Você está na página 1de 15

Ana Catarina Cecília Fontes

Bento Coelho da Silveira e a representação mari-


ana da Anunciação (séc. XVII-XVIII)

Arte do Barroco em Portugal

Curso: História da Arte

Disciplina: Arte do Barroco e do Rococó em Portugal

Docente: Teresa Leonor Magalhães do Vale

Ano letivo: 2019/2020

1
Lisboa, 2020
Introdução:

Ao longo da realização deste trabalho irá ser abordado o contexto histórico, social, reli-
gioso e artístico em que o artista Bento Coelho da Silveira estaria inserido entre o seculo
XVII e inicio do seculo XVIII. Posto isto, irei fazer uma breve apresentação bibliográfica
do autor entrando dentro do contexto artístico específico do seiscentos e inícios do sete-
centos. Dar-se-á um analise iconográfico da obra tendo em conta os religiosos que a
mesma contrai.

Em termos de contexto histórico teremos de recuar um pouco para assim poder explicar
a linha evolutiva no poder da Coroa e como foi implementado em Portugal certos tipos
de influências. D. João III (1521-1557) ofereceu um reinado cauteloso, devido aos sinais
da crise que se avisava (pestes, maus anos agrícolas, fomes) e as dificuldades da própria
Coroa. Este foi responsável por diversas reformas administrativas, como a criação de dis-
tritos e a incorporação de Ordens Militares de Avis, Cristo e Santiago na realeza, aumen-
tando o seu poder régio. Foi durante o reinado de João III que a Inquisição se instalou em
Portugal, foi também com o mesmo, que as relações com Espanha se fortificaram, cele-
brando o casamento de sua irmã, a infanta D. Isabel com o Sacro-Imperador Romano-
Germânico e rei de Espanha Carlos V1. Foi no seu reinado que se realizou (1519-1521) a
volta da circum-navegação ao globo por Fernão Magalhães, terminada por Sebastian d’El
Cano.

Foi neste mesmo reinado que se realizou também a colonização do Brasil (criando em
1549 o governo-geral do Brasil), as primeiras tentativas da colonização de Angola e a
expansão do Estado da India no Oriente. A 1557 o reinado foi deixado ao neto de D. João
III, D. Sebastião ainda antes de nascer, visto que os filhos de D. João III teriam morrido
precocemente. Durante a menoridade de D. Sebastião, quem ficou a cargo do reino (1557-
1562) foi a rainha D. Catarina, já entre 1562 e 1568 o reino ficou a cargo de D. Henrique,
devido aos seus altos cargos privilegiados. D. Sebastião sempre se demonstrou bastante
interessado pela vida militar e é na batalha de Alcácer Quibir que este desaparece, poste-
riormente dado como morto. Posto isto, o seu familiar mais próximo, tio-avô, seria o
cardeal-infante D. Henrique. Visto que este teria já uma idade avançada, para este poder
casar ou produzir herdeiros teria de pedir licença ao Papa, e uma vez que D. Filipe II, rei
de Espanha, teria todo o interesse no trono português, devido a ser um pretendente ao

1
Ferreira D. e Dias P. (2016) História de Portugal, 1ª edição, verso de kapa, Lisboa, página 80.
2
Lisboa, 2020
trono, este teve sobre o Papa grande pressão diplomática pelo que D. Henrique nunca
recebeu tal confirmação. Contudo em 1580 D. Henrique morre sem deixar herdeiro, dei-
xando assim o trono ao abandono do destino.

Foi no mesmo ano que o prior do Crato pediu a Filipe II que fizesse do mesmo, governa-
dor perpetuo, coisa que D. Filipe não deixou. Por sua vez António Crato reuniu apoiantes,
fazendo-se proclamar rei em Santarém, ainda assim na batalha de Alcântara, António foi
derrotado pelo exército de D. Filipe II. Assim, D. Filipe II chegou ao poder não só por ser
filho legitimo da infanta D. Isabel II com D. Manuel I (1495-1521) mas também por ter
“garantido” o apoio da nobreza com tal promessa de entrega de títulos, terras e dinheiro.

