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A genealogia do Estado Moderno

Rachel Saint Williams

SENELLART, Michel. As artes de governar: do ra compreender como o Estado surgiu paulatina-


regimen medieval ao conceito de governo. Tradução: mente da atividade governamental, não é suficiente
Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2006. narrar um processo de institucionalização crescen-
te associado à aparelhagem militar e jurídica, op-
Analisar o processo que modificou as estrutu- ção mais comumente aceita entre os pesquisadores
ras políticas surgidas na Antiguidade e que atraves- do Estado; mas, que é preciso esclarecer como um
saram a Idade Média, aí também sofrendo mudan- conceito a priori não político como o de regimen,
ças, para conduzir, nos alvores da época moderna, porque ele se inscreve em múltiplos planos discur-
à configuração de uma estrutura política como a sivos, se separou do governo político. Será a partir
do Estado – sob a qual, até hoje, estão estrutura- da análise do vocabulário político que Senellart irá
das as sociedades contemporâneas, em sua maior examinar as artes de governar. O pensamento polí-
parte – foi e ainda é uma questão de pauta para os tico clássico, representado por Maquiavel, Hobbes
pesquisadores de todos os ramos das chamadas ci- e Montesquieu, é contemplado; mas o autor não
ências do homem. O enorme interesse gerado pe- se restringiu a eles (fato louvável, pois, grande par-
lo tema explica-se por uma razão bem aparente: te dos pesquisadores da esfera política tende a acre-
é a partir da compreensão de como os homens se ditar que um entendimento completo da gênese e
organizam politicamente que podemos perceber e do percurso da teoria política pode ser feito apenas
circunscrever, de forma mais abrangente, os acon- através do estudo dos textos considerados canôni-
tecimentos sociais, hoje e ao longo dos tempos. cos), lançando mão de uma ampla gama de autores
Não se trata, entretanto, de propor aqui certo ti- como: João de Viterbo, Giovanni Botero, Ludovi-
po de primazia da esfera política. Muito pelo con- co Zuccolo, Justo Lipsio, Gil de Roma, Torqua-
trário, trata-se da tentativa de apreender os fenô- to Acceto, São Tomás de Aquino, Scipione Ammi-
menos sociais em sua complexidade, sublinhando rato, João de Salisburg, Vicente de Beauvais. Jean
a necessidade de não seccionar as realidades hu- Bodin, Gabriel Naudé, entre outros. O livro en-
manas em disciplinas acadêmicas; em outras pala- contra-se dividido em três partes principais, subdi-
vras, perceber as sociedades alinhavando suas ca- vididas em outras seções e também em capítulos:
racterísticas culturais, econômicas e políticas. E Reinar e Governar, Visibilidade (Corrigir e Diri-
foi baseando-se em premissas similares, e talvez, gir) e Segredo (Calcular e Dissimular).
mais importante do que isso, nas possibilidades O autor inicia a obra procurando colocar por
interpretativas descortinadas por elas, que Michel terra qualquer interpretação por demasiado sim-
Senellart elaborou As artes de governar. ples de governo, posto que este é claramente o as-
A obra em questão desenvolve um tipo de es- sunto das artes. Para isso devemos afastar uma as-
tudo distinto entre os inúmeros trabalhos que ana- sociação corriqueira entre governo e dominação.
lisam a emergência do Estado Moderno. Senellart Tal binômio, recorrente em nossa interpretação
– partindo da senda aberta por Michel Foucault, contemporânea, não se sustenta se recolocado no
do qual foi discípulo, em seus estudos sobre gover- contexto medieval do tratamento das questões po-
nabilidade – caminha na tradição dos estudos que líticas. Nele encontramos os termos governo e do-
pretendem interpretar os fenômenos históricos a minação em polos distintos, e será no momento
partir de sua inscrição em um campo discursivo, em que ambos alcançarem uma equivalência que
optando, portanto, pela análise semântica e pelo ocorrerá uma das primeiras mudanças significati-
exame dos conceitos que compõem os escritos so- vas no plano discursivo composto pelas artes de
bre as artes de governar. O autor sublinha que, pa- governar. Inicialmente, o governo se relacionava a

