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Artigo original

Dimensões organizacionais de dois Centros de


Atenção Psicossocial de uma cidade do interior
de São Paulo
Organizational dimensions of two Psychosocial Care Centers of a city
in the state of São Paulo
Carla Aparecida Arena Ventura1, Marciana Fernandes Moll2, Márjore Serena Jorge3, Angélica
Silva Araújo4

Palavras-chave RESUMO
Gestão em saúde Com o objetivo de comparar as dimensões organizacionais dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) II
Organização e administração e CAPS destinados a demandas específicas (CAPSad) de uma cidade do interior de São Paulo, realizou-se
Serviços de saúde mental este estudo qualitativo que utilizou a entrevista semiestruturada com profissionais e gestores para a obtenção
dos dados que foram analisados através da análise de conteúdo. Identificou-se que ambos os serviços são
influenciados pelo ambiente externo, que possui dificuldades de integrar a proposta de reinserção social
da clientela, o que se justifica pela estigmatização da loucura e da dependência química. A sobrecarga de
trabalho é comum nesses serviços e resulta da dinâmica de trabalho. Por fim, constatou-se que os problemas
vivenciados em ambos os serviços são comuns, ressaltando-se a necessidade de contratação de profissionais
para reduzir a sobrecarga de trabalho e para fomentar ações de diferentes atores externos para desmistificar
a loucura e a dependência química.

Keywords ABSTRACT
Health management With the purpose to compare the organizational dimensions of Mental Health Services (CAPSII and a CAPSad)
Organization and administration from a city in the state of São Paulo, this qualitative study used semi-structured interviews with professionals
Mental health services and managers to collect data which were analyzed through content analysis. Both services are influenced by the
external environment and find difficulties to consolidate proposal of social reinsertion of users due to the stigma
of the mental disease and substance abuse. The overload of work is also common in both organizations and
it is a consequence of the work dynamics. In addition, authors found problems such as the need to hire other
professionals in order to reduce the work overload and to stimulate different actions regarding the external actors
aiming at decreasing the stigma of the mental disease and substance abuse.

Recebido em: Trabalho realizado em dois Centros de Atenção Psicossocial de Ribeirão Preto – Ribeirão Preto (SP), Brasil.
29/12/2011 1.Professor Associado do Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas da Escola de Enfermagem de
Aprovado em: Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP) – Ribeirão Preto (SP), Brasil.
30/04/2012 2.Enfermeira, Doutoranda em Enfermagem pela Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da USP – Ribeirão Preto (SP), Brasil;
Conflito de interesse: Professora da Universidade de Uberaba – Uberaba (MG), Brasil.
nada a declarar 3.Bacharel em Enfermagem pela Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da USP – Ribeirão Preto (SP), Brasil.
Fonte de financiamento: 4.Graduanda do curso de Terapia Ocupacional da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP – Ribeirão Preto (SP), Brasil.
Programa Ensinar com Endereço para correspondência: Carla Aparecida Arena Ventura – Universidade de São Paulo – Escola de Enfermagem de
Pesquisa da USP Ribeirão Preto – Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas – Avenida dos Bandeirantes, 3900 – Campus
Universitário – CEP: 14040-902 – Ribeirão Preto (SP), Brasil – E-mail: caaventu@gmail.com
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INTRODUÇÃO Nesse novo contexto assistencial, o enfoque deixa de


