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A Nova Psicologia 0 Pai da Psicologia Moderna Wilhelm Wundt foi o fundador da psicologia como dis plina académica formal. Instalou o primeiro laboratorio, Iangou a primeira revista especializada e deu inicio a psi- cologia experimental como ciéncia. Os temas de suas pes- quisas, como sensacdo e percepgao, atencdo, sentimento, reagdo € assocla¢ao, tornaram-se capitulos basicos de livros didaticos e sao até hoje fontes inesgotaveis de estu- do. Tanto que a maior parte da hist6ria da psicologia pos- ‘wundtiana ¢ caracterizada pela contestagao ao seu ponto de vista da psicologia, fato que ndo desvaloriza sua im- porténcia nem seus feitos como seu fundador. Por que fol Wundt e nao Fechner a receber os méri- tos pela fundacao da nova psicologia? A obra Elements of Psychophysics, de Fechner, foi publicada em 1860, cerca de 15 anos antes de Wundt iniciar os estudos de psicolo- gia. O proprio Wundt declarou que o trabalho de Fechner Fepresentava a “primeira conquista” da psicologia cxperi- mental (Wundt, 1888, p. 471). Quando Fechner faleceu, seus papéis foram doados a Wundt, que proferiu palavras honrosas em sua meméria durante o funeral. Além disso, E. B. Titchener, discipulo de Wundt, referia-se a Fechner como pai da psicologia experimental (Benjamin, Bryant, Campbell, Luttrell e Holtz, 1997). Os historiadores sio unanimes em relacdo a importéncia de Fechner e alguns bow. Psicologia Moderna Wilhelm Wundt (1832-1920) ‘ABiografia de Wundt Os Anos em Leipeig A Psicologia Cultural © Estudo da Experéncia nsclente (© Método de introspecga0 Hlementos da Experiencia ‘Coniciente ‘A Organizagio dos Hementos cia Experiéncia Consctente Texto Original: Trecho sobre ‘Lei das Resultantes Fsiqulcas eo Principio «a Sintese cnati Extraida de Outline of Psychology (1896), de Withelm Wundt 0 Destino da Psicologia de Wandt na Alemanha As Critieas a Ptcologla de Wundt A Herangn do Wand Outras Tendéncias da Psicologia Alema Hermann Ebbinghaus (1850-1909) A Blogratia de Ebbinghaus esl sobre Aprentlzager Pesqtsa com Slabas em Sentido Outras Conteibuigdes de Ebbinghaus a Psicologia Franz Brentano (1838-1917) © Estudo dos Atos Mentais 7 78 HistoR Da PSCOLOGIA MODERNA Carl Stumpf (1848-1936) A Fenomenoiogia Oswald Kiilpe (1862-1915) Divergéncias entre Kilpe e ‘Wunet A ntrospeecdo Experimental sistematica Pensamentos sem Imagens “Topicos de Pesquisa do Laboratorio de Warzburg ‘Comentarios ee até questionam se a psicologia teria comecado naquele momento sem a sua contribuicao. Entio, por que eles 1ndo creditam a Fechner os méritos pela fundacao da psi- cologia? A resposta encontra-se na natureza do processo de fundagio de uma escola de pensamento. A fundacdo con- siste em um ato deliberado e intencional que envolve caracteristicas e habilidades pessoais diferentes das exigi- das na produgao de contribuigdes cientificas extraordina- rias. Um historiador da psicologia disse: ‘Quando as idéias basicas esta todas elaboradas, algum promotor toma essas idéias e as organiza, adicionando informagdes que parecam ser (..) essenciais, publica- as, divulga-as e as promove e, em resumo, “funda” ‘uma escola. (Boring, 1950, p. 194.) A contribuigio de Wundt para a fundagio da psico- logia moderna é devida nao tanto a uma tinica descoberta cientifica quanto a promocio vigorosa da experimentacao sistematica realizada por ele, Portanto, fundacdo nao é sin6nimo de criagdo, embora essa distingdo nao tenha intengao de ser depreciativa. Tanto os fundadores como 0s criadores so essenciais para a formacao de uma cién- cla, assim como 0s arquitetos e os construtores séo indis- pensaveis na construcio de um edificio. Com essa distingao em mente é possivel compreen- der por que Fechner nao foi identificado como o funda- dor da psicologia. Na verdade, ele simplesmente nao estava tentando fundar uma nova ciéncia. Seu objetivo era compreender a relag4o entre os universos mental € material. Ele buscava descrever com base clentifica um conceito unificado de mente e corpo. Wundt, no entanto, estava determinado a fundar uma nova ciéncia. No prefaicio da primeira edigdo da sua obra Principles of Physiological Psychology (Principios da psicologia fisiolégica) (1873-1874), ele escreveu: “O tra- balho que ora apresento ao piblico consiste em uma ten- tativa de demarcar um novo dominio da ciéncia”. Seu objetivo era promover a psicologia como uma ciéncia independente. Todavia € preciso reafirmar que, embora Wundt seja considerado 0 fundador da psicologia, ele no foi o seu criador. A psicologia é o resultado de uma longa seqiténcia de esforgos criativos, Na segunda metade do século XIX, o Zeitgeist estava propicio para a aplicagao da metodologia experimental aos problemas da mente. Wundt fol um agente poderoso do que jé estava em andamento, um promotor talentoso do inevitavel. Camu 4 ANova PscoLocia 79 Wilhelm Wundt (1832-1920) ‘A seguir, apresentamos a vida de Wilhelm Wundt, bem como a sua definigao de psico- logia e a sua influéncia na evolucao subsequiente do campo. A Biografia de Wundt Wilhelm Wundt passou os anos iniciais de sua vida nas pequenas vilas das proximida- des de Mannheim, na Alemanha. Teve uma infancia solitaria (seu irmao mais velho fica- va em um internato) e a sua tinica diversao era ficar sonhando em um dia se tornar um esctitor famoso. Seu rendimento escolar foi baixo nos anos iniciais. Seu pai era pastor, mas Wundt nao tinha boas recordagdes dele, embora tanto 0 pai como a mie fossem des- critos como pessoas sociaveis. Lembrava-se de um dia em que 0 pai fora visitar a escola € dera-lhe uma bofetada no rosto por nao prestar aten¢ao a0 professor. No inicio do segundo ano, a responsabilidade pela sua educagio ficou a cargo de um assistente do pai, ‘um jovem vigario por quem o garoto acabou criando uma forte afeicao. Quando o paro- co foi transferido para uma cidade vizinha, Wundt ficou tao aborrecido que foi autoriza- do a viver com ele até os 13 anos. ‘A familia Wundt era dotada de forte tradigdo académica, com ancestrais intelectuais renomados em praticamente todas as dreas. Entretanto parecia que essa extensa linhagem seria interrompida com o jovem Wundt. Ele passava a maior parte do tempo sonhando ‘em vez de estudar, e fora reprovado no primeiro ano do Gymnasium. Sua relacio com os colegas de classe nao era muito amistosa e ele era ridicularizado pelos professores. Aos poucos, no entanto, aprendeu a controlar seus devaneios, tornando-se relativamente popular. Embora nunca houvesse apreciado a escola, esforgou-se para desenvolver seus interesses e sua capacidade intelectual. Quando se formou, com 19 anos, estava prepara- do para prosseguir os estudos universitarios. Decidiu tornar-se médico por duas razdes: desejava trabalhar com a ciéncia e ganhar a vida. Frequentou a escola de medicina das universidades de Tubingen e de Heidelberg, nesta tendo cursado anatomia, fisiologia, fisica, medicina ¢ quimica. No decorrer do curso, percebeu nao ter tanta inclinagao para a medicina e decidiu especializar-se em fisiologia. Depois de estudar um semestre na University of Berlin com o importante fisiologis- ta Johannes Miller, retornou a Universtiy of Heidelberg e completou 0 doutorado em 1855, Lecionou fisiologia em Heidelberg, de 1857 a 1864, e foi indicado para ser assis- tente de laborat6rio de Helmholtz. Wundt detestou a tarefa de dar orientacdes basicas aos estudantes no laboratorio ¢ deixou a fungao. Em 1864, foi promovido a professor adjunto e permaneceu em Heidelberg por mais dez anos. Estando envolvido na pesquisa em fisiologia, Wundt comecou a conceber o estudo da psicologia como uma disciplina cientifica experimental independente. Primei- ramente, sintetizou as idéias no livro intitulado Contributions to the theory of sensory per- ception, publicado em partes, entre 1858 e 1862, Descreveu suas experiéncias originais, realizadas em um laborat6rio improvisado em sua casa, ¢ 05 métodos que considerava adequados para a nova psicologia, usando pela primeira vez o termo “psicologia experl- mental”, Esse livro, juntamente com o Elements of Psychophysics (1860), de Fechner, é considerado marco literdrio do surgimento da nova ciéncia. 80. HistORiA DA PscoLocia MoDeRNa No ano seguinte, Wundt publicou Lectures on the minds of men and animals (1863). Sua revisao cerca de 30 anos mais tarde, a tradugio para o inglés e as seguidas reimpres- sdes da obra ap6s a morte de Wundt sao indicadores da importancia do livro, no qual Wundt abordou varios temas, como 0 tempo de reagao e a psicofisica, que ocupariam a atengdo dos psicologos experimentais durante varios anos. Em 1867, Wundt comecou a ministrar um curso de psicologia fisiolégica na Heldelberg, o primeiro curso formal dessa area no mundo. Suas aulas também produzi- ram material para outro importante livro, Principles of physiological psychology (Principios da psicologia fisiolégica), publicado em duas partes, em 1873 e 1874. Em 37 anos, Wundt revisou o livro em seis edigdes, sendo a dltima publicada em 1911. Principles 6, indubitavelmente, sua obra-prima, na qual Wundt estabeleceu a psicologia ‘como uma ciéncia laboratorial independente, com problemas e métodos de experimen- tagao proprios. Por varios anos, as sucessivas edigoes de Principles of physiological psychology serviram como base de informages para os psicologos experimentais e de registro do progresso da psicologia. © termo “psicologia fisiol6gica” pode dar margem a interpretacdes equi- vocadas, ja que naquela época o vocabulo “fisiolgica” era sindnimo da palavra alema que queria dizer “experimental”. Na realidade, Wundt estava lecionando ¢ esctevendo a respeito de psicologia experimental e nao sobre a psicologia fisiolégica no sentido atual da palavra (Blumenthal, 1998). Os Anos em Leipzig Wundt comegou a mais longa e importante fase da sua carreira em 1875, ao tornar-se professor de filosofia da Universtiy of Leipzig, onde trabalhou durante incriveis 45 anos. Logo depois de chegar a Leipzig, instalou um laboratério e, em 1881, langou a revista Philosophical Studies, publicacao oficial do novo laboratério e da nova ciéncia. Havia pen- sado em chamar a revista de Psychological Studies (Estudos Psicol6gicos), mas mudou de idéia aparentemente porque {4 existia outra com o mesmo nome (embora abordasse temas relacionados com ocultismo e espiritismo). Em 1906, renomeou a revista de Psychological Studies. Agora tendo nas maos um manual, um laborat6rio e uma revista académica especializada, a psicologia estava em bom caminho. 0 laborat6rio de Wundt e também a sua crescente fama atrairam a Leipzig muitos estudantes que desejavam trabalhar com ele, dos quais varios se tornaram pioneiros, difundindo versdes proprias de psicologia para novas geracdes de alunos. Entre eles estavam diversos americanos que retornaram aos Estados Unidos para implementar laboratorios proprios. Assim, 0 laboratorio de Leipzig exerceu enorme influéncia no desenvolvimento da psicologia moderna, servindo como modelo para novos laborat6- rigs e constantes pesquisas. Além dos laborat6rios instalados nos Estados Unidos, outros foram implementados por alunos de Wundt na Itélia, na Rassia ¢ no Japao. Nenhum outro idioma teve mais, livros traduzidos de Wundt do que o russo e a admiracdo por ele chegou ao ponto de os Psicélogos de Moscou construfrem uma réplica do seu laboratorio. Outra réplica foi construfda por estudantes japoneses na Tokyo University, em 1920, ano da morte de Wundt, mas foi destruida durante um conflito estudantil nos anos 1960. ‘Wundt foi um professor bastante?popular €, em um dos cursos por ele ministrado em Leipzig, 0 niimero de estudantes matriculados ultrapassou a 600. Sua maneira de CarIULO4 ANOVA PsCoLocA. 81 ecionar foi descrita da seguinte forma pelo estudante E. B. Titchener, em uma carta que escreveu em 1890, depois de assistir pela primeira vez a uma aula de Wundt: © [funcionério} abriu a porta e Wundt entrou, todo vestido de preto, é claro, dos sapa- tos gravata: uma figura magra, de ombros estreitos, com a coluna um pouco curvada a partir da cintura, dava a impressio de ser alto, no entanto, duvido que tivesse efetiva ‘mente mais de 1,75 m de altura, Ele caminhava ruidosamente — nao hé outra palavra para aquilo —, subindo pelo ccorredor lateral os degraus da plataforma; batia com os pés e fazia barulho, como se as solas dos sapatos fossem de madeira. Realmente fiquei com ma impressio daquele modo ruidoso de caminhar, todavia parece que ninguém se deu conta. Alcangou a plataforma e pude ter uma boa visio da figura. Cabelos grisalhos, em uantidade razoavel, exceto no topo da cabeca, cuidadosamente coberto por alguns fios Tongos puxados da lateral. ‘Wnt, pude perceber, nao consultou qualquer tipo de anotasio para dar a aula nem olhou em algum momento para 0 suporte de livros, embora tivesse alguns papéis misturados entre os cotovelos, ‘Wundt nao deixava os bragos sobre o descanso: mantinha os cotovelos fixos, mas movia constantemente os bragos e as m4os, apontando e acenando... os movimentas eram controlados e pareciam, de alguma forma, misteriosamente ilustrativos, Ele parou pontualmente ao soar do relogio e salu pisando e fazendo barulho, um ouco curvado, assim como havia entrado. Se nao fosse pelo ruido absurdo do seu cami- nnhar, nao teria outro sentimento a expressar sendo o de admiracao pelo seu procedimen- to. (Baldwin, 1980, p. 287-289.) Sua vida pessoal foi tranguiila e modesta e seus dias eram cuidadosamente planeja- dos. Pela manhas trabalhava em um livro ou algum artigo, lia 0s trabalhos dos alunos € editava a revista, As tardes realizava exames ou encaminhava-se para 0 laboratorio, cuja visita, conforme lembrou um estudante americano, nao durava mais de cinco ou dez minutos, Aparentemente, apesar de acreditar na pesquisa de laboratério, “o proprio Wundt nao era um pesquisador de laborat6rio” (Cattell, 1928, p. $45). Mais ao final do dia, Wundt fazia uma caminhada e mentalmente preparava a aula da tarde que ministrava habitualmente as quatro horas, A noite dedicava-se 4 misica, politica e, quando mais jovem, as atividades relacionadas com os direitos do trabalhador € do estudante. Levava uma vida confortével e a familia dispunha de empregados domés- ticos e usufruia de lazer. A Psicologia Cultural ‘Com a implementagao do laboratério e a criagao da revista especializada, além da gran- de quantidade de pesquisas em andamento, Wundt voltou a atengao para a filosofia. De 1880 a 1891, escreveu a respeito da ética, da légica e da filosofia sistemética. Publicou a segunda edi¢ao de Principles of physiological psychology em 1880 e a tercelra em 1887; ainda contribuia com artigos para a revista. Outra drea em que Wundt concentrou seu grande talento fora esquematizada em seu Primetto livro: a criacao da psicologia social. Ao retomar esse projeto, Wundt produziu 1” Reimpresso mediante a autorizagdo da APA (Asoclagao PsicolGgica Americana) 82 Histomia DA PaCOLOGIA MODENA um trabalho em 10 volumes, intitulado Cultural psychology (Psicologia cultural), que publicou entre 1900 e 1920. (Muitas vezes, 0 titulo é traduzido equivocadamente como Folk psychology — Psicologia do povo.) A psicologia cultural tratou de varias etapas do desenvolvimento mental humano manifestado pela linguagem, nas artes, nos mitos, nos costumes sociais, na lei ¢ na moral. © impacto dessa publicagao na psicologia foi mais significativo do que o conted- do em si, ja que serviu para dividir a nova ciéncia em duas partes principais: a experi- mental e a social. ‘Wundt acreditava que as fungées mentais mais simples, como a sensagao e a percep- 20, deviam ser estudadas por meto de métodos de laboratorio. Todavia os processos mentais superiores, como a aprendizagem e a memoria, nao podiam ser investigados pela experimentagao cientifica, por serem condicionados pela lingua e por outros aspec- tos culturais. Wundt somente acreditava no estudo dos processos de pensamento supe- riores com 0 emprego de meios ndo-experimentais como os usados na sociologia, na antropologia e na psicologia social. A nocao do significativo papel das forcas socials no desenvolvimento dos processos cognitivos ainda ¢ considerada importante; no entanto, ‘a conclusio de Wundt de que tais processos nao sao passiveis de estudo por meio de experimentos fot logo contestada e invalidada. Wundt dedicou 10 anos ao desenvolvimento da psicologia cultural; entretanto 0 ‘campo, na forma como havia previsto, exerceu pouco impacto sobre a psicologia amer!- cana. Uma pesquisa abrangendo os artigos publicados em 90 anos na American Journal of Psychology mostrou que, de todas as citagdes referentes as publicagdes de Wundt, menos de 4% estavam relacionadas com a obra Cultural psychology. Por outro lado, Principles of physiological psychology era responsavel pot 61% das referéncias aos seus trabalhos (Brozek, 1980). ‘Uma razio provavel para a falta de interesse dos psicologos americanos na psicologia cultural de Wundt seria a época da publicagao: entre 1900 e 1920. Nesse periodo uma nova psicologia estava surgindo nos Estados Unidos, com uma abordagem um pouco dis- tinta da de Wundt. Os psicélogos americanos passaram a confiar nas proprias idéias e nas instituigdes educacionais ¢ nao sentiam mais tanta necessidade de voltar a atenco para 0s acontecimentos da Europa. Um destacado pesquisador observou que a psicologia cul- tural nao atrafa tanto interesse porque ela “surgiu em um estagio de maturidade da psi- cologia americana em que os pesquisadores americanos estavam bem menos suscetivels {is impresses estrangeiras do que” nas décadas de 1880 e 1890 Judd, 1961, p. 219). ‘Wundt prosseguiu na pesquisa sistemética e no trabalho teorico até a morte, em 1920. Gragas ao seu estilo de vida organizado, conseguiu completat as memérias dos seus registros psicolégicos pouco antes de morrer, Anélises acerca da sua produgao constata- ram que ele escreveu 54.000 paginas entre 1853 e 1920, em uma média de 2,2 paginas por dia (Boring, 1950; Bringmann e Balk, 1992). Havia concretizado 0 sonho da infan- cia de tornar-se um escritor famoso. O Estudo da Experiéncia Consciente A psicologia de Wundt utilizava os métodos experimentais das ciéncias naturais, prinei- palmente as técnicas empregadas pelos fisiologistas. Wundt adaptou esses métodos cien- tificos de investigagdo para a nové psicologia e prosseguiui na sua pesquisa do mesmo modo como 0s cientistas fisicos se dedicavam ao objeto de estudo de sua propria area. CamTULO 4A Nova Pscotocn Dessa forma, o Zeitgeist na fisiologia e na filosofia'contribuiu para moldar tanto os méto- dos de investigacao como o objeto de estudo. 0 objeto de estudo de Wundt consistia, para definir em uma nica palavra, na consciéncia. No sentido mais amplo, o impacto do empirismo e do associacionismo do século XIX refletia-se, ao menos parcialmente, no sistema de Wundt. Na sua perspecti- vva, a consciéncia incluia varias partes diferentes e podia ser estudada pelo método da anilise ou da reducio. Ele declarou: “A primeira etapa da investigacao de um fato deve ser uma descricdo dos elementos individuais (..) dos quais consiste” (apud Diamond, 1980, p. 85). Todavia a semelhanga entre a abordagem de Wundt ¢ a da maioria dos empiristas, dos associacionistas concentrava-se apenas nesse ponto de vista. Wundt néo aceitava a idéia de os elementos da consciéncia serem estaticos (assim denominados étomos da mente) e se conectarem de forma passiva mediante algum processo mecénico de asso- ciacao. Ao contrario, ele acreditava no papel ativo da consciéncia em organizar 0 proprio contetido. Portanto 0 estudo separado dos elementos, do contetido ou da estrutura da consciéncia proporcionaria apenas o ponto inicial para a compreensio dos processos psicol6gicos Voluntarismo, Wundt concentrou-se no estudo da capacidade propria de organiza- 40 da mente, dando o nome de voluntarismo ao seu sistema, em referéncia 4 palavra voli¢ao, que significa 0 ato ou a forca de vontade. O voluntarismo refere-se a forga de von- tade propria de organizar 0 contetido da mente em processos de pensamento superiores. Wundt enfatizava nao os elementos em si, como os empiristas e assoclacionistas britani- cos (assim como Titchener mais tarde enfatizara como aluno de Wundt), mas 0 proceso ativo de organizacio ¢ sintese desses elementos. No entanto € importante lembrar que Wundt, embora alegasse que a mente consciente era dotada do poder de sintetizar os ele- mentos em processos cognitivos de nivel superior, nunca deixou de reconhecer serem bbasicos os elementos da consciéncia, Na auséncia desses elementos, nao havia nada a ser organizado na mente. Experiéncia mediata e imediata. Na opiniao de Wundt, os psicélogos deveriam dedicar-se ao estudo da experiéncia imediata e nao da experiéncia mediata. A experién- ia mediata proporciona ao individuo as informages ou o conhecimento relacionado com algo além dos elementos de uma experiéncia. £ a forma usual de empregar a expe- riéncia para adquirir 0 conhecimento do nosso mundo, Por exemplo: quando olhamos uma rosa e dizemos “A rosa é vermelha”, subentende-se que nosso interesse principal concentra-se na flor e nao no fato de percebermos algo denominado de “{cor| vermelha”. ‘Todavia a experiéncia imediata de visualizar a flor nao esta no objeto propriamen- te dito, e sim na experiéncia de perceber que alguma coisa ¢ vermelha. Para Wundt, a experiéncia imediata nao sofre nenhum tipo de influéncia de interpretagoes pessoa como a descrigao da experiencia de visualizar a cor vermelha da rosa em termos do obje- to, ou seja, da flor em si. Voluntarismo: a idéia de que 2 mente & capaz de organizar 0 conteido mental em processos de pensamento de nivel mais elevado. Experiéncia mediata ¢ imediata: 2 experiéncia mediata oferece qualquer informagao, exceto sobre 0s seus elementos, @ a experiéncia imediata ¢ equilibrada por interpretacso. BS HistoRA DA PscoLOCIA MODENA Do mesmo modo, ao descrevermos a sensagao de desconforto provocada por uma dor de dente, relatamos a nossa experiéncia imediata, No entanto, se apenas dissermos: “Estou com dor de dente”, referimo-nos somente a experiéncia mediata. Na perspectiva de Wundt, as experiéncias basicas humanas, como a percepgdo da cor vermelha ou a sensagao de desconforto provocada pela dor, formam os estados da cons- ciéncia (0s elementos mentais) organizados de forma ativa pela mente. A proposta de Wundt consistia em analisar a mente com base nos seus elementos, nas partes compo- nentes, exatamente do mesmo modo que os cientistas naturalistas trabalhavam para dividir 0 seu objeto de estudo, ou seja, 0 universo fisico. A idéia da tabela periédica desenvolvida pelo quimico russo Dimitri Mendeleev serviu de apoio para o objetivo de ‘Wundt, Os historiadores sugeriram que talvez Wundt estivesse tentando desenvolver uma espécie de “tabela periédica” da mente (Marx e Cronan-Hillx, 1987). O Método de Introspeccao ‘Wundt descrevia a sua psicologia como a ciéncia da experiéncia consciente. Sendo assim, ‘© método da psicologia cientifica deve abranger as observacoes da experiéncia conscien- te. No entanto somente o individuo que passa pela experiéncia € capaz de observé-la, Wundt estabeleceu que o método de observacao devia necessariamente utilizar-se da introspecgo, ou seja, do auto-exame do estado mental. Ele se referia a esse método ‘como percep¢io interna. Wundt nao foi o criador do método da introspeccéo, que jé existia no tempo de Sécrates. A inovacdo introduzida por ele consistia na aplicagao do controle experimental preciso sobre as condigdes de execucio da introspeccao. Introspecgao: 2 auto-andlise da mente para se inspecionar e relatar os pensamentos ou sentimen= 105 pessoais, Na fisica, a introspeccao fol utilizada para estudar a luz e 0 som; na fistologia, fol aplicada na pesquisa dos 6rgdos dos sentidos. Por exemplo: para obter informacoes sobre ‘0s sentidos, 0 pesquisador aplicava um estimulo e pedia ao individuo para descrever a sensacao produzida. Esse procedimento é semelhante aos métodos de pesquisa psicofisi- ‘cos empregados por Fechner. Quando as pessoas comparavam dois pesos e apontavam se algum era mais pesado, mais leve ou se ambos possufam o mesmo peso, estavam pas- sando pela experiéncia da introspecsao, ou seja, estavam descrevendo as suas experién- clas conscientes A introspecgao, ou percepgao interna, praticada no laboratério de Wundt na University of Leipzig, obedecia a regras e condigdes estabelecidas por ele: * Os observadores devem ser capazes de determinar quando 0 processo seré intro- duzido. * Os observadores devem estar em estado de prontidao e alerta. ‘+ Devem haver condicoes adequadas para se repetir varias vezes a observacao. ‘+ Devem haver condig6es adequadas para se variar as situagdes experimentais em termos de manipulacao controlada do estimulo. A Gitima condigao remete a esséncia do método experimental: a variagao das condi- ‘Gbes das situagdes de estimulo e a observa¢o das mudancas resultantes nas experiéncias descritas pelos individuos. Cammulo 4 ANovaPsco.ocia. 85 ‘Wun acreditava que sua forma de introspet¢ao — a percepeao interna — permitia fornecet todos os dads bisicos necessarios para o estudo dos problemas de interesse da psicologia, assim como a percepcéo externa proporcionava os dados para as ciéncias como a astronomia e a quimica. Na percepgao externa, o foco de observacao encontra- se fora do observador — por exemplo: uma estrela ou a reacdo da mistura quimica no tubo de ensaio, Na percepcdo interna, o foco encontra-se dentro do observador — na sua ‘experiéncia consciente. objetivo de realizar a percepeao interna sob rigidas condigdes experimentais con- siste em produzir observagoes precisas passiveis de repeti¢ao, da mesma forma que a per- cepeio externa produz para as ciéncias naturais observagdes que podem ser repetidas separadamente por outros pesquisadores. A fim de atingir essa meta, Wundt insistia em treinar cuidadosa e rigorosamente os seus observadores para realizar corretamente as per- cepcoes internas. Exigia que eles completassem até 10.000 observacdes introspectivas individuals antes de consiaeré-los preparados para proporcionarem dados significativos para o seu laboratério de pesquisa. Submetidos a esse treinamento repetitivo e persisten- te, 0s individuos estariam aptos a realizar mecanicamente as observagoes e se tornariam rapidos e alertas em relacdo a experiéncia consciente sendo observada. Na teoria, os observadores treinados por Wundt nio precisariam de pausa para pensar ou refletir sobre © proceso (¢ possivelmente introduzir alguma interpretacao pessoal) e seriam capazes de descrever a experiéncia consciente quase imediata e automaticamente. Assim, o interva- lo entre os atos de observar e de relatar a experiéncia imediata seria minimo. Wand praticamente nao aceitava o tipo de introspeccao qualitativa em que as pes- soas simplesmente descreviam suas experiéncias intimas. A descrigao introspectiva que buscava estava relacionada principalmente com os julgamentos conscientes sobre o tamanho, a intensidade, a duragao de varios estimulos fisicos, ou seja, 0 tipo de andlise quantitativa da pesquisa psicofisica. Poucos estudos do laboratério de Wundt usaram relatos de natureza subjetiva ou qualitativa, como a percepgao de prazer provocada por um estimulo, a intensidade de uma imagem ou a qualidade de uma sensacéo. A maioria das pesquisas de Wundt consistia em medig6es objetivas proporcionadas por equipa- mentos sofisticados de laborat6rio, muitas delas referentes a tempos de reacdo registra- dos quantitativamente? Depois de acumular os dados objetivos suficientes, Wundt extraia as dedugbes a respeito dos elementos e dos processos de experiéncia consciente. Elementos da Experiéncia Consciente Definidos o objeto de estudo e a metodologia para a nova ciéncia da psicologia, Wundt tragou suas metas: * analisar os processos conscientes, utilizando-se dos seus elementos basicos; ‘+ descobrit como esses elementos eram sintetizados e organizados; ‘* determinar as leis da conexo que regiam a organizagao dos elementos. 2 Um istoriadorrealizqu uma pesquisa a respelto do uso de dado qualtativos e quantiatives feta por Windle cons tatou que “em cerca de 180 estudos experimentas publicados entre 1883 e 1903 nos 20 volumes de Philosophische Studien [a primeira publica¢a0 especializada de Wundt, Philosophical Studies] apenas quatro empregavam dados introspectvos qualtativos” (Danziger, 1980, p. 248) 86 Histo Da PsicoLocin MODERNA Sensagdes. Wundt alegava ser a sensacdo uma das duas formas basicas de experién- Cia, A sensagao surge sempre que um 6rgio do sentido ¢ estimulado e os impulsos resul- tantes atingem o cérebro. Pode ser classificada pela intensidade, duragio ¢ modalidade do sentido, Wundt nao reconhecia nenhuma diferenca fundamental entre a sensacio a imagem porque esta também esta associada com a estimulagao do cértex cerebral. Sentimentos. © sentimento € a outra forma elementar da experiéncia. A sensagio e © sentimento sao aspectos simultaneos da experiéncia imediata. O sentimento € 0 com- plemento subjetivo da sensacao, embora nao se origine diretamente de 6rgio do sentido. Sensag6es so acompanhadas de certas qualidades de sentimento; quando se combinam para formar um estado mais complexo, resultam na qualidade de sentimento. ‘Wundt propés a teoria tridimensional do sentimento com base nas proprias obser vacoes introspectivas, Munido de um metronomo (aparelho que pode ser programado para produzir cliques audiveis em intervalos regulares), notou que, apés ouvir uma série de cliques, alguns padroes ritmicos eram mais prazerosos ou agradaveis do que outros. Coneluiu que parte da experiéncia de qualquer padrao sonoro requer o sentimento sub- jetivo do prazer ou desprazer. (Observe que o sentimento subjetivo ocorria a0 mesmo tempo que as sensagdes fisicas associadas com os cliques.) Wundt sugeriu assim que esse estado de sentimento poderia ser alocado em uma variagdo continua desde o extrema- mente agradavel até o extremamente desagradavel. Teoria tridimensional do sentimento: a explicacao de Wundt para os estados do sentimento bbaseada em trés dimensbes: prazer/desprazer, tensSovtelaxamento e excitacao/depresséo. Dando continuidade aos experimentos, Wundt observou um segundo tipo de sen- timento, ouvindo os cliques do metrénomo: uma leve tensdo ao antecipar cada som sucessivo, seguida do alivio apos o clique. Concluiu assim que, além do continuo pra- zet/desprazer, o sentimento possufa uma dimensio de tensdo/relaxamento. Posterior- mente, 20 aumentar o intervalo dos cliques, sentiu-se suavemente excitado, e a0 reduzi-lo, sentiu-se calmo e até um pouco deprimido. Dessa forma, variando o intervalo do metronomo e praticando a introspeceao, des- crevendo as suas experiéncias conscientes imediatas (as proprias sensacdes e os préprios sentimentos), Wundt definiu as trés dimensdes independentes do sentimento: pra- zer/desprazer, tensio/relaxamento e excitacdo/depressao. Cada sentimento basico era efetivamente descrito de acordo com a sua localiza¢ao dentro do espaco tridimensional, ou seja, a sua posigaio em cada uma das dimensoes. Wundt considerava as emogoes um composto complexo de sentimentos elementa- Tes €, se fosse possivel destacé-los na grade tridimensional, as emocées poderiam ser reduzidas a esses elementos mentals. Embora a teoria tridimensional do sentimento hou- vesse despertado o interesse para varias pesquisas em Leipzig e em outros laboratorios europeus da época, ndo resistiu ao teste do tempo. A Organizacao dos Elementos da Experiéncia Consciente Apesar da sua énfase nos elementos da experiéncia consciente, Wundt reconheceu que, a0 olharmos para 0s objetos do mundo real, nossa percepcao € dotada de unidade ou de CamuLo 4 ANova Psicotocia, 87 totalidade. Por exemplo: ao olharmos por uma janela, vemos uma Arvore e nao sensa- ‘Ges individuais ou experiéncias conscientes de brilho, cor ou formato que os observa- dores treinados do laborat6rio descrevem como resultado de suas introspecgdes. Nossa experiéncia visual do mundo real abrange a arvore inteira e no como sensacdes e sen- timentos basicos constituintes da arvore. Como as partes elementares compoem essa experiéncia consciente unificada? Wunat explicou o fenémeno por meio da sua doutrina da apercepcao. © proceso de organizacao dos elementos mentais formando uma unidade € uma sintese criativa (tam- bém conhecida como a lei das resultantes psiquicas) que cria novas propriedades mediante a mistura ou a combinagao dos elementos. Wundt declarou: “Todo composto psiquico € dotado de caracteristicas que de modo algum consistem na mera soma das caracteristicas dos elementos” (Wundt, 1896, p. 375). Todos ja ouvimos esta afirmagio: a totalidade nao é igual a soma das partes. Essa nogao é disseminada pelos psicélogos da Gestalt (veja no Capitulo 12). A nogdo da sintese criativa possui a correspondente na qui- mica. A combinagao dos elementos quimicos produz compostos ou resultantes com pro- priedades nao encontradas nos elementos originais. Apercepedo: processo de organizacao dos elementos mentais Para Wundt, a apercepcao consiste em um processo ativo. Nossa consciéncia nao atua apenas sobre sensacdes ¢ sentimentos basicos que experimentamos. Ao contrario, a mente atua nesses elementos de forma criativa para compor a unidade. Desse modo, Wundt nao acreditava no processo da associagio meciinica e passiva defendido pela maioria dos empiristas e associacionistas britnicos. x Texto Original Trecho sobre a Lei das Resultantes Psiquicas e o Principio da Sintese Criativa, Extraido de Outline of Psychology (1896), de Wilhelm Wundt A lei das resultantes psiquicas encontra sua expresso no fato de todo componente psiqui- co exibir atributos que sao conhecidos, na verdade, por meio dos proprios atributos dos ele- mentos que 0 compdem apés serem identificados; entretanto esses elementos nao podem cde maneira alguma ser considerados mera soma dos atributos. Na melodia composta encon- ‘tram-se mais atributos afetivos e ideacionais do que na mera soma dos tons. A organizacao temporal e espacial das idéias temporais e espaciais € certamente condicionada de forma perfeitamente regular por meio da cooperacao dos elementos componentes da idéia, no entanto, ainda assim, 0 arranjo em si no pode de forma alguma ser considerado proprie- dade pertencente aos préprios elementos da sensacao. As teorias nativistas afirmam ser essa nocéo contraditeria e insolivel; e, além disso, na hipétese de admitirem a ocorréncia de mudancas subseqtientes nas percepc6es espaciais e temporais originals, esto definitiva- mente partindo para a aceitacéo do surgimento, pelo menos parcial, de novos atributos. Por fim, essa lei encontra a expresséo de forma evidentemente reconhecivel nas fun- bes aperceptivas e nas atividades da imaginacao e da compreensao. Os elementos unidos 8B_Hist0RIs 04 PsicoLoGiN MODERN pela sintese aperceptiva nao so ganham, na idéia agregada resultante das suas combina- es, um novo significado antes inexistente no seu estado isolado, como também — e 0 que é mais importante — a propria idéia agregada consiste em novo contetdo psiquico derivado certamente desses elementos e que de modo algum encontrava-se neles contido. Essa caracteristica apresenta-se de forma mais evidente nas produces com maior comple- xidade da sintese aperceptiva, por exemplo, em uma producdo artistica ou em um exerci cio de logica A [ei das resultantes psiquicas expressa, assim, um principio que podemos designar, em vista dos resultados, como principio da sintese criativa. Esse principio, hé muito reconhecido nos casos de criagées mentais superiores, em geral no ¢ aplicado a outros processos psiqui- cos. Na verdade, devido a uma confusao injustificavel com as leis da causalidade psiquica, ele tem sido interpretado até erroneamente Equivoco semelhante ¢ responsdvel pela idéia de contradicio existente entre o principio da sintese criativa no universo mental ¢ as leis gerais do mundo natural, especialmente em relacdo & conservac3o da energia. Essa contradicao é injustificada porque as perspectivas para 0 julgamento e, conseqdentemente, para todas as mensuracdes nos dois casos s40 diferentes e devem sé-lo, j4 que a ciéncia natural e @ psicologia nao lidam com os contet- dos distintos da experiéncia, mas com um nico e mesmo contetido observado de angulos diferentes ‘As mensuragdes fisicas referem-se a massas, forcas e energias objetivas, conceitos adi- cionais obrigatérios no julgamento da experiéncia objetiva; e, como as suas leis gerais s30 derivadas da experiéncia, nao devem ser contraditas por nenhum nico caso de experiéncia. ‘As mensuracées fisicas, que se referem 8 comparacao dos componentes fisicos e de suas resultantes, estd0 relacionadas com valores e resultados subjetivos. © valor subjetivo de uma unidade pode aumentar em comparacéo com seus componentes; o propdsito da unidade pode ser diferente e superior ao dos seus componentes sem qualquer alteracao nas massas, forcas e energias envolvidas. Os movimentos musculares de um ato de vontade externa, os pprocessos fisicos que acompanham a sensaco-percep¢ao, associacao e apercepcao obede- em invariavelmente ao principio da conservacao da energia. Todavia os valores e as final- 7aGO85 que essas energias representam podem ser muito diferentes em quantidade, até mesmo quando a quantidade dessas energias permanece a mesma O Destino da Psicologia de Wundt na Alemanha Embora a psicologia wundtiana tenha se espalhado rapidamente, nao transformou de Imediato nem completamente a natureza da psicologia académica na Alemanha. No perfodo de Wundt — na realidade, ja em 1941, duas décadas aps a sua morte —a psi- cologia nas universidades alemas ainda consistia em uma drea de especializacao da filo- sofia. Esse fato, em parte, era devido a resisténcia de alguns psic6logos e filosofos em separar a psicologia da filosofia e também a um fator contextual importante: os érgios governamentais responsaveis pela cria¢do das universidades ndo enxergavam nenhum valor pratico na psicologia para garantir a alocagdo de recursos para o estabelecimento de departamentos académicos e laborat6rios independentes. Em 1912, quando a Sociedade de Psicologia Experimental realizou um encontro em Berlim, 0s psic6logos pressionaram formalmente o governo para obter mais verba. CaRTUO 4 ANOVA PScoLocA 99 Em resposta, o prefeito de Berlim declarou que, primeito, precisava ver 0s resultados praticos das pesquisas psicol6gicas. A mensagem foi clara: “Se a psicologia deseja obter mais verba, seus representantes devem provar a sua aplicabilidade para a sociedade” (Ash, 1995, p. 45). A dificuldade estava no fato de a psicologia de Wundt concentrar-se na descri¢ao € na organizagéo dos elementos da consciéncia, néo sendo, assim, apropriada para a solucao dos problemas do mundo real. Talvez seja essa uma das razoes de ela nao ter criado raizes na atmosfera pragmética dos Estados Unidos. Wundt considerava a psi- cologia uma ciéncia puramente académica e nao se interessava em aplicé-la as ques- tes praticas. Desse modo, apesar da sua aceitagao nas universidades de varios paises, a evolucao da psicologia wundtiana como ciéncia distinta foi relativamente lenta na propria Alemanha, Por volta de 1910, 10 anos antes da morte de Wundt, existiam trés publicacoes especiall- zadas em psicologia na Alemanha, além de diversos livros e laborat6rios de pesquisa. No entanto apenas quatro estudiosos constavam nas listas oficiais como psicdlogos € nao ‘como fil6sofos. Por volta de 1925, apenas 25 pessoas na Alemanha intitulavam-se psic6- logos e somente em 14 das 23 universidades havia departamentos de psicologia indepen- dentes (Tuner, 1982). ‘Nesse mesmo periodo nos Estados Unidos, havia muito mais psicdlogos e departa- mentos de psicologia. © conhecimento e as técnicas de psicologia estavam sendo apli- cados aos problemas priticos na economia ¢ na educagdo. Ainda assim, deveriamos reconhecer que a origem para pensar 0 campo da psicologia nos Estados Unidos era derivada do pensamento de Wundt. As Criticas 4 Psicologia de Wundt A posi¢ao de Wundt, assim como a de qualquer outro inovador, estava sujeita a criticas. Especialmente vulneravel era o método da percepcao interna ou da introspeccao. Os cri- ticos questionavam: quando a introspec¢do realizada por diferentes observadores produz resultados distintos, como saber qual € 0 resultado correto? As experiéncias realizadas ‘com 0 uso da técnica de introspeccao nem sempre produzem o mesmo resultado, ja que se trata de uma auto-observagtio — é definitivamente uma experiéncia particular. Assim sendo, as divergéncias nao podem ser dirimidas mediante a repeti¢ao das observacoes. Wundt reconhecia essa falha mas acreditava na possibilidade de aprimorar 0 método, submetendo 0s observadores a mais treinamento e experiéncia. As opinies politicas de Wundt também eram alvo de criticas e podem ser a explica~ ‘s40 para a afirmacao de um historiador ao descrever “o declinio precipitado da psicologia wundtiana entre as duas grandes guerras [1918-1939]. (..) A maior parte do contetido das Pesquisas e dos trabalhos de Wundt simplesmente desapareceu nos ambientes de lingua inglesa” (Blumenthal, 1985, p. 44). Os estudiosos creditavam o seu declinio as declaracbes francas de Wunadt a respeito da Primeira Guerra Mundial. Ele considerava a Inglaterra cul- Pada por iniciar a guerra e defendia a invasdo da Bélgica pela Alemanha como um ato de autodefesa. Essas declaragées eram tendenciosas e equivocadas e fizeram com que muitos Psicdlogos americanos se voltassem contra Wundt € a sua psicologia (in Benjamin, Durkin, Link, Vestal, Acord, 1992; Sanua, 1993). sistema de Wundt também enfrentou a concorréncia crescente nos paises de lin- gua alema apés a Primeira Guerra Mundial. Nos anos finais da sua vida, duas outras esco- 90 Histoeia Da PsicoLocin MoDERNA Jas de pensamento surgiram na Europa, obscurecendo a sua visio: a psicologia da Gestalt, na Alemanha, e a psicanilise, na Austria. Nos Estados Unidos, 0 funcionalismo © 0 behaviorismo encobriram a abordagem wundtiana. Além disso, as forgas contextuais econdmicas e politicas vigentes contribuiram para © desaparecimento do sistema wundtiano na Alemanha. Com o colapso econdmico apds a derrota alema na Primeira Guerra Mundial, as universidades ficaram falidas, A University of Leipzig nao possuia verbas nem para a aquisicdo dos livros mais recentes de Wundt para a biblioteca. O laboratorio de Wundt, onde ele orientou a primeira gera- S40 de psicélogos, foi destruido durante um bombardeio de americanos ¢ ingleses em 4 de dezembro de 1943. Assim, a natureza, 0 contetido, a forma e até mesmo o lar da psi- cologia wundtiana se perderam. A Heranca de Wundt © ato de instalagao do primeiro laboratério de psicologia exigia uma pessoa com vasto conhecimento da fisiologia ¢ da filosofia contemporaneas e com capacidade para sinte- tizar efetivamente as idéias e os métodos dessas disciplinas. Para Wundt cumprir a meta de fundar uma nova ciéncia, teve de rejeitar o pensamento nao-cientifico do passado e eliminar as relagdes intelectuais entre a nova psicologia cientifica e a antiga filosofia ‘mental. Ao restringir 0 objeto de estudo da psicologia a experiéncia consciente e definir a disciplina como uma ciéncia baseada na experiéncia, Wundt conseguiu evitar discus- soes sobre a imortalidade da alma e as suas relag6es com a mortalidade do corpo. Ele apenas alegava enfaticamente que a psicologia nao lidava com essas questdes ¢ essa afit- macao foi um grande passo adiante. Wundt, conforme anunciou que o faria, deu inicio a um novo dominio da ciéncia € conduziu pesquisas no laboratorio que instalara exclusivamente para esse fim Publicou os resultados na sua propria revista e tentou desenvolver uma teoria sistem4- tica da natureza da mente humana. Alguns de seus alunos deram continuidade ao tra- balho, criando laboratérios para prosseguir com as experiéncias relacionadas com as questdes estabelecidas por ele e empregando as suas técnicas. Desse modo, Wundt pro- Porcionou a psicologia todos os acess6rios de uma ciéncia moderna Notadamente, a época estava preparada para 0 movimento wundtiano em conse- qiténcia do amadurecimento natural do desenvolvimento das ciéncias psicoldgicas, especialmente nas universidades alemas. Todavia o fato de o trabalho de Wundt nao se consistir na origem desse movimento, e sim no seu ponto culminante, néo reduz a sua importincia, A fundagdo da psicologia exigiu extrema dedicagao e coragem para a con- cretizacao do movimento. Os resultados de seus esforcos representam uma conquista tao extraordinéria que Wundt merece ocupar uma posi¢ao exclusiva de destaque entre os Psicdlogos do periodo moderno. Uma pesquisa conduzida por 49 historiadores america- nos de psicologia 70 anos ap6s a sua morte relevou que ele ainda era considerado o psi- cologo mais importante de todos os tempos, uma constata¢ao honrosa para um estudioso Cujo sistema jé havia sido esquecido ha muito tempo (Korn, Davis, e Davis, 1991). © fato de a maior parte da histéria da psicologia pés-Wundt consistir de posigoes Contrdrias as limitagoes por ele impostas para a érea nao desvaloriza as suas brilhantes contribuigdes. Ao contrario, enaltece ainda mais a sua grandeza. As contestacoes devem ter algum alvo, algo a ser rebatido, e 0 trabalho de Wundt, sendo esse alvo, proporcio- nou um inicio magnifico e convincente para a moderna psicologia experimental CAPMULO 4 ANova Psicowocin 91 oO Hist6ria On-line http://www.psy.pdx.edu/PsiCafe/KeyTheorists/Wundt.htm Esse endereco fornece informacées a respeito da vida de Wundt e links para outros sites referentes a suas pesquisas, teorias e equipamentos de labora- t6rio. Além disso, contém textos completos de algumas de suas publicacdes Outras Tendéncias da Psicologia Alema Wundt deteve © monopélio da nova psicologia por pouco tempo. A ciéncia também comegava a florescer em outros laborat6rios alemaes. Embora Wundt fosse obviamente © mais importante organizador e sistematizador dos primeiros passos da psicologia, outras figuras também exerceram influéncia na evolucao inicial da rea. Os pesquisado- es que nao concordavam com 0 ponto de vista de Wundt propunham idéias diferentes, ‘embora todos estivessem comprometidos com uma empreitada comum: a expansdo da psicologia como ciéncia. O trabalho desses psic6logos, aliado ao de Wundt, transformou a Alemanha indiscutivelmente no centro do movimento. Os acontecimentos na Inglaterra dariam a psicologia uma tematica e uma direc’ radicalmente diferentes. Charles Darwin apresentava a teoria da evolugao e Francis Galton comecava a trabalhar com a psicologia das diferencas individuais. Ao chegarem aos Estados Unidos, essas idéias exerceram um impacto ainda maior sobre o rumo da psi- cologia do que o trabalho pioneito de Wilhelm Wundt. Além disso, os primeiros psic6logos americanos, muitos dos quais formados sob a orientacéo de Wundt em Leipzig, retornaram aos Estados Unidos ¢ transformaram a psi- cologia wundtiana em algo tipicamente americano. Esse assunto seré abordado mais adiante, mas a questao principal neste momento € que, logo depois da sua fundacao, a psicologia se dividiu em facgdes, e rapidamente a abordagem de Wundt tornou-se ape- nas mais uma delas. Hermann Ebbinghaus (1850-1909) Apenas alguns anos apés Wundt afirmar ser impossivel conduzir experiéncias com os rocessos mentais superiores, um psie6logo alemao que trabalhava sozinho, isolado de qualquer centro académico de psicologia, comecou a obter éxito nas experiéncias com esses processos, Hermann Ebbinghaus tornou-se o primeiro psicélogo a pesquisar expe- rimentalmente a aprendizagem e a meméria. Desse modo, ndo apenas demonstrou que Wundt estava errado a respeito daquela questo, como também mudou a forma de estu- do da associagio e do aprendizado. A Biografia de Ebbinghaus Ebbinghaus nasceu nas proximidades de Bonn, na Alemanha, em 1850, realizou os estudos universitarios inicialmente na University of Bonn e depois em Halle e Berlim. Durante a formagio académica, seus interesses dividiam-se entre hist6ria ¢ literatura € 92. HistoRIA DA PsIcoLOGIA MODERN a filosofia, tendo se formado nesta em 1873 ¢, em seguida, servido o exército na guerra Franco-Prussiana. Dedicou sete anos a estudos independentes na Inglaterra e na Franca, onde os seus interesses mudaram novamente, dessa vez voltando-se para a ciéncia. Trés anos antes de Wundt estabelecer 0 laborat6rio de Leipzig, Ebbinghaus havia adquirido, em uma livraria de Londres, uma c6pia usada da importante obra de Fechner, Elements of psychophysics. Esse acontecimento casual afetou profundamente o seu pensamento e acabou influenciando também a diregao da nova psicologia. O tratamento matemético dado por Fechner ao fenémeno psicol6gico fol uma reve- lacdo instigante para Ebbinghaus, que resolveu aplicar na psicologia a metodologia empregada por Fechner na psicofisica: as medigdes sistematicas ¢ rigidas. Seu objetivo era simplesmente aplicar 0 método experimental aos processos mentais superiores. Muito provavelmente influenciado pela popularidade do trabalho dos associacionistas, britanicos, Ebbinghaus optou por realizar essa importante pesquisa na rea da aprendi- zagem humana, Pesquisa sobre Aprendizagem Antes do trabalho de Ebbinghaus, a maneira mais comum de estudar a aprendizagem era ‘examinando as associac6es jé formadas. Essa era a abordagem dos associacionistas brit’- nicos. De certo modo, os pesquisadores trabalhavam no sentido inverso, tentando deter- minar como as ligagoes haviam sido estabelecidas. enfoque de Ebbinghaus era diferente: ele comecava a andlise com a formagao ini- cial das associagdes. Dessa forma era possivel controlar as condig6es sob as quais a cadeia de idéias se formava, o que tornava o estudo da aprendizagem mais objetivo, trabalho de Ebbinghaus a respeito da aprendizagem e do esquecimento acabou sendo considerado um exemplo de genialidade e originalidade da psicologia experimen- tal. Foi o primeiro trabalho a tratar de um problema que fosse verdadeiramente psicol6- ico e nao fisiol6gico, como eram muitos dos t6picos da pesquisa de Wundt. Desa forma, a pesquisa revolucionaria de Ebbinghaus ampliou consideravelmente o escopo da psicologia experimental. Como vimos anteriormente, a aprendizagem e a meméria nunca haviam sido alvos de estudo experimental. Wundt afirmava categoricamente néo ser possivel estudé-las experimentalmente. Ebbinghaus comecou a fazé-lo, embora nao ocupasse nenhuma posigio académica, nao estivesse em um ambiente universitério para conduzir o trabalho € nao contasse com o auxilio de professores e alunos, nem de um laborat6rio. Entretanto, em um intervalo de cinco anos, realizou por conta propria uma série de estudos bastante abrangentes e cuidadosamente controlados, sendo ele mesmo a fonte de sua pesquisa. Para a medicao basica da aprendizagem, Ebbinghaus adaptou uma técnica adotada pelos associacionistas, cuja proposta afirmava ser a freqiiéncia de associagoes uma con- digao necesséria para a lembranga. Ebbinghaus acreditava ser possivel medir, por meio da freqiiéncia, a dificuldade de assimilagao de um contetido — pela contagem do niime- ro de repeti¢des necessirias para a perfeita reproducdo do material. Percebemos aqui a influéncia de Fechner, que realizava a medigdo das sensagdes de forma indireta, mensu- rando a intensidade de estimulo necessaria para produzir uma diferenga minima percep- tivel na sensagao. Ebbinghaus tratou do problema da medicao da meméria de forma similar, contando o ntimero de tentativas ou de repeticoes necessdrias para a aprendiza- gem do material. CAPTULO 4 ANova PsicoLocia 93 Como material para a aprendizagem, Ebbirighaus preparou uma lista de silabas semelhantes, mas nao idénticas. Ele repetia a tarefa quantas vezes fossem necessarias até sentir-se seguro da exatidao do resultado. Assim, cancelava os erros varidveis de cada ten- tativa e obtinha uma medigdo média, Era tdo sistemético em relacéo a experiéncia que mantinha com rigidez a regularidade dos seus hébitos pessoais, obedecendo a uma roti- na invariavel, estudando 0 material todos os dias, sempre no mesmo horatrio. Pesquisa com Silabas sem Sentido Para utilizar como objeto de estudo da sua pesquisa — o material a ser aprendido —, Ebbinghaus inventou 0 que ficou conhecido como as silabas sem sentido revolucio- nando o estudo da aprendizagem. E. B. Titchener (Capitulo 5), aluno de Windut, obser- vou que 0 uso das silabas sem sentido marcou o primeiro avango importante na érea desde a época de Arist6teles. Silabas sem sentido: slsbas apresentadas em seqiiéncia aleatéria para 0 estudo dos processos de memoria Ebbinghaus buscava palavras diferentes das do dia-a-dia como objeto de estudo por- que percebera a dificuldade da utilizagao de historias ou poesias como material de esti- mulo. As pessoas familiarizadas com a lingua ja carregam consigo os significados e as associagdes das palavras, e essas ligagdes podem facilitar a aprendizagem do material. Como essas conexdes ja esto presentes no momento da experiéncia, ndo podem ser controladas pelo pesquisador. Ebbinghaus desejava utilizar material uniforme que ndo contivesse associagdes e que fosse totalmente homogéneo ¢ igualmente nao familiar — material que tivesse poucas associagdes ja estabelecidas. As silabas sem sentido que ele ctiou, tipicamente formadas por duas consoantes intercaladas com uma vogal (como lef, bok ou yat), satisfaziam esses critérios. Escreveu em cartdes todas as combinagdes possi- veis de consoantes e vogais, produzindo 2,300 silabas, das quais extraia aleatoriamente © material de estimulo a ser aprendido. Informagoes histéricas fornecidas posteriormente por um psicblogo alemao — que leu todas as notas de rodapé das publicacdes e dos trabalhos de Ebbinghaus referentes as suas experiéncias, comparando as tradugdes em inglés com os originais em aleméo — apresentam-nos uma nova interpretagdo para as silabas sem sentido (Gundlach, 1986). Elas nem sempre eram limitadas a apenas trés letras e nao eram necessariamen- te sem sentido. Essa andlise meticulosa dos dados historicos, nesse caso usando 0s proprios escti- tos de Ebbinghaus, revelou que algumas silabas compreendiam quatro, cinco ou seis letras. E, 0 que € mais importante, o objeto de estudo de pesquisa que Ebbinghaus denominava de “série sem sentido de sflabas” foi traduzido incorretamente para 0 inglés como uma “série de silabas sem sentido”. Para Ebbinghaus, nao eram as sflabas individuais que nao deveriam ter sentido (embora muitas nao tivessem), mas toda a lista de palavras, formada deliberadamente para nao conter conexdes nem associagdes anteriores. Essa reinterpretagdo dos escritos de Ebbinghaus também revelou que ele era tio fluente em inglés e francés quanto em alemao, além de ter estudado latim e grego, 0 que 94 HistORIA 04 PsicoLOcIA MODENA mostra a dificuldade enfrentada na criagao de silabas que nao tivessem absolutamente nenhum sentido para ele, © pesquisador concluiu: “O initil esforgo em obter a silaba totalmente sem sentido e completamente livre de associagdes é uma tarefa para alguns dos seguidores [de Ebbinghaus|” (Gundlach, 1986, p. 469-470). Ebbinghaus planejou diversos experimentos usando a sua série sem sentido de sflabas para determinar a influéncia das varias condicoes experimentais sobre a aprendi- zagem e a retengdo humanas. Uma das pesquisas investigou a diferenca entre a veloci- dade de memorizagao das listas de silabas e a de memorizagéo daquelas com significados mais aparentes. Para determinar a diferenca, Ebbinghaus memorizou estrofes do poema “Dom Juan”, de Byron, Cada estrofe compreendia 80 silabas, e Ebbinghaus acreditava serem necessdrias aproximadamente nove leituras para a memorizacao de cada uma. Em seguida, memorizou uma seqiiéncia sem sentido de 80 silabas e consta- tou que essa tarefa exigia cerca de 80 repetigdes. Concluiu que a aprendizagem de material sem sentido e sem associagdes € aproximadamente nove vezes mais dificil que a de contetido conhecido. Ele também estudou 0 efeito do tamanho do material a ser aprendido sobre 0 niimero de repeticoes necessério para se obter uma reproducao perfeita, Constatou que, quanto mais longo o material a ser estudado, mais repetiges eram necessérias e, con- seqiientemente, mais tempo para a aprendizagem. Quando aumentou o nimero de sila- bas a serem aprendidas, 0 tempo médio de memorizacao de uma silaba também foi maior. De modo geral, esses resultados eram previsiveis: quanto maior a quantidade de material a ser estudado, mais tempo se levava para aprender. A importancia do traba- Iho de Ebbinghaus consiste no controle meticuloso das condigdes experimentais, na anélise quantitativa dos dados e na conclusao de que o tempo de aprendizagem de uma silaba — assim como o tempo total da aprendizagem — aumenta quanto mais extensa a lista de silabas. Ebbinghaus estudou ainda outras varidveis que acreditava influenciarem a aprendi- zagem e a meméria, por exemplo, 0 efeito da superaprendizagem (a repeti¢ao das listas por mais tempo do que o necessario para obter a reprodugio perfeita), as associagbes existentes nas listas, a revisio do material e o intervalo decortido entre a aprendiza- gem ea lembranca. Com a pesquisa sobre o efeito do tempo, produziu a famosa curva do esquecimento de Ebbinghaus, que demonstra que 0 material é esquecido rapida- mente nas primeiras horas ap6s a aprendizagem e mais lentamente depois disso (veja a Figura 4.1). Em 1880, Ebbinghaus foi indicado para ocupar uma posigo académica na University of Berlin, onde prosseguiu com a sua pesquisa, repetindo e verificando seus estudos ante- riores. Publicou os resultados das pesquisas no livro intitulado On memory: a contribution to experimental psychology (1885), que pode ser considerado a pesquisa mais brilhante rea- lizada por um tinico estudioso na histéria da psicologia experimental. Além de inaugurar um novo campo de estudo, importante até hoje, seu programa de pesquisas é um exem- plo de habilidade técnica, perseveranga e engenhosidade. Nao se tem noticia, na histor da psicologia, de qualquer outro pesquisador que tenha trabalhado sozinho e se subme- tido a um regime de experimentagao tao rigoroso. Sua pesquisa foi tao precisa, completa e sistematica que continua a ser mencionada nos livros atuais de psicologia, depois de mais de um século. Carituto 4 ANovaPscotoca 95 100} 20 60 9 1 2 min min horas dia dias Intervalo de retengao Figura 4.1. Curva de Ebbinghaus — curva do esquecimento das sflabas sem sentido Outras Contribuices de Ebbinghaus 4 Psicologia Em 1890, Ebbinghaus e o fisico Arthur Konig langaram a revista intitulada Journal of Psychology and Physiology of the Sense Organs. A nova revista foi bem recebida na Alemanha porque a publicacéo de Wundt, o primeiro meio de divulgagao dos trabalhos de pesquisa do laboratorio de Leipzig, nao dava mais conta de todo o trabalho produzi- do. A necessidade de uma nova publicagao, apenas nove anos apés o lancamento da evista de Wundt, é um testemunho importante do fendmeno do crescimento tanto da dimensio como da diversificacao da psicologia. Na sua primeira edigao, Ebbinghaus e Konig deram destaque as duas disciplinas que emprestaram 0 nome ao titulo da publicacdo: psicologia e fisiologia. Essas areas “tém conseqtientemente crescido juntas (..) para formar um todo; elas promovem e pressu- dem uma a outra, assim, constituem dois membros de igual importancia de uma gran- de dupla ciéncia” (apud Turner, 1982, p. 151). Essa declaragio, apenas 11 anos apés Wunat instalar o seu laborat6rio experimental, também demonstra quao longe a idéla de Wundt sobre psicologia como uma ciéncia havia chegado. Ebbinghaus nao obteve qualquer outra promogao na University of Berlin, aparente- mente por nao ter publicado mais nenhum trabalho. Em 1894, aceitou um cargo na University of Breslau, onde permaneceu até 1905, quando se transferiu para a University of Halle. Desenvolveu um exercicio de completar sentengas, varias vezes considerado 0 primeiro teste bem-sucedido sobre os processos mentais superiores. Uma forma modifi- cada dessa tarefa € utilizada em testes modernos de habilidade cognitiva, Em 1902, Ebbinghaus langou um livro de sucesso, The principles of psychology, dedi- cado a meméria de Fechner, ¢ em 1908 publicou A summary of psychology, voltado ao Piiblico mais leigo. Os dois livros tiveram varias edicdes e, apés sua morte por pneumo- nia, em 1909, foram revisados por outros escritores. Entre as contribuigoes de Ebbinghaus nao consta nenhuma teoria, sistema formal ou disciplina. Ele nao fundou nenhuma escola e nem parecia ser essa a sua inteng3o. No entanto, ele € importante nao apenas no estudo da aprendizagem e da meméria, a0 qual deu inicio, como também na psicologia experimental como um todo. 96 HistoRA 04 PSICOLOKGIA MODERNA Uma medida do valor historico geral do cientista é dada pelo tempo durante o qual persiste a sua contribuicao. Seguindo esse parametro, Ebbinghaus pode ser considerado de maior importancia do que Wundt. Sua pesquisa proporcionou objetividade, quantifi- ‘cagao e experimentagio para o estudo da aprendizagem, t6pico que continua central na Psicologia do século XX. Gracas a visio e a dedicagto de Ebbinghaus, as pesquisas rela- cionadas com a associagao deixaram de basear-se em mera especulagdo sobre os seus atri- butos e passaram a investigacio cientifica formal. Mais de um século depois, muitas das suas conclusoes a respeito da natureza da aprendizagem e da memoria ainda permane- ccem validas, oO Hist6ria On-line http://www.thoemmes.com/psych/ebbing. htm Esse endereco apresenta um debate sobre os métodos de pesquisa de Ebbinghaus, http://psychclassics.yorku.ca/Ebbinghaus/ Esse site contém 0 texto completo do livro On memory: a contribution to experimental psychology (1885), de Ebbinghaus. Franz Brentano (1838-1917) Com cerca de 16 anos, Franz Brentano iniciou os estudos para o sacerdécio. Freqlientou as universidades de Berlim, Munique e Tibingen, na Alemanha, e formou- se em filosofia em Tubingen, em 1864, Foi ordenado nesse ano e dois anos mais tarde comecou a lecionar filosofia na University of Warzburg, onde também escrevia ministrava aulas a respeito do trabalho de Aristételes. Em 1870, 0 Concilio do Vaticano, reunido em Roma, aceitou a doutrina da infalibilidade papal, idéia a qual Brentano se opés, Renunciou ao cargo de professor a que havia sido indicado como padre e deixou a igreja. © livro mais famoso de Brentano, Psychology from an empirical standpoint, foi pul cado em 1874, ano do langamento da segunda parte da obra de Wundt, Principles of physiological psychology. A publicagao de Brentano contradizia diretamente as visoes de ‘Wundt, confirmando a divergéncia ja aparente na nova psicologia. Naquele mesmo ano Brentano foi indicado para ser professor de filosofia da University de Vienna. Permaneceu na Austria por 20 anos e sua influéncia aumentou consideravelmente. Professor popular, muitos de seus alunos acabaram destacando-se na psicologia e entre os mais brilhantes estao Christian von Ehrenfels e Sigmund Freud. Em 1894, Brentano aposentou-se como professor, mas continuou estudando e escrevendo, dividindo o tempo entre a Suica e a Itélia 3” Freud ireqientou cinco cursos de Brentano © mals tarde refeiu-se a ele como um “pEnlo" @ um "cara mato exper. to" (Gas, 1988, p29) CariruL0 4 —ANovaPsicovoca 97 Brentano € considerado um dos mais importarites psicblogos do inicio da disciplina devido a diversificacao de scus interesses. Foi precursor intelectual das escolas da psicolo- gia da Gestalt e da psicologia humanista, além ter compartilhado com Wundt a idéia de transformar a psicologia em cigncia. Enquanto a psicologia de Wundt era experimental, ‘a de Brentano era empirista. Embora nao rejeitasse totalmente 0 experimentalismo, Brentano considerava a observacio, e nao a experimentacio, 0 principal método da psi- cologia. Acreditava que a abordagem empirista caracterizava-se por um escopo geralmen- te mais amplo, ja que aceitava, além dos dados da observacdo e da experiéncia individual, 0s da experimentacao. O Estudo dos Atos Mentais Brentano se opunha a idéia de Wundt de que a psicologia devia estudar 0 conteado da experiéncia consciente. Seu argumento era que o proprio objeto de estudo da psicologia 6a atividade mental, por exemplo, o ato mental de ver, € no 0 contetido mental do que 6 visto. Desse modo, a psicologia do ato de Brentano contestava a nocao wundtiana de que 0s processos mentais envolvem contetido ou elementos. Psicologia do ato: sistema de psicologia de Brentano, que se concentra nas atividades mentais (por texemplo, no ato de ver) e nao no conteuido mental (por exemplo, no que se v). ta cee tire tea Seen es sate oe Ble afirmava que uma distingdo devia ser feita entre a experiéncia como uma estru- tura e a experiéncia como uma atividade. Por exemplo: ao olhar para uma flor vermelha, ‘0 contetido sensorial do objeto vermelho ¢ diferente do ato de perceber ou sentir a ver- melhidao, Para Brentano, o ato de perceber a cor vermelha é um exemplo do verdadei- 10 objeto de estudo da psicologia, Declarou que a cor consiste em uma qualidade fisica, ‘mas o ato de ver a cor é uma qualidade ou atividade mental. £ evidente que 0 ato envol- ve necessariamente um objeto; sempre deve haver algum contetido sensorial, pois 0 ato de ver no tem 0 menor sentido sem a presenga do elemento a ser visualizado. A redefinicao de Brentano acerca do objeto de estudo da psicologia exigiu um meéto- do de analise diferente, ja que 0 ato, ao contrario do contetido sensorial, nao é acessivel por meio da introspeccao, método de percepgao interna que Wundt ¢ seus alunos esta- vam utilizando no laboratério de Leipzig. O estudo dos atos mentais exigia uma obser- vagdo em larga escala. Essa é a razio da preferéncia de Brentano pelos métodos mais ‘empiristas do que experimentais para a psicologia do ato. Sua proposta nao era o retor- no a filosofia especulativa. £ importante lembrarmos que, apesar de nao ser experimen- tal, o método de Brentano dependia da observacio sistematica. Brentano aperfeigoou duas formas de estudo dos atos mentais: 1. por meio do uso da meméria (a lembranga dos processos mentais envolvidos em um determinado estado mental); 2. por meio do uso da imaginacao (imaginando um estado mental e observando os processos mentais que ocorrem). Embora a posicdo de Brentano atraisse um grupo de seguidores, a psicologia wund- tana continuava a ter destaque. Por lancar mais publicagées do que Brentano, a posica0 98 HistoR1A D4 PscoLocia MonERNA de Wundt era mais conhecida. Além disso, os psicologos admitiam ser mais facil estudar as sensagdes ou 0 contetido consciente com os métodos da psicofisica do que usando a ‘observacdo para analisar os atos mais evasivos. oO Hist6ria On-line http://www.formalontology.it/brentanof.htm Esse site contém os dois primeiros capitulos da obra Psychology from an empirical standpoint (1874), de Brentano, e uma lista de artigos sobre o seu trabalho, além de um fink para o International Yearbook of Franz Brentano Studies (publicado em alemao, mas com alguns artigos em inglés). Carl Stumpf (1848-1936) Nascido em uma familia de médicos na Bavaria, Carl Stumpf tomou contato com a cién- cia muito cedo, mas desenvolveu grande interesse pela miisica. Aos sete anos, comecou a estudar violino e acabou aprendendo a tocar perfeitamente outros cinco instrumentos ¢ a0 10 anos, jé compunha, Quando freqiientou a University of Wiirzburg, interessou-se pelo trabalho de Brentano e concentrou a atengio na filosofia e na ciéncia. Por recomen- dagio de Brentano, Stumpf cursou a University of Gottingen, onde obteve 0 doutorado em 1868. Ocupou varias posigdes académicas nos anos seguintes enquanto realizava seu trabalho na nova psicologia. Em 1894, foi indicado para ocupar a mais alta e honrosa posi¢ao como professor de psicologia da Alemanha, na University of Berlin. Os anos nessa universidade foram extremamente produtivos. Conseguiu transformar seu laboratorio original, composto de trés pequenas salas, em um grande e importante instituto. Embora seus trabalhos nao abrangessem 0 mesmo escopo dos de Wundt, foi consideraco seu maior rival. Stumpf fol professor de dois psic6logos que viriam a fundar a psicologia da Gestalt (Capitulo 12), uma escola de pensamento que se opds as visoes de Wundt. Os primeiros trabalhos produzidos por Stumpf eram a respeito da percepcdo espa- ial; no entanto seu trabalho de maior impacto, resultado do seu eterno interesse pela miisica, foi Psychology of tone, publicado em dois volumes (1883 e 1890). Esse trabalho e © posteriores, relacionados com a mUsica, renderam-Ihe a segunda posigdo no campo da actstica, perdendo apenas para Helmholtz, e ambos foram considerados pioneitos no estudo psicologico da misica. A Fenomenologia A influéncia de Brentano explica por que Stumpf aceitava o tratamento nao tao rigo- roso da psicologia quanto Wundt acreditava ser necessdrio. Stumpf alegava serem 0s fendmenos os dados mais importantes para a psicologia. A fenomenologia, tipo de Introspeccao defendida por Stumpf, refere-se ao exame da experiéncia imparcial, ou seja, 4 experiéncia tal qual ela ocorre. Ele digcordava da posi¢ao de Wundt de dividir a expe- CAPTULO 4 ANova PsicoLocl 99 riéncia em elementos. Acreditava que analisar a e&periéncia mediante a reducdo em con- tetido ou elementos mentais acabava tornando-a artificial e abstrata e a levava a deixar de ser natural.# Fenomenologia: método de introspeccao de Stumpt de exame da experiencia conforme ela ocor- fe, sem reduz-la aos componentes elementares. Também uma abordagem do conhecimento baseada em uma descricZo imparcial da experiéncia imediata conforme ela ocorte e nao analisada ‘ou reduzida a elementos, Em uma série de publicacdes, Stumpf e Wundt travaram uma batalha dura a respei- to da introspeccao dos tons. Stumpf iniciou o debate no nivel teérico, mas Wundt levou- © para 0 lado pessoal, apimentando as polémicas com “dentncias contundentes” (Stumpf, 1930/1961, p. 441). As discussdes giravam em toro de algumas questoes basi- ‘cas: de quem eram os relatos introspectivos de maior credibilidade? Nos relatos das expe- rigncias musicais, devemos aceitar os resultados dos observadores altamente treinados do laboratério de Wundt ou dos miisicos especializados de Stumpf? Stumpf simplesmen- te se recusou a aceltar 05 resultados do laboratorio de Wundt. ‘Stumpf continuou a escrever sobre mtisica e acistica e, nesse periodo, estabeleceu um centro para a coleta de gravagdes de misicas originarias de varios pafses do mundo. Fundou a Berlin Association for Child Psychology (Associagao de Psicologia Infantil de Berlim) e publicou a teoria da emogio, que tentava reduzir os sentimentos a sensacoes, idéia importante para as teorias cognitivas contemporaneas da emogio. Assim, Stumpf fol um dos varios psicologos alemaes a trabalhar independentemente de Wundt para expandir as fronteiras da psicologia. Oswald Kiilpe (1862-1915) Inicialmente, Oswald Kéllpe foi seguidor de Wundt, mas acabou liderando um protes- to estudantil contra o que chamou de limitagdes da psicologia wundtiana. Kilpe dedi- cou toda a sua carreira a trabalhar com os problemas ignorados pela psicologia de Wundt. Em 1881, Kiilpe iniciou os estudos na University of Leipzig, Planejava estudar hi toria mas, por influéncia de Wundt, passou para a filosofia e para a psicologia experi- ‘mental, a qual ainda estava dando os passos iniciais. Depois de se formar, tornou-se professor adjunto e assistente de Wundt, realizando pesquisas no laboratorio de psico- logia. Um aluno chamou-o de uma “espécie de mae” do laboratério porque estava sempre disposto a ajudar os estudantes a resolverem os problemas (Kiesow, 1930/1961 p. 167). Kiilpe escreveu um manual introdut6rio, Outline of psychology (1893) € dedicou-o a Wundt. No livto, definia a psicologia como a ciéncia dos fatos da experiéncia dependen- tes do individuo que a vivencia, Em 1894, Killpe aceitou 0 cargo de professor da University of Wurzburg e dois anos mais tarde implementou um laborat6rio de psicologia que logo rivalizaria em importan- {+ Umaluno de Stamp, Edmund Hassel, mas tarde propts a Hlosafia da fenomenologla, movimente precursor da pa cologa da Gestalt (veja no Capitulo 12), 100 HistoRi D4 PsicoLoci MooERNA cla com o de Wundt. Entre os estudantes atraidos a Wiirzburg estavam diversos ameri- canos, incluindo James Rowland Angell, que se tornou o pivé do desenvolvimento da escola de pensamento funcionalista (Capitulo 7). Kulpe dedicou-se a vida toda aos alu- nos e as pesquisas. Nunca se casou ¢ tinha orgulho de dizer que “a minha noiva é a cién- ia” (apud Ogden, 1951, p. 4). Divergéncias entre Kiilpe e Wundt Em Outline of psychology, Kulpe nao questionou 0 processo de pensamento, pois concor- dava com a visdo de Wundt sobre a impossibilidade da andlise experimental dos proces- sos mentais superiores, Entretanto, apenas alguns anos depois, Killpe convenceu-se do contrario. Afinal, Ebbinghaus estava estudando a meméria, outro processo mental supe- rior, Se a meméria era passivel de analise em laboratério, por que nao o pensamento? Ao formular essa pergunta, obviamente Killpe estava desafiando a definigao de Wundt acer- ca do escopo da psicologia. A Introspeccao Experimental Sistematica Outra diferenga entre a psicologia praticada em Wiirzburg ¢ em Leipzig refere-se a intros- pecedo. Killpe desenvolveu um método que chamou de introspeccao experimental sis- tematica, que envolvia, primeiro, a execucao de uma tarefa complexa (como estabelecer conexdes logicas entre conceitos) e, em seguida, a coleta dos relatos individuais sobre os rocessos cognitivos ocorridos durante a realizacao da tarefa. Em outras palavras, as pes- soas realizavam alguns processos mentais, como o pensamento ou o julgamento, € depois examinavam como haviam pensado ¢ julgado. Wundt nao permitia no seu labo- rat6rio 0 uso dessa descrigao retrospectiva ou apés o fato. Ele analisava a experiéncia consciente a medida que ela ocorria e nao a lembranga do fato ocorrido, Decepcionado ‘com a metodologia de Killpe, chamou-a de “falsa” introspeccio. es Introspeccao experimental sistemética: método de introspeccao de Kilpe que usava rola ‘tos retrospectivos de processos cognitivos das pessoas, aps elas terem completado uma tarefa experimental. a A abordagem de Kilpe era sistematica porque a experiéncia total podia ser descrita precisamente pela sua divisdo em perfodos de tempo. As tarefas semelhantes eram repe- tidas diversas vezes, de modo que permitissem a correcdo, a confirmagio e a ampliagio dos relatos introspectivos, os quais eram normalmente complementados com mais per- guntas, dirigindo a atencao do individuo a pontos especificos. Outras difereneas existiam entre as abordagens introspectivas de Kiilpe e de Wundt, © qual nao concordava com 0 método de os individuos descreverem em detalhes suas experiéncias conscientes subjetivas. A maior parte da sua pesquisa concentrava-se nas medigdes objetivas e quantitativas, como o tempo de reacdo ou a percepgao do peso na Pesquisa psicofisica. Por outro lado, a introspeccao experimental sistematica de Killpe dava énfase aos relatos individuais detalhados, qualitativos e subjetivos acerca da natu- reza dos processos de pensamento. Killpe desejava dos participantes da sua pesquisa mais. Cariruo 4 ANovaPsicoocia 101 do que um simples julgamento da intensidade do estimulo. Ele Ihes pedia para descre- verem as operacdes mentais complexas realizadas durante a execucdo da tarefa. £ possivel perceber que, na introspeccao experimental sistematica de Kiilpe, 0 pes- quisador assumia um papel mals ativo no proceso de pesquisa. No laboratério de Wundt, 0 envolvimento do pesquisador limitava-se a apresentagio do material de esti- mulo e ao registro dos resultados das observacdes. Portanto os pesquisadores de Wundt no interferiam nas observagdes em si. No entanto, na abordagem de Kilpe, os pesqui- sadores faziam perguntas diretas aos observadores, tentando explicitar os detalhes das suas reagdes aos estimulos experimentais. Esse tipo de questionamento exigia dos observadores um trabalho arduo para des- creverem culdadosamente e com preciso os fatos mentais complexos que vivenciavam. Kalpe desejava obter mais informagées do que somente as referentes ao tempo de rea- ‘co, A percepgio de peso ou outras medigdes quantitativas. Um historiador chegou a afir- mar que, na verdade, Killpe estava expandindo os limites estreitos da forma de intros- pecedo de Wundt (Danziger, 1980). Em resumo, a abordagem de Kilpe objetivava diretamente a investigagao acerca do que acontecia na mente do individuo durante a experiéncia consciente. Suas metas eram. expandir 0 conceito de Wundt sobre o objeto de estudo da psicologia para englobar os, processos mentais superiores € aprimorar 0 método de introspecgao. Pensamentos sem Imagens Qual o resultado da campanha de Kilpe para expandir e aperfeigoar o objeto € o méto- do de estudo da psicologia? Wundt afirmava que toda experiéncia é composta de sensa- ‘GOes € imagens e tentava reduzir a experiéncia consciente a essas partes componentes. Todavia os resultados da introspeccao direta de Kélpe nos processos de pensamento reve- laram o contrério: que o pensamento pode ocorrer sem qualquer contetido sensorial ou imagistico. Essa descoberta foi definida como pensamento sem imagens, para represen- tar a idéia de que os significados, no pensamento, nao requerem necessariamente ima- ‘gens especificas e, assim, a pesquisa de Kalpe identificou 0 aspecto ndo-sensorial da consciéncia.S i Pensamento sem Imagens: a idéla de Kilpe de que o significado pode ocorrer no pensamento sem qualquer componente sensorial ou imaginario, cena Topicos de Pesquisa do Laboratorio de Wiirzburg Kallpe e seus alunos realizaram pesquisas sobre diversos topicos. O estudo de Karl Marbe sobre o julgamento comparativo de pesos foi uma contribuicdo importante, pois cons- tatou que, apesar de as sensagdes e imagens estarem presentes durante a tarefa, elas 3 Ouro exemplo de descoberta simultanea: a pensamento sem imagem fol proposto independentemente, quase na mesma epoca, pelo psicélogo americano Robert Woodworth (Capitulo 7} e pelo psicdlogo francés Alved Binet (Capitulo 8). 102 Hist6R 0a PscoLoGiA MODENA parecem nao tomar parte do proceso de julgamento. Os individuos nao foram capazes de descrever como os julgamentos de pesado ou leve ocorriam mente. Essa descober- ta contradizia a nogdo aceita de que, ao realizar esses julgamentos, os individuos reti- nham a imagem mental do primeiro peso e a comparavam com a impressdo sensorial do segundo. ‘O estudo de Henry Watt demonstrou que, em uma tarefa de associagao de palavras (em que se pedia as pessoas para responderem a uma palavra de estimulo), os indivi- duos ofereceram poucas informagdes relevantes sobre © processo consciente de julga- mento, Essa descoberta reforgou a alegacao de Killpe de que a experiéncia consciente nao pode ser reduzida exclusivamente a sensagdes ¢ imagens. Os participantes da pes- quisa de Watt foram capazes de responder corretamente, sem nenhuma intengao de assim proceder no momento de formtlar a resposta. Watt concluiu que o trabalho cons- ciente fora realizado antes de a tarefa ser executada — quando as pessoas receberam e entenderam as instrugées. ‘As pessoas envolvidas no trabalho de Watt aparentemente estabeleceram um ambiente inconsciente ou uma tendéncia determinante para responder da forma deseja- da, no momento em que compreenderam as instrugdes. Quando as regras da tarefa foram compreendidas e a tendéncia determinante adotada, a tarefa em si foi realizada com pouco esforco consciente. Essa pesquisa indicou que as predisposigdes externas a consciéncia eram capazes, de alguma forma, de controlar as atividades conscientes. essa maneira, a experiencia foi considerada dependente nao apenas dos elementos conscientes, como também das tendéncias determinantes inconscientes, supondo que a ‘mente inconsciente pode influenciar 0 comportamento humano. Essa nogio foi adota- da posteriormente por Sigmund Freud na sua escola de pensamento psicanalitica. Comentarios Observamos que, logo apés a fundacao formal da psicologia, surgiram muitas divisoes € controvérsias, Entretanto, apesar de todas as divergéncias, os primeiros psicélogos esti- veram unidos em torno de um tinico objetivo: o desenvolvimento de uma ciéncia da psi- cologia independente. Mesmo com as diversas visoes quanto ao objeto ao método de estudo da psicologia, Wundt, Ebbinghaus, Brentano, Stumpf e outros mudaram defi vamente a perspectiva do estudo da natureza humana. Um escritor observou que, devi- do aos esforcos desses intelectuais, a psicologia ndo era mais, um estudo da alma [mas] um estudo, por meio da observagdo e da experiéncla, de cer- tas reagdes do organismo humano no inclufdas como objeto de estudo de qualquer outra ciéncia. Os psicblogos alemaes, apesar de todas as suas diferencas, estavam total- mente comprometidos com um objetivo comum; e a capacidade, o empenho e a dire- 20 comum de seus trabalhos contribuiram para 0 desenvolvimento das universidades alemas, transformando-as no centro do novo movimento na psicologia. (Heldbreder, 1933, p. 105.) A Alemanha logo deixou de ser o centro do movimento. E. B. Titchener, aluno de ‘Wundt, Ievou aos Estados Unidos uma nova versio da psicologia do seu fundador. > Carituio 4 ANovaPscovocin 103 Temas para Discussao 1. Por que Wundt é considerado o fundador da nova psicologia e nao Fechner? Qual a diferenga entre “fundagao” e “criagao” de uma ciéncia? 2. Defina a psicologia cultural de Wundt. Como ela contribuiu para a divisio interna da psicologia? Por que a psicologia cultural teve pouco impacto nos Estados Unidos? 3. Qual a influéncia dos trabalhos dos fisiologistas alemaes e dos empiristas bri- tanicos na psicologia de Wundt? Descreva 0 conceito de voluntarismo. 4. Quais sao os elementos da consciéncia? Qual o papel desses elementos na vida mental? 5. Aponte a diferenca entre a experiéncia mediata e a imediata. Descreva a metodologia e as regras de introspec¢o adotadas por Wunat. Ele defendia a introspecgao quantitativa ou qualitativa? Por qué? 6. Aponte a distingao entre a percepgdo interna e a externa. Qual o objetivo da apercep¢io? Como a apercepgio esté relacionada com os trabalhos de James Mill e John Stuart Mill? 7. Descreva o destino da psicologia wundtiana na Alemanha. Em que se basea- va a critica ao sistema de Wundt? 8. Descreva a pesquisa de Ebbinghaus sobre a aprendizagem e a meméria. Qual 4 influéncia de Fechner sobre esse trabalho? 9. Qual a diferenga entre a psicologia do ato de Brentano e a psicologia wund- tana? Qual a divergéncia entre Stumpf e Wundt em relagao a introspeccio © redugao da experiéncia a elementos? 10. Defina a introspecc4o experimental sistemética de Killpe. Qual a diferenga entre a abordagem de Kilpe e a de Wundt? Como a idéia do pensamento sem imagens desafiou 0 conceito de experiéncia consciente de Wundt? Sugestoes de Leitura Baldwin, B. T. In memory of Wilhelm Wundt by his American students. Psvchological Review, n. 28, p. 153-158, 1921. Lembrangas dos estudantes americanos de Wundt. Benjamin Jt, L. T; Durkin, M.; Link, M.; Vestal, M., e Acord, J. Wundt's American doc- toral students. American Psychologist, n. 47, p. 123-131, 1992, Menciona os estudan- tes americanos orientados por Wundt no programa de doutorado e descreve 0 impacto de Wundt em suas carreiras. Danziger, K. A history of introspection reconsidered. Journal of the History of the Behavioral Sciences, n. 16, p. 241-262, 1980. Descreve como a introspecgio wundtia- na limitava-se a respostas simples aos estimulos sensoriais e como 0 método foi expandido por outros psicélogos para incluir respostas subjetivas as perguntas dos pesquisadores. Langfeld, H. S. Stumps “Introduction to Psychology”. American Journal of Psychology, n. 50, p. 33-56, 1937. Descreve o curso Introdutério de psicologia ministrado por Stumpf entre 1906 e 1907 na University of Berlin 104 HisTox14 D4 PICOLOGIA MoneRN Lindenfeld, D. Oswald Kilpe and the Wurzburg School. Journal of the History of the Behavioral Sciences, n. 14, p. 132-141, 1978. Descreve o impacto das visoes filosofi- cas de Killpe no seu conceito de psicologia ¢ analisa sua importancia no desenvolvi- mento do campo. ‘Ogden, R. M. Oswald Kalpe and the Wairzburg School. American Journal of Psychology, n. 64, p. 4-19, 1951. Outra perspectiva das contribuigdes de Killpe para a evolugao da psicologia moderna. Postman, L. Hermann Ebbinghaus. American Psychologist, n. 23, 149-157, 1968. Descreve as contribuicdes de Ebbinghaus ao estudo experimental da memoria.

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