holandeses todos os dias, manhã
e tarde, de se ajuntar em a sé a cantar salmos e fazer deprecações a Deus que os
ajudasse: donde um domingo pela manhã deu um pelouro que vinha da nossa
bateria de São Bento e, passando a parede da capela de São José, levou a perna a
quatro que estavam assentados em um banco ouvindo a sua pregação, de que
morreram dois.”205
Destarte, sem o auxílio divino, só restava a rendição aos hereges. Frei Vicente
discorre sobre o favor de Deus à parte mais justificada da contenda, a qual lutava pela
honra das majestades celeste e terrena:
204
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 400.
205
Idem, pp. 396-397.
206
Idem, p. 402.
193
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
igreja dos inacianos foi utilizada como adega e enfermaria. As igrejas dos franciscanos e
da Misericórdia serviram de armazém de pólvora.
“E assim não houve outra igreja que fosse necessário desviolar-se senão a sé,
coisa que os hereges sentiram muito, ver que desenterraram dois seus coronéis e
outros capitães que ali estavam enterrados, e chamaram alguns pera que
mostrassem a sepultura e os levassem a enterrar no campo, pera se haver de
celebrar no campo a primeira missa in gratiarum actionem, a qual cantou
solenemente o vigário geral do bispado do Brasil, o cônego Francisco Gonçalves
(...).”207
Embora a Providência deseje somente o bem das criaturas fiéis, Deus permite o
mal para que depois aconteça ainda um bem ainda maior. Se, por um lado, a tomada de
Salvador foi percebida pelo franciscano como um castigo em função da discórdia e dos
pecados, por outro, serviu para atar as diferentes partes do império em torno de um
objetivo comum. Desse modo, a justiça divina se manifesta no castigo infligido aos
católicos e, posteriormente, na restituição da Bahia, revelar-se-ia toda a Sua Misericórdia.
A ação do rei é fundamental para a passagem da justiça para a misericórdia de Deus. Esse
movimento subjaz às eloqüentes linhas em que frei Vicente do Salvador descreve a
sensação dos católicos após a vitória:
207
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 405.
194
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
208
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 405 (grifo nosso).
209
Idem, p. 406.
210
Idem, pp. 406-407 (grifo nosso).
195
A História do Brasil em perspectiva a vôo de pássaro
homens a serviço de Felipe IV, a coragem e o ânimo, mas, sobretudo, a lealdade ao Rei e
à Igreja Romana. A liberalidade, excelência moral de acordo com Aristóteles, também é
“própria da nobreza castelhana.”211 O papel dos religiosos, entre os quais,
indubitavelmente, destacam-se os seus irmãos da ordem de São Francisco de Assis,
devia ser o de exortar os soldados, animá-los e confessá-los, para que, em caso de morte,
pudessem chegar puros ao reino do céu.
O Brasil havia sido providencialmente revelado aos homens e, nesse sentido,
cabia aos portugueses, reunidos em torno do seu Rei, instrumento do Bem neste mundo,
fazer com que Sua Vontade predominasse nessas partes até então governadas pelas
artimanhas do demônio, expressas nos bárbaros costumes do gentio. Em oposição a esse
tempo de trevas, o governo lusitano devia fazer reinar a Luz e, nesse sentido, nas últimas
páginas do Livro V, que tratam da presença de holandeses ao longo da costa, frei Vicente
do Salvador adverte “que os quis Deus deixar ainda no Brasil (como deixou os cananeus
aos filhos de Israel) pera freio de nossos pecados.”212
211
SALVADOR, frei Vicente do. História do Brasil, p. 406.
212
Idem, p. 410.
196
CONCLUSÃO
“A fortaleza louvada
Anda em braços com a prudência,
Irmã sua muito amada.
Põe na avante a experiência.
Tudo sem saber é nada/
Por forças nós que podemos?
Isso que é do saber veio:
O bem todo está no meio,
O mal todo nos extremos.”
Francisco de Sá de Miranda
Estes versos, elaborados pelo irmão do governador Mem de Sá, no século XVI,
foram citados na segunda metade do Oitocentos pelo Visconde do Uruguai, em seu
Ensaio sobre o direito administrativo, publicado em 1862. Nesse livro, o autor discorre
sobre o papel do Estado e sua relação com a sociedade, criticando a eficiência das
instituições que havia ajudado a fundar. Se, por um lado, a obra é tributária das leituras
de Alexis de Tocqueville e François Guizot, por outro, as tópicas da moderação, do mau e
do bom governo – fundamentadas na filosofia ético-política de Aristóteles, e apropriadas
pelos teóricos ibéricos da Segunda Escolástica – estão presentes na argumentação do
Visconde do Uruguai. Ao longo do duradouro século XIX brasileiro, essas tópicas
continuaram a ser utilizadas, certamente em um quadro diverso, de construção do Estado
e de invenção da nacionalidade brasileira.
