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TERRAS INDÍGENAS, LAUDO ANTROPOLÓGICO E HIDRELÉTRICAS NO

SUL DO BRASIL

INDIGENOUS LAND, ANTHROPOLOGICAL EXPERT EXAMINATION AND


HYDROELECTRICS IN SOUTH BRAZIL

João Francisco Kleba Lisboa

RESUMO

A constituição Federal de 1988 marca a superação da perspectiva integracionista, uma


constante da legislação indigenista até então, finalmente reconhecendo aos índios o
direito à alteridade. A terra, por sua vez, assume um lugar central para as sociedades
indígenas, constituindo a principal condição de sua reprodução e subsistência. A
aproximação entre Direito e Antropologia, proporcionada pelos laudos periciais
antropológicos, abre horizontes semânticos e possibilidades de atuação, alem de
proporcionar um confronto salutar entre éticas distintas. A defesa dos territórios
tradicionais indígenas vem acompanhada de uma defesa das narrativas e saberes
tradicionais desses povos, assim como de uma retomada de sua identidade étnica e de
sua participação na historia local e na política. As terras indígenas geram conflitos com
diversos elementos da sociedade ao entorno, como se nota, por exemplo, nos casos de
construção de usinas hidrelétricas e seus respectivos alagamentos de superfície. A
participação desses diferentes atores apresenta cada vez mais desafios aos direitos
indígenas.

PALAVRAS-CHAVES: DIREITO; TERRAS INDÍGENAS; ALTERIDADE;


OCUPAÇÃO TRADICIONAL; CONSTITUIÇÃO FEDERAL.

ABSTRACT

The Federal Constitution of 1988 marks the overcoming of the integrationist perspective
– a constant of indigenous rights until then - finally recognizing the Indians right to
otherness. Land in turn took a central place for the indigenous societies and is the main
condition for their reproduction and survival. The rapprochement between Law and
Anthropology provided by anthropological expert examination opens semantic horizons
and possibilities for action, besides providing a healthy confrontation between different
ethics. The protection of traditional indigenous territories is accompanied by a defense
of narratives and traditional knowledge of these peoples, as well as a resumption of their
ethnic identity and their participation in local history and politics. Indigenous lands
create conflicts with various elements of society around, as we note for example with


Trabalho publicado nos Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em Brasília – DF
nos dias 20, 21 e 22 de novembro de 2008.

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hydroelectric plants construction and their following land flooding. The involvement of
different actors presents increasingly challenges for indigenous rights.

KEYWORDS: LAW; INDIGENOUS LAND; OTHERNESS; TRADITIONAL


OCCUPATION; FEDERAL CONSTITUTION.

Introdução

A Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, marca a superação da


perspectiva integracionista, uma constante da legislação indigenista até então,
finalmente reconhecendo aos índios o direito a alteridade (SOUZA F°, 1993; COLAÇO,
2003; SANTOS, 2005; MEIRA, 2007). A questão indígena é tratada, principalmente,
em um capítulo específico, “Dos Índios”, que integra o Título VIII, “Da Ordem Social”.
O art. 231, caput, estabelece:

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas,
crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente
ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

A CF/88 reconhece, no dispositivo acima, o direito dos índios a manterem sua


organização social, seus costumes, língua, crenças e tradições. Isso deve ser lido como o
reconhecimento do direito constitucional dos índios à diferença cultural e lingüística, o
que marca um novo posicionamento do Estado em relação às sociedades indígenas. O
que fica reconhecido é o direito destas a permanecerem vivendo de forma diferente da
chamada “sociedade nacional”, de acordo com suas especificidades étnicas e
culturais.

Alem disso, o texto constitucional estabelece a natureza originária do direito dos


índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam, sendo considerados seus primeiros
e naturais senhores, seguindo a linha jurídica do indigenato enquanto fonte primária de
direito, anterior a qualquer outra.

Em conseqüência, o direito dos índios a uma terra determinada não depende de


reconhecimento formal nem de sua demarcação. Esta, explica Marco Antônio Barbosa,
não é condicionante da existência do direito, mas visa assegurá-lo; além disso, serve
para manter a segurança jurídica e evitar conflitos sobre a terra em questão:

Relativamente à demarcação é preciso de antemão deixar claro que ela não é


condicionante do direito, que tem por objetivo assegurar. Em outras palavras, o fato e
algumas terras indígenas não estarem demarcadas não implica dizer que estão a

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descoberto do amparo constitucional. A demarcação imposta pelo legislador
constituinte à União é providência de ordem prática tendo em vista a maior segurança e
definição da proteção dos territórios indígenas. É medida salutar também para a
estabilidade e segurança de toda e qualquer situação jurídica, evita possíveis conflitos
sociais e de terras. No entanto, não condiciona o direito que visa assegurar.
(BARBOSA, 2001, p. 89)

Dessa forma, o direito à terra por parte da sociedade indígena que a ocupa existe e se
legitima independentemente de qualquer ato constitutivo, ou seja, a demarcação de uma
Terra Indígena é ato meramente declaratório, decorrente do reconhecimento feito pelo
Estado, cujo objetivo é simplesmente precisar a real extensão da posse para assegurar a
plena eficácia do dispositivo constitucional. Não obstante, o Poder Público está
obrigado pela Constituição a promover o reconhecimento das terras indígenas. E a
obrigação de proteger as Terras Indígenas (TIs) cabe ao Estado. Portanto, sempre que
uma comunidade indígena ocupar uma área determinada de acordo com os requisitos
estabelecidos no artigo 231 da CF, o Estado terá que delimitá-la e realizar a demarcação
física dos seus limites. A própria Constituição estabeleceu um prazo para a demarcação
de todas as TIs: 5 de outubro de 1993. Porém isso não ocorreu, e atualmente as TIs no
Brasil encontram-se em diferentes situações jurídicas relativas a sua demarcação (ISA,
2008).