Ao longo dos anos, vem ocorrendo uma significativa ser a exclusão, centrando-se na reabilitação psicossocial
reestruturação na assistência em saúde mental. De forma que pode ser definida como um “processo que implica
geral, nos países europeus, principalmente na Inglaterra e abertura de espaços de negociação para o paciente, para
França, o enfoque terapêutico para portadores de transtor- sua família, para a comunidade e para os serviços”5.
nos mentais, nas décadas de 1960 e 1970, embasava-se Surgem, então, novos equipamentos de prestação de
no controle de sintomas para que as pessoas pudessem cuidados aos portadores de transtornos mentais, como
se manter desospitalizadas. Já, na década de 1980, o os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), que podem
propósito era inserir a pessoa na sociedade, oferecendo- ser definidos como
-lhe condições para se manter participativa no mercado
de trabalho e no meio familiar. A partir dos anos de 1990, um espaço de criatividade, de construção de vida, de
mantém-se uma proposta de assistência comunitária novos saberes e práticas. Em vez de excluir, medica-
centrada na reabilitação, na autonomia e na melhora da lizar e disciplinar, acolhe, cuida e estabelece ponte
qualidade de vida desse indivíduo junto à sociedade1. com a sociedade4.
Assim, em 1990, foi elaborada, na Venezuela, a
Declaração de Caracas, objetivando promover a supera- Para aprimorar o funcionamento e as modalidades de
ção do modelo hospitalocêntrico e a mobilização contra CAPS, em 2002 foi publicada a Portaria 336 que definiu
os abusos, os maus tratos e a exclusão dos portadores os tipos de CAPS (I, II ou III), com base na avaliação de
de transtornos mentais2. porte e complexidade por abrangência populacional. Essa
Essa trajetória do enfoque terapêutico permite a cons- Portaria também caracterizou os CAPS especializados, ou
tatação de que houve mudança na concepção da assis- seja, aqueles destinados a demandas específicas (CAPSad
tência e dos transtornos mentais, uma vez que a proposta para dependentes químicos e CAPSi para menores de 18
terapêutica não se centra apenas em fatores biológicos, anos)6. Este estudo enfoca um CAPSII e um CAPSad de
mas na sua inter-relação aos de natureza psicossocial. uma cidade do interior paulista.
Nessa perspectiva, emerge mundialmente o Movimento Enfatiza-se, nesse cenário, que a especificidade do
de Reforma Psiquiátrica, que no cenário brasileiro iniciou-se tratamento da dependência química requer uma atenção
no final da década de 1970, quando algumas tentativas de especial frente às consequências psíquicas, sociais e
transformações do sistema asilar de assistência em saúde econômicas resultantes desse adoecimento, o que justifi-
mental se fizeram sentir. Dessa forma, a implementação ca a necessidade de se investir também em estudos que
de novos equipamentos assistenciais em saúde mental contribuam para a reflexão sobre a organização de serviços
começou a ser elaborada e, posteriormente, estrutura- especializados no tratamento da dependência química.
da, no Brasil, com a realização da primeira Conferência Considerando-se que os CAPS são organizações
Nacional em Saúde Mental, em 1987, e com a Segunda complexas que compõem a Rede de Saúde Mental no
Conferência Nacional em Saúde Mental, em 1992, as quais Brasil, este estudo objetivou comparar as dimensões
se fortaleceram após a regulamentação do Sistema Único organizacionais dos CAPSII e CAPSad de uma cidade do
de Saúde (SUS), no início da década de 19903. interior de São Paulo.
Desde então, visando uma melhor qualidade da assis-
tência prestada, tem havido o fechamento de um conjunto As organizações e suas dimensões estruturais
significativo de hospitais psiquiátricos, bem como a redu- e contextuais
ção do número de leitos hospitalares, primeiramente nos As organizações são entidades sociais, dirigidas por
hospitais de grande porte3. metas e desenhadas como sistemas de atividades estrutura-
Entretanto, foi somente em 2001 que a Lei Federal dos e coordenados, ligados ao ambiente externo. Executam
10.216 fundamentou a reforma psiquiátrica brasileira por a maioria das atividades na sociedade moderna, nas esferas
redirecionar a assistência em saúde mental de modo a pública e privada, e possuem uma série de dimensões,
privilegiar a oferta de tratamento em serviços comunitários relacionadas à sua estrutura e ao seu contexto7,8.
e dispor sobre a proteção e os direitos das pessoas porta- Dessa forma, as dimensões das organizações podem
doras de transtornos mentais, resultando na consolidação ser sintetizadas em categorias estruturais e contextuais. As
legal desse movimento e conferindo-lhe mais sustentação4. dimensões estruturais descrevem as características internas