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uma multiplicidade de fins, externos a si próprio, verno. Na obra procurou, então, demonstrar as li-
enquanto que a dominação seria, nas palavras de nhas de inclinação que conduziram os espelhos de
Senellart, uma prática tautológica do poder. Neste príncipes medievais às máximas de Estado do sé-
ponto, por suposto, governo não é idêntico à do- culo XVII, retomando a problemática de como se
minação, o que conduz à seguinte interrogação: o passou de uma ética do regimen – cujo objetivo era
que significava governo? o bem comum – para uma técnica governamental
Senellart apresenta a resposta narrando as três ditada pelas exigências do Estado.
principais etapas da evolução do conceito de gover- A importância da obra de Maquiavel, O prín-
no. Até o século XII, o regimen precedeu o regnum, cipe, é destacada, já não mais como texto fundador
seguindo a concepção ministerial do poder secu- – e este é um dos aspectos inovadores da obra de
lar. Em suma, as finalidades governamentais esta- Senellart – que manifesta as exigências nascentes
vam divididas em espirituais (salvação das almas) e de uma ciência política, mas como escrito de arti-
temporais (coação dos corpos) que correspondiam culação entre a parenética régia medieval e os ma-
aos condicionantes da ética política. Como con- nuais de Estado. Continuando na análise da obra
sequência, a realeza é descrita em função dos seus de Maquiavel, o autor salienta a substituição da
deveres, como um ofício cujo objetivo amalgama- descrição e da exortação das virtudes ideais que
se à perspectiva finalista da salvação espiritual. A cabem ao príncipe, pela valorização de uma pru-
partir do século XIII, sofrendo o impacto do de- dência hábil, composta de cálculo e de instinto. O
senvolvimento das monarquias temporais e da uti- modelo do bom governo, a partir daí, não estaria
lização crescente dos textos aristotélicos, o regimen submetido à procura de um arquétipo perfeito e,
começa a se confundir com o regnum, marcando sim, centrado na observação de tipos históricos dis-
uma relativa autonomia do político em relação ao tintos, irredutíveis a um só formato; trata-se de um
espiritual. Neste momento, inscreve-se a ruptura dos efeitos da retomada aristotélica sobre a concep-
maquiavélica que marcou a passagem da arte de ção da política em detrimento da concepção platô-
governar medieval para a tecnologia moderna do nica da república perfeita. Os espelhos de príncipe
governo; o regimen adota como pressuposto a con- do século XVI abandonaram a busca pela perfeição
dição de seu exercício: o poder. Finalmente, a últi- atemporal do príncipe para pôr em foco a contin-
ma etapa corresponde à instrumentalização do go- gência das situações humanas. Postulam-se, assim,
verno que não será mais a razão de ser do poder as marcas da secularização e do pragmatismo pre-
público e nem sua manifestação, fenômeno obser- sentes na tratadística política produzida nos sécu-
vável nas grandes monarquias administrativas do los XVI e XVII.
século XVII. Ocorre, então, uma redefinição das Posteriormente o autor dedica-se à etimologia
finalidades governamentais que iriam operar ago- do nome rei para relacioná-lo ao tópico do gover-
ra em função das necessidades do Estado. no. Em tal empreitada serão importantes as dou-
Tendo estabelecido as três principais etapas da trinas de Isidoro de Sevilha, que interpretou a fun-
evolução do conceito de governo, o autor retoma ção régia a partir de sua inscrição na ordem ética,
a questão de suas artes. Gênero antigo cujas pri- e de Santo Agostinho, pois ele apresenta os funda-
meiras manifestações remontam ao Egito e à Me- mentos teológicos da coerção, ao qual deveriam se
sopotâmia, sua principal tarefa era a instrução do submeter os corpos para que se tornasse possível
príncipe acerca do que ele deveria ser, saber e fazer governá-los. Em Santo Agostinho, encontraremos,
para dirigir apropriadamente seus domínios. Sua segundo Senellart, um dos maiores acontecimen-
manifestação textual pode se apresentar sob diver- tos do pensamento ocidental que se consubstancia
sas modalidades: desde o sermão, passando pelos na reorientação profunda exercida no ensinamen-
tratados até os discursos e poemas. Como adverte to tradicional legado pela patrística. Santo Agosti-
Senellart, convém interpretar as artes de governar nho teria composto uma dramaturgia do pecado
em sua multiplicidade, não só de artes, mas de téc- original, ilustrado pela relação dialética entre se-
nicas, de sistemas de regras, de modelos de ação e dução, sexo e morte, que fundamentaria sua dou-
de concepções distintas acerca do conceito de go- trina política; justificando, consequentemente, a