A demarcação de TIs, por sua vez, abre espaço para a solicitação, em litígios
judiciais, de laudos periciais antropológicos, que servirão como provas documentais de
ocupação indígena. Uma vez que a definição de um território tradicionalmente ocupado
passará, obrigatoriamente, pela compreensão narrativa da vida e das tradições daquele
povo indígena, essa definição apenas se tornará possível com a realização de um estudo
antropológico, trazendo implicações éticas e profissionais muito diferentes das
geralmente encontradas pelos operadores do direito.

Terra, território e ocupação indígena

A relação entre território e uma porção determinada de terra implica em fixação, em


limites claramente definidos, em divisão e controle do espaço. Porém, quando se tratam
de terras tradicionalmente ocupadas, essa concepção entra em conflito com o
pensamento e a forma de vida tradicionais dos próprios índios. Mesmo sabendo que
toda generalização a respeito dos diversos povos indígenas é perigosa, podendo resultar
em homogeneizações folclóricas, parece claro que a noção trazida pelo direito moderno
de domínio sobre a terra lhes é completamente estranha e, uma vez que é a noção
dominante, exige modificações e adaptações. É por isso que a demarcação e
implementação de TIs, além de alterar a identificação dos indígenas com a terra, muda
também o relacionamento entre diferentes grupos, que passam a ter que “negociar”

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parcelas de um espaço estritamente limitado. Um bom exemplo é exposto na análise que
Bruna Franchetto faz das transformações trazidas pela criação do Parque do Xingu:

O que se procura é sempre a prova e uma relação com a terra/território que se configure
no esquema do indivíduo ou do grupo individualizado, exercendo um domínio
transacionável fixado pela lei. Achamos que esta conceituação não toca em quase nada
o viver e pensar dos índios xinguanos que conhecemos e que nos falaram. Terra é, para
eles, “chão”, no sentido literal e figurativo do termo, mais do que qualquer outra coisa.
Não é mercadoria, não se fecha, e é todo absolutamente “explorado”, material e
simbolicamente. É um espaço contínuo, sem divisa e picadas. Seria, porém, ingênuo não
pensar na reestruturação violenta que o espaço sofreu depois que a picada do Parque
tornou a terra definitivamente delimitada. Houve transformações no sistema de relações
políticas entre os grupos, com a criação de novas identidades. Mas a manutenção de um
controle de alguma maneira grupal e coletivo sobre a terra permitiu fazer de um
território agora fechado, “chão” de uma identidade “xinguana”. (FRANCHETTO, 1985,
p. 106)

Fundamental também é a compreensão da mobilidade não apenas territorial


como também comportamental possível de ser observada entre as populações indígenas,
principalmente ao longo dos cinco séculos de turbulento contato com colonizadores,
madeireiros, garimpeiros, fazendeiros e outras formas com as quais a civilização
ocidental se apresentou aos índios. Querer encontrar um vínculo intacto desses povos
seja com uma cultura “pura” ancestral, seja através da ocupação contínua e ininterrupta
do território é querer condená-los ao congelamento, além de ignorar os impactos
causados pela violência da conquista. Segundo Barbosa, deslocamentos forçados
fizeram com que a maioria dos povos indígenas se encontrem hoje em verdadeiros
refúgios, terras de menor produtividade e baixo valor econômico:

Todos sabem que as populações indígenas, povos dominados, foram sempre vítimas da
força e da violência. Todos sabem igualmente que quase todos os grupos indígenas
foram há muito desapossados de suas melhores terras, lhes sobrando hoje muito pouco
do que outrora detinham e, quase sem exceção, encontram-se em territórios de refúgio,
nas porções menos férteis ou rentáveis economicamente. (BARBOSA, op. cit., p 93)

Além das pressões decorrentes de títulos de propriedade privada – muitas vezes de


procedência duvidosa – que incidem sobre territórios indígenas[2], percebe-se uma
grande dificuldade em se aceitar a ocupação tradicional indígena. Alguns juízes, por
exemplo, em casos envolvendo TIs, parecem determinadamente fechados à
compreensão do conceito de “terras tradicionalmente ocupadas”, exigindo provas e
vestígios arqueológicos da presença indígena desde a época pré-colombiana, ignorando
assim a descaracterização do território causada pelos colonizadores. É o que explica
Deborah Duprat, discorrendo sobre a atuação do judiciário no que se refere às TIs:

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Não bastasse a disputa que se estabelece entre direitos indígenas e direitos de
propriedade, há forte incompreensão no que diz respeito ao que sejam terras
tradicionalmente ocupadas. Vez por outra o conceito resvala para imemorialidade, e o
juiz exige a produção de um laudo arqueológico que evidencie que a presença indígena
no local remonta a tempos pré-colombianos. Tal requisito vem impedindo que os
Terena de Mato Grosso e os Krahô-kanela de Tocantins tenham acesso a um território,
ao argumento de que as áreas pretendidas não correspondem às suas áreas ancestrais.
(DUPRAT, 2006, p. 174)

No entanto, o conceito de ocupação tradicional não remete a uma idéia temporal,


ou de antiguidade, nem sequer a ocupação imemorial. Trata-se sobretudo de narrativas
que, através das tradições indígenas, dão sentido ao território e ritualizam-no,
transformando-o em lugar de referência para uma identidade étnica. A compreensão
dessas tradições, e a conseqüente identificação/definição da área “ocupada” por
determinado povo indígena, portanto, necessita da realização de um estudo
antropológico capaz de reconhecer nas narrativas e na memória coletiva desse povo
aquilo que seria seu território tradicional. Duprat afirma que,

[...] muito embora não imobilizadas espacialmente e não definidas necessariamente pela
profundidade temporal, a definição de terras tradicionalmente ocupadas requer uma
compreensão narrativa das vidas desses povos. A tradição que emerge dessa narrativa
não é mera repetição de algo passado, não é mera remissão ao contexto da existência
que a originou, mas a experiência histórica de sua reafirmação e transformação. Daí que
a definição do que sejam terras tradicionalmente ocupadas, por cada grupo, passa por
um estudo antropológico que, para além da história, revele a tradição que é
permanentemente ritualizada e que dessa forma se faz presente na memória coletiva.
(Idem, p. 175)

