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O Brasil na Era Lula:

retorno ao desenvolvimentismo?
Pedro Cezar Dutra Fonseca
Professor Titular do Departamento de Economia e
Relações Internacionais da UFRGS e
Pesquisador do CNPq – Brasil.
André Moreira Cunha
Professor Associado do Departamento de Economia e
Relações Internacionais da UFRGS e
Pesquisador do CNPq – Brasil.
Julimar da Silva Bichara
Professor da Universidade Autónoma de Mardrid
– España e Diretor do Centro de Estudios Brasileños –
Fundación Ortega y Gasset.

Palavras-chave Resumo  Abstract


economia brasileira, O artigo retoma variáveis sobre o desempe- This paper analyzes some variables connected
desenvolvimentismo, crise nho recente da economia brasileira com o to the recent performance of the Brazilian
financeira global propósito de enfocar a questão se, a partir economy in order to assess whether, under
Classificação JEL O1, E6, B5 dessa análise conjuntural, pode-se detectar this conjunctional analyses, it can be detected
que o país estaria resgatando, sob nova rou- that the country returned to a new matrix
pagem, uma matriz de políticas desenvolvi- of developmentalist policies. An analysis is
mentistas. Para ensaiar resposta à questão, examined regarding the recent performance
parte-se de uma análise sobre o desempenho of the economy and the contextualization of
recente da economia e da contextualização the mentioned debate. Next, a comparison
do referido debate para, por fim, elaborar is made between the Lula administration
um contraponto entre o governo Lula e os and the structural features of the historical
traços estruturais da experiência histórica experience of the Brazilian economy during
da economia brasileira no período que ficou the period referred to in the literature
conhecido na literatura como “era do desen- as “the developmentalism era”. This era
volvimentismo”, esta entendida como cinco comprehended five decades as of 1930,
Key-Words décadas, a partir de 1930, de elevado cresci- which presented an elevated growth and a
Brazilian economy, mento e de modernização do país. modernization of the country.
developmentalism, global
financial crisis
JEL Classification O1, E6, B5

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404 O Brasil na Era Lula: retorno ao desenvolvimentismo?

1_Introdução: retomada nortearam o comportamento de gover-


de uma trajetória? nos e de policy makers no Brasil a par-
Este artigo propõe-se a contribuir para o tir de 1930 – possivelmente mais do que
debate sobre duas questões suscitadas pe- em qualquer outro país latino-america-
lo desempenho recente da economia bra- no? Estas teriam saído de cena nas du-
sileira, o qual vem dividindo a literatura, as últimas décadas do século XX, diante
e que sugere novamente uma trajetória do agravamento da crise fiscal do Esta-
de navegar contra a corrente das econo- do, do balanço de pagamentos e da infla-
mias hegemônicas, embora desta vez em ção, quando cederam espaço às propos-
companhia de alguns países tidos como tas mais afinadas com o neoliberalismo1,
“emergentes”, como China, Índia, Rússia, centradas na busca da estabilidade ma-
África do Sul, dentre outros (Goldman croeconômica, críticas à substituição de
Sachs, 2007). A primeira questão, mais importações, ao planejamento econômi-
voltada à conjuntura, remete às condi- co e à prioridade ao desenvolvimento.
ções permissivas à manutenção dessa Atualmente se registra uma con-
tendência de crescimento e aos prováveis trovérsia sobre o desempenho da econo-
percalços que poderão antepor-se como mia brasileira a partir do Governo Lula
seus fatores limitantes. A segunda esten- (2003-2010). De um lado, vários econo-
de a anterior a um questionamento de mistas, e o próprio discurso oficial, enfa-
longo prazo e exige, metodologicamente, tizam o que consideram ser altas taxas de
uma reflexão histórica: estaria o país re- crescimento, principalmente se forem le-
tomando, embora em nova forma, as te- vados como padrão de comparação os oi-
ses e as políticas desenvolvimentistas que to anos anteriores, do Governo Fernando

1
Seguimos aqui a sugestão semi-públicos (ou meritórios); desenvolvimento. Esta agenda
de Anderson (1995), para e (ii) para as economias se traduz na introdução de
quem o neoliberalismo em desenvolvimento a reformas estruturais visando à
representa: (i) para as redução do ativismo estatal ampla liberalização comercial
economias maduras, uma na esfera econômica. Em e financeira, privatizações,
reação ideológica e política à ambos os casos a gestão desregulamentação e
institucionalidade criada no macroeconômica passa a constrangimentos diversos
pós-Segunda Guerra e que priorizar a estabilidade à expansão do gasto público.
priorizava a manutenção do monetária e abandona-se a Ver, também, Arestis e
pleno emprego e a ampliação ideia que o Estado deve ter um De Paula (2009) e Belluzzo
do acesso aos bens públicos e papel central na dinâmica de e Almeida (2002).

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Henrique Cardoso, e, mais recentemente, te que, em 2010, a economia brasileira cres-


a crise financeira global que se apresentou ceu 7,5%, acima do que mercado e governo
de forma mais nítida a partir de 2008. Em projetavam quando a crise financeira glo-
decorrência, vários autores têm sugerido bal fez com que a renda experimentasse
a interpretação de que estaria de volta o uma pequena contração em 2009. Mesmo
desenvolvimentismo brasileiro, ressaltan- a partir de diferentes fontes, compartilha-
do mudanças na condução da economia va-se a crença de que “sólidos fundamen-
com relação aos governos das décadas de tos macroeconômicos” alcançados gradu-
1980 e 1990 (ver, por exemplo: Belluzzo: almente nas últimas décadas lastreiam as
2009; Novy: 2009a, 2009b; Nakano: 2010; expectativas otimistas quanto às perspec-
Cervo: 2009; Herrlein: 2011; Cardoso Jr., tivas do país e lhe asseguram realismo. A
2011, p. 61, 450). Outros, concordando inflação, tradicionalmente o maior pro-
com a guinada de rumo, mas de forma blema das políticas de estabilização na
crítica ao lamentar o abandono da orto- segunda metade do século XX, mante-
doxia pelos ímpetos redistributivistas que ve-se baixa, tendo o IGP-DI/FGV fecha-
o governo manifestaria, como se mostra- do o ano de 2009 com a inédita taxa de
rá adiante, admitem as tendências desen- -1,43%, a primeira deflação anual em sua
volvimentistas do governo Lula e as inter- série histórica. Mesmo com a aceleração
pretam como uma forma de populismo, nos preços a partir de meados de 2010,
lembrando a antiga relação, tradicional a inflação tem-se situado próxima aos li-
nas análises sobre economia latino-ame- mites determinados pelo Sistema de Me-
ricana, desenvolvimentismo, substituição tas (Ministério da Fazenda, 2011)2. Outra
de importações e populismo. vulnerabilidade recorrente, o desequilíbrio
Na defesa da opção pelo desenvolvi- externo, também sugere ser coisa do pas-
mento, os autores lembram principalmen- sado3: a conta capital e financeira atingiu
o superávit recorde de US$ 111,9 bilhões
2
“Desde 2005, a inflação, regime.” (Ministério
medida pelo IPCA, mantêm- da Fazenda, 2011, p. 51) em 2011 (4,5% do PIB), mais do que su-
se dentro das bandas 3
Fonte dos dados brutos: perando o déficit em conta corrente de
do regime de metas da Banco Central do Brasil, US$ 52,6 bilhões (2,1% do PIB). Assim,
inflação. A forte recuperação Indicadores Econômicos em um contraste marcante com o pas-
econômica de 2010, na qual Consolidados em 15/02/2012
a demanda interna cresceu (http://www.bcb.gov.
sado, a entrada excessiva de capitais que
10,3%, foi compatível br/?INDECO, acesso em pressiona a moeda nacional no sentido
com o cumprimento do 20/02/2012). de sua apreciação tem sido considerada