O funcionamento político-administrativo do Império brasileiro, não obstante a
ruptura política com Portugal e o desprezo pelas repúblicas latino-americanas, deitou as
suas raízes na longa tradição ibérica, firmada sobretudo pelos teólogos e juristas
escolásticos a partir do Quinhentos.1 Segundo José Murilo de Carvalho, que analisa a
1
Sobre a Segunda Escolástica e a sua relação com a Contra-Reforma, ver SKINNER, Quentin. As
fundações do pensamento político moderno. Acerca da opção tomista ibérica e o uso dos seus conceitos
para governo do Novo Mundo, ver MORSE, Richard. O espelho de próspero: cultura e idéias nas
Américas.
Conclusão
2
CARVALHO, José Murilo de. Brasil: nações imaginadas, pp. 243-244 (grifo nosso).
3
Cf. Idem, p. 243.
4
BOMFIM, Manoel. O Brasil na América: caracterização da formação brasileira.
5
Idem, p. 89.
199
Conclusão
6
BOMFIM, Manoel. O Brasil na América, p. 90.
200
Conclusão
1642, Cristóvão de Lisboa foi nomeado bispo do Congo e Angola. No mesmo ano da
chegada do irmão em São Luís, Manuel Severim de Faria publicou os seus Discursos
vários políticos, em que discorre sobre a vida dos três célebres letrados portugueses: João
de Barros, Luís de Camões e Diogo do Couto. Essas vidas, ao fornecerem exemplos de
súditos que colocaram as suas penas a serviço de Deus e do rei, explicitam os preceitos
de composição da ars historica seiscentista, cuja alma, segundo o antiquário, era
composta de verdade, clareza e juízo.
De modo geral, a fortuna crítica da História do Brasil mencionou Manoel
Severim de Faria apenas para tratar da questão relativa à sua impressão, que o antiquário
prometera ao franciscano ao encomendar o livro. Entretanto, como não há vestígios
documentais que possam servir de esteio a argumentos mais elaborados, discorrer mais
amplamente sobre o assunto implicaria em suposições, o que foi evitado. Mais importante
do que a publicação da narrativa do frade baiano, foi o uso conferido às histórias no
mundo cortesão ibérico, o que inclui as autoridades ultramarinas, e a circulação
manuscrita dessas prosas como um gênero de aconselhamento político. Os gêneros
historiográficos no Seiscentos, sempre de acordo com os modelos da preceptiva retórico-
poética, deviam, concomitantemente, ensinar, persuadir e deleitar os leitores ou ouvintes
do discurso.
No que se refere ao primeiro elemento, docere, a concepção ciceroniana de
historia magistra vitae, em uso católico pós-tridentino, manifestou-se pelos exemplos de
bom governo. Na história de frei Vicente do Salvador, destacam-se dois governadores
exemplares: Mem de Sá, no período anterior ao Portugal dos Felipes, que chega ao Brasil
depois da brigas entre o bispo e o governador e funda a cidade do Rio de Janeiro, contra
tamoios e franceses. O outro, já no período da União Ibérica, é D. Francisco Sousa, que
definiu a guerra com o gentio da Paraíba, além de outras muitas boas obras que fez.
Ambos destacam-se pela sua piedade e habilidades militares, duas características
vinculadas, na medida em que as guerras que moviam eram justas, com o objetivo de
expandir a verdadeira fé. Pela narrativa do franciscano, na qual bispos comandam
assaltos a hereges holandeses e santos intercedem a favor de católicos portugueses,
observa-se a unidade das atribuições de governo, ao contrário de uma suposta autonomia
pós-iluminista das esferas política, militar e religiosa.
201
Conclusão
202
Conclusão
do franciscano ou dos homens de crédito sobre assuntos graves como o governo dessas
partes do império e os milagres operados pelos santos católicos.
A História do Brasil de frei Vicente do Salvador, escrita aproximadamente entre
1619 e 1630, não deve ser tratada de forma incauta como espelho que fornece o reflexo
objetivo da suposta sociedade colonial brasileira, nem como livro – expressão da “gênese
do Brasil” – repleto de lacunas e omissões. Essa suposta carência de base arquivística da
sua narrativa é fruto do juízo instituído pelo cânone capistraniano, imbuído, por sua vez,
dos critérios de validação da disciplina decimonônica. Com efeito, essas perspectivas não
deixam de lado a crença positivista de testemunho neutro, transparente, que prevalece até
hoje, a despeito da consonância da prosa historiográfica de frei Vicente do Salvador aos
princípios retórico-poéticos, ao decoro prescrito a esses subgêneros epidíticos, e às
concepções teológico-políticas do Seiscentos ibérico.
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