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A orgia de
Tulio Carella
sai da
clandestinidade
Leusa Araujo
Orgia: os Diários de Tulio Carella, Recife 1960, tradução de Hermilo Borba Filho,
introdução e notas de Álvaro Machado, São Paulo, Opera Prima, 2011, 312 p.
Reprodução
Vista do Recife
da prosa Trans-Atlantico, escrita pelo polo- blicos, agora erotizados – mictórios, becos
nês Witold Gombrowickz entre os anos de escuros, balaustradas de pontes, degraus do
1949-63, em Buenos Aires. Trata-se também cais onde homens se reúnem para “mijar e
de outro importante relato sobre a condição cagar” –, somos levados a sentir o cheiro
homossexual, mas numa paisagem urbana fétido da urina e a ouvir o som das subs-
hostil e violenta: “Para manter esse risco tâncias corporais. “Vejo as gotas de esperma
dentro de limites suportáveis, porém, Gon- brotando e caindo na calçada com um som
zalo finge ser seu próprio criado, de forma apagado, leve”.
que seus parceiros não percebam quão rico Longe de reivindicar uma aceitação para
ele, na verdade, é. Gonzalo acredita que, caso o homossexual nos moldes do que sucederá
não procedesse assim, já teria sido morto”8. mais tarde com as bandeiras do movimento
Em Orgia, apesar do olhar estrangeiro, gay dos anos 1970, o personagem-autor não
as observações às vezes clínicas das relações esconde a angústia provocada pela sucessão
homossexuais não se traduzem em lingua- de encontros, que se desgastam com rapidez,
gem afastada. As experiências sexuais são já que nem todos são capazes de proporcio-
narradas na intimidade, de maneira a con- nar a mesma vibração erótica. E, assim, cai
vencer o leitor de que Lucio é homem de car- num tema recorrente na literatura homo-
ne e osso e não personagem ficcional, o que erótica: a angústia resultante de uma vida
excita alguns e escandaliza outros. Nenhum dupla que requer permanente dissimulação.
leitor, entretanto, será poupado da narrativa Mas, então, o que há de novo nessa orgia
que se detém (e não por acaso) na obscenida- tropical? Seduzido pelos negros nordestinos,
de dos corpos e nas funções excremenciais, Carella introduz o tema da conciliação entre
8 Idem, ibidem, p. 164. de que tanto fala Bataille. Nos espaços pú- o homoerotismo e o verdadeiro afeto. Xa-
da universidade e, depois, à cela da prisão na minguados exemplares de uma única edi- 10 Picaresca Porteña.
Estudo sobre os Pros-
Ilha de Fernando de Noronha? ção, correrá de mão em mão em fotocópias tíbulos e os Costumes
A impressão que Orgia nos deixa é de e será conhecido de poucos leitores brasilei- Sexuais em Buenos
que Carella não poderia imaginar o quanto ros, por meio de trechos eróticos citados no Aires, Buenos Aires,
Ediciones Siglo XX,
ele próprio seria martirizado na vida real. livro Devassos no Paraíso13, de João Silvério 1966.
Preso por militares brasileiros, sob a absur- Trevisan, em 1986. Entre seus admiradores, 11 Tulio Carella, Orgia
da acusação de contrabando de armas para está a escritora Hilda Hilst, que se ocupará – Livro Primeiro, tra-
dução de Hermilo
Cuba em favor das Ligas Camponesas, foi do tema do homoerotismo, tanto em Peque- Borba Filho, Rio de
torturado, recluso em Fernando de Noronha, nos Discursos (1977) quanto em Rútilo Nada Janeiro, José Álvaro
até ser deportado informalmente, em colabo- (1993)14. Em ambos, o personagem homos- Editor, 1968.
ração com o comando militar do Recife. O sexual pagará o preço por sua transgressão 12 Tulio Carella, Cuader-
nos del Delirio, Buenos
episódio ainda é cercado de lacunas, espe- com a morte trágica. Aires, Editorial Goya-
cialmente quanto à reação do meio acadêmi- A atual edição brasileira, mais do que narte, 1959.
co e à participação do reitor da Universidade resgatar um clássico da literatura erótica, traz 13 João Silvério Trevisan,
Federal de Pernambuco. “Os alunos o ‘vene- ao leitor a chance de conhecer tanto a ferti- Devassos no Paraíso,
São Paulo, Record,
ravam’, “seu discurso provocava sensação”. lidade do pensamento latino-americano nos 1986.
Confessa-se obstinado pelas ideias de Paulo anos 1960, como mais esse horror de Estado: 14 Hilda Hilst, Rútilos, São
Freire, e de outros educadores mexicanos, de terem nos privado de Tulio Carella. Paulo, Globo, 2003.