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um dos principais desafios macroeconô- riam “maior dramaticidade na sua ado-


micos. As reservas internacionais atingi- ção”, como controle de capitais, não fo-
ram o patamar de US$ 288,5 bilhões em ram adotados. Mas mesmo antes desses,
dezembro de 20104, volume inimaginável Paulani (2003), argumentava que a prio-
para quem inúmeras vezes precisou re- ridade de combate a inflação do gover-
correr ao FMI a partir da década de 1980 no Lula seguia a cartilha ortodoxa ao
e que tinha na dívida externa uma de suas considerar a inflação como de deman-
variáveis mais frágeis, capaz de sugerir em da, cuja conseqüência era diminuir o
inúmeras ocasiões a possibilidade de mo- crédito e os investimentos; a sobrevalo-
ratória. De fato, desde 2007 o país apre- rização do real poderia ser interpretada
senta uma dívida externa líquida negati- como uma estratégia anticrescimento e
va, que em termos proporcionais ao PIB requeria o ingresso de capitais de curto
atingiu a cifra de -2,5% em 2010 (Minis- prazo, via altas taxas de juros, para asse-
tério da Fazenda, 2011, p. 104). gurar certo equilíbrio no balanço de pa-
Por outro lado, não é de menor vul- gamentos. Em artigos posteriores (Pau-
to e menos incisiva a literatura que apon- lani, in Sicsú et alli, 2005; Paulani e Pato,
ta para direção diametralmente oposta. Já in Paula, 2003; 2007), é reafirmada a op-
em 2005, Paula (2005, p.7) argumentava ção ortodoxa do governo Lula, cuja polí-
contrariamente ao caráter desenvolvimen- tica econômica seria mais comprometida
tista, apontando mais continuidades que com a valorização financeira do que com
ruptura com relação ao governo anterior: o crescimento e com a distribuição de
um continuísmo neoliberal. Na mesma renda; Lula não teria apenas continua-
direção manifestaram-se outros autores do, mas aprofundado a “herança maldita”
como Borges Neto (in Paula, 2005), que do governo Fernando Henrique Cardo-
inclusive procura desvendar as forças po- so. Na mesma obra (Sicsú et alli, 2005, p.
líticas e econômicas de sustentação ao go- 91), Assis corrobora a mesma tese ao ar- 4
Pelo conceito de liquidez
verno, concluindo que o mesmo poderia gumentar que a centralidade do diagnós- internacional. Para se colocar
ser considerado avesso ao desenvolvimen- tico de inflação de demanda na formu- em perspectiva, estes valores
tismo e mais comprometido com o “so- lação da política econômica impõe uma atingiram, respectivamente,
cial–liberalismo”. Carvalho (2007), por sua política monetária com “custos sociais US$ 355 bilhões, em dezembro
de 2011, e US$ 365 bilhões,
vez, salienta que as políticas monetárias e intoleráveis, em termos de recessão e de- em março de 2012. Ver:
cambiais seguem as regras da ortodoxia e semprego”. Mais recentemente, Gonçal- www.ipeadata.gov.br, acesso
que mesmo instrumentos que não exigi- ves (2012), na mesma direção, ponderou em 18/05/2012.

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que o governo Lula poderia ser conside- das pelo “novo-desenvolvimentismo”. An-
rado um “nacional-desenvolvimentismo tes que aprofundar a questão em torno
às avessas”: enquanto o primeiro optara do hibridismo, nossa opção foi partir de
pela industrialização via substituição de uma conceituação de desenvolvimentis-
importações, melhoria do padrão de co- mo (seção 2) – passo metodológico ne-
mércio, maior controle nacional do siste- cessário, pois se trata de termo cuja de-
ma produtivo e subordinação da política finição sempre comporta polêmica. Para
monetária à política de desenvolvimen- tanto, avalia-se o desempenho recente
to, dentre outras medidas, a política eco- da economia brasileira (seção 3), o qual,
nômica do período de Lula apontaria em tendo como referencial o marco analíti-
direção diametralmente oposta: desin- co da seção 2 e a discussão em torno do
dustrialização, reprimarização das expor- populismo econômico, permite-nos con-
tações, desnacionalização e dominação tribuir com o debate (seção 4) sugerindo
financeira sobre a esfera produtiva. que: (i) o período que se inaugura com
A proposta deste artigo, para en- o Governo Lula não pode ser facilmente
saiar repostas às questões inicialmen- enquadrado como sendo populista; mas,
te formuladas, vai na direção de buscar também, (ii) embora haja indícios para
uma mediação entre as duas correntes as sua defesa, não estão claramente consoli-
quais, sumariamente, sintetizamos como dadas as condições para a sustentação do
em lados opostos na controvérsia, em ca- desenvolvimentismo como base ideológi-
minho semelhante ao de Morais e Saad- ca da retomada recente de certo dinamis-
-Filho (2011). Estes, partindo da polari- mo econômico.
dade entre “ortodoxia convencional” e
“novo desenvolvimentismo”, com base
na tipologia elaborada por Bresser-Perei- 2_O Desenvolvimentismo no Brasil:
ra (2006, 2011a) e Sicsú, Paula e Michel uma primeira aproximação
(2005), procuram mostrar que o governo A possibilidade de crescer em plena crise
Lula foge a qualquer classificação a priori internacional e de recuperações rápidas
entre “governo neoliberal” versus “gover- não constitui novidade e integra o imagi-
no desenvolvimentista”, e que o mesmo nário de boa parte dos economistas e das
realizou, com êxito e embora lentamente, elites brasileiras. Assim ocorrera na Gran-
uma política “híbrida”, inclusive ao colo- de Depressão da década de 1930, quando
car em prática várias políticas recomenda- a reversão do ciclo recessivo deu-se já em

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1932, com taxa de 4,3% do PIB, e 9,0% vés do recatado receituário ortodoxo que
em 1933 – período mais trágico para a aconselhava diminuir o ritmo de ativi-
maior parte dos países, auge da depressão dade econômica diante da elevação das
norte-americana. Consagrou-se a clássi- taxas internacionais de juros e dos pre-
ca interpretação de Celso Furtado de que ços do petróleo em quatro vezes, o gover-
o Brasil antecipara na prática as políticas no propôs acelerar o processo de substi-
keynesianas, como resultado de o gover- tuição de importações para os ramos da
no Vargas ter incitado os produtores a co- indústria pesada de bens intermediários
lherem o café, principal item da pauta de e de capital, além de incentivar, através
exportações, e responsabilizado-se por as- de empresas estatais, megainvestimentos
segurar preço através da compra e quei- na área energética, os quais acenavam
ma de parte do produto, com financia- no longo prazo para menor dependên-
mento ancorado em emissão de moeda. cia do exterior com relação ao petróleo
Mais que a precoce recuperação, a crise importado. Mesmo que tenha jogado o
colaborou para que a economia brasilei- custo do ajuste para o futuro, o cresci-
ra passasse por uma inflexão estrutural, mento brasileiro entre e 1974 e 1980 man-
com a superação do modelo agroexpor- teve uma taxa anual em torno de 7%, bas-
tador, centrado na venda para o mercado tante superior à média internacional; em
externo de poucos produtos primários, e três anos - 1974, 1976 e 1980 – alcançou
alterasse seu “centro dinâmico” em favor o patamar de 9%.
da indústria e do mercado interno, dan- Ao assumir em 2002, o presidente
do início ao processo de substituição de Lula manteve não só alguns marcos essen-
importações: de 1933 a 1939 a indústria ciais da política econômica em prol da es-
brasileira cresceu numa média de 11,2% tabilidade do governo Fernando Henrique
ao ano (Furtado, 1977: 192). Já em outra Cardoso (metas de inflação, taxa de câm-
conjuntura externa adversa, no início da bio flexível e valorizada, superávit primá-
década de 1970, com o primeiro choque rio), mas ampliou vários programas de as-
do petróleo, o governo militar - mesmo sistência social. A implementação das teses
que avesso ao que denominava populis- de focalização das políticas sociais inicia-
mo e esquerdismo de Vargas e de seus su- das por este último, críticas à universaliza-
cessores, afastados pelo golpe de estado ção dos direitos, aos moldes da antiga So-
de 1964 -, procedeu de forma semelhante. cial-Democracia, graças a essa expansão
Ao invés de ajustar-se à conjuntura atra- ganhou um status de quase universalidade:

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só o Programa Bolsa-Família5 foi estendi- la crise internacional e pela apreciação do


do a 11 milhões de famílias6, quase tripli- real: mesmo com o PIB estagnado, estatís-
cando sua abrangência. O salário mínimo ticas registram a criação de cerca de 1 mi-
cresceu 57%, em termos reais, entre 2002 lhão de empregos formais no ano, e suge-
e 20107, atingindo o maior patamar desde rem o papel relevante do mercado interno
o começo dos anos 1970, quando do cha- e do consumo doméstico para o alcance
mado “Milagre Brasileiro”8, o que signi- deste resultado (Ministério da Fazenda,
ficou um acréscimo significativo da mas- 2010 e 2011).
sa salarial e do consumo de bens-salário9. Por outro lado, o Programa de Ace-
Já o coeficiente de Gini caiu de 0,596 para leração do Crescimento (PAC), mesmo que
0,543 entre 2001 e 2009, a evidenciar cer- ainda com tímidos resultados, acena à
ta consistência na reversão da tendência retomada de sua responsabilidade como
crescente verificada até meados dos anos indutor do crescimento, ao priorizar se-
1990. Como consequência, detecta-se cer- tores e diagnosticar gargalos para o cres-
ta distensão no tradicionalmente concen- cimento de longo prazo, com previsão de
trado e excludente crescimento brasileiro. investimentos, estatais ou privados, in-
O merca­do interno mostrou-se, em 2009, centivos fiscais e crédito através de órgãos
como válvula de escape ao pífio desempe- oficiais, como Banco Nacional de Desen-
nho do setor exportador, pressionado pe- volvimento Econômico e Social (BNDES),

5
“O Programa Bolsa Família de 17 de setembro de 2004.” 7
Ministério da Fazenda 9
De acordo com a Fundação
(PBF) é um programa de (http://www.mds.gov.br/ (2011, p. 40). Getúlio Vargas, a classe “C”
transferência direta de renda bolsafamilia/o_programa_ 8
Ver: “Panorama da brasileira, que, em 2003,
com condicionalidades, que bolsa_familia/o-que-e, acesso Economia Brasileira – representava 37% do total
beneficia famílias em situação em março de 2010). superando a crise”, em 15 da população, passou a
de pobreza (com renda mensal 6
Ver: http://www.mds.gov. agosto de 2009. Apresentação representar 64% da população
por pessoa de R$ 70 a R$ br/bolsafamilia/o_programa_ do Ministro da Fazenda, em 2008 (Ministério da
140) e extrema pobreza (com bolsa_familia/principais- Guido Mantega (http://www. Fazenda, 2010). Para uma
renda mensal por pessoa de resultados (acesso em março fazenda.gov.br/portugues/ análise político-sociológica
até R$ 70), de acordo com a de 2010). docs/perspectiva-economia- sobre esses novos segmentos,
Lei 10.836, de 09 de janeiro brasileira/link.htm, acesso em veja: Singer (2010).
de 2004 e o Decreto nº 5.209, março de 2010).

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Caixa Econômica Federal e Banco do Bra- nas conjunturas anteriormente mencio-


sil. Os bancos brasileiros passaram relati- nadas das décadas de 1930 e 1970; a reto-
vamente incólumes pela atual crise, as- mada, mesmo que gradual, de um ciclo de
sim como grandes empresas, a exemplo de crescimento econômico e a incorporação de
Petrobras, Vale do Rio do Doce, Gerdau, novos segmentos da população ao mercado
Embraer, dentre outras. Todos esses fatores consumidor, induzidas em parte pela polí-
somados criam um clima favorável, o qual tica governamental e em parte pelo contex-
se associa a eventos simbólicos na área ex- to internacional, já se manifestavam ante-
terna, com o crescimento dos investimen- riormente como tendência. O exercício de
tos das empresas brasileiras no exterior (de partir de dados da conjuntura para de-
cerca de US$ 1 bilhão anuais nos últimos linear cenários sempre se mostra desa-
anos da década de 1990 para em torno de fiador ao economista, ainda mais quan-
US$ 25 bilhões em 2006-2008) e a presença do associado a uma reflexão histórica em
maior do país em acontecimentos midiáti- busca de encontrar elementos de ruptu-
cos (Conferência do Clima em Copenha- ra e/ou continuidade a marcos estrutu-
ge, tropas no Haiti, conquista de sede das rais institucionalmente arraigados. Por
Olimpíadas e da Copa do Mundo). isso, fazem-se necessárias algumas consi-
Os autores que interpretam o go- derações sobre o significado histórico do
verno Lula como uma retomada, mesmo desenvolvimentismo brasileiro, a fim de
em nova forma, do desenvolvimentismo, que a discussão sobre a conjuntura atual
tendem a argumentar, implícita ou expli- não se esgote em si mesma e possa sugerir
citamente, que este pode, via de regra, ser caminhos para uma reflexão sobre possí-
entendido como fenômeno embedded na veis trajetórias de longo prazo.
formação social brasileira, com raízes his- Não há dúvida de que o desenvol-
tóricas profundas, de modo que o inter- vimentismo latino-americano como obje­
regno das duas últimas décadas do sécu- to de investigação é tema complexo10.
lo XX pode ser visto como a interrupção Trata-se de conceito muitas vezes escor-
temporária de uma tendência que, me- regadio, pois abarca situações históricas
diante certas condições permissivas, aflo- distintas e multifacetadas. Mesmo em se
ra novamente. Essas interpretações con- restringindo ao caso brasileiro, serviria
vergem para a hipótese aqui defendida para designar governos de espectros polí-
segundo a qual não foi apenas a crise que ticos tão diferenciados como o de Vargas
ensejou condições para a mudança, como na década de 1930 e o do general Geisel 10
Ver Bresser-Pereira (2011b).