A importância do conhecimento antropológico como capaz de “traduzir” rituais


e tradições que a princípio não fariam sentido para o sistema jurídico moderno,
demonstra um certo reconhecimento, por parte do Estado brasileiro, da existência de
outras linguagens possíveis que estabeleçam vínculos com a terra. Surge daí uma fissura
no sólido bloco do saber jurídico-estatal, até então imune a exterioridades e diferenças.
Se a CF/88 reconheceu o direito dos índios à alteridade, com o conceito de ocupação
tradicional passa-se a admitir também uma territorialidade indígena, proveniente de suas
próprias formas de identificação com a terra, totalmente diferente da concepção
moderna de direito sobre a terra. A antropologia, por sua vez, através de um verdadeiro
trabalho de tradução entre diferentes universos semânticos, deve buscar os significados
do termo “terra” de acordo com a língua e visão de mundo do grupo pesquisado, como
demonstra Elaine de Amorim Carreira, antropóloga do Ministério Público Federal:

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Partimos do princípio constitucional de que o Estado brasileiro reconhece a
territorialidade indígena na medida em que reconhece o índio enquanto alteridade.
Sendo assim, admite falar de terra em outras linguagens. Essa palavra, portanto, tem de
ter seu sentido retirado de dentro da linguagem do grupo em questão e não do nosso
vocabulário. É preciso uma tradução “qualificada”. O próprio índio não pode saber dar
essa qualidade à tradução, ou por não ter um bom conhecimento do português ou
simplesmente por imaginar que compartilhamos com ele o mesmo conceito, A
qualidade de uma tradução depende basicamente de trazer à tona o ethos e visão de
mundo em que se insere o termo. Aqui, sem dúvida, entra a Antropologia. No campo
das ciências humanas, cabe à Antropologia a investigação especializada sobre a
especificidade do comportamento, da organização social, dos valores, sentimentos e
crenças das sociedades humanas, seu estilo de vida e cosmovisão, uma espécie de senha
de acesso a outras realidades (CARREIRA, 2005, pp. 240-241)

Portanto, para o direito, uma vez assumida a existência de um saber que lhe é
exterior e que, mesmo assim, institui uma relação jurídica, cabe recorrer à antropologia
enquanto “chave” para acessar essas “outras realidades”. A aproximação entre direito e
antropologia deve ser vista como muito benéfica para ambos, e bons frutos já podem ser
percebidos. Um dos principais espaços dessa união pode ser encontrado no
desenvolvimento de laudos periciais antropológicos durante a demarcação dos
territórios indígenas, em que antropólogos e operadores do direito – em especial o
Ministério Público (MP) – complementam uns aos outros, apesar dos dilemas
decorrentes da disparidade entre as práticas profissionais.

Laudos periciais e o papel do antropólogo

Os laudos periciais de natureza antropológica, solicitados para a demarcação de


uma TI, formam um importante instrumento jurídico de defesa dos direitos indígenas,
na medida em que transformam as narrativas e a tradição oral dos índios pesquisados
em documento dotado de efeitos judiciais, que será utilizado como prova de ocupação
tradicional daquele território. Para os antropólogos, o fato de sua pesquisa ser usada
como uma fonte de dados objetivos e precisos representa algo incomum na sua
profissão, gerando grandes discussões a esse respeito. Porém, também perceberam nos
laudos periciais um meio efetivo para colocarem seu conhecimento a serviço dos povos
indígenas que ainda não possuem uma terra demarcada, alcançando resultados práticos
efetivos. Bruna Franchetto mostra que essa prática surgiu para defender as TIs enquanto
“bens da União”, com a participação fundamental do Ministério Público:

A partir de 1986, graças a uma conjuntura política e institucional particular, o


Ministério Público (Procuradoria Geral da República) passa a assumir um papel de

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primeiro plano na questão, inaugurando uma estratégia inédita de defesa jurídica dos
“bens da União” que são as terras indígenas. Inaugurou-se, com isso, a prática de
solicitar e incluir laudos periciais de natureza antropológica, elaborados por
antropólogos, como peça de defesa da União e como prova documentada da ocupação
indígena das glebas sub judice. Nos processos, o confronto decisivo se deu entre os
laudos periciais de autoria de engenheiros agrônomos apresentados pelos
“proprietários” e os chamados “laudos antropológicos”. (FRANCHETTO, 1991, p. 33)

Interessante é ressaltar que a prática de solicitar laudos antropológicos é


simultânea à recente ampliação das funções do MP enquanto protetor dos direitos
coletivos e difusos, representando o interesse público seja contra particulares seja contra
o Estado. Tal competência é explicitada no art. 129, inciso III da CF/88: “São funções
institucionais do Ministério Público: promover o inquérito civil e a ação civil pública,
para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses
difusos e coletivos”. A proximidade entre os direitos coletivos e difusos e os direitos
indígenas fez com que o MP também se responsabilizasse pela proteção dos últimos,
uma vê que se trata da defesa de grupos específicos (coletividades) e não de casos
individuais, como explica Carlos Frederico Marés:

Assim, o Ministério Público vem se transformando, sem deixar de ser o titular da ação
penal e o fiscal da lei, em uma espécie de ombudsman no direito brasileiro, isto é,
naquele que defende o direito do cidadão (no sentido de titular de um direito coletivo).

Por esse novo papel de Ombudsman e pelos novos poderes que o Ministério Público
vem adquirindo, calhou perfeitamente com o órgão que se ansiava para ser o defensor
dos direitos indígenas, exatamente porque os direitos indígenas se assemelham aos
direitos coletivos e difusos, na medida em que a titularidade é de um grupo,
precisamente reconhecido, mas desnecessário o conhecimento de cada indivíduo de per
si, isto é, a proteção somente tem sentido porque existe uma coletividade. (MARÉS,
1991, pp. 31-32)

A legitimidade constitucional do MP para defender em juízo os direitos


indígenas também está exposta no art. 129 da CF, conforme o inciso V: “- defender
judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas”.