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da organização, como os mecanismos de coordenação e As dimensões estruturais e contextuais são inter-


controle. Já, as dimensões contextuais são um conjunto dependentes e fundamentam a medição e a análise de
de elementos superpostos e subjacentes à estrutura e aos características não observáveis casualmente, revelando
processos de trabalho de uma organização, sobretudo seu informações significativas sobre as organizações7. As
porte, tecnologia, ambiente e metas. Também descrevem o dimensões foram utilizadas nesta pesquisa como base
ajuste organizacional que molda as dimensões estruturais para comparar as variáveis estruturais e contextuais
e representam a organização e o ambiente. Para conhecer dos CAPSII e CAPSad de uma cidade do interior de
e avaliar as organizações é importante examinar as suas São Paulo.
dimensões estruturais e contextuais7.
As dimensões estruturais são: formalização, especializa- METODOLOGIA
ção, hierarquia de autoridade, centralização, profissionalis- Neste estudo qualitativo, os dados foram coletados
mo e taxas de pessoal. A formalização refere-se ao volume por meio de entrevistas semiestruturadas, realizadas com
de documentação da organização, incluindo procedimen- funcionários de um CAPS e de um CAPSad. Foram entre-
tos, descrição de cargos, regulamentos e diretrizes políticas. vistados, no total, 24 sujeitos. Após a aprovação do estudo
A especialização representa o nível de subdivisão de cargos por Comitê de Ética (Protocolos 0896-2008 e 0979-2008)
das tarefas organizacionais. A hierarquia de autoridade e o consentimento livre e esclarecido dos profissionais
esclarece a esfera de controle dos gerentes e é retratada do CAPS e do CAPSad, foram realizadas e gravadas as
pelas linhas verticais do organograma organizacional, inter- entrevistas. Para garantir o anonimato dos entrevistados,
ferindo, portanto, no limite de controle. são denominados neste estudo por letras e números
A centralização se relaciona ao processo de tomada de sequenciais (E1, E2, E3...).
decisão. Nessa perspectiva, a organização é descentrali- Foram entrevistados, no CAPSad, profissionais
zada quando as decisões são delegadas a níveis organi- que pertencem às seguintes categorias: um médico
zacionais mais baixos. O profissionalismo enfatiza o nível psiquiatra, uma assistente social, uma professora de
de educação formal e de treinamento dos funcionários9,10 educação física, uma enfermeira, dois psicólogos, uma
e a taxa de pessoal diz respeito à distribuição de pessoas terapeuta ocupacional e dois técnicos em enfermagem.
em funções e departamentos. Foi também entrevistada a atual gestora do serviço, o
As dimensões contextuais são: tamanho, tecnolo- que perfaz um total de 10 (45%) funcionários, sendo 3
gia organizacional, ambiente, metas e estratégias e cultu- homens e 7 mulheres. No CAPSII foram entrevistados:
ra organizacional. O tamanho corresponde à magnitude três enfermeiros, dois auxiliares de enfermagem, uma
da organização quanto ao número de pessoas e interfere terapeuta ocupacional, uma psicóloga, um musicote-
na extensão em que os comportamentos e o processo rapeuta, três auxiliares de serviço, um segurança, um
de trabalho são formalizados. A estrutura administrativa é agente administrativo e o gerente da unidade, o que
elaborada e complexa, em consonância com a ideia webe- totalizou 14 (82,35%) sujeitos, dos quais 9 são do sexo
riana de burocracia, ou seja, a medida em que crescem, as feminino e 5 do sexo masculino.
organizações tornam-se mais burocráticas11,12. A tecnologia Os dados foram analisados por meio da análise de
organizacional inclui ações e técnicas utilizadas para a oferta conteúdo, definida como um conjunto de técnicas de
do serviço. O ambiente externo abrange todos os elemen- análise de comunicações16.
tos além dos limites da organização e que a influenciam Com base nessa análise de dados, foram identificados
total ou parcialmente. As metas e estratégias norteiam o temas comuns entre os serviços: trabalho realizado em
propósito organizacional e os caminhos para alcançá-lo13. equipe multiprofissional, superação conjunta de dificul-
Se os objetivos não forem transformados em ação, se dades, pequeno número de funcionários, sobrecarga de
tornam sonhos8. Estratégia é, então, o processo definidor trabalho, realização de funções extras, cultura focada no
da missão e dos objetivos da organização, considerando as portador de transtorno mental e a reinserção do usuário
ameaças e oportunidades do ambiente14. Por fim, a cultura à sociedade como principal meta dos serviços, relacio-
organizacional é o modelo dos pressupostos básicos para namento externo burocrático e pouco integrativo, número
lidar com problemas de adaptação externa e integração excessivo de usuários, dificuldades de encaminhamento
interna, mais especificamente, representa os valores que a outros serviços, falta de planejamento formal das ações
norteiam as ações realizadas pela organização15. e a importância e eficiência dos serviços.