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nos anos 1970, como se mostrou anterior- busca de uma trajetória previamente de-
mente, sem contar a postura mais inter- finida. Sua gestação histórica foi relativa-
nacionalizante e com predisposição para mente lenta; no caso brasileiro, remonta
associação com o capital estrangeiro de ao final do Império e gradualmente anga-
Juscelino Kubitschek, em contraste com riou adeptos e só veio a se constituir em
o reformismo trabalhista de João Goulart. prática efetiva nacionalmente a partir de
Todavia, como abstração, o conceito pro- 1930, embora haja experiências regionais
põe-se captar um padrão de comporta- anteriores, como João Pinheiro em Minas
mento detectável na condução da ação Gerais (Paula, 2004) e, talvez a mais visí-
estatal tanto no sentido lato (com âmbito vel, com o governo Getúlio Vargas no Rio
de abrangência em diversas esferas: tec- Grande do Sul, em 1928 (Fonseca, 2004).
nológica, educacional, cultural, políticas A possibilidade de o conceito abarcar múl-
públicas, dentre outras) e como na for- tiplas situações históricas concretas – fato
mulação da política econômica em sen- não inusitado, antes corriqueiro na Eco-
tido mais restrito, o qual permite ante- nomia e demais ciências sociais – não
ver um projeto de longo prazo centrado na prejudica que se detecte nas diferentes
industrialização e na modernização do se- experiências um “núcleo duro” comum,
tor primário, implementado com auxílio capaz de caracterizar o desenvolvimen-
de medidas governamentais voltadas a in- tismo em suas várias manifestações. Este
centivar a substituição de importações e a abrange a defesa: (a) da industrialização;
diversificação da produção primária, com (b) do intervencionismo pró-crescimen-
prioridade ao mercado interno. to; e (c) do nacionalismo, embora este
Destarte, mesmo tendo-se presente deva ser entendido num sentido muito
a observação acima, por desenvolvimentis- amplo, que vai desde a simples retórica
mo designa-se um conjunto de idéias e de ufanista conservadora até propostas radi­
práticas efetivas dos governantes o qual su- cais de rompimento unilateral com o ca-
gere estar permeado por uma lógica que pital estrangeiro (Fonseca: 1989, 2004). Na
se expressa como um projeto de nação. A literatura, na busca de uma maior especi-
política econômica governamental não é ficidade e precisão analítica, é comum a
errática nem apenas reativa aos ciclos ou referência ao “Nacional-Desenvolvimen-
às flutuações inerentes à conjuntura, mas tismo” para designar o projeto varguis-
formulada em consonância a uma pre- ta, mais nacionalista e com proposta de
tensão de interferência em seu curso, em incorporação dos trabalhadores urbanos

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412 O Brasil na Era Lula: retorno ao desenvolvimentismo?

pela legislação trabalhista e previdenciá- ria espontaneamente ou, per si, como re-
ria, e o “Desenvolvi­mentismo-Associado” sultado de mecanismos automáticos de
ou “internacionalizante” iniciado por Ku- mercado; exigiriam ações indutoras, por-
bitschek e cuja consolidação teria ocorri- tanto fruto de decisões políticas. Esta po-
do com os governos militares após 1964. litização da economia, em substituição
Todavia, em quaisquer de seus matizes, o aos mecanismos normais de mercado,
desenvolvimentismo só pode ter sentido mas sem necessariamente chocar-se com
se há a percepção, por parte dos agentes ele ou propor extingui-lo – posto que se
econômicos e dos atores sociais e políti- trata de desenvolvimento capitalista –
cos, da existência do subdesenvolvimento. afasta o desenvolvimentismo do libera-
Trata-se, portanto, não de fenômeno so- lismo em todos seus matizes, inclusive
mente adstrito ao campo das ideias, mas do neoliberalismo (a lembrar a oportuna
com contornos de um programa de ação observação de Michel Foucault, para
para reverter determinado status quo con- quem este, menos que suprimir o Estado,
siderado não desejável; no caso, o atraso revela-se como uma prática governamen-
ou subdesenvolvimento, com todas as de- tal voltada a impor a regulação do mer-
corrências que podem ser a eles associa- cado como princípio regulador da socie-
das: baixa produtividade, desperdício de dade). Na justificação de si mesmo, como
recursos, miséria, disparidades regionais e toda boa ideologia, o desenvolvimento
dependência externa. torna-se variável necessária – e, em ver-
Entendido dessa forma, quer-nos sões mais radicais, suficiente – para se
parecer que não haveria impedimento a atingir a um fim almejável. No limite, es-
priori para que o ideário desenvolvimentis- te se constituiria na razão de ser do pró-
ta voltasse à cena, uma vez que as próprias prio governo, a qual aponta para uma
condições históricas que lhe originaram utopia a ser construída e permeada de va-
não foram superadas. Sua viabilidade, to- lores de forte apelo, como igualdade, ra-
davia, mesmo com as necessárias confor- cionalidade, justiça social e soberania.
mações a uma nova realidade, a qual lhe Na ideologia desenvolvimentista, o de-
poderia sugerir uma nova forma, não pres­ senvolvimento justifica-se a si mesmo.
cinde da exigência de que haja consciên- Assim, sem a presença de inten-
cia e disposição por parte das elites diri- ção deliberada de políticas voltadas a um
gentes de implementar um conjunto de fim explícito e de um pacto político ca-
mudanças. Este, por suposto, não brota- paz de lhe dar sustentação, dificilmente

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se pode falar em desenvolvimentismo11. sindicalistas adeptos de conquistas sala-


Para sua consecução, exige-se a existência riais e direitos, sem contar os defensores
de classes, segmentos ou setores sociais de um marxismo mecânico que viam no
com disposição e capacidade para articu- desenvolvimento das forças produtivas e
lar um pacto de longo prazo em torno no planejamento uma forma de abreviar
de um programa mínimo quanto a fins, o caminho rumo ao socialismo.
embora possa haver dissensão quanto a Destarte, o retorno do desenvolvi-
meios e a velocidade de implementação mentismo, por sua complexidade como
das políticas. É visível, no caso brasilei- fenômeno histórico, apesar de não des-
ro do século XX, que o ideário desenvol- cartável como possibilidade, exige algu-
vimentista expressava um consenso sem mas qualificações. Mas antes faz-se mis-
eliminar pontos de conflito (v. g., distri- ter o retorno à conjuntura para investigar
buição de renda, reforma agrária, articu- mais de perto a primeira questão inicial-
lação com o capital estrangeiro). Todavia, mente formulada, sobre as condições per-
a crença no desenvolvimento como alter- missivas à manutenção da tendência de
nativa para o país abarcava desde setores crescimento nos últimos anos e aos pro-
empresariais favorecidos pelos incentivos váveis percalços que poderão antepor-se
diretos e indiretos do Estado e ideólogos como seus fatores limitantes num futu-
conservadores que viam no crescimento ro próximo.
um amortecedor dos conflitos sociais até

11
As mudanças ocorridas no como “desenvolvimentismo o aprofundamento da crise à demanda agregada, as
governo Lula e as dificuldades acidental”, assinalando que, evidencia preocupação com o quais são aceitas pelo saber
de se afirmar claramente com a crise de 2008 e o crescimento, mas sempre resta econômico convencional
a existência de um projeto recuo dos bancos privados a indagação se cabe interpretá- e implantadas mesmo por
desenvolvimentista são objeto na concessão de crédito la como vinculada a um governos conservadores.
de debate hoje não só no meio imobiliário e à indústria, o projeto desenvolvimentista,
acadêmico e empresarial, mas bancos estatais chegaram posto que política anticíclica,
também na mídia e, com a responder por 80% do ou seja, resposta a uma
isso, aparecem expressões aumento de estoque de conjuntura adversa. Por isso,
para designar didaticamente crédito; no final de 2011, os a rigor, “desenvolvimentismo
o fenômeno. Por exemplo, bancos públicos perfaziam acidental” é uma contradição
Freire (2011, B4) refere-se à 43,5% dos empréstimos. em termos, pois confunde
“virada ‘neodesenvolvimentista’ Claro que essa atitude ágil do projeto de longo prazo com
de Lula” e o qualifica governo brasileiro de impedir medidas tópicas de fomento

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414 O Brasil na Era Lula: retorno ao desenvolvimentismo?

