P-235 - A Casta Dos Trombas-Brancas - William Voltz

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(P-235)

A CASTA DOS
TROMBAS-BRANCAS
Autor
WILLIAM VOLTZ

Tradução
RICHARD PAUL NETO

Digitalização e Revisão
ARLINDO_SAN
Há muito tempo os senhores da galáxia, que são os
seres misteriosos que governam a nebulosa de Andrômeda,
passaram a usar o povo dos twonosers como guardiões de
Andro-Beta.
Isto já faz muitos milênios, mas apesar disso ainda no
ano de 2.402 do calendário terrano os twonosers continuam a
executar sua missão de vigilância sob as ordens de seus
senhores — para infelicidade de Perry Rhodan e dos
tripulantes da Crest.
A Crest II, que saiu do satélite secreto Tróia, levado a
Andro-Beta, a fim de fazer um vôo de reconhecimento, foi
atacada pelos twonosers, que aprisionaram a nave e a
levaram para o interior de um moby. Depois de uma luta
feroz e desesperançada contra a enorme superioridade
numérica dos seres de tromba, Perry Rhodan e seus
companheiros acabaram sendo dominados.
Dois mil terranos dão início à caminhada amarga para
a prisão. Em virtude de seu aspecto exterior, os prisioneiros
foram classificados como párias, e acabam sendo
transportados para as profundezas do corpo do moby, onde
fica a área dos proscritos, habitada pela Casta dos Trombas
Brancas!

======= Personagens Principais: = = = = = = =


Kendall Baynes — Um sargento da Frota Solar que é conhecido
como um tipo convencido.
Perry Rhodan — Administrador-Geral do Império Solar e porta-
tromba número um.
Icho Tolot — Um halutense que foge aos que o vigiam.
John Marshall — Um espião que age no cérebro dos outros.
Melbar Kasom — O segundo fugitivo.
Garko o forte — Chefe dos trombas brancas.
Storkeet — Elemento de ligação de Garko.
Prólogo

Era um quadro que faria bater mais depressa o coração dos


eleitos — se estes possuíssem tal órgão.
Até onde alcançava a vista, os membros do povo de guardião
se comprimiam lado a lado. Quando dirigisse a palavra aos
mesmos, cada ser ouviria sua voz, pois havia uma fileira de alto-
falantes que se estendia até a outra extremidade da área enorme.
— Vocês viverão nesta galáxia-satélite — disse em tom calmo.
As primeiras fileiras pareciam balançar, os rostos que se
levantavam para o Eleito não mostravam entusiasmo nem antipatia.
“Eles sabem que não pertenço ao povo dos senhores da
galáxia”, pensou o Eleito, amargurado. “Só me aceitam porque
sabem que atrás de mim está o maior e único poder de Andrômeda.”
— Não demorará, e vocês conquistarão todos os planetas —
continuou.
Ouvia a própria voz ressoar pela área, ampliada muitas vezes
por meio do equipamento eletrônico.
— Vocês sabem qual é a tarefa — disse.
Entesou o corpo, para dar maior ênfase às suas palavras.
Pela primeira vez a feiúra dos seres trombudos lhe causou
certa repugnância. Por isso mesmo a decisão dos senhores da
galáxia, de usar estes seres como guardiões de Andro-Beta, tinha
sido muito inteligente.
— Os gigantes de cristal lhes darão apoio na execução dessa
tarefa — prosseguiu. A lembrança destes monstros gigantescos, que
ficariam vagando entre as estrelas da pequena galáxia, lhe
provocou um calafrio. — Vocês nunca devem esquecer que nenhum
povo de astronautas que penetre resta área, vindo da galáxia
vizinha, deve prosseguir no seu avanço. Vocês são apenas uma parte
do anel de vigilância impenetrável, mas assim mesmo devem levar
sua tarefa a sério. Qualquer erro que cometerem fará desabar sobre
vocês a ira dos senhores da galáxia, e vocês sabem o que isso
significa.
Será que estava enganado, os seus ouvintes realmente
começavam a ficar nervosos? O Eleito lembrou-se com saudades de
seu mundo, ao qual não voltaria tão depressa. Recebera ordem para
acompanhar na qualidade de observador os primeiros movimentos
dos seres trombudos. Não poderia voltar antes disso.
— Vocês estão livres! — gritou para a multidão. — Podem
fazer tudo que acharem conveniente, desde que não esqueçam sua
tarefa.
Não foi um bom discurso, pensou, contrariado. Mas não havia
necessidade de dizer muita coisa para que os seres que o ouviam
soubessem o que deviam fazer.
O Eleito não esperou que a multidão se espalhasse. Fez um
sinal para os carregadores, para que os mesmos o levassem para
dentro de uma pequena espaçonave. Sentiu-se aliviado quando a
eclusa se fechou atrás dele.
Até então cumprira lealmente as ordens recebidas. Os
senhores da galáxia acabariam sabendo disso. Perguntou-se como
isto era possível, já que tinham que observar milhares de canteiros
de obras do anel de vigilância ao mesmo tempo.
“Estou com medo deles”, pensou o Eleito. Sabia que
compartilhava este medo com os duzentos milhões de seres
trombudos aos quais acabara de dirigir a palavra.
O Eleito não poderia imaginar que os seres trombudos
executariam sua tarefa durante vários milênios, com a maior
lealdade. Mas num futuro distante apareceria um povo que causaria
problemas graves aos vigias.
Era o povo dos terranos...
1