Entre 1986 e 1988, período em que Manuela Carneiro da Cunha foi presidente
da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), firmou-se um convênio entre esta e a
Procuradoria Geral da República (PGR), pelo qual a ABA passaria a indicar
antropólogos para a realização de laudos periciais em processos envolvendo terras
indígenas. Em agosto de 1990, na gestão de Roque de Barros Laraia, é firmado um
protocolo de intenções entre a ABA e a União, representada pela PGR. O convênio
entre as duas instituições é renovado periodicamente, sendo que entre 1994 e 1996, com
João Pacheco de Oliveira na presidência da ABA, passa a incluir na sua área de
competência, além da demarcação de terras indígenas, também as terras e o patrimônio

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das comunidades de remanescentes de quilombos, assim como o estudo do impacto
sofrido por tais grupos frente a questões sócio-ambientais e grandes projetos de
desenvolvimento. Surge daí a figura do antropólogo perito, atuando junto ao Ministério
Público Federal (MPF), que passará a se valer de antropólogos com atuação nas
universidades bem como de profissionais contratados por concurso público para
assessorar os procuradores em inquéritos e ações judiciais (LEITE, 2005; SILVA,
1994). O papel do antropólogo como perito é assim institucionalizado, através de
parcerias oficiais, tendo decisiva importância nos litígios judiciais envolvendo terras
indígenas e tradicionais. Segundo Elaine Carreira, o vínculo entre antropologia e MP
estaria a serviço do diálogo intercultural e do direito à diferença:

A Antropologia inserida nos quadros funcionais do Ministério Público representa a


ampliação da capacidade da instituição para o diálogo intercultural, favorece a leitura
não naturalizante das práticas sociais, promove o estabelecimento de uma escuta
sensível e a criação de espaços de valência para outras concepções de mundo. O
objetivo é o de consubstanciar o direito à diferença garantido pela Constituição Federal
(CARREIRA, 2005, p. 248)

Os laudos periciais antropológicos, no entanto, se diferem do trabalho de


pesquisa normalmente realizado por um antropólogo, que além de tratar de diferentes
posições teóricas nem sempre tem como objeto de análise as relações territoriais de um
determinado grupo. Além disso, essas pesquisas etnológicas têm o interesse acadêmico
em primeiro lugar, não sendo produzidas com a intenção de formular um documento
decisivo ou de resolver uma disputa. O conhecimento antropológico, no entanto, pode
dar força e credibilidade ao laudo. Como explica Virgínia Valadão, uma das primeiras
autoras de laudos periciais antropológicos, juntamente com Bruna Franchetto, esses
trabalhos

[...] não se confundem portanto com pesquisas de caráter acadêmico, cujo universo
teórico envolve extenso universo de questões e diferentes perspectivas teóricas, além de,
não necessariamente, abordarem a questão territorial. Entretanto, aspectos da
cosmologia, da organização social do grupo indígena e muitos outros, são fundamentais
e a força de argumentação tanto dos laudos periciais quanto dos relatórios de
identificação vem da qualidade das informações etnológicas apresentadas (VALADÃO,
1994, p.40)

Um dos principais desafios encontrados na elaboração de laudos antropológicos


é a cobrança de “exatidão” técnico-científica, objetividade que em alguns momentos
chega a ser totalmente incompatível com a teoria antropológica. Isso fomentou grandes
discussões entre antropólogos, advogados e procuradores, dentre as quais se destacou o
“Seminário Perícia Antropológica em Processos Judiciais”, realizado em 1991 e
posteriormente publicado em livro, assim como a “Oficina sobre Laudos

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Antropológicos” promovida em Florianópolis, no ano 2000, pela ABA em parceria com
o NUER[3], da qual resultou o documento intitulado “Carta de Ponta das Canas”.
Nesses encontros desenvolveu-se a compreensão de que os laudos periciais
antropológicos, diferentes da produção acadêmica, são instrumentos que auxiliam uma
decisão judicial ou administrativa, sendo responsáveis por efeitos de grande repercussão
nos grupos pesquisados e em seu entorno, como demonstra Ilka Boaventura Leite:

Os laudos periciais constituem uma atividade e um gênero narrativo textual distintos


dos já consagrados na academia: monografias, dissertações, teses, artigos e ensaios.
Enquanto relatórios de pesquisa antropológica produzida para subsidiar processos
jurídicos e administrativos, os chamados “laudos” vêm sendo requisitados em contextos
específicos, principalmente em situações-limite que geralmente envolvem conflitos. São
dirigidos a juízes, procuradores, advogados ou administradores para a tomada de
decisões concretas, cujos desdobramentos podem alterar a vida de sociedades inteiras.
Quem solicita um laudo pericial busca ou espera que o documento possua elevado grau
de exatidão técnico-científica, de modo a dirimir dúvidas e propiciar medidas com
desdobramentos múltiplos. (LEITE, op. cit., p.25)

Um dos motivos para a solicitação da perícia pode envolver a


identificação/definição de um grupo étnico, o que também não é tarefa simples. As
sociedades indígenas costumam ser tratadas de modo naturalizado, seguindo o modelo
de identificação e classificação das ciências naturais, inclusive com a freqüente
denominação de seus territórios como habitat, ou seja, um meio com o qual se tem
relações puramente naturais, como qualquer outra espécie animal ou vegetal. No
entanto, essa relação, como já foi abordado anteriormente, baseia-se em processos de
identificação e em práticas narrativas, através das quais o próprio grupo étnico se
constrói simbolicamente. É atrás desses elementos que deve ir a perícia antropológica.
João Pacheco de Oliveira fala de uma “identificação positiva” como a contribuição mais
importante que um antropólogo pode dar no processo de demarcação de uma terra
indígena, consistindo em

[...] um inquérito, conduzido através do trabalho de campo e das técnicas próprias da


Antropologia, sobre os usos que os índios fazem do seu território, bem como sobre as
representações que sobre ele vierem a elaborar. O que inclui desde as práticas de
subsistência (como coleta, caça e agricultura) até atividades rituais (como
estabelecimento de cemitérios ou outros sítios sagrados), passando por formas sociais
de ocupação e demarcação de espaços (como a construção de habitações e a definição
de unidades sociais como a família, a aldeia e a “comunidade política” mais
abrangente). Por sua vez as representações sobre o território devem ser investigadas em
todas as dimensões e repercussões que possuem, isso atingindo não só o domínio do
sagrado (onde entram as relações com os mortos, as divindades e os poderes
personalizados da natureza), mas também as classificações sobre o meio ambiente e
suas diferentes formas de uso e de apropriação, ou ainda as concepções sobre