3_O desempenho recente da Nos anos 1970, enquanto o mun-


economia brasileira em uma do enfrentava os ajustes recessivos gera-
perspectiva de longo prazo dos pelos choques externos das crises do
Em uma perspectiva de mais longo pra- petróleo e da flexibilização dos regimes
zo12, uma análise da economia política do cambiais, o Brasil acelerava sua estratégia
desenvolvimento brasileiro pode partir da desenvolvimentista, com base em finan-
constatação de que, no século XX, o Bra- ciamento externo propiciado pelo ciclo
sil foi um exemplo típico da experiência la- de liquidez da reciclagem dos petrodó-
tino-americana de modernização, marca- lares. Com a crise da dívida externa, e a
da pela presença de avanços econômicos, fragilização financeira do setor público,
embora incapazes de equacionar de for- a inflação passou da já elevada média de
ma satisfatória o problema da desigualda- 30% ao ano nas décadas anteriores para
de na distribuição da renda, riqueza e po- níveis superiores a 2.000% ao ano, a par-
der. Entre o final dos anos 1940 e o início tir da segunda metade dos anos 198014.
da década de 1980, o país transformou ra- Desde então a economia experimentou
dicalmente sua estrutura produtiva e so- diversos ciclos curtos e instáveis de cres-
cial. O processo de industrialização redun- cimento, de modo que entre 1981 e 2003,
dou no fato de que o Brasil chegou a ser a renda per capita expandiu-se a uma ta-
a oitava economia do mundo em termos xa média de 0,23% a.a., ou seja, cerca
do tamanho da renda e um dos dez maio-
res parques industriais (Palma 2007, 2011).
12
Sobre o desempenho da base em: www.ipeadata.gov.br,
Em paralelo, experi­mentou-se uma inten-
economia brasileira em uma último acesso em 18/05/2012.
sa urbanização e integração de um territó- perspectiva comparada ver, 14
A inflação média do período
rio continental de 8,5 milhões de quilôme- dentre outros, Barro e Sala-i- 1945-1979 foi de 29,52%,
tros quadrados. A renda cresceu 7,3% ao Martin (2003), Goldman Sachs com a mediana de 24,51%.
(2007) e Maddison (2007). Incluindo-se o ano de 1980,
ano ou 4,5%13 ao ano em termos per capita. 13
A média da variação do PIB tal média chega a 31%. Nos
Todavia, tal crescimento foi alicerçado em
per capita calculado a partir anos de 1989 e 1993 a inflação
um padrão de financiamento fortemente da série a preços constantes acumulada ultrapassou os
dependente da utilização de fundos públi- (R$ 2011) para o período 1947- 2000%. Cálculos próprios com
cos e recursos externos. Além da fragilida- 1980 é de 4,45%. A variação base nos dados do IPEADATA .
do PIB a preços constantes de Série utilizada: IGP-DI - geral
de financeira, o desenvolvimento brasileiro 2011, no mesmo período, é de - centrado - fim período. Ver:
revelou-se incompleto, porque incapaz de 7,34%. Cálculos próprios com www.ipeadata.gov.br, último
gerar uma maior homogeneização social. acesso em 18/05/2012.

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Pedro Cezar Dutra Fonseca_André Moreira Cunha_Julimar da Silva Bichara 415

de 1/20 do ritmo verificado entre 1947 e Paulo, é possível verificar a tendência de


1980, que fora de 4,45% a.a.15. Ao longo queda da renda nos anos 1990. Isto ocor-
dos anos 1980 e 1990, foram implemen- reu a despeito das evidências de que a dé-
tadas diversas tentativas de estabilização cada de 1990 trouxe um incremento não
econômica. Para enfrentar a inércia in- desprezível da produtividade (Goldman
flacionária, típica de economias altamen- Sachs, 2007).
te indexadas16, os “choques econômicos” É importante lembrar que há mais
vinham acompanhados da introdução de de uma década o debate sobre os rumos
elementos não convencionais, como o da economia brasileira, em geral, e sobre a
congelamento de preços, salários e ati- política econômica, em particular, tem se
vos financeiros, a desindexação total ou concentrado na dificuldade de o país reto-
parcial da economia e as reformas mone- mar o crescimento de forma sustentável.
tárias. Em cada tentativa fracassada, am- Se, por um lado, o Plano Real foi capaz
pliava-se a instabilidade econômica e ins- de debelar um processo crônico de des-
titucional, colocava sob tensão os ganhos controle inflacionário, por outro, a ado-
políticos da redemocratização (Belluzzo ção da âncora cambial e a política de juros
e Almeida, 2002, Carneiro, 2002, Giam- elevados geraram o acúmulo de sensíveis
biagi et al., 2004). desequilíbrios de estoques nos fronts ex-
As políticas monetária e fiscal con- terno (Ministério da Fazenda, 2011) e fis-
tracionistas, motivadas pelos ditames da cal. A gestão destes em um contexto de
estabilização, especialmente em um am- reversão no quadro de liquidez financei-
biente marcado por uma série de choques ra internacional, que fora um dos pressu-
externos adversos – as crises financeiras postos para a estratégia de estabilização
na segundametade da década – contribu- e “crescimento com poupança externa”,
íram para a constituição de ciclos curtos marcou a segunda fase do Real – após a
de crescimento (Williamson, 2002, Gol- desvalorização cambial do início de 1999.
dstein, 2003). Com o Plano Real verificou- Da mesma forma, a tutela do FMI e a im-
-se, inicialmente, um ganho real de renda plantação de um novo regime de políti-
dos trabalhadores assalariados das regiões cas fiscal, monetária e cambial foram de-
15
Cálculos próprios com base
metropolitanas que, todavia, foi perdido finindo os marcos da política econômica
em: www.ipeadata.gov.br, entre 1998 e 2002. Em uma perspectiva perseguida desde então.
último acesso em 18/05/2012. mais longa, e considerando o rendimen- A euforia da estabilização com al-
16
Ver Arida & Resende (1985). to real dos assalariados da Grande São gum crescimento dos primeiros anos, que

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416 O Brasil na Era Lula: retorno ao desenvolvimentismo?

garantiu a base para a reeleição do presi- tezas associadas ao processo eleitoral fize-
dente Fernando Henrique Cardoso, foi ram com que a taxa de câmbio disparas-
dando lugar à estagnação econômica, à se, com uma desvalorização nominal de
deterioração do mercado de trabalho e ao 60% entre janeiro e outubro de 2002. O
aprofundamento dos passivos fiscal e ex- pass-trough cambial operou de forma rá-
terno. É nesse contexto sócio-econômi­co pida, e tanto a inflação anualizada quan-
que ocorreu a eleição do presidente Lu- to as expectativas de inflação futura sina-
ís Inácio Lula da Silva. Tendo de admi- lizavam uma trajetória explosiva. Havia
nistrar uma profunda crise, potencializa- um temor generalizado na volta da inde-
da pelas incertezas da transição política, xação e no descontrole macroeconômico
o novo governo optou, inicialmente, por (Williamson, 2002, Goldstein, 2003, OE-
manter as diretrizes de política econômi- CD, 2009, IPEA, 2009a).
ca herdadas do período anterior. Qualquer novo governo que assu-
A análise dos parágrafos anteriores misse em tais condições muito provavel-
sugere que a combinação da estabilização mente teria como prioridade, ao menos
monetária com reformas estruturais libe- no curto prazo, o retorno à “normalida-
ralizantes logrou êxito no enfrentamen- de”, mesmo que isso implicasse na ado-
to do quadro de inflação crônica do país ção de medidas fiscais e monetárias forte-
e, em certa medida, na modernização da mente contracionistas. No caso concreto
estrutura produtiva. Todavia, às vésperas do Brasil, o governo recém eleito conta­
das eleições de 2002, o Brasil havia acu- va com uma significativa desconfiança
mulado significativos desajustes nos seus do mercado financeiro internacional. A
estoques de dívida pública e externa. A campanha eleitoral havia acirrado os âni-
dívida líquida do setor público já estava mos políticos. Isto levou o então candi-
acima de 50%17 do PIB, tinha seu prazo de dato de oposição a uma intensa busca de
maturação encurtado cada vez mais (com apoio junto ao setor privado. Símbolo
um giro médio inferior a três anos), apre- disso foi a elaboração, na reta final da 17
As informações estatísticas
sentava um custo de carregamento de cer- campanha, da “Carta ao Povo Brasileiro”, primárias deste e dos
ca de 8% do PIB (juros nominais sobre a uma afirmação de compromissos com a parágrafos subsequente são
dívida) e terminou o ano de 2002 com manutenção da estabilidade econômica provenientes de OECD (2009),
Ministério da Fazenda
um perfil de indexação em que os títulos e o respeito aos contratos. Observado- (2010 e 2011) e IPEADATA
atrelados à variação cambial respondiam res contemporâneos passaram a observar (www.ipeadata.gov.br, último
por 1/3 da dívida total. Ademais, as incer- que a chegada ao poder do principal líder acesso em 15/05/2012).