A autonomia de Portugal só foi estabelecida com o Tratado Tomar (1581), com este pacto
conseguiu-se o estatuto de reino herdado, sujeito assim a um governo diferente, coman-
dado apenas por portugueses, criando um Conselho de Portugal (1582) dentro da Monar-
quia Hispânica, estabelecido por Filipe I (Filipe II-Espanha), que servia de apoio ao rei
nos assuntos internos da Coroa. Com a sua morte em 1598, este deixa o trono para Filipe
III de Espanha e II de Portugal (1598-1621)2. Contudo Filipe II estando em Espanha, não
acompanhava de perto os assuntos de corte, ainda que com o Conselho de Portugal esta-
belecido em Madrid, o descontentamento português era grande. Com a morte de Filipe II
a 1621, o seu filho, D. Filipe IV de Espanha e III em Portugal subiu ao trono, ainda assim,
Filipe III de Portugal manteve-se em Espanha, tal como o Conselho Português em Ma-
drid. Posto isto o governo de D. Filipe III vê-se marcado pela liderança de um nobre,
Conde-duque de Olivares. Com todo o descontentamento do povo português por parte
das governações impostas sucederam-se diversos motins violentos por toda a Monarquia
Hispânica. Posto isto em 1640 um grupo de fidalgos levaram a cabo um golpe palaciano
em Lisboa, pelo que o duque de Bragança foi aclamado rei D. João IV (1640-1656), isto
foi motivado pelo crescente descontentamento dos Portugueses face às políticas do
conde-duque de Olivares em acabar com as leis e instituições próprias de Portugal. A
primeira fase da guerra da Restauração assim abarcou todo o reinado de D. João IV (1640-
1656), ainda assim este conseguiu manter Portugal isolado e excluído de tratados inter-
nacionais. Entretanto Portugal teve bastantes revoltas internas e externas, especificamente
por parte de Espanha, pelas quais este sempre contou com o apoio dos Franceses e Ingle-
ses, contudo uma das grandes consequências foi a queda da economia, pelo qual Portugal

2
Idem. Página 86.
3
Lisboa, 2020
não pode enviar auxílio ao Brasil ou a Africa que estariam sendo atacados pelas Provín-
cias Unidas3. D. Afonso VI ascende ao poder em 16564, e durante seis anos Portugal
passou por variadas guerras civis com Espanha e foi só em 1668 que Portugal assinou um
tratado de paz com Espanha e foi reconhecido internacionalmente como um reino inde-
pendente da Monarquia Hispânica, onde há que reconhecer o apoio de França na luta
contra a Monarquia Hispânica embora não auxiliado de forma direta, ainda assim Ingla-
terra foi quem mais prestou auxilio a Portugal.

D. Afonso VI a 1668 foi declarado como incapaz de governar e incapaz de procriar her-
deiros, assim afastado do poder, sua mulher, D. Maria Francisca casou-se com o infante
D. Pedro (irmão do mesmo). Assim D. Pedro esteve na regência até á morte do irmão,
ainda que só tenha assumido a coroa após a morte do mesmo (1683) passando a ser co-
nhecido como D. Pedro II, foi este quem assinou os tratados de paz com as províncias
unidas e com a Monarquia Hispânica. Na época, o Brasil era visto como o principal sus-
tento da Coroa. D. Pedro II teve como grande último ato a sua participação na Guerra de
Sucessão de Espanha (1702-1713). Com a morte de D. Pedro II sucederam-se grandes
campanhas para o reinado do seu filho D. João V. Com D. João V, no seculo XVIII, o
Brasil torna-se importante para Portugal devido ao início do ciclo do ouro e das pedras
preciosas que foi alimentando assim os gastos do reinado de D. João V.5

O reinado de D. João V foi marcado pelo absolutismo joanino (1707-1750) que era bas-
tante influenciado pelo modelo do rei Luís XIV de França e obras como O Rei é Rei
porque Deus quer (1681)6 atingindo-se uma grande relevância para a afirmação do re-
gime político e principalmente pelo facto de D. João V admirar a governação do “Rei Sol
francês” (Luís XIV)7. D. João V ficou conhecido como O Magnânimo devido a ter go-
vernado o Pais numa época de grande riqueza e também devido a descoberta de materiais
nobres (ouro e diamantes) brasileiros. Denota-se na governação de D. João V que este
tentou reproduzir o luxo e a grandiosidade que ostentava a corte francesa em Portugal.
Este adotou uma imagem aonde o monarca deveria de ser o centro das atenções e onde
todo o povo deveria de prestar vassalagem. É aqui onde o ambiente de luxo, os trajes, o
espetáculo, a ópera e os banquetes são os símbolos mais claros de uma vida de luxo. Em

3
Idem. Página 94.
4
Ainda que com 13 anos, foi a sua mãe que assumiu a regência.
5
Idem. Página 101.
6
Idem. Página 107.
7
Idem. Página 108.
4
Lisboa, 2020
si o equilíbrio financeiro, social e artístico da monarquia joanina baseou-se na prosperi-
dade económica brasileira demonstrando uma clara dependência de Portugal perante o
Brasil

Entretanto o estilo artístico por excelência nestes séculos de XVII a XVIII seria o Bar-
roco, por toda a Europa (Itália, Portugal, Espanha e entre outros). O Barroco demarca-se
pela falta de austeridade e a predominação das imagens e dos símbolos religiosos, uma
vez que tanto para Portugal como para Espanha era importante uma educação baseada
numa matriz Católica, do uso dos azulejos e em particular a talha dourada. Ou seja, foi
durante a viragem do seculo XVII e as primeiras décadas do seculo XVIII que o estilo do
Barroco atingiu o apogeu do pondo de vista cultural. O Barroco assim veio contrastar
com a racionalidade do Renascimento aonde há um procura da livre interpretação da An-
tiguidade Clássica ao exagerar nos adornos, na sua exuberância, na sua grandiosidade, na
emancipação do movimento e a utilização de cores fortes, dramáticas e teatrais, como já
antes comentado, numa tentativa de copiar o modelo de Luís XIV. 8 Seja na convocação
de artistas estrangeiros ou enviando jovens pintores nacionais para Itália ou França, o
Magnânimo guiou a edificação de grandes construções, e é nesta época que este também
potencia a via do mecenato , as artes e a letras.

Contextualização Histórica Especifica:

Como verificado anteriormente iremos assistir a uma reconstrução nacional na segunda


metade do século XVII9 e até 1668 Portugal viveu num estado de guerras constantes com
Espanha com o objetivo de assegurar a legitimidade e reconhecimento nacional do Reino
de Portugal internacionalmente. É então com D. Pedro II que os acontecimentos que le-
varam á ruína do Pais vão ser contornados. Feitos os tratados de paz com Espanha, foi-
lhe proporcionado condições que de guiar Portugal para uma reconstrução nacional. D.
Pedro II foi um monarca que manteve as ligações com os habitantes do reino promovendo
a unidade nacional com o apoio da Igreja católica A neutralidade prestada pelo reinado
de D. Pedro II assegurou ao seu herdeiro D. João (1689-futuro rei de Portugal D. João V)
as condições (internas e externas) para a recuperação do império colonial. 10 Um grande
impulso para a reconstrução nacional foi a descoberta do ouro no Brasil (1693) sendo que

8
Idem. p.122
9
Gil, Maria Alves, “A pintura de temática Mariana do pintor Bento Coelho da Silveira, na Igreja de S.
Bartolomeu da Charneca em Lisboa”. [Dissertação de Mestrado apresentada á Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa] Lisboa, 2015, p.17
10
Idem. p.18
5
Lisboa, 2020
está reconstrução prospera no Reinado de D. João V. Como anteriormente mencionado,
o culto á igreja católica é bastante marcante na cidade de Lisboa, tanto pelo rei como
pelos nobres fiéis e crentes. As irmandades rapidamente transformam-se numa forma de
socialização e de integração neste meio cultural aonde a religião é desenvolvida na vida
do quotidiano.

Lisboa, no entanto, era considerada um polo cultural cosmopolita devido a sua situação
geográfica, tendo o rio Tejo como via de ligações fluviais e marítimas e á sua epopeia
marítima cultural e socioeconómica que os Descobrimentos Portugueses vieram a forne-
cer á capital11, assim era aqui que se cruzariam diversas origens culturais servindo assim
de passagem entre locais. Em si a capital Lisboeta apresentava-se numa posição central
devido á presença da corte e nobres em exuberantes palácios tal como os mosteiros e
conventos das principais ordens religiosas.

Após o reconhecimento da soberania de Portugal, e a neutralidade do reinado de D. Pedro


II e com todas as reconstruções económicas, sociais e culturais, é no reinado de D. João
V que se adquire a identidade lusa numa mistura de convivência cultural e social entre a
corte a nobreza a Igreja e o povo que o tempo da festa é introduzido nesta época barroca,
apresentando-se como uma forma de consagração do poder temporal e da Igreja em prol
de reforçar posições.

Bento Coelho da Silveira (1620-1708), viveu num período da história da arte pelo qual
podemos designar de barroco que ocorreu entre o século XVI e o século XVIII. Esta época
está impregnada na Contra Reforma e devemos ter em conta que o movimento artístico
se baseia na elevada desproporção e a força dramática das composições, nas quais pode-
mos verificar uma intensa alteração de tons com a utilização do claro-escuro podendo
redirecionar o olhar do espectador para certos pontos, aonde é o artista que comanda o
mesmo, provocando uma sensação de profundidade. A luz é uma característica do bar-
roco, tendo em conta a sua manipulação, com o propósito, mais uma vez, de guiar o olhar
do espectador12. Bento Coelho foi nomeado (1678) como pintor régio no reinado de D.
Pedro II, ainda assim o que mais o incentivou no meio artístico foi a Academia dos Sin-
gulares onde o mesmo efetuou importantes contactos artísticos de prestígio. Contudo de-
vido á consagração nos meios artísticos e intelectuais e á nomeação como pintor régio,

11
Idem. p.19
12
Idem. p.35
6
Lisboa, 2020
esta conta com grandes encomendas de conventos, irmandades, igrejas paroquiais e par-
ticulares, entre outros. Este apresenta uma personalidade artística própria, mas há que ter
em conta o ambiente em que estaria inserido, era em Lisboa onde se encontravam as
atividades políticas e administrativas do país e as manifestações da vida cultural 13. O ar-
tista é conhecido no meio artístico como sendo um fa presto, ou seja, é um rápido execu-
tante com uma pincelada longa e rápida, os seus quadros são produzidos sem desenho
preparatório, ou seja, a la prima, o que pode resultar em imperfeições e enganos. Este no
início da sua carreira iniciou a sua aprendizagem com Marcos da Cruz (1610-1683), e em
muitas das suas obras podemos identificar algumas influências do Mestre bem como al-
guns outros contributos de pintores como Avelar Rebelo (1610-), Baltazar Gomes Fi-
gueira (1604-1674) e Josefa Ayala (1630-1684) 14 que já teriam moldado a forma de pin-
tar da época.

Podemos verificar que na época do reinado de D. Pedro II, a cultura portuguesa encon-
trava algumas influências por parte da cultura europeia, ligadas ao tenebrismo espanhol
de Zúrbaran (1598-1664) e Ribiera (1591-1652), ainda podemos verificar nas obras de
Bento Coelho o gosto pelo naturalismo, muito ligado às influências artísticas internacio-
nais de Rubens (1577-1640). Ainda assim a formação artística de Bento Coelho não é
muito clara, dá-se uma possibilidade de este ter estado em Espanha na época de Rubens,
ainda que esta ideia se torne pouco credível pela incoerência da datação.15

Depois da sua eleição como pintor régio, este conta com um leque de uma grande equipa
de oficiais, aprendizes e criados que o vão ajudar a produzir obras de arte para Portugal
continental, ilhas, Brasil e Índia, encomendadores diversos como a Coroa Portuguesa, a
nobreza abastada (Meneses e Lencastres), Confrarias e Irmandades, Clero Regular e Se-
cular, mercados e outros particulares. Tendo em conta que politicamente Portugal encon-
tra-se num período de desgaste, recuperação e restauração da independência, as obras de
Bento Coelho apresentaram como pano de fundo uma Lisboa triunfante tanto a níveis
sociais como culturais, religiosos e económicos demonstrando a grandiosidade das festas
e cortejos barrocos que provem da propaganda da afirmação do poder régio e religioso
que incluem temas da Contra-Reforma tridentina com o objetivo de emocionar incremen-
tando assim a devoção ao mesmo, exibindo a ostentação e fazendo perdurar a memória

13
Idem. p.36
14
Idem. p.37
15
Da Silva, Sara Gomes, Bento Coelho entre o aplauso e o silêncio, [Dissertação de Mestrado em História
pela Universidade de Lisboa], Lisboa, 2015, p.50
7
Lisboa, 2020
coletiva social, religiosa, económica e cultural que se fazia sentir na época16. Em 1670 as
obras de Bento Coelho foram celebradas numa Homenagem feita pela Academia dos Sin-
gulares, aonde por primeira vez nos deparamos com uma manifestação literária de elogio
à pintura17. Em si as ideologias da Academia dos Singulares valorizavam bastante a Poe-
sia e Pintura, para estes tanto a arte da pintura como a arte das letras denotam-se de formas
de saber científicas valorizando o ensino e permitindo o deleite18, assim devido á honra,
virtude e os seus sólidos conhecimentos de vários domínios de Bento Coelho este é con-
siderado uma inspiração poética.

Ainda que até esta época não se tenha feito uma perfeita consagração entre escrita e arte,
neste momento é evidente a subordinação da imagem ao texto sendo uma ilustração das
ideias expressas pela palavra. Já na Idade Média haveria uma conjugação entre o pictórico
e o verbo, mas foi só no Renascimento que assistimos a uma teorização, o que vai estru-
turar o pensamento estético da Idade Moderna.19 É dentro de este contexto intelectual que
o discurso literário deveria, uma vez mais, agradar á vista, ou seja quanto mais expressi-
vos melhor seria a visualização das imagens no desenvolvimento da dimensão pictórica.

É no âmbito da conciliação de obras de arte com arte literária que para o caso de estudo
será abordada a Anunciação de Bento Coelho da Silveira mantendo uma linha de pensa-
mento entre o religioso e a propagação do mesmo, e como é que este dentro da época
Barroca foi delineado. Para o trabalho tem que se evidenciar que o dogma da divina Ma-
ternidade foi definido no Concilio de Éfeso (431 d.C.) e desde então tem sido festejado e
proclamado em prol da sua mediação entre o terreno e o divino. Em Portugal o culto
simbólico da Virgem Maria tem início com D. Afonso Henriques e o recém território
conquistado que por sua vez, o mesmo, interpreta este sucesso como uma interceção e
proteção da Virgem assim proclamando a mesma como a Padroeira de Portugal. Até ao
seculo XVIII todas as Sés nacionais e edificações vão ser consagradas á Virgem. É no
reinado de D. João IV que em 1646, nas cortes de Lisboa, elege-se a Nossa Senhora da
Conceição como Padroeira de Portugal e em 1681, o Papa Clemente XI confirma esta
mesma canonização da Nossa Senhora da Conceição como padroeira de Portugal.

16
Duarte, S. (2017). Floridos años, tiempos màs propícios: modos de ver melhor a iconografia Musical na
pintura de Bento Coelho da Silveira (ca. 1620-1708). In S. Duarte, & L. Rocha (Eds.), Iconografia Musical:
Organologia, Constructores e Prática Musical em Diálogo (Vol. 3, pp. 58-77). Lisboa: NIM/CESEM. P.62
17
Da Silva, Sara Gomes, Bento Coelho entre o aplauso e o silêncio, p.55
18
Idem. p.56
19
Idem. p.60
8
Lisboa, 2020
As várias interpretações da Virgem vão sendo feitas em Portugal desde a Idade Média,
nestas representações podemos verificar a utilização de diversos suportes e materiais, as
interpretações vão sendo feitas tendo em conta a importância que esta vai tendo no seio
da Igreja Católica. O programa artístico que apresenta a iconografia da Virgem vai pro-
pondo legitimar a ideia de um limiar da unidade entre o divino e o humano.

Deve-se notar que as naturezas dos suportes das pinturas de Bento Coelho da Silveira
foram executadas, maioritariamente, sobre tela, estas são de pouca densidade ou de den-
sidade média20 sendo que estes tipos de telas são mais vulgares em Itália e França e são
especialmente adequadas pela posição que ocupam no espaço arquitetónico tendo como
objetivo ser observadas de longe.

Descrição do objeto:

Na obra de Bento Coelho da Silveira, a Anunciação (vide figura 1) é dividida em duas


áreas, uma mais escura sendo esta o plano inferior onde podemos identificar fortes cores
tenebristas e duas personagens, um Arcanjo e a Virgem. A segunda área (plano superior)
refere-se a glória celestial aberta em forma triangular que evoca e representa o Espirito
Santo acompanhado de querubins21. A personagem que se encontra no lado direito da
composição encontra-se ajoelhada em um tapete rico em decoração com as mãos cruzadas
sobre o peito olhando para o céu demonstrando uma postura humilde e obediente sobre a
vontade divina, sendo esta a Virgem, a seus pés da Virgem existe uma representação de
um livro que será a Bíblia, perante o qual a mesma medita, e uma cesta (á sua direita). A
Virgem apresenta uma posição estática devido a ter sido surpreendida pela inesperada
aparição celestial. A composição figurativa da esquerda representa o Arcanjo Gabriel,
este encontra-se reclinado numa postura de veneração e respeito perante a Virgem, en-
contra-se trajado e a sua veste traduz um movimento esvoaçante com as asas abertas, a
seus pés encontra-se um ramo de flor de Liz, símbolo da Virgem Maria. No pano de fundo
e atras da Virgem podemos encontrar uma estrutura arquitetónica (coluna atras da Virgem
e pano de fundo).

Esta tela e o seu par que representa a Adoração dos Reis Magos fazem parte de um con-
junto de retábulos dedicados á Natividade. O tema da Natividade, apresenta-se primeira-

20
Gil, Maria Alves, p. 62
21
Caracter barroco.
9
Lisboa, 2020
mente no mundo bizantino, sendo que a sua representação passava por demonstrar o nas-
cimento de Jesus e todo o seu processo, já ao largo da Idade Média este tipo de represen-
tações são desbancadas pelo tema da Adoração (XV). Em si a iconografia medieval da
Natividade mantem as referências ao tema bizantino ainda que incorporando um conjunto
de figuras e cenas que complementam o conjunto conferindo uma dimensão simbólica e
acentuada em função catequética da representação22. Ainda assim no seculo XV o modelo
iconográfico da Natividade alterou-se uma vez mais e o tema bizantino do parto foi subs-
tituído pelo tema ocidental da adoração ao menino. E foi no seculo XVI com o Concilio
de Trento entre 1545 e 1563 que se confirma assim o propósito da dignificação da icono-
grafia da Natividade redefinindo-a como uma dupla função da imagem tendo em conta
os mistérios sagrados. Ou seja, é a partir de agora que as disposições tridentinas impuse-
ram a eliminação de temas acessórios.

Dentro do tema da Natividade um dos temas complementares desta mesma cena é a Ado-
ração dos Magos, considerada como a primeira teofania23 de Cristo sendo este o aconte-
cimento fundador da Nova Aliança24 reservando-se como símbolo da divindade de Cristo.
A Natividade assim começou a ser representada pelo Anúncio aos Pastores e os coros de
anjos referentes ao evangelho de Lucas (2, 8-14) onde se apresenta um anjo que surge
envolto em luz “perante o assombro dos pastores, seguido pelos exércitos celestiais”25.
Conforme o papel mediador que a Virgem assume no cristianismo, as Horas da Virgem
vão sendo de extrema importância relembrando as festas litúrgicas da vida mariana sendo
que uma produção completa apresentaria a Anunciação (Matinas), Visitação (Laudes),
Natividade (Primas), Anúncio aos Pastores (Tercias), Adoração aos Magos (Sextas),
Apresentação no Templo (Nonas), Fuga para o Egito (Vésperas) e a Coroação da Virgem
(Completas), já uma produção mais modesta poderia apresentar apenas uma única ima-
gem e provavelmente a mais importante, sendo este o momento da Anunciação26.

22
Roque, Maria Isabel (2013) O menino de Belém: Da Festa do Natal à Iconografia da Natividade e da
Adoração, Gaudium Sciendi, nº5, Universidade Europeia, p.115
23
Manifestação de Deus em algum lugar, coisa ou pessoa, esta é considerada uma revelação ou
manifestação da glória de Deus que se manifesta através de um anjo, algo surreal ou de acontecimentos
impressionantes da Natureza, Idem. p.120.
24
A teologia da nova Aliança é vista como uma ideologia teológica cristã que considera Jesus Cristo
como foco central de toda a Biblia.
25
Idem. p.122
26
Souza, Patricia Marques (2016) Anunciación a la Virgen María: La iconografia de la encarnación de
Cristo en los libros de Horas (Siglo XV), p.98
10
Lisboa, 2020
Assim a obra de Bento da Silveira apresenta a Encarnação de Cristo e o início da reden-
ção humana, sendo esta uma cena importante para os fiéis que quisessem compartilhar da
experiência da entrega mariana designada como divina. Sendo esta uma das principais
imagens de um potencial comprador, seria esta representação feita maioritariamente pelo
Mestre da Oficina, como foi o caso.27 Conforme o descrito na bíblia Maria já teria sido a
escolhida para a missão da história da salvação. Apesar do seu complexo conceito teoló-
gico, o tema da anunciação esteve sempre presente na arte cristã e a sua representação e
dramatização devem-se ao evangelho de Lucas, e conforme este, as personagens essenci-
ais que compõem a iconografia da Anunciação seriam o anjo Gabriel28 e a Virgem Maria
e a relação dos mesmos29. No cristianismo a palavra dos anjos serve de ponte entre o
divino e o humano, os servos de Deus e os sábios guias da vida terrestre e do Além. 30 Já
a pomba representa o símbolo da terceira pessoa da Santíssima Trindade, esta é incorpo-
rada “na iconografia da Anunciação como forma de indicar a seguinte passagem “O Es-
pírito virá sobre ti e a força do Altíssimo a cobrirá com a sua sombra”. (Lucas 1, 35)”. 31
A cor e a luz que irradiam a pomba do Espírito Santo reforçam a mensagem dos restantes
elementos compositivos, sendo que a luz envolve com maior intensidade as figuras divi-
nas e o rosto da Virgem.

Tanto o livro como a cesta são atributos e objetos que se apresentam na representação da
Virgem na cena da Anunciação. Segundo teólogos a utilização do livro por parte de maria
provem, segundo São Bernardo, de que esta estaria a ler a profecia de Isaías quando in-
terrompida por Gabriel. Outra explicação refere que possivelmente será um Livro de Ho-
ras servindo de aproximação para os fiéis e a mãe de Deus, com o objetivo de que o leitor
absorva com a leitura e mediante a meditação o êxtase da Anunciação. Já a cortina ver-
melha ou azul (drap d’honneur) pode ter dois significados sendo que o primeiro refere-se
ao véu do Templo de Jerusalém que tutoraram a Maria32 e o segundo tendo em conta uma
metáfora visual para simbolizar o mistério da Encarnação, resguardando a Virgem.

27
Idem. p.100
28
Como mensageiro de Deus.
29
Representada como uma jovem que apenas veste uma túnica ou um longo manto carregando uma
aureola.
30
Idem. p.105
31
Idem. p.110
32
Idem. p. 115
11
Lisboa, 2020
Fazendo uma observação direta a realização da pintura podemos verificar uma economia
de pigmentos no que se poderá traduzir numa economia tanto de tempo como de materi-
ais. Podemos ainda constatar que há uma tendência para que as camadas vermelhas se
encontrem sobrepostas sobre outras cores, isto normalmente resulta na sobreposição das
figuras como fundo, podendo assim deduzir-se que o fundo tenha sido concluído antes
das figuras e estas foram executadas desde o seu “interior” para a sua “superfície” 33. Já
as figuras representadas mo ultimo plano da pintura (canto superior) seja os querubins e
outras personagens, denota-se de uma esquematização em comparação com outras obras
com a mesma temática desta mesma época, apresentando assim uma técnica imprecisa
ainda que podemos verificar o domínio de certos recursos estilísticos.

As linhas de contorno encontram-se mais delineadas nas personagens principais (Virgem


e Arcanjo Gabriel) assim fazendo destacar o fundo. Já a luz e sombra presente na pintura,
apresenta características do tenebrismo no Barroco na época de Bento Coelho. A ceno-
grafia da obra de Bento Coelho, aonde Maria levanta o olhar em direção á glória celeste
enquanto a mesma cruza os braços sobre o peito como gesto de humildade, entretanto,
tendo Gabriel ajoelhando-se diante da mesma em atitude de veneração e respeito define
assim a Encarnação “como refere Moura Sobral, esta atitude do arcanjo, ajoelhado e re-
clinado […] lembra a prosquinese do antigo cerimonial bizantino”.34

Contudo, o diálogo empreendido com a obra leva a que a sua meditação proporcione uma
leitura histórica tendo em conta a sua iconografia e estética, da ideologia do artista e gosto
do encomendante, da simbologia que aporta e do seu estilo. Em si as artes abstiveram-se
de seguir uma via de catequização, ainda que estas tenham servido como difusão de con-
ceitos ligados ao plano divino, estas tentam formar uma afirmação de criatividade criando
um “sentido de humanização35 capaz de transportar os seus fiéis para um plano de subli-
mação divina. Assim neste caso de estudo podemos identificar que a pintura de tema
religioso e a manifestação do sagrado está bem presente e é entendida em toda a sua
unidade como um êxtase que vai para alem da narração catequética ou uma manifestação
de idolatria. Esta forma de representação do sagrado encontra-se no conceito de melan-
colia presente nas expressões das figuras, identificado como temperamento sendo este um

33
Gil, Maria Alves, p. 64
34
Idem. p. 66
35
Idem. p.70
12
Lisboa, 2020
sintoma do mesmo êxtase divino. Este tipo de sintomas presentes nas figuras individua-
lizam as mesmas. Assim é nesta ideia de estilização que demonstram uma atitude psico-
lógica do individuo melancólico e surpreendido, mas sempre fiel á palavra do senhor
(Virgem Maria) ou que demonstra a chegada exuberante e tenebrosa de uma mensagem
sagrada (Arcando Gabriel) simbolizam e influenciam o caracter do individuo.

Assim dentro do período barroco que se segue ao período maneirista e que mistura câno-
nes clássicos com a artificialidade esquemática, a arte barroca expressa um mundo em
movimento de grande agitação de sentimentos apresentando assim as grandes paixões do
homem. E como a igreja seria a principal encomendante de arte barroca, o tema religioso
surge a par desta agitação de emoções e sentimentos. Assim foi do objetivo de Bento
Coelho o expressar das emoções e da devoção nos fieis mediante os estímulos psicológi-
cos e as vivencias obtidas a partir de imagens que fazem referencia a emoções que se
experienciam mediante o espirito do melancólico tal como pelo “estado de ânimo” do
corpo, ou seja Bento Coelho pretendeu “mostrar a apatia, a tristeza a introspeção desnu-
dando o que atormenta a sua alma. Simbolicamente é um despojar-se perante o observa-
dor, dando-lhe a conhecer o que lhe vai na alma.”36

Por fim, a pintura barroca é vista como sendo uma pintura grave, austera e angustiada que
revela o medo do pecado, ou atormentada pelo medo de não alcançar a salvação eterna,
vista como uma pintura melancólica como bem presente na Anunciação de Bento Coelho
(vide figura 1) aonde dentro do tema mariano, a Virgem, surge como exemplo a seguir
anunciando assim uma atitude de aceitação perante os meios de alcançar a salvação da
alma, neste âmbito. A qui a melancolia é concebida como um êxtase, sendo este dado por
“um estado de entrega, onde os pormenores fisiológicos e psicológicos das figuras pinta-
das se comunicam intempestivamente ao observador.”37

Em si a arte Barroca do seiscentos em Portugal apresenta-se como erudita, como pudemos


verificar no alto estudo religioso que implicou a realização desta Anunciação. Podemos
verificar como Bento Coelho recebeu diversas influências dado ao estado social de Lisboa
nesta época. Podemos verificar que Bento Coelho também é influenciado pelo estilo Na-
cional que se vai fazendo sentir, com a introdução da coluna (atras de Maria), o dina-
mismo e a unidade pictórica, os elementos decorativos presentes como o tapete, a cesta,

36
Idem. p.72
37
Idem. p.73
13
Lisboa, 2020
o ramo, sendo que estes são vistos como um preenchimento do espaço cénico com alusão
a elementos arquitetónico iludindo o espectador dos mesmo assim verificando a utilização
do trompe l’oil (pintura ilusionista) característico deste estilo artístico. Bento Coelho da
a entrada a esta pintura ilusionista na sua obra com a utilização do claro-escuro e a qua-
dratura de elementos arquitetónicos como a coluna e a parede como pano de fundo. Este
faz uso da figuração serpentinata (Arcanjo, Maria, querubins, Deus) e de uma exuberân-
cia cromática diversa

Conclusões e considerações finais:

O enquadramento histórico, tipológico e artístico da obra Anunciação de Bento Coelho


como objetivo de trabalho foi atingido. Bento Coelho da Silveira é assim um especialista
na figuração da arte, com uma soltura de pincelada e de coloração, muito influenciado
pelo penumbrismo e tenebrismo dos anos da Restauração Nacional. O propósito da ca-
racterização da pintura mariana da Anunciação de Bento Coelho foi analisada tendo em
conta a observação e análise de outras obras do autor, tendo em conta o cânone, os atri-
butos, composições e com particular importância a relevância das atitudes nas expressões
do estado da alma das personagens.

Esta obra encontra-se no Museu de São Roque, Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, e
dada a falta de dados documentais não permitiram a identificação do encomendador e do
percurso que tomou até ao local aonde se encontra a mesma, ainda assim este trabalho
propõe o enquadramento histórico, tipológico e artístico do autor e da obra em questão.

Bibliografia

Ferreira D. e Dias P. (2016) História de Portugal, 1ª edição, verso de kapa, Lisboa.

Gil, Maria Alves, “A pintura de temática Mariana do pintor Bento Coelho da Silveira, na
Igreja de S. Bartolomeu da Charneca em Lisboa”. [Dissertação de Mestrado apresentada
á Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa] Lisboa.

Da Silva, Sara Gomes, Bento Coelho entre o aplauso e o silêncio, [Dissertação de Mes-
trado em História pela Universidade de Lisboa], Lisboa.

Duarte, S. (2017). Floridos años, tiempos màs propícios: modos de ver melhor a icono-
grafia Musical na pintura de Bento Coelho da Silveira (ca. 1620-1708). In S. Duarte, &
L. Rocha (Eds.), Iconografia Musical: Organologia, Constructores e Prática Musical em
Diálogo (Vol. 3, pp. 58-77). Lisboa.
14
Lisboa, 2020
Roque, Maria Isabel (2013) O menino de Belém: Da Festa do Natal à Iconografia da
Natividade e da Adoração, Gaudium Sciendi, nº5, Universidade Europeia.

Souza, Patricia Marques (2016) Anunciación a la Virgen María: La iconografia de la en-


carnación de Cristo en los libros de Horas (Siglo XV).

Anexos:

Figura 1- Anunciação, Bento Coelho da Silveira, ca.1656, Museu de São Roque, Lisboa,
Portugal.

15
Lisboa, 2020

Você também pode gostar