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autoridade, poder político, relação com outros povos indígenas e a presença colonial do
homem branco. (OLIVEIRA, 1994, p. 131)

É então que se apresenta talvez o principal dilema enfrentado por antropólogos


na elaboração dos laudos: o choque entre éticas distintas. Esse choque pode ser
percebido em ao menos duas ocasiões. Em primeiro lugar, há a obrigação de veracidade
do perito em uma disputa judicial, pois como vimos ele deve ter seu trabalho pautado
pela “neutralidade” técnica e científica. Dessa forma, a ética do perito é determinada
pela veracidade; não pode estar sujeita a influências de qualquer espécie, nem se deixar
contagiar por afeições. Porém o trabalho do antropólogo baseia-se na relação de
cumplicidade estabelecida com o grupo pesquisado ao longo de um período de
convívio, aproximação e troca de informações, relação da qual também adquire grande
responsabilidade enquanto transmissor das pretensões daquele grupo frente ao Estado. É
pacífico entre os antropólogos que, por princípios éticos, não se deve utilizar um laudo
pericial contra os interesses da comunidade pesquisada, mas em seu benefício, como
explica por exemplo Osvaldo Martins de Oliveira:

Na relação de trocas de informações, de conhecimentos, de confiabilidade e de


cumplicidade que estabelece com os grupos pesquisados, o antropólogo, por questões de
princípios éticos, tem a obrigação, enquanto mediador entre eles e o Estado, de defender
os interesses dos mesmos. Ele deve respeitar as visões de mundo (as verdades) dos seus
informantes, a partir das quais ele produz o conhecimento antropológico e com as quais
estabelece um compromisso. Ao antropólogo cabe a preocupação com a obrigação ética,
visto que a produção do seu conhecimento está associada à ética, ao bem viver dos
pesquisados. É da responsabilidade do pesquisador fazer bom uso dos resultados de sua
pesquisa, cabendo a ele fazer com que esses resultados sejam colocados em benefício da
comunidade pesquisada. (OLIVEIRA, 2005, pp. 149-150)

Em segundo lugar, fica explícita a distância entre a ética dos processos judiciais,
ou a ética do direito, e a ética do antropólogo. Na concepção jurídica o processo
judicial, tipicamente surgido do conflito de interesses humanos, é regido pelo princípio
do contraditório e da ampla defesa, previsto no art. 5° da CF/88: “LV - aos litigantes,
em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o
contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Isso quer dizer
que, para ambas as partes litigantes (ou seja, para os dois lados do processo), deve-se
assegurar que não apenas sejam ouvidas mas que também possam se manifestar a
respeito das alegações do adversário. O direito de defesa, portanto, é reconhecido
constitucionalmente entre os direitos fundamentais do indivíduo e configura uma
exigência da democracia.

Da mesma forma, a igualdade de tratamento entre as partes litigantes é prevista


no Código de Processo Civil: “Art. 125. O juiz dirigirá o processo conforme as
disposições deste Código, competindo-lhe: I - assegurar às partes igualdade de
tratamento”. Portanto, em uma ação judicial ambas as partes devem ser tratadas

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igualmente pelo juiz, de forma imparcial. O que rege a ética do processo judicial, além
da igual possibilidade de defesa e manifestação, é a neutralidade. Nenhuma parte deve
ser privilegiada, já que todos são iguais perante a lei.

A antropologia, no entanto, mais do que tomar as populações indígenas


simplesmente como objetos de estudo, posiciona-se a favor delas, e ao mesmo tempo
contra o etnocídio, os massacres e a situação de colonizados em que se encontram. Para
os antropólogos, é difícil acreditar nessa pretensa “neutralidade” do direito. A ética da
antropologia prefere tomar uma posição clara ao lado daqueles que considera serem os
legítimos detentores do direito à terra, e que ao mesmo tempo são os maiores
despossuídos pela história. Esse conflito entre éticas distintas fica claro na explicação de
Ruben George Oliven:

No que diz respeito à ética, os operadores do Direito operam com a idéia de que todos
devem ser defendidos, não importando o crime que cometeram. Defender uma pessoa
que cometeu um crime hediondo é perfeitamente ético e é parte da atividade de um
advogado. No mundo do Direito, é absolutamente legítimo defender qualquer pessoa
que necessite de defesa e todos os argumentos possíveis nesse processo. Já a atuação
pública do antropólogo, por mais que ele seja treinado a relativizar as crenças e
comportamentos, tende a ser pautada por uma ética que se rege pela defesa daqueles que
ele acredita terem efetivamente direitos e pela crítica àqueles com cuja atuação não
concorda. (OLIVEN, 2005, p. 65)

Já se falou, no capítulo anterior, dos conceitos de cidadania e direitos humanos


enquanto universalismos da teoria liberal moderna, que soterrava as diferenças sob uma
generalização de indivíduos homogêneos. O processo judicial tem uma origem
essencialmente individualista e patrimonialista, estruturando-se para resolver conflitos
entre duas pessoas e que geralmente envolviam bens ou mesmo dinheiro. Nos últimos
anos vem passando por mudanças, ganhando destaque a ação civil pública na defesa de
interesses coletivos e difusos. A antropologia, por sua vez, assume no Brasil um
importante papel na defesa das minorias étnicas e da pluralidade cultural. Tendo
consciência de seu lugar privilegiado, muitos antropólogos não hesitam em colocar em
prática aquilo que Sílvio Coelho dos Santos chamou de “antropologia da intervenção”,
contribuindo para o combate ao preconceito, a estereótipos e à violência de ordem
étnica, social, de gênero, classe ou cultura. No caso específico, significa que o
antropólogo deve assumir seu papel na defesa dos povos indígenas:

O extermínio de grupos indígenas e de outros grupos marginalizados prosseguem. As


ameaças, a violência física, a falta de direitos, etc., etc., estão no nosso cotidiano, e a
mídia cada vez mais parece banalizar os direitos à vida e à cidadania.

Tudo isso obriga a uma reflexão sobre o papel do antropólogo. Sobre sua condição de
pesquisador que assume uma postura crítica. E sobre sua condição de cidadão
intelectualmente privilegiado e capaz não só de propor uma leitura crítica sobre

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determinada realidade, mas de assumir uma proposta de intervenção. (SANTOS, 1998,
p. 88)

Nas questões envolvendo demarcação e proteção de terras indígenas, direito e


antropologia apresentam desafios um ao outro. Para os antropólogos os laudos periciais
revelam-se uma boa oportunidade de transformar seu trabalho em instrumento técnico,
que servirá de prova em um processo judicial, na defesa dos direitos e interesses
indígenas. Para isso, buscam cada vez mais se inteirar dos conceitos e “jargões” do
direito, presentes tanto nas leis quanto no cotidiano dos fóruns e tribunais. Já para os
advogados, juízes e promotores, a antropologia pode ser vista como o canal de acesso ao
universo cultural dos índios e a seus saberes tradicionais, permitindo a efetiva proteção
dos direitos indígenas que a Constituição Federal reconhece em seu art. 231. Além
disso, aprendem que o direito também tem condições de ser atuante e, mesmo que não
assuma uma postura exatamente de intervenção, pelo menos pode perder um pouco da
ingenuidade – ou do cinismo – no que tange à situação dos povos indígenas.

Terras Indígenas e Hidrelétricas no Sul do Brasil

O tema das terras indígenas de vez em quando vem à tona quando se anuncia a
construção de novas usinas hidrelétricas, uma vez que os lagos formados pelas devidas
barragens de retenção freqüentemente afetam suas áreas. Como muitos povos habitam
tradicionalmente vales e margens de rios, os dois temas parecem estar obrigatoriamente
ligados. A Constituição Federal impõe limites à exploração dos recursos hídricos das
TIs, inclusive no que diz respeito aos potenciais energéticos dos rios, uma vez que,
juntamente com a mineração, esses empreendimentos só podem ser realizados com
autorização do Congresso Nacional e a audiência das comunidades indígenas afetadas:

Art. 231. § 3º - O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais


energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser
efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas,
ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.

Com o intuito de fornecer energia para o crescimento do país, grandes projetos


hidrelétricos foram implementados pela Eletrobrás na década de setenta, dentre os quais
se destacam as usinas de Tucuruí (Pará), Balbina (Amazonas) e, principalmente, a usina
Itaipu Binacional (Paraná), construída em parceria com o Paraguai. Esses foram os
primeiros aproveitamentos hidrelétricos de grande porte a atingirem populações
indígenas no Brasil, provocando o alagamento de suas terras tradicionais e a remoção

1121
compulsória desses povos, dentre os quais se encontravam os Parakanã, Gavião da
Montanha, Waimiri e Atroari, e Guarani (SANTOS & NACKE, 2003). A região Sul do
Brasil também foi alvo da cobiça por potencial hidrelétrico que se seguiu à proposta
“desenvolvimentista” posta em prática nos governos militares. Além de Itaipu,
mundialmente conhecida por sua dimensão gigantesca, responsável pela geração de boa
parte da energia elétrica consumida hoje no Brasil, e que atingiu os subgrupos Avá e
Mbyá do grupo Guarani, também chama a atenção na região a série de barragens
construídas ao longo do rio Uruguai, local de tradicional ocupação dos Kaingang.

A exploração do potencial energético do rio Uruguai insere-se no projeto de


desenvolvimento que o governo tinha para o país. Nesse contexto, a Eletrosul (Centrais
Elétricas do Sul do Brasil S/A) formulou, ainda nos anos setenta, um projeto para a
exploração do potencial energético da bacia do rio Uruguai, definindo cerca de 22
pontos de aproveitamento como passíveis de implantação. Pela primeira vez no Brasil
formulava-se um projeto para o aproveitamento integral de uma bacia hidrográfica,
buscando racionalizar os aproveitamentos e, inclusive, minimizar as questões sócio-
ambientais. Os projetos implantados no regime militar raramente levavam em conta as
tradições das populações locais e suas expectativas, trazendo para elas conseqüências
desastrosas. Nos anos oitenta, em um ambiente de redemocratização do país, tanto a
disseminação de movimentos sociais contra barragens, como a reorientação de
organismos financiadores internacionais no que concerne às questões sócio-ambientais
passavam a criar dificuldades aos planos do governo (SANTOS & HENRIQUES,
2001).

O exemplo de Itaipu é emblemático quando se analisa o impacto causado pela


instalação de uma usina hidrelétrica na população indígena do entorno. Iniciada em
1975, no rio Paraná, sua construção produziu um reservatório com 1.350 km2 de
superfície alagada. Entre 1975 e 1978, mais de 9 mil moradias foram construídas nas
duas margens para abrigar os homens que atuaram na obra. A Itaipu Binacional
começou a produzir energia em 5 de maio de 1984, quando entrou em operação a
primeira das 20 unidades geradoras do projeto[4]. É inegável sua importância atual para
o setor energético do Brasil, porém entre os efeitos gerados incluíam-se problemas de
ordem ambiental e social. A população atingida incluía um grupo Guarani às margens
de afluentes do rio Paraná, conhecido como “os Guarani do Ocoí”, que teve de ser
removido de seu território, levantando a questão dos direitos indígenas e a cobrança por
medidas adequadas de reparação. Esse conflito foi analisado por Sílvio Coelho dos
Santos e Aneliese Nacke:

A implantação desse megaprojeto provocou, entretanto, vários problemas sociais e


ambientais, alguns dos quais continuam apresentando seqüelas. Entre esses, ressaltam-
se aqueles causados para os índios Guarani, dos subgrupos Mbyá e Nandeva, que
viviam as imediações dos rios Jacutinga e Ocoí, pequenos afluentes do rio Paraná,
atingidos pela formação do reservatório. Os problemas vivenciados por esses índios não
foram compreendidos, nem tampouco equacionados durante a fase de construção da
usina. À época da formação do reservatório, a Itaipu Binacional localizou de forma
emergencial os indígenas numa pequena restinga, formada pelo lago. A partir daí os
Guarani começaram um processo de reivindicação junto à empresa, visando à obtenção

1122
de uma área adequada para abrigar sua aldeia. Os desdobramentos desse processo não
foram pequenos, nem pouco significativos (SANTOS & NACKE, 2003, p. 22)

Antes mesmo da transferência, a nova área foi considerada imprópria pelos


Guarani do Ocoí/Jacutinga, situação confirmada por laudo antropológico realizado por
Rubem T. de Almeida, que constatou se tratar de um dos piores assentamentos de
população Guarani no Brasil. A solução para o impasse deu-se apenas em março de
1997, após longa luta dos indígenas, quando a Itaipu Binacional comprou uma área de
1.744 ha no Município de Diamante d’Oeste e 32 famílias foram removidas para a nova
terra, chamada TI Tekoha Añetete. (COSTA, 2003). Mesmo assim, a falta de
planejamento prévio decorrente de uma remoção “às pressas” trouxe mais dificuldades,
dentre as quais o fato de que a terra adquirida pela Itaipu pertencia antes a uma fazenda
de criação de gado, tendo o solo tomado por capim e com problemas de fertilidade. Os
projetos de desenvolvimento da TI Tekoha Añetete são basicamente criados e
executados pela usina, às vezes em parceria com a prefeitura local, mas com pouca
participação da Funai. Zeila Costa vê a ausência de planejamento e a precariedade do
apoio fornecido aos índios reassentados como ameaças à subsistência e à saúde dentro
da nova terra indígena, comprometendo o que deveria ser um ganho inegável:

O desconhecimento das especificidades culturais das populações afetadas pela


implementação de um “projeto de desenvolvimento”, desencadeia uma série de
conseqüências negativas, como podem ser observadas na história dos Guarani atingidos
pela usina hidrelétrica Itaipu Binacional. Quando, após um longo processo de luta, essa
população vê sua principal reivindicação atendida – a terra –, a falta de planejamento,
de apoio e a precariedade do acompanhamento no novo local durante os três primeiros
anos, configuram um quadro extremamente crítico, especialmente no que se refere à
subsistência e à saúde da população reassentada (COSTA, op. cit., pp.78-79).

Nos anos noventa o país passa a seguir a receita neoliberal, reduzindo o papel do
Estado no controle da economia e privatizando setores estratégicos, como o de produção
de energia. Buscava-se a atração de investimentos externos e a formação de consórcios
nacionais. Nessa corrente, as empresas e energia elétrica estaduais e federais vão sendo
privatizadas, como foi o caso da segmentação da Eletrosul, que deu origem às Centrais
Geradoras do Sul do Brasil (Gerasul), empresa responsável apenas pela geração da
energia elétrica e posteriormente adquirida pelo grupo belga Tractebel, Electricity &
Gas International. Consórcios privados foram criados com a finalidade de implantar
hidrelétricas ao longo da bacia do rio Uruguai, obrigando indígenas e movimentos
sociais a alterarem suas estratégias, antes destinadas a pressionar o poder público. Essas
mudanças no setor elétrico foram bem apontadas por Sílvio Coelho dos Santos e Karyn
Henriques em 2001:

1123
[...] no decorrer dos anos 90 o que se passou a testemunhar foi uma reorientação
acelerada do setor elétrico objetivando a sua privatização. A globalização da economia e
o neoliberalismo desarticularam o Estado enquanto ente centralizador dos investimentos
econômicos. As empresas de energia elétrica estaduais/federais estão sendo
privatizadas. A Eletrobrás e suas subsidiárias também. Diferentes projetos de novas
hidrelétricas estão sendo implementados por consórcios empresariais, com ou sem a
participação de empresas estatais. Vive-se, assim, o risco de o setor privado vir a
controlar um dos mais estratégicos segmentos da economia do país. Mais que isto, o
capital privado que se organiza para controlar o setor elétrico certamente vai apresentar
resistência para assumir os prejuízos conseqüentes da implantação e operação de
hidrelétricas, em termos sociais e ambientais. (SANTOS & HENRIQUES, op. cit., p.
61)

No Estado de Santa Catarina, cuja fronteira com o Rio Grande do Sul é em boa
parte definida pelo curso do rio Uruguai, esses consórcios privados para a produção de
energia elétrica constituem um novo elemento que vem se juntar ao campo de interesses
diversos formado quando se constrói uma barragem. Se antes os conflitos por terra se
davam entre índios e agricultores, ou “colonos”, surgem situações em que ambos
passam à condição de “atingidos”, podendo ir parar do mesmo lado da disputa. Mas isso
depende de um contexto de relações complexas, em que diferentes atores procuram ter
suas aspirações atendidas, além de estarem inseridos em processos históricos muitas
vezes violentos.

O antropólogo Ricardo Cid Fernandes dá um bom exemplo da complexidade a


que se pode chegar em casos envolvendo terras indígenas. A bacia do rio Uruguai é
território tradicional dos Kaingang[5] e, assim como os “sertões” do Paraná e o Norte
do Rio Grande do Sul, permaneceu “terra sem lei”, praticamente fora dos interesses da
colonização até finais do século XIX, quando se define a fronteira com a Argentina no
que foi conhecido como “Questão de Palmas”. A partir daí, iniciou-se a efetiva
colonização da região, e para isso os governos estaduais passaram a demarcar terras
indígenas com o intuito de confinar os Kaingang em certos locais, deixando assim o
restante do território “livre” para ser colonizado. A partir do início do século XX,
contou-se com o auxílio de empresas colonizadoras que promoviam o loteamento e a
ocupação dessas terras (FERNANDES, 2003).