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existência de um poder repressivo engendrado pe- que aparente que as possua. Começa a se cindir a
la visão global da corrupção do gênero humano. figura do rei, possibilitando que ele ocupe ao mes-
Tal justificativa constituiria uma grandiosa muta- mo tempo o posto de pessoa privada e figura pú-
ção no discurso teológico-político do século IV. blica. Esta cisão alcançou seu momento máximo
A temática das doutrinas agostinianas abre nas teorias do Estado dos séculos XVI e XVII.
precedente para que o autor aborde o problema da Na parte final da obra, Senellart avalia o surgi-
utilização política das Sagradas Escrituras. Discus- mento da arte do Estado em detrimento das artes
são interessante e profícua, conduzida com maes- de governar, o que significou, em última instância,
tria e erudição pelo autor, explicitando a relevân- uma redefinição das regras do governo orientadas
cia de não se considerar a influência religiosa como pela perspectiva de salvação para uma organização
negação ou impossibilidade do discurso político. voltada para critérios de sucesso. Mais uma vez,
Esta forma de perceber a relação entre os pressu- o autor sublinha que isso não significa o rompi-
postos religiosos e a prática política é extremamen- mento efetivo da estreita imbricação existente en-
te rica para nós que recebemos como herança de tre a esfera política e teológica, que se perpetuaria
Portugal a construção de um Estado pautado pe- até finais do século XVII. Contudo, não conceder
las exigências da Contra Reforma. Desta maneira, a devida importância a esta imbricação implicaria
podemos perceber a multiplicidade de propostas desconhecer a ligação real existente entre a criação
políticas concebidas nos domínios onde a marca do Estado Moderno e o despertar no continente
tridentina se fez presente; não como negação da europeu das guerras religiosas, fato já examinado
possibilidade de pensar a política, mas como um por Reinhart Koselleck em Crítica e Crise, diga-se
importante elemento definidor de algumas carac- de passagem. Serão analisados, portanto, os novos
terísticas que marcaram a tratadística política ela- elementos associados à arte dello stato: o cálculo e
borada nestes territórios. Prova disso é o mar de a dissimulação. Não à toa, tal discussão se inicia
escritos de toda sorte de membros da Igreja Cató- a partir da análise da virada maquiavélica na qual
lica, com destaque para os da Companhia de Jesus, são matizados alguns mitos recorrentes referentes
sobre as temáticas relacionadas à política. às interpretações que foram feitas da obra do con-
Ainda tratando da figura régia contrapon- troverso florentino.
do-a ao seu extremo natural, a tirania, Senellart Posteriormente são apresentados os discursos
apresenta decisivas construções da imagem ré- referentes às doutrinas da razão de Estado, porém,
gia cunhadas ao longo da antiguidade clássica com apreciação prévia da obra de Justo Lipsio,
e durante o período medieval. São elas: a figu- apresentada como texto de articulação entre a obra
ra cínico-estóica do rei sábio e a figura do rei co- de Maquiavel e os escritos sobre a razão de Esta-
mo imagem de Deus. Nesta seção da obra, o autor do. A fim de compreender a obra de Lipsio, Se-
apresenta argumentos que possibilitam compreen- nellart recorre muitas vezes ao estudo de Gerhard
der a relevância das virtudes que o monarca de- Oestreich, Neostoicism and the early modern sta-
ve possuir – aspecto central nos espelhos de prín- te, obra pouco conhecida entre nós, mas de gran-
cipe, para a construção do modelo vivo que deve de importância para o estudo das teorias políticas
representar o rei para sua comunidade. As socie- modernas, vale sublinhar. O Politicorum siue Civi-
dades que se organizavam a partir da ética do re- lis Doctrinae Libri Sex de Lipsio marcou uma nova
gimen encontravam sua unidade através da identi- etapa na história do governo, pois, nele, a virtuo-
ficação com a figura de seu dirigente, ele mesmo sidade do príncipe deixou de ser o elemento cabal
imagem de Deus, e nisto reside o papel exercido do jogo político, para se admitir a constituição de
pela exemplaridade, o que explica o prestígio do uma ciência positiva do Estado onde seria neces-
tema. Também podemos perceber como a questão sário o concurso de toda aparelhagem administra-
das virtudes transforma-se, no correr dos tempos, tiva e repressiva do poder público a fim de coman-
em imagem e simulação. Não importa mais que dar a população. Seria, portanto, no quadro desta
o rei possua as qualidades necessárias à criação de racionalidade prática – organizada em torno da es-
uma imagem que deve inspirar seus súditos, e sim tabilidade do Estado e que pretendia controlar as

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eventualidades da vida coletiva – que todo o signi-


ficado da retórica do segredo ganharia sentido. Na
sequência, o autor expõe as diferentes tipologias
da razão de Estado, conferindo atenção especial a
ratio status alemã. A obra se encerra com o exame
dos elementos necessários ao funcionamento do
Estado Absoluto que equivaleriam ao artifício, à
fascinação e às trevas. Neste sentido, o mistério do
arcana imperi, inscrito na ordem temporal, corres-
ponderia ao centro do dispositivo absolutista. Em
relação a esta interpretação de Senellart, cabe aqui
observar, entretanto, que a própria noção de Esta-
do Absoluto já vem sendo alvo de crítica por parte
da historiografia contemporânea.
Em resumo, As artes de governar tem como ob-
jetivo demonstrar como o Estado Moderno emer-
giu do regimen cristão – tese retomada pelo au-
tor em cada parte da obra. Essa passagem, situada
na contingência dos processos históricos, deve ser
descrita em termos de resistência, deslocamento,
mistura, ruptura e inovação, nas palavras do autor.
Trata-se de uma excelente obra que apresenta um
viés interpretativo bastante diferenciado no cam-
po dos estudos que se dedicam à gênese do Estado
Moderno. Apesar de o campo discursivo ser o foco
preferencial de Senellart, em algumas partes do li-
vro sente-se a falta de informações mais empíricas
sobre o período histórico em que foram escritas as
produções examinadas e sobre a trajetória particu-
lar dos autores analisados; acreditamos que tais in-
formações só contribuiriam positivamente para as
conclusões apresentadas por Senellart. Longe de
querer retomar o esquema vida e obra, esses dados
possibilitariam reconstituir a dinâmica do campo
discursivo mais amplo em que se inserem as obras,
conferindo mais visibilidade à questão das produ-
ções escritas, posto que elas também são alvos de
disputa e negociação nas configurações sociais on-
de são engendradas.
A maior contribuição oferecida pelo livro de
Michel Senellart, entretanto, está ligada ao desper-
tar do interesse pelos estudos das teorias políticas
medievais e modernas. No Brasil não são muitas
as obras que abordam tais temáticas e isso é uma
limitação bastante séria, pois, talvez o desinteres-
se e o desconhecimento pelos fenômenos políticos
pregressos relacionem-se a uma postura semelhan-
te perante o contexto político contemporâneo.

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