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RESULTADOS reflexos diretos dos demais serviços que compõem a Rede


Quanto às dimensões estruturais, a dinâmica de trabalho de Saúde Mental do município, ou seja, seu ambiente externo.
do CAPSII e do CAPSad caracteriza-se pela valorização da O relacionamento entre os serviços da rede foi definido como
equipe multiprofissional, demonstrando uma hierarquia de burocrático e caracterizado pela falta de integração real, o que
autoridade baixa, que facilita a interação entre os profissionais reflete em um número excessivo de usuários, gerando falta
atuantes no ambiente interno dos serviços. Os trabalhadores de vagas e dificuldade em encaminhar usuários para outros
do CAPSII expressaram que existe uma superação conjunta serviços. Nesse contexto, os entrevistados do CAPSad refe-
das dificuldades, especialmente em reuniões de equipe em rem uma insuficiência de verbas e a frustração em lidar com a
que se podem discutir casos e tomar decisões, demons- dependência química e com as dificuldades externas, dentre
trando-se um nível médio de especialização e a descentrali- as quais está o estigma do dependente químico, que é visto
zação da organização, uma vez que há tomada de decisão como criminoso pela sociedade. Vale ressaltar que os entre-
conjunta entre os funcionários. No CAPSad, o processo de vistados do CAPSII também expressaram que percebem um
tomada de decisão também é descentralizado, havendo preconceito diante do portador de transtorno mental, o que
forte articulação entre os profissionais, que procuram discutir dificulta a consolidação do cuidado humanizado e inclusivo.
todos os casos individualmente com os membros da equipe Os funcionários do CAPSII afirmam que as suas
e tomar as decisões em grupo, considerando a opinião dos metas estão adequadas à sua missão, e que há melhora
vários profissionais. Entretanto, a sobrecarga de trabalho nos usuários. Entretanto, observam a falta de clareza na
vem prejudicando essa articulação e os entrevistados do política de saúde mental do país. Já, os entrevistados
CAPSad demonstraram a preocupação com o fato de que, do CAPSad referem que não há um planejamento formal
nos últimos tempos, percebe-se a cada dia uma diminuição da organização e que suas diretrizes são norteadas pela
da interação entre os membros da equipe. Há distribuição de realização de um cuidado individualizado, que lida com as
pessoas por cargos, porém os sujeitos de ambos os serviços particularidades de cada usuário, respeitando os princípios
relataram a realização de funções extras pelos membros da do SUS e da Rede de Assistência à Saúde Mental.
equipe, gerando uma sobrecarga de trabalho, o que, segundo Por fim, ambas as equipes avaliam os respectivos
eles, predispõe aos conflitos no ambiente interno das orga- serviços (CAPSII e CAPSad) como bons, uma vez que são
nizações. Segundo os entrevistados de ambos os serviços, considerados referência no país
a estrutura física é adequada, mas requer ampliação, em
virtude de algumas limitações. DISCUSSÃO
Os dois CAPS apresentam pouco volume de documenta- A realização de um trabalho em equipe multiprofissional,
ção escrita, ou seja, baixa formalização e alto grau de profis- comum em ambos os serviços e resultado da proposta de
sionalismo, pois os profissionais são admitidos por concurso mudança estruturada pelo movimento de reforma psiquiátrica
e 60% são graduados. Ambos os serviços utilizam uma baixa no Brasil, demonstra hierarquia de autoridade baixa, espe-
tecnologia na realização do trabalho e as intervenções se cialização média e alto grau de profissionalismo. Quanto à
fundamentam no cuidado à pessoa realizado por pessoas. especialização, os profissionais dos serviços em questão
No que diz respeito às dimensões contextuais, os valores manifestaram realizar tarefas extras, gerando sobrecarga
prioritários à cultura do CAPSad centram-se no respeito ao de trabalho. Com relação ao nível de formalização, é baixo
ser humano e na conduta ética, acarretando o alto profissio- nas duas organizações e a sua estrutura é horizontal. Os
nalismo. Nessa perspectiva, o valor que embasa a cultura do resultados sinalizam que ambos os serviços possuem pouco
CAPSII é a reinserção do paciente na sociedade, trabalho e volume de documentação escrita relacionada à estrutura
família. Em relação à estrutura física e a quantidade de funcio- da organização. Contudo, há um alto grau de formalização
nários, o CAPSII é uma organização considerada pequena, referente à documentação dos usuários. Quanto à estrutura
com baixo número de funcionários, que se limita a equipe administrativa, percebe-se ainda a descentralização do poder
mínima preconizada pelo SUS, assim como o CAPSad que de tomada de decisão, uma vez que o trabalho é realizado
conta com um número total de 20 funcionários. em equipe multiprofissional e as decisões são discutidas em
O ambiente externo de ambas as organizações é comple- reuniões de equipe. Nesse sentido, a equipe do CAPSad
xo, englobando a Secretaria Municipal de Saúde, Hospitais argumentou que deve haver um esforço de todos para
Psiquiátricos e outras unidades de saúde, escolas, familiares garantir a realização de reuniões periódicas para se valorizar
e usuários do serviço. A organização do CAPSII apresenta o trabalho em equipe, uma vez que essa prática favorece a

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discussão de assuntos administrativos e clínicos, o que possi- Sendo assim, os entrevistados do CAPSII enfatizam o
bilita a oferta de cuidados integrais aos usuários do serviço. modelo de cuidado centrado no ser humano, objetivando
Dessa forma, por meio do trabalho em equipe é possí- desmistificar a loucura. Os profissionais do CAPSad citam
vel enfrentar o intenso processo de especialização na área também que o preconceito é um dificultador do tratamento.
da saúde que predispõe à ótica vertical do conhecimento e Para que o estigma diminua, ressaltam a necessidade de
à individualização das intervenções em saúde. As modali- esclarecimento da população e dos próprios portadores de
dades de trabalho relacionam-se diretamente às interven- transtornos mentais e usuários de drogas sobre a doença19.
ções técnicas em um projeto assistencial comum e à inte- No caso de dependência química, verificam-se dificul-
ração dos agentes através da comunicação, caracterizada dades para a aceitação da mudança de concepção de que
pela elaboração conjunta de linguagens, objetivos e cultura as pessoas com dependência química são cidadãos e não
comuns. Trata-se da perspectiva do agir-comunicativo no apenas ‘doentes’, uma vez que se considera a doença uma
interior da técnica, o que desencadeia tensões17, que não justificativa social para o referido transtorno, retirando-a
representam dificuldades ao processo de trabalho, uma do campo da moral e colocando-a no da saúde mental.
vez que parecem impulsionar as discussões em equipe, Nessa perspectiva, o rótulo doença é utilizado para que
gerando um processo de ‘pensar’ coletivo para a elabo- muitos usuários convivam com a exclusão e com a culpa20.
ração de ações administrativas e assistenciais. Tal realidade impõe-se como um obstáculo ao avanço
No CAPSII e no CAPSad, os conflitos apareceram nas para a atenção integral, pois, tanto a ideia de doença,
falas dos profissionais como inerentes ao cotidiano, mas como a ideia de marginalização, contribuem para a passi-
com perspectiva de serem resolvidos intraequipe, devido a vidade e para a exclusão, o que contradiz às premissas
unicidade de ações no cuidado aos usuários. Nesse cená- de promoção da saúde de dependentes químicos que
rio, o trabalho em equipe é do tipo integração, baseado na estão presentes nos documentos que orientam as ações
complementaridade e colaboração no exercício da autono- integrais de saúde para essa clientela20.
mia técnica e não na independência dos projetos de ação No Brasil, foram implementadas iniciativas políticas,
de cada agente. Os profissionais do CAPSad ainda citaram científicas, sociais, administrativas e jurídicas para modi-
os conflitos como favoráveis para o aprendizado conjunto. ficar a compreensão cultural e a relação da sociedade
Ambos os serviços também apresentam problemas com os doentes mentais e dependentes químicos. Essa
estruturais, relacionados à pequena estrutura física e à depen- nova ideologia foi relatada pelos entrevistados, embora
dência do ambiente externo. Como um sistema aberto, essas existissem dificuldades decorrentes do aumento quanti-
organizações se integram ao ambiente externo, formado por tativo de usuários, resultando em acúmulo de atividades
diferentes atores e valores que são também influenciados e problemas no relacionamento de ambos os CAPS com
pelo estigma social frente aos comportamentos resultantes a sociedade e os familiares. Dessa forma, o projeto de
dos transtornos mentais e da dependência química. reinserção social desses serviços propõe que a rede
O estigma da doença mental destacou-se como barrei- primária de saúde seja habilitada a interromper o ciclo
ra ao avanço do tratamento e à perspectiva de exercício de reinternações 21, com base na reestruturação da
da cidadania pelos usuários em ambas as organizações atenção psiquiátrica vinculada à Atenção Primária em
estudadas. Muitas vezes, os transtornos mentais não são Saúde, permitindo a promoção de modelos substituti-
considerados como doença, pois são influenciados pela vos concentrados na comunidade e integrados com as
cultura e valores e não apenas por fatores biológicos. redes sociais22.
Existe, assim, o paradigma da exclusão social18. A família é fundamental na manutenção dos usuários
A estigmatização da loucura pode resultar na perda dos serviços em questão fora da internação e precisa ser
da cidadania e no aumento de preconceitos e segregação preparada para essa convivência, com o apoio de profis-
social. Sendo assim, a doença mental, explicada por causas sionais de saúde mental. No Brasil, ainda se investe pouco
biológicas, psicológicas e sociais, necessita de assistência nessa questão23-25. O processo de socialização inicia-se
adequada, para oferecer ressocialização e apoio ao portador na família, o que o faz denominá-lo socialização primária26.
de transtorno psiquiátrico e a sua família18. Deve-se considerar Ao abordarem o ambiente externo do CAPSII e do
que essa realidade da estigmatização se estende para as CAPSad, os profissionais manifestaram dificuldades de
dependências químicas, uma vez que as reações sociais frente integração com outros serviços e com a rede de atenção
a esse transtorno são cercadas de preconceito e exclusão. primária. Portanto, há necessidade de se buscar novas

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maneiras de apoio e expansão da rede de saúde para REFERÊNCIAS


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