Nos anos setenta há um processo de retomada da identidade Kaingang e de luta


pela recuperação de suas terras tradicionais. Hoje existem cinco TIs Kaingang
reconhecidas em Santa Catarina, todas na região Oeste, além de outras distribuídas
pelos Estados de São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul. Além dessas, há outras
inúmeras terras indígenas reivindicadas pelos Kaingang ou em vias de reconhecimento.
É o caso da Reserva Indígena Aldeia Condá, no município de Chapecó – SC, adquirida
pela Funai para resolver a situação de indígenas que tinham como território tradicional o
local onde hoje é o centro de Chapecó, e por isso insistiam em permanecer na cidade.
Descartada a hipótese improvável de recuperar sua terra tradicional, escolheu-se uma
área de 2.300 hectares na zona rural do município para a implantação da reserva
(FERNANDES, op. cit.).

1124
Esse episódio envolveu, entre outros fatores, moradores de um bairro de classe
média alta de Chapecó, incomodados com a presença indígena; setenta e cinco famílias
de agricultores que discordavam do valor da indenização definido pela Funai; a
instalação da Usina Hidrelétrica Foz do Chapecó; e o Movimento dos Atingidos por
Barragens (MAB). As possibilidades de aliança em situações como essa são
surpreendentes, às vezes com índios e consórcio hidrelétrico do mesmo lado, como se
constatou. Da mesma forma, um impasse local pode em pouco tempo tomar dimensões
enormes, chamando atenção de diversas instituições e repercutindo internacionalmente.

Muitas das negociações necessárias para a viabilidade de uma TI passam longe


da presença do Estado, sendo protagonizadas por outros atores, como é o caso das
hidrelétricas implantadas por consórcios privados. Não que seja um problema a ausência
de órgãos governamentais nessas reuniões, mas torna-se preocupante a disparidade
gerada pelo poder econômico desses consórcios bilionários em relação às comunidades
indígenas afetadas – disparidade constatada inclusive na contratação de grandes e caros
escritórios de advocacia –, fazendo parecer que o “problema” dos índios é mais um sub-
item de gestão empresarial. Ao mesmo tempo, alguns juízes parecem se impressionar
com tamanha concentração de recursos, ignorando questões sociais ou ambientais que
cruzam o seu caminho. Se antes o Estado autoritário se impunha pela força física, agora
existem argumentos mais convincentes para se continuar tratando os direitos indígenas
como se fossem um verdadeiro incômodo.

Conclusão

A situação atual das terras indígenas – tanto as já demarcadas como as que


esperam reconhecimento oficial – por si só demonstra a dificuldade em se obter o
reconhecimento real dos direitos que os índios têm a elas. Os recursos naturais
encontrados nessas terras despertam o interesse não só de fazendeiros e madeireiros do
entorno, mas de grandes projetos que têm como objetivo o “progresso” da “sociedade
brasileira”. O crescimento do país, portanto, justifica passar por cima dos direitos
indígenas que a própria Constituição Federal determina. Se nesses casos os índios estão
do outro lado do interesse nacional, em outros eles são legitimamente brasileiros, não
havendo o por quê de se falar da existência de povos indígenas em nosso território. Esse
tratamento ambíguo, de acordo com a conveniência do momento, também foi percebido
no regime tutelar imposto pelo Estado, situado entre a proteção e a opressão.

É importante ressaltar que as matanças de indígenas no interior de Santa


Catarina e Paraná, por exemplo, deram-se em pleno século XX, por meio da contratação
de “bugreiros”, e não num passado longínquo pelos “primeiros portugueses”. Essa
realidade é mais próxima do que se quer aceitar, uma vez que constitui a história
recente de nosso estado, com a conivência ou o silêncio de boa parte da sociedade.
Ainda hoje a questão indígena é vista como um entrave ao desenvolvimento econômico;
essa mesma situação é enfrentada por outros temas, como o meio ambiente, os direitos
humanos, a distribuição de riqueza, e por aí em diante.

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Em setembro de 2007, após mais de vinte anos de negociação, a Organização
das Nações Unidas (ONU) aprovou a “Declaração de direitos dos povos indígenas”.
Entre seus principais pontos está o reconhecimento da autodeterminação dos povos
indígenas, pela qual estes determinam livremente sua condição política e perseguem
livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural, além de ter o direito de
conservar e reforçar seus próprios sistemas políticos, jurídicos, de saúde, educacionais,
culturais, entre outros, mantendo porém seu direito de participar plenamente, se
desejarem, da vida política e social do Estado. Entre os países que defenderam a
proposta encontra-se o Brasil; resta saber o que fará para respeitar o compromisso
firmado.

No entanto, os direitos indígenas também se encontram dependentes do jogo


político que envolve a elaboração de leis e planos de governo. Como se viu, interesses
nem sempre revelados impedem que o Estado destine uma atenção mais apurada ao
assunto, que está longe de figurar entre suas prioridades. Os direitos indígenas, por fim,
são também um espaço onde a teoria jurídica moderna vê-se confrontada com a
obrigação de aceitar a existência de concepções do mundo diferentes dela mesma, mas
nem por isso inferiores ou inadequadas.

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[2] Por exemplo, tramita desde 1983, ação no STF em que se pretende a nulidade dos
títulos incidentes sobre o território tradicional dos Pataxó Hã-hã-hãe, do sul da Bahia.
Por todo esse longo período (completa 25 anos), os índios vêm sendo impedidos de
ocupar integralmente o seu território, sob o pretexto, invocado por juízes e tribunais, de
que o Supremo ainda não definiu os exatos limites de suas terras. (DUPRAT, 2006)

[3] Núcleo de Estudos de Identidade e Relações Interétnicas do Departamento de


Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFSC.

[4] Fonte: http://www. itaipu.gov.br


[5] Segundo Ricardo Cid Fernandes, “o grande número de terras indígenas Kaingang,
hoje espalhadas pela bacia do rio Uruguai, não apenas confirma a ancestralidade da
ocupação indígena, mas também indica que este vasto território contém marcas de
tradicionalidade reconhecidas por esses indígenas. Com efeito, a geografia local com
seus morros, campos elevados, vales encaixados e suas matas de araucária, constitui o
cenário dos principais mitos Kaingang (FERNANDES, 2003, p. 160).

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