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POÉTICAS DO MAL –
A LITERATURA DO MEDO NO BRASIL (1840-1920).
01
JÚLIO FRANÇA (ORG.). 2017.
Enéias Tavares (UFSM)

Recebido em 10 set 2018. Enéias Tavares é professor de Literatura Clássica na


Aprovado em 23 out 2018. Universidade Federal de Santa Maria, onde orienta
trabalhos de pós-graduação sobre literatura fantástica
e ministra a disciplina Escrita de Ficção. É pesquisador
do Laboratório Corpus e do Programa de Pós-
Graduação em Letras da UFSM, além de ser um dos
coordenadores de projeto do Espaço Multidisciplinar
da UFSM Silveira Martins. Integra também o GT da
ANPOLL “Vertentes do Insólito Ficcional” e o Grupo
de Pesquisa “Nós do Insólito: Vertentes da Ficção,
da Teoria e da Crítica”, grupo certificado pela UERJ
junto ao Diretório de Grupos do CNPq. De ficção,
publicou pela editora LeYa A Lição de Anatomia do
Temível Dr. Louison, primeiro volume de Brasiliana
Steampunk, e pela editora Avec publicou Guanabara
Real – A Alcova da Morte. De crítica, organizou ao
lado de Gisele Biancalana e Mariane Magno dois
volumes de Discursos do Corpo na Arte (Editora da
UFSM, 2014 e 2017). Junto de Bruno Matangrano, é
também o responsável pela exposição “Fantástico
Brasileiro”, exposição que compreende uma história
da literatura fantástica brasileira desde o século XIX
até a contemporaneidade e que se tornou livro em
2018 pela editora Arte & Letra.

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O medo nos afugenta. O medo nos


protege. O medo nos assola. O medo
nos fascina. Desde Homero e seus reinos
infernais, acessíveis apenas através
de bruxas que transformam homens
em porcos, passando pelos horrores
romanos e cristãos, fossem eles bárbaros
ou demoníacos, até o advento da nossa
tardia modernidade – e seus perigos
tecnológicos e industriais –, nosso
interesse nas representações do medo é traço comum da nossa arte
e cultura. O medo está no cinema, nos quadrinhos, no imaginário
ocidental, inscrito em nossos genes biológicos e em nossos memes
psicológicos. O medo do passado. O medo do futuro.
As vertentes literárias de terror mapeiam como poucas artes
as fugidias estruturas da nossa ansiedade e do nosso desespero,
não raros definidos a partir da ideia de “mal”, traços de uma
temeridade que protege nossos corpos e nossas sensibilidades.
Mas como o medo se apresenta em termos narrativos? Como
se constrói ficcionalmente? Quais seus traços definidores e seus
elementos mais ilustrativos? De quais modos o “medo” e o “mal”
se confundem, se aproximam ou se afastam no imaginário e na
arte? Qual é o percurso da narrativa do “medo” e das ideias de
“mal” ou “malignidade” na literatura brasileira? Responder a
essas perguntas e a outras tantas é o objetivo dos autores de
Poéticas do Mal – A Literatura do Medo no Brasil (1840-1920),
instigante coletânea crítica organizada por Júlio França e editada
pela Bonecker em 2017.

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A razão do elogio se dá pela proposta da obra. Diferente de


outras coletâneas críticas em que cada autor escolhe um tema,
autor e obra e oferta ao leitor uma análise que não necessariamente
mantém relação com outros ensaios, Poéticas do Mal se apresenta
como uma proposta historiográfica, cujo recorte temporal está
anunciado já no título, dependendo, porém, de diversos autores para
contar essa história sob diferentes perspectivas. Assim, mantêm-se
os temas tradicionais, ao mesmo tempo em que se propõe uma
jornada pela história da nossa literatura brasileira e uma discussão
sobre como os temas do mal e do medo nela se configuram.
O volume se abre com um Prefácio, assinado pelo professor
da UFMG Julio Jeha, cujo objetivo é detalhar a produção do
organizador da obra no contexto de sua carreira acadêmica.
Pesquisador e professor da UERJ, bem como integrante ativo do
grupo de pesquisa “Nós do Insólito: Vertentes da ficção, da teoria
e da crítica”, certificado pela UERJ junto do Diretório de Grupos
de Pesquisa do CNPq, Júlio França tem estudado o medo e o mal
ficcional por mais de uma década. Seus eventos, publicações e
orientações exemplificam e acabam por definir o aparato teórico e
também o recorte crítico da obra.
Flavio García, que assina a Apresentação do volume, resume
esse recorte dos dois termos-chave para o estudo: “O medo é
apontado por alguns teóricos, dentre os quais Irène Besière, como
relação de causa e efeito essencial ao fantástico. O mal é visto por
outros, dentre os quais Filipe Furtado, como predicativo necessário
ao sobre ou extranatural que se manifesta como vilão na ficção
fantástica” (2017, p.10, destaque nosso). Em suma, a formulação de
García aproxima os eixos ficcionais do medo e do mal à produção do

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fantástico em si, o que, sob um certo aspecto, norteará a discussão


do volume. Ora, se a ideia do mal e do medo muitas vezes lança mão
de um recurso sobrenatural ou de uma determinada suspensão
da crença em uma realidade empírica dada, essa aproximação do
fantástico se faz não apenas coerente como necessária.
O próprio organizador da obra assina seus dois primeiros
capítulos. No primeiro, “Introdução”, temos um apanhado crítico e
historiográfico que se debruça sobre as diversas poéticas do gótico,
tanto europeu quanto brasileiro, culminando numa reflexão sobre
as formas góticas em nossa literatura, passando por nomes como
Álvares de Azevedo, José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo e
Rodolfo Teófilo, entre outros. No término do capítulo, França define
o escopo da obra, afirmando que ela
propõe subsídios para uma teoria e para uma
história do medo artístico na narrativa ficcional
brasileira por meio do levantamento e da análise
crítica dos diversos modos de representação
e da produção do medo em nossa literatura –
tanto aquele cuja origem se encontra em causas
‘realistas’, como a violência social, a crueldade
humana ou o poder da natureza, quanto aquele
cuja origem se encontra em causas ‘fantásticas’,
como as diversas manifestações de crenças e
eventos sobrenaturais em nossa ficção (2017, p.34).