O nome do tipo convencido era Kendall Baynes e o mesmo servia como sargento na
divisão técnica do convés F da Crest II. Os tripulantes costumavam chamá-lo de Lorde
Baynes, porque afirmava que descendia em linha direta de uma família antiga da nobreza.
Lorde Baynes andava sempre com uma gaita de boca, e sempre que sofria um acesso de
melancolia colocava as mesmas peças: Summertime, Rhapsodie in Blue e Blue Heaven.
O convencido era um homem alto e esbelto e tinha vinte e dois anos. Mesmo
quando usava capacete, o que não era muito freqüente, sempre havia uma mecha de
cabelo pendurada em sua testa. Lorde Baynes tinha olhos azuis, rosto pálido, com pele
lisa e os cantos da boca caídos num gesto de desprezo.
Kendall Baynes estava de pé num pavilhão gigantesco, juntamente com dois mil
homens, à espera do momento em que tivesse início a marcha para a prisão.
O sargento Kapitanski estava bem ao lado de Baynes, matutando com o rosto
sombrio. Baynes disse a si mesmo que Kapitanski era o pior parceiro que poderia desejar
numa situação destas.
Olhou para o lado e viu as fileiras de guardas dos twonosers, que haviam reunido os
tripulantes da Crest num espaço muito limitado.
“Até parece que somos um rebanho de carneiros”, pensou Lorde Baynes,
amargurado.
Desabotoou o bolso do uniforme e tirou a gaita de boca. O instrumento parecia bem
gasto. Kapitanski levantou a cabeça e lançou um olhar de desaprovação para Baynes.
— O que pretende fazer? — perguntou, desconfiado.
— Já estou cansado de ficar de pé — queixou-se Baynes. — Um prisioneiro
também tem certos direitos.
O sargento Kapitanski lançou um olhar triste para a Crest II. Tinha lá suas dúvidas
de que eles tivessem muitos direitos. Os primeiros acordes da peça Summertime se
fizeram ouvir a seu lado.
Imediatamente dois twonosers abriram caminho entre as fileiras dos terranos e
pararam à frente de Baynes. Mantinham as armas pequenas, mas muito eficientes, que
traziam nas mãozinhas retorcidas, apontadas para o peito de Baynes.
Kapitanski viu um dos seres trombudos ligar a tradutora automática. Todos os
twonosers que falavam com eles usavam um aparelho desse tipo.
— Todas as armas devem ser entregues — disse o twonoser.
Lorde Baynes deixou de tocar sua gaita e bateu com o instrumento na palma da
mão.
— Isto não é nenhuma arma — explicou.
O twