Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
2237 101X Topoi 10 19 00184 PDF
2237 101X Topoi 10 19 00184 PDF
uma multiplicidade de fins, externos a si próprio, verno. Na obra procurou, então, demonstrar as li-
enquanto que a dominação seria, nas palavras de nhas de inclinação que conduziram os espelhos de
Senellart, uma prática tautológica do poder. Neste príncipes medievais às máximas de Estado do sé-
ponto, por suposto, governo não é idêntico à do- culo XVII, retomando a problemática de como se
minação, o que conduz à seguinte interrogação: o passou de uma ética do regimen – cujo objetivo era
que significava governo? o bem comum – para uma técnica governamental
Senellart apresenta a resposta narrando as três ditada pelas exigências do Estado.
principais etapas da evolução do conceito de gover- A importância da obra de Maquiavel, O prín-
no. Até o século XII, o regimen precedeu o regnum, cipe, é destacada, já não mais como texto fundador
seguindo a concepção ministerial do poder secu- – e este é um dos aspectos inovadores da obra de
lar. Em suma, as finalidades governamentais esta- Senellart – que manifesta as exigências nascentes
vam divididas em espirituais (salvação das almas) e de uma ciência política, mas como escrito de arti-
temporais (coação dos corpos) que correspondiam culação entre a parenética régia medieval e os ma-
aos condicionantes da ética política. Como con- nuais de Estado. Continuando na análise da obra
sequência, a realeza é descrita em função dos seus de Maquiavel, o autor salienta a substituição da
deveres, como um ofício cujo objetivo amalgama- descrição e da exortação das virtudes ideais que
se à perspectiva finalista da salvação espiritual. A cabem ao príncipe, pela valorização de uma pru-
partir do século XIII, sofrendo o impacto do de- dência hábil, composta de cálculo e de instinto. O
senvolvimento das monarquias temporais e da uti- modelo do bom governo, a partir daí, não estaria
lização crescente dos textos aristotélicos, o regimen submetido à procura de um arquétipo perfeito e,
começa a se confundir com o regnum, marcando sim, centrado na observação de tipos históricos dis-
uma relativa autonomia do político em relação ao tintos, irredutíveis a um só formato; trata-se de um
espiritual. Neste momento, inscreve-se a ruptura dos efeitos da retomada aristotélica sobre a concep-
maquiavélica que marcou a passagem da arte de ção da política em detrimento da concepção platô-
governar medieval para a tecnologia moderna do nica da república perfeita. Os espelhos de príncipe
governo; o regimen adota como pressuposto a con- do século XVI abandonaram a busca pela perfeição
dição de seu exercício: o poder. Finalmente, a últi- atemporal do príncipe para pôr em foco a contin-
ma etapa corresponde à instrumentalização do go- gência das situações humanas. Postulam-se, assim,
verno que não será mais a razão de ser do poder as marcas da secularização e do pragmatismo pre-
público e nem sua manifestação, fenômeno obser- sentes na tratadística política produzida nos sécu-
vável nas grandes monarquias administrativas do los XVI e XVII.
século XVII. Ocorre, então, uma redefinição das Posteriormente o autor dedica-se à etimologia
finalidades governamentais que iriam operar ago- do nome rei para relacioná-lo ao tópico do gover-
ra em função das necessidades do Estado. no. Em tal empreitada serão importantes as dou-
Tendo estabelecido as três principais etapas da trinas de Isidoro de Sevilha, que interpretou a fun-
evolução do conceito de governo, o autor retoma ção régia a partir de sua inscrição na ordem ética,
a questão de suas artes. Gênero antigo cujas pri- e de Santo Agostinho, pois ele apresenta os funda-
meiras manifestações remontam ao Egito e à Me- mentos teológicos da coerção, ao qual deveriam se
sopotâmia, sua principal tarefa era a instrução do submeter os corpos para que se tornasse possível
príncipe acerca do que ele deveria ser, saber e fazer governá-los. Em Santo Agostinho, encontraremos,
para dirigir apropriadamente seus domínios. Sua segundo Senellart, um dos maiores acontecimen-
manifestação textual pode se apresentar sob diver- tos do pensamento ocidental que se consubstancia
sas modalidades: desde o sermão, passando pelos na reorientação profunda exercida no ensinamen-
tratados até os discursos e poemas. Como adverte to tradicional legado pela patrística. Santo Agosti-
Senellart, convém interpretar as artes de governar nho teria composto uma dramaturgia do pecado
em sua multiplicidade, não só de artes, mas de téc- original, ilustrado pela relação dialética entre se-
nicas, de sistemas de regras, de modelos de ação e dução, sexo e morte, que fundamentaria sua dou-
de concepções distintas acerca do conceito de go- trina política; justificando, consequentemente, a
existência de um poder repressivo engendrado pe- que aparente que as possua. Começa a se cindir a
la visão global da corrupção do gênero humano. figura do rei, possibilitando que ele ocupe ao mes-
Tal justificativa constituiria uma grandiosa muta- mo tempo o posto de pessoa privada e figura pú-
ção no discurso teológico-político do século IV. blica. Esta cisão alcançou seu momento máximo
A temática das doutrinas agostinianas abre nas teorias do Estado dos séculos XVI e XVII.
precedente para que o autor aborde o problema da Na parte final da obra, Senellart avalia o surgi-
utilização política das Sagradas Escrituras. Discus- mento da arte do Estado em detrimento das artes
são interessante e profícua, conduzida com maes- de governar, o que significou, em última instância,
tria e erudição pelo autor, explicitando a relevân- uma redefinição das regras do governo orientadas
cia de não se considerar a influência religiosa como pela perspectiva de salvação para uma organização
negação ou impossibilidade do discurso político. voltada para critérios de sucesso. Mais uma vez,
Esta forma de perceber a relação entre os pressu- o autor sublinha que isso não significa o rompi-
postos religiosos e a prática política é extremamen- mento efetivo da estreita imbricação existente en-
te rica para nós que recebemos como herança de tre a esfera política e teológica, que se perpetuaria
Portugal a construção de um Estado pautado pe- até finais do século XVII. Contudo, não conceder
las exigências da Contra Reforma. Desta maneira, a devida importância a esta imbricação implicaria
podemos perceber a multiplicidade de propostas desconhecer a ligação real existente entre a criação
políticas concebidas nos domínios onde a marca do Estado Moderno e o despertar no continente
tridentina se fez presente; não como negação da europeu das guerras religiosas, fato já examinado
possibilidade de pensar a política, mas como um por Reinhart Koselleck em Crítica e Crise, diga-se
importante elemento definidor de algumas carac- de passagem. Serão analisados, portanto, os novos
terísticas que marcaram a tratadística política ela- elementos associados à arte dello stato: o cálculo e
borada nestes territórios. Prova disso é o mar de a dissimulação. Não à toa, tal discussão se inicia
escritos de toda sorte de membros da Igreja Cató- a partir da análise da virada maquiavélica na qual
lica, com destaque para os da Companhia de Jesus, são matizados alguns mitos recorrentes referentes
sobre as temáticas relacionadas à política. às interpretações que foram feitas da obra do con-
Ainda tratando da figura régia contrapon- troverso florentino.
do-a ao seu extremo natural, a tirania, Senellart Posteriormente são apresentados os discursos
apresenta decisivas construções da imagem ré- referentes às doutrinas da razão de Estado, porém,
gia cunhadas ao longo da antiguidade clássica com apreciação prévia da obra de Justo Lipsio,
e durante o período medieval. São elas: a figu- apresentada como texto de articulação entre a obra
ra cínico-estóica do rei sábio e a figura do rei co- de Maquiavel e os escritos sobre a razão de Esta-
mo imagem de Deus. Nesta seção da obra, o autor do. A fim de compreender a obra de Lipsio, Se-
apresenta argumentos que possibilitam compreen- nellart recorre muitas vezes ao estudo de Gerhard
der a relevância das virtudes que o monarca de- Oestreich, Neostoicism and the early modern sta-
ve possuir – aspecto central nos espelhos de prín- te, obra pouco conhecida entre nós, mas de gran-
cipe, para a construção do modelo vivo que deve de importância para o estudo das teorias políticas
representar o rei para sua comunidade. As socie- modernas, vale sublinhar. O Politicorum siue Civi-
dades que se organizavam a partir da ética do re- lis Doctrinae Libri Sex de Lipsio marcou uma nova
gimen encontravam sua unidade através da identi- etapa na história do governo, pois, nele, a virtuo-
ficação com a figura de seu dirigente, ele mesmo sidade do príncipe deixou de ser o elemento cabal
imagem de Deus, e nisto reside o papel exercido do jogo político, para se admitir a constituição de
pela exemplaridade, o que explica o prestígio do uma ciência positiva do Estado onde seria neces-
tema. Também podemos perceber como a questão sário o concurso de toda aparelhagem administra-
das virtudes transforma-se, no correr dos tempos, tiva e repressiva do poder público a fim de coman-
em imagem e simulação. Não importa mais que dar a população. Seria, portanto, no quadro desta
o rei possua as qualidades necessárias à criação de racionalidade prática – organizada em torno da es-
uma imagem que deve inspirar seus súditos, e sim tabilidade do Estado e que pretendia controlar as