No capítulo seguinte, “Medo e literatura”, também assinado


por França, o mapeamento da ficção que retrata o medo parte de
Homero, passa pela Bíblia e pelo imaginário apocalíptico, pelo locus
horribilis medieval, cujo grande exemplo é Dante, até chegar aos
perigos do mundo real, citando os cunhos moralistas e pedagógicos
de contos populares como “Chapeuzinho Vermelho”. O capítulo

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termina com uma reflexão mais ampla sobre os efeitos e sentidos


do medo no ocidente, tanto em seus aspectos negativos quanto
positivos, culminando na sua interpretação da filosofia de Burke e
da psicanálise de Freud.
Se esses primeiros dois capítulos servem de base conceitual
e também cultural para diferentes poéticas e compreensões
sobre o medo e o mal, o capítulo seguinte mergulha na primeira
análise temática do compêndio. Nele, intitulado “Gótico e escrita
feminina”, assinado por Ana Paula Araujo dos Santos, analisa-se
o terror na literatura nos séculos XVI e XVII em relação à estética
gótica, até chegar a suas expressões de autoria feminina. O capítulo
termina com uma importante análise sobre a temática no contexto
brasileiro, destacando nomes como os de Maria Firmino dos Reis,
Ana Luísa de Azevedo e Castro e Emília Freitas, autoras ainda pouco
conhecidas do público nacional, dado sua ausência nos manuais
literários e compêndios críticos tradicionais.
No quarto capítulo, “Sublime terrível e romantismo”, assinado
por João Pedro Bellas, há inicialmente um apanhado sobre o
problema do Sublime em Edmund Burke para então dedicar-se ao
tema no que tange à criação de espaços ficcionais terríveis. Após
analisar casos do romantismo inglês, Bellas discute o tema na
tradição romântica brasileira, assinalando os casos de O Guarani e
O Sertanejo, ambos de Alencar, de Noite da Taverna, de Azevedo,
e dos contos de Fagundes Varela. No capítulo cinco, “Gótico e
naturalismo”, de autoria de Marina Sena, o mesmo recorte do
capítulo anterior é mantido, porém agora objetivando os autores
comumente associados à tradição naturalista, como no caso de
Júlio Ribeiro, Rodolfo Teófilo, Adolfo Caminha e Aluísio Azevedo.

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No sexto capítulo do volume, “Medo e Regionalismos”, o autor


Hélder Brinate Castro divide nos seguintes tópicos sua análise: “A
literatura regionalista”; “Regiões do Medo”; “A terra”; “O homem”;
“O sobrenatural”. Essa divisão lhe permite analisar autores tão
diversos quanto José de Alencar, Bernardo Guimarães, Euclides da
Cunha, Rodolfo Teófilo, Coelho Neto, Franklin Távora e Monteiro
Lobato. No capítulo seguinte, o percurso histórico avança: em
“Horror sexual e ficção decadente”, de Daniel Augusto P. Silva, a
paisagem finissecular ganha relevo a partir da ideia de prazeres
malditos e figuras essenciais à compreensão do mal no século XIX,
sobretudo por seu legado, como a obra de Sade. Na seara nacional,
as obras de João do Rio, Júlia Lopes de Almeida e Raul de Polillo
melhor exemplificam essa temática.
O volume se encerra com dois capítulos mais abertos do ponto
de vista historiográficos e mais delimitados no concernente à
temática. O primeiro deles, “A ficção de medo urbano”, assinado
por Pedro Sasse, se debruça sobre a paisagem citadina para dar
conta das novas babéis da modernidade, culminando na análise
das paisagens malditas, soturnas e sufocantes das narrativas de
João do Rio. Já o capítulo que encerra Poéticas do Mal é “Medo
e monstruosidades”, de autoria de Luciano Cabral. Nele, o autor
se dedica ao problema das criaturas monstruosas e suas diferentes
representações nas tradições europeia e brasileira, em especial, na
obra de Bernardo Guimarães.
Por todas as razões apresentadas, Poéticas do Mal – A Literatura
do Medo no Brasil (1840-1920) é um livro essencial para estudiosos
dos temas principais anunciados no título, como também àqueles
interessados em ler outra versão da nossa historiografia tradicional.

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Nele, autores e obras não muito comuns nos manuais tradicionais


são trazidos e analisados, com especial destaque para obras de
autoria feminina e também obras menos canônicas de autores já
consolidados em nossa historiografia e crítica. A organização de um
volume que reúne múltiplos autores sob um viés crítico muito bem
delineado é digna de elogios.
Ficamos na expectativa de que os autores aqui contemplados
nos ofereçam em breve uma continuação dessa obra, talvez
estendendo seu recorte até o final do século XX ou início do XXI.
Nossa crítica precisa de obras que não sejam apenas reuniões de
artigos variados, e sim possuidoras de alinhavo argumentativo que
exemplifique uma ciência não só da nossa teoria literária como
também um esforço de registro da nossa memória e do nosso
patrimônio. Entender o medo e o mal no Brasil, no recorte histórico
aqui proposto, nos ajuda a pensar e a refletir sobre o medo e o mal
no presente e seus efeitos sobre uma democracia tão recente e
frágil quanto a nossa.

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