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a enfermeira nunca acertava -, dos vômitos

e das urinas. Era um relato comovente de


dor. Até que o relato chegou ao fim,
esperando, evidentemente, o aplauso, a
admiração, uma palavra de acolhimento na
ESCUTATÓRIA alma da outra que, supostamente, ouvia.
Rubem Alves Mas o que a sofredora ouviu foi o seguinte:
“Mas isso não é nada...“ A segunda iniciou,
então, uma história de sofrimentos
incomparavelmente mais terríveis e dignos
de uma ópera que os sofrimentos da
Sempre vejo anunciados cursos de primeira.
oratória. Nunca vi anunciado curso de
Parafraseio o Alberto Caeiro: “Não é
escutatória. Todo mundo quer aprender a
bastante ter ouvidos para se ouvir o que é
falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei
dito. É preciso também que haja silêncio
em oferecer um curso de escutatória. Mas
dentro da alma.“ Daí a dificuldade: a gente
acho que ninguém vai se matricular.
não agüenta ouvir o que o outro diz sem logo
Escutar é complicado e sutil. Diz o dar um palpite melhor, sem misturar o que
Alberto Caeiro que “não é bastante não ser ele diz com aquilo que a gente tem a dizer.
cego para ver as árvores e as flores. É Como se aquilo que ele diz não fosse digno
preciso também não ter filosofia nenhuma“. de descansada consideração e precisasse ser
Filosofia é um monte de idéias, dentro da complementado por aquilo que a gente tem
cabeça, sobre como são as coisas. Aí a gente a dizer, que é muito melhor. No fundo
que não é cego abre os olhos. Diante de nós, somos todos iguais às duas mulheres do
fora da cabeça, nos campos e matas, estão ônibus. Certo estava Lichtenberg - citado
as árvores e as flores. Ver é colocar dentro por Murilo Mendes: “Há quem não ouça até
da cabeça aquilo que existe fora. O cego não que lhe cortem as orelhas.“ Nossa
vê porque as janelas dele estão fechadas. O incapacidade de ouvir é a manifestação mais
que está fora não consegue entrar. A gente constante e sutil da nossa arrogância e
não é cego. As árvores e as flores entram. vaidade: no fundo, somos os mais bonitos...
Mas - coitadinhas delas - entram e caem
Tenho um velho amigo, Jovelino,
num mar de idéias. São misturadas nas
que se mudou para os Estados Unidos,
palavras da filosofia que mora em nós.
estimulado pela revolução de 64. Pastor
Perdem a sua simplicidade de existir. Ficam
protestante (não “evangélico“), foi
outras coisas. Então, o que vemos não são as
trabalhar num programa educacional da
árvores e as flores. Para se ver e preciso que
Igreja Presbiteriana USA, voltado para
a cabeça esteja vazia.
minorias. Contou-me de sua experiência com
Faz muito tempo, nunca me esqueci. os índios. As reuniões são estranhas.
Eu ia de ônibus. Atrás, duas mulheres Reunidos os participantes, ninguém fala. Há
conversavam. Uma delas contava para a um longo, longo silêncio. (Os pianistas,
amiga os seus sofrimentos. (Contou-me uma antes de iniciar o concerto, diante do piano,
amiga, nordestina, que o jogo que as ficam assentados em silêncio, como se
mulheres do Nordeste gostam de fazer estivessem orando. Não rezando. Reza é
quando conversam umas com as outras é falatório para não ouvir. Orando. Abrindo
comparar sofrimentos. Quanto maior o vazios de silêncio. Expulsando todas as
sofrimento, mais bonitas são a mulher e a idéias estranhas. Também para se tocar
sua vida. Conversar é a arte de produzir-se piano é preciso não ter filosofia nenhuma).
literariamente como mulher de sofrimentos. Todos em silêncio, à espera do pensamento
Acho que foi lá que a ópera foi inventada. A essencial. Aí, de repente, alguém fala.
alma é uma literatura. É nisso que se baseia Curto. Todos ouvem. Terminada a fala, novo
a psicanálise...) Voltando ao ônibus. silêncio. Falar logo em seguida seria um
Falavam de sofrimentos. Uma delas contava grande desrespeito. Pois o outro falou os
do marido hospitalizado, dos médicos, dos seus pensamentos, pensamentos que julgava
exames complicados, das injeções na veia - essenciais. Sendo dele, os pensamentos não
são meus. São-me estranhos. Comida que é madeira num mar agitado. O vento batia nas
preciso digerir. Digerir leva tempo. É preciso macieiras nuas do pomar e o barulho era
tempo para entender o que o outro falou. Se como o de ondas que se quebram. Estranhei.
falo logo a seguir são duas as possibilidades. Os suíços são sempre pontuais. A liturgia não
Primeira: “Fiquei em silêncio só por começava. E ninguém tomava providências.
delicadeza. Na verdade, não ouvi o que você Todos continuavam do mesmo jeito, sem
falou. Enquanto você falava eu pensava nas nada fazer. Ninguém que se levantasse para
coisas que eu iria falar quando você dizer: “Meus irmãos, vamos cantar o hino...“
terminasse sua (tola) fala. Falo como se Cinco minutos, dez, quinze. Só depois de
você não tivesse falado.“ Segunda: “Ouvi o vinte minutos é que eu, estúpido, percebi
que você falou. Mas isso que você falou que tudo já se iniciara vinte minutos antes.
como novidade eu já pensei há muito As pessoas estavam lá para se alimentar de
tempo. É coisa velha para mim. Tanto que silêncio. E eu comecei a me alimentar de
nem preciso pensar sobre o que você falou.“ silêncio também. Não basta o silêncio de
Em ambos os casos estou chamando o outro fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de
de tolo. O que é pior que uma bofetada. O pensamentos. E aí, quando se faz o silêncio
longo silêncio quer dizer: “Estou ponderando dentro, a gente começa a ouvir coisas que
cuidadosamente tudo aquilo que você não ouvia. Eu comecei a ouvir. Fernando
falou.“ E assim vai a reunião. Pessoa conhecia a experiência, e se referia a
algo que se ouve nos interstícios das
Há grupos religiosos cuja liturgia
palavras, no lugar onde não há palavras. E
consiste de silêncio. Faz alguns anos passei
música, melodia que não havia e que quando
uma semana num mosteiro na Suíça, Grand
ouvida nos faz chorar. A música acontece no
Champs. Eu e algumas outras pessoas ali
silêncio. É preciso que todos os ruídos
estávamos para, juntos, escrever um livro.
cessem. No silêncio, abrem-se as portas de
Era uma antiga fazenda. Velhas construções,
um mundo encantado que mora em nós -
não me esqueço da água no chafariz onde as
como no poema de Mallarmé, A catedral
pombas vinham beber. Havia uma disciplina
submersa, que Debussy musicou. A alma é
de silêncio, não total, mas de uma fala
uma catedral submersa. No fundo do mar -
mínima. O que me deu enorme prazer às
quem faz mergulho sabe - a boca fica
refeições. Não tinha a obrigação de manter
fechada. Somos todos olhos e ouvidos. Me
uma conversa com meus vizinhos de mesa.
veio agora a idéia de que, talvez, essa seja a
Podia comer pensando na comida. Também
essência da experiência religiosa - quando
para comer é preciso não ter filosofia. Não
ficamos mudos, sem fala. Aí, livres dos
ter obrigação de falar é uma felicidade. Mas
ruídos do falatório e dos saberes da filosofia,
logo fui informado de que parte da disciplina
ouvimos a melodia que não havia, que de
do mosteiro era participar da liturgia três
tão linda nos faz chorar. Para mim Deus é
vezes por dia: às 7 da manhã, ao meio-dia e
isto: a beleza que se ouve no silêncio. Daí a
às 6 da tarde. Estremeci de medo. Mas
importância de saber ouvir os outros: a
obedeci. O lugar sagrado era um velho
beleza mora lá também. Comunhão é
celeiro, todo de madeira, teto muito alto.
quando a beleza do outro e a beleza da
Escuro. Haviam aberto buracos na madeira,
gente se juntam num contraponto... (O
ali colocando vidros de várias cores. Era uma
amor que acende a lua, pág. 65.)
atmosfera de luz mortiça, iluminado por
algumas velas sobre o altar, uma mesa
simples com um ícone oriental de Cristo. Uns
_____________
poucos bancos arranjados em “U“ definiam
um amplo espaço vazio, no centro, onde Fonte:
quem quisesse podia se assentar numa http://rubemalves.locaweb.com.br/hall/ww
almofada, sobre um tapete. Cheguei alguns pct3/newfiles/escutatoria.php
minutos antes da hora marcada. Era um
grande silêncio. Muito frio, nuvens escuras
cobriam o céu e corriam, levadas por um
vento impetuoso que descia dos Alpes. A
força do vento era tanta que o velho celeiro
torcia e rangia, como se fosse um navio de

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