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Pedro Cezar Dutra Fonseca_André Moreira Cunha_Julimar da Silva Bichara 417

da “esquerda” brasileira nas últimas três o primeiro governo Lula logrou reverter
décadas e, mais importante, da manuten- as expectativas pessimistas, particular-
ção de um conjunto amplo de políticas e mente dos operadores dos mercados fi-
de contratos, representou a consolidação nanceiros, com impactos positivos sobre
da transição democrática pós-regime mi- a trajetória da inflação e o gerenciamen-
litar. No plano econômico, tal continui- to da dívida pública. Todavia, manteve-
dade significou uma (terceira) etapa do -se o quadro de crescimento inferior ao
processo de estabilização iniciado com o verificado na média mundial. A partir de
Plano Real. 2003, a conjuntura externa excepcional-
É no contexto de uma transição mente favorável contribuiu decisivamen-
complexa e em meio às pressões financei- te para a correção dos desequilíbrios ex-
ras geradas pela desconfiança dos credo- ternos e fiscais.
res é que se deve analisar as opções e es- Os resultados em conta corrente
tratégias de “continuidade” a despeito das passaram a ser superavitários (Ministério
críticas prévias contra as políticas econô- da Fazenda, 2010 e 2011), comandados por
micas do governo Cardoso. A montagem recordes sucessivos na balança comercial –
da equipe econômica do governo Lula e de um déficit médio de US$ 1,1 bilhão en-
o anúncio das primeiras medidas revela- tre 1995 e 2002, passou-se a um superávit
ram o esforço de manutenção do status acima de US$ 30 bilhões por ano, na “Era
quo. No plano econômico, o enfrenta- Lula” 18. A relação dívida líquida do setor
mento da “crise de credibilidade” deu- público/PIB recuou19, tendo o perfil de fi-
-se pelo aperto na política monetária e nanciamento melhorado, pela menor ex-
fiscal. Com seu conservadorismo inicial, posição à variação cambial e aos títulos

18
Para se colocar em 198 bilhões e US$ 161 bilhões. média, 15,6% a.a.. Todavia, PIB. Com a crise financeira
perspectiva, em 1990 o Brasil Assim, a corrente de comércio as exportações cresceram de as projeções de mercado
exportou US$31 bilhões e saltou de US$ 52 bilhões forma ainda mais intensa: são de uma ampliação neste
importou US$ 21 bilhões. Em para US$ 359 bilhões. Neste 16% a.a. indicador para o período
1995, tais montantes eram movimento, nos anos FHC 19
Em 2002 este indicador era 2009-2001, para algo em torno
de, respectivamente, US$ 47 as importações cresceram, de 51,3%, chegando a 53,5% de 40% do PIB. Depois de
bilhões e US$ 50 bilhões Em em média, 6,2% a.a., contra em 2003. Depois de 2004 2012 haveria novo recuo (IPEA,
2002 , de, respectivamente, os 4,4% de crescimento das verificou-se uma tendência 2009, IMF, 2009a, e Relatório
US$ 60 bilhões e US$ 47 exportações. Na era Lula, as de queda, de modo que, em de Mercado Focus, em
bilhões. E, em 2008, de US$ importações avançaram, em 2008 a DSLP era de 38,8% do 06/11/2009 – www.bcb.gov.br).

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418 O Brasil na Era Lula: retorno ao desenvolvimentismo?

pós-fixados e referidos à variação cambial, trimestral, passou a apresentar o melhor


além do alongamento de prazos. Houve desempenho em mais de duas décadas. O
forte queda no risco-país, e os indicado- crescimento econômico, com geração lí-
res de solvência externa – que relacionam quida positiva de postos de trabalhos for-
os passivos contraídos e as exportações – mais – e que, por isso mesmo, contribuem
e liquidez externa – passivos externos ver- com o financiamento previdenciário – fez
sus reservas internacionais – melhoraram com que, depois de muitos anos, o défi-
de forma substantiva. A inflação recuou cit previdenciário se estabilizasse20. A dívi-
para a casa de 4% ao ano – menos da me- da pública (líquida e como proporção do
tade da média do período 1995-2002 – e PIB) recuou de 53,5% em 2003, para 38,8%
o crescimento da renda atingiu o patamar em 2008, com resultados correntes cada
médio de 4% a.a. (média 2003-2008). vez melhores, dado que o déficit nominal,
A recuperação de um maior dina- que inclui o pagamento de juros, passou
mismo em termos de crescimento se deu de 6,9% do PIB, em 1997, para 1 % do PIB,
a partir da exportação, beneficiada pelo em 2008 (Banco Central do Brasil, 2008 e
crescimento da economia mundial e pe- 2009b, IPEA, 2009a).
la taxa de câmbio mais competitiva de- Às vésperas do agravamento da
pois da mudança no regime cambial, em crise financeira global, no último trimes-
1999. Entre 2001 e 2003, a demanda exter- tre de 2008, o Brasil já deixava para trás
na apresentou uma contribuição positiva a impressão de ser um BRIC de segun-
e superior à demanda doméstica, ao passo da linha, e apontava para um crescimen-
que, depois de 2004, a expansão do gasto to que poderia ter chegado a 6% ao ano,
doméstico passou a liderar o crescimento. não fosse a perda de dinamismo dos úl-
No ciclo virtuoso que então se inaugu- timos três meses do ano (Banco Central
rou, verificou-se uma sensível recuperação do Brasil, 2009b). Ainda assim, ao longo
do emprego, da massa real de rendimen-
tos do trabalho e do crédito (OECD, 2009, PIB. O orçamento de 2010
20
Em 2000, o déficit da
IPEA 2009a e 2009b, e Ministério da Fazen- Previdência Social era de projeta um déficit de 1,17%.
da, 2010 e 2011). Com isso, o consumo das 0,85% do PIB, subindo a mais É importante notar que, entre
famílias passou a se expandir em um pata- de 1,7% do PIB no triênio 2000 e 2009, mais do que
2005-2007. Contudo, em triplicaram, de cerca de R$ 50
mar sensivelmente superior ao verificado 2008, ele recuou para 1,25% bilhões para um pouco mais
nos anos anteriores. A formação bruta de do PIB e, em 2009, a despeito de R$ 150 bilhões (Ministério
capital, quando se considera o indicador da crise, chegou a 1,36% do da Fazenda, 2010).

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Pedro Cezar Dutra Fonseca_André Moreira Cunha_Julimar da Silva Bichara 419

do ano de 2009, o dinamismo do merca- analistas mais otimistas sobre as perspec-


do interno e os efeitos positivos das po- tivas do país (IPEA, 2009a, OECD, 2009).
líticas contra-cíclicas – expansão do cré- Uma evidência neste sentido está no fato
dito, em um contexto de taxas de juros de que, em meio a uma crise econômica
em trajetória de queda21, e diversos es- que tem sido apontada como a mais gra-
tímulos fiscais – garantiram uma rever- ve desde 1929, as principais agências de ra-
são do quadro de deterioração do nível ting elevaram o status do Brasil para grau
de atividades e do mercado de trabalho de investimento (investment grade). Tal fa-
que se seguiu ao ápice da crise, em se- to vai ao encontro das análises de órgãos
tembro de 2008 (Banco Central do Bra- multilaterais, analistas de mercado e aca-
sil, 2009b). No ano de 2009, verificou-se dêmicos, que revelam a resiliência da eco-
uma pequena contração do PIB, seguido nomia diante dos impactos da crise finan-
de forte recuperação em 2010 e a perspec- ceira global (IMF, 2009b, Unctad, 2009).
tiva de um retorno a taxas mais modes- Neste sentido, a aposta dos eco-
tas, a partir de 2011. A inflação, por sua nomistas do Departamento de Pesquisa
vez, tem se situado dentro dos limites fi- do banco Goldman Sachs22, que inclu-
xados pelo Sistema de Metas (Ministério íram o Brasil no rol das principais eco-
da Fazenda, 2011). nomias emergentes no século XXI, junto
Portanto, ao final da primeira dé- com China, Índia e Rússia, consagrando
cada do século XXI, a economia brasileira o acrônimo “BRIC”, parece estar se con-
revela sinais de amadurecimento e vitali- cretizando. Após a sugestão do Goldman
dade que estão surpreendendo mesmo os Sachs, vários analistas23 se mostraram cé-

21
Em outubro de 2009, a acesso em novembro de 2009). a configuração da economia um importante dinamismo
taxa real de juros era de 5,4%. 22
No começo dos anos mundial. Desde então, a econômico no conjunto dos
Na média 2006-2009 ela foi 2000, economistas do atenção de acadêmicos, países periféricos, sinalizavam
de 7,4%; entre 2004 e 2005, Departamento de Pesquisa analistas de mercado e para uma nova conformação
era de 11,5%; entre 2000 e do banco Goldman Sachs tomadores de decisão nas do fenômeno da globalização,
2003, 14,9%; e, entre 1996 e introduziram no jargão esferas oficial e privada tem com o aumento do poder
1999, 18,4% (“O Brasil Saindo financeiro o acrônimo BRICs se concentrado, cada vez mais, relativo da periferia (Goldman
da Crise”, apresentação do (de Brasil, Rússia, Índia e nas potências emergentes Sachs, 2007, National
Diretor do Banco Central China) para designar quatro do século XXI. Mais do que Intelligence Council, 2005 e
do Brasil, Mário Torós, em países cujo potencial de uma promessa, a ascensão 2008, Maddison, 2007).
outubro de 2009 - http://www. crescimento ao longo do dos BRICs, dos “Next 23
Ver Arestis e De
bcb.gov.br/?APRESPRONUNC , século XXI tenderia a alterar Eleven”, e a recuperação de Paula (2008).

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420 O Brasil na Era Lula: retorno ao desenvolvimentismo?

ticos com a inclusão do Brasil nesta ca- ta”, ambas com “núcleos duros analíticos
tegoria de potência econômica em ascen- distintos (...), portanto, ontologicamen-
são. Até porque havia dúvidas justificáveis te conflitivas” (p. 53). Todavia, a despei-
sobre a capacidade de o país deixar para to dos sinais da conjuntura, vários auto-
trás quase três décadas de semi-estagna- res apontam para as dificuldades de uma
ção e não seria a primeira vez que se frus- retomada mais consistente e robusta sem
traria a promessa de superação do subde- que o país enfrente alguns problemas crô-
senvolvimento e, assim, de alinhamento nicos, como a crise da previdência, a alta
com os parâmetros de desenvolvimento carga tributária e o assistencialismo, por
econômico e social dos países avançados. exemplo. Esses se aguçaram após o fim do
Esta caracterização do desempe- regime militar, com a universalização de
nho recente da economia brasileira à luz políticas públicas consagrado pela Cons-
da perspectiva histórica precisa ser con- tituição de 1988, implementada na déca-
frontada com as distintas interpretações da de 1990 e ampliada pelo governo Lu-
dos analistas. Isto é retomado na próxima la. Autores como Pinheiro e Giambiagi
seção, mantendo-se o eixo de contribui- (2006) ilustram este ponto de vista. Em
ção do presente artigo que é o de tentar sua interpretação, os programas volta-
identificar se há elementos na experiência dos à redistribuição de renda, ao invés de
contemporânea que façam eco ao desen- colaborarem para o crescimento, o difi-
volvimentismo pretérito. cultam: “o modelo de aumento simultâ-
neo do gasto público e da carga tributá-
ria que caracterizou a economia brasileira
4_Considerações finais: em 1991-2005 (...) reduz a eficiência e o
retorno ao desenvolvimentismo? potencial de crescimento” (p. XV). O pa-
Não há dúvidas de que hoje há sinais mais ís – a exemplo de outros da América La-
nítidos de crescimento da economia bra- tina – apresentaria propensão histórica ao
sileira em comparação com alguns anos populismo e ao assistencialismo; todavia,
atrás. Isto levou autores como Erber este não colabora para melhorar a distri-
(2011) assinalarem que no governo Lula buição de renda – ao contrário, é empo-
coexistem duas “convenções’ ou visões de brecedor (p.60). Para tanto, apoiam-se
mundo, uma “institucionalista restrita”, em autores como Ricardo Paes e Barros,
de caráter mais ortodoxo, e outra deno- autor de parábola segundo a qual “se um
minada por ele de “neodesenvolvimentis- helicóptero jogasse dinheiro do céu, o ato

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Pedro Cezar Dutra Fonseca_André Moreira Cunha_Julimar da Silva Bichara 421

poderia ter mais eficácia para diminuir a como é razoável supor à luz de diferen-
pobreza do que muitos gastos ditos so- tes modelos teóricos e experiências his-
ciais que o país faz” (p.77), e Adelman tóricas –, daí não se segue que per si con-
(2000), para quem transferências compen- siga explicar o desempenho mais recente
satórias são uma alternativa cara e pou- e o cenário positivo delineado por vários
co eficazes para encaminhar uma solução analistas para o Brasil para os próximos
duradoura às desigualdades sociais. anos, principalmente sua posição relativa
Para esses autores, que exemplifi- no contexto internacional a partir da cri-
cam uma parcela importante do pensa- se de setembro de 2008, bastante confor-
mento contemporâneo sobre este conjun- tável em comparação com outros países.
to de temas, o principal fator explicativo No caso, tudo sugere que as medidas “as-
do crescimento no período mais recente sistencialistas” não têm sido inócuas, pois
é a estabilidade econômica, ou seja, o fa- vêm apresentando impacto não desprezí-
to de o governo Lula, a despeito do assis- vel na redução da pobreza e na alteração
tencialismo, ter mantido as linhas gerais da distribuição de renda, como se mos-
da política econômica de matiz ortodo- trou anteriormente; e estas, ao contrário
xo do governo F. H. Cardoso (metas de de barrar o crescimento, têm-se mostrado
inflação, altas taxas de juros, câmbio va- como fator propulsor. Nessa direção tam-
lorizado, superávit primário). Este argu- bém argumenta Soares (2010), para quem
mento, não obstante, deve ser visto com a queda gradual e consistente do coefi-
precaução, à luz dos dados mais recentes, ciente de Gini entre 1995 e 2006 se deve a
principalmente relativos à demanda in- uma série de políticas de transferências e
terna. De um lado, não há o que questio- também de aumento do salário mínimo,
nar quanto à dificuldade de compatibili- revertendo uma tendência histórica que,
zar crescimento econômico e retomada se mantida por mais tempo e incremen-
de investimentos, públicos e privados, de tada por outras medidas, como tributá-
um lado, e a permanência do descontrole rias, de diminuição das desigualdades ra-
inflacionário presente na economia bra- ciais, regionais e educacionais, poderiam
sileira na década de 1980 e controlado a levar o país a um patamar semelhante a
partir do Plano Real. Todavia, se a insta- alguns países hoje considerados como de
bilidade macroeconômica apresenta cor- ótimo padrão de distribuição.
relação negativa com crescimento – con- Em vista disso, é bastante discutí-
figurando-se como um fator impeditivo, vel associar a conjuntura da última déca-

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422 O Brasil na Era Lula: retorno ao desenvolvimentismo?

da no Brasil a ciclo econômico populista, go os gargalos e desequilíbrios começam


pelo menos à luz dos modelos de diversos a aparecer: déficit público, desequilíbrio
autores que se debruçaram sobre o tema, no balanço de pagamentos, mais inflação
mesmo afinados com o mainstream. Nes- – a exigir um ajuste ainda mais drástico
te sentido, vale lembrar a definição mais do que o inicial, “cujos custos suscitam a
difundida e pela ortodoxia de populismo questão sobre se não será pior a cura do
econômico, a de Dornbusch e Edwards que a própria doença” (Díaz-Alejandro
(1989, p. 9). Para estes, (1981, p. 75).
Nossa análise da “Era Lula” suge-
“a policy perspective on economic ma-
nagement that emphasizes economic
re que, não obstante o carisma de seu ti-
growth and income redistribution and tular e de alguns arroubos midiáticos, seu
deemphasizes the risks of inflation and governo afasta-se completamente do hard
deficit finance, external constraints core da definição de populismo daqueles
and the reaction of economic agents to autores24. Todos estes registram como fase
aggressive nonmarket policies”. inicial de seus modelos medidas expansio-
nistas, muitas vezes drásticas, acompanha-
Outros autores, como Diaz-Alejandro (1981), das de rejeição a políticas de estabilização.
Sachs (1989), e Bresser-Pereira (1991, 2006), Pode-se claramente concluir que é nesta
embora sob diferentes approaches, recor- primeira fase que o populismo econômico se
rem a argumentos semelhantes: a partir revela, na convicção do governo de que
da concepção de uma curva de Philips pode enfrentar a situação com a referi-
negativamente inclinada de curto prazo,
sustenta-se que os governos populistas 24
Esta análise se restringe americanos. Convém assinalar
ignoram as restrições macroeconômicas, ao conceito de “populismo que esses autores, nos mesmos
como o combate à inflação e ao déficit econômico”, a partir da trabalhos supracitados,
público, e optam pelo crescimento ace- própria definição dos autores embora estabeleçam
aqui abordados, com o uma relação teórica entre
lerado a curto prazo, normalmente ali- propósito de com eles poder populismo econômico e
mentado por políticas ativas de susten- dialogar. Foge ao escopo político, normalmente
tação da demanda agregada, aumento de deste trabalho a discussão defendem que, na prática, a
salários, redução de carga fiscal e juros em torno de populismo relação entre ambos não é
político, também presente na necessária, de maneira que
baixos. Daí um ciclo, pois num primeiro controvérsia sobre a mesma em uma experiência histórica
momento a economia cresce e o governo conjuntura, tanto no Brasil particular possam estar
se torna popular, mas o brilho é fugaz: lo- como em outros países latino- dissociados.

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da “virada” pró-crescimento acelerado e pulista” descrito pelos modelos. Assim, as


acompanhado de distribuição de renda, políticas antes denominadas “assistencia-
ao invés de optar por políticas restritivas. listas”, a despeito do ganho político que
Em síntese: populismo econômico, para venham a representar, também se afas-
todos os autores, é sobretudo um padrão tam do paradigma populista antes men-
de comportamento, muitas vezes cultural- cionado, pois vêm se mostrando relati-
mente arraigado - ou “embedded”, como vamente consistentes no tempo. Não se
na tradição institucionalista – o qual, sob pode esquecer que uma das característi-
determinadas condições políticas per- cas marcantes, exploradas pelos autores
missivas, manifesta-se na formulação da antes mencionados, refere-se justamente
política econômica. Como é por demais à ineficácia do “assistencialismo”, ou se-
sabido, o governo Lula, em seus primei- ja, a boa intenção no curto prazo sempre
ros anos, não só optou por uma política se revela inócua no futuro – postulado
monetária e fiscal restritiva, como, nes- tradicional do liberalismo como corolá-
te aspecto, representou muito mais con- rio da defesa do livre mercado e conde-
tinuidade que rompimento com relação nação de medidas intervencionistas pró-
ao governo anterior. Em termos de polí- -redistribuição de renda.
tica social, optou pelo gradualismo, apos- Finalmente, tudo sugere ser prema-
tando mais no longo prazo que no brilho turo afirmar que se trata de uma retoma-
fugaz apontado pelos modelos: elevação da do desenvolvimentismo como ideolo-
paulatina do salário mínimo e dos pro- gia norteadora de nova fase da economia
gramas de transferência de renda. Mes- e da sociedade brasileiras, apesar dos sinais
mo o afrouxamento da política monetária visíveis da retomada de uma trajetória de
capitaneado pelo Banco Central, em seu crescimento, dos bons fundamentos ma-
segundo mandato, seguiu a uma come- croeconômicos (mesmo com problemas
dida estratégia, mesmo que às custas de a enfrentar, como a ainda baixa forma-
um crescimento mais nítido a curto pra- ção bruta de capital; a apreciação do Re-
zo. Esta combinação de política econô- al; o retorno dos déficits em conta corren-
mica restritiva e gradual redistribuição de te; as pressões especulativas nos mercados
renda aproxima-se mais do padrão clás- de renda fixa, renda variável e derivati-
sico da social-democracia européia do vos; a persistência da indexação de pre-
pós-Segunda Guerra, de inspiração key- ços, provocando a tendência manutenção
nesiana, do que do “ciclo econômico po- da inflação em patamares superiores ao

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424 O Brasil na Era Lula: retorno ao desenvolvimentismo?

da média mundial; dentre outros) e do


incremento do consumo de parte da po-
pulação até então à margem da demanda
doméstica. O desenvolvimentismo, para
se firmar tanto como ideologia hegemô-
nica e, daí, como prática efetiva, supõe
um relativo consenso sobre a natureza e
a profundidade da política econômica
como indutora não só de investimentos
em áreas prioritárias, mas da ação estatal
nas demais esferas de abrangência - como
educação, tecnologia, mercado de traba-
lho e políticas sociais, dentre outras -, de
forma a forjar um projeto com coerência
interna entre fins, meios e instrumentos
para viabilizá-los. Supõe, portanto, um
pacto político capaz de lhe dar sustenta-
ção, ou seja, agentes econômicos, clas-
ses e segmentos sociais dispostos a pactu-
ar uma agenda mínima. Apesar de se ter
avançado nessa direção nos últimos anos
e a crise internacional vir também cola-
borar neste sentido, não há como fugir da
constatação realista de que tudo sugere
ser algo não muito claro de se vislumbrar
em um horizonte mais próximo.

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Versão revista e atualizada


do trabalho apresentado no
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XII (XII Reunión de Economía
Mundial - REM), 2010, em
Santiago de Compostela.
Atualizado em maio de 2012 .
E-mail de contato dos autores:
pedro.fonseca@ufrgs.br
andre.cunha@ufrgs.br
julimar.dasilva@uam.es

Artigo recebido em março de 2012 e


aprovado em maio de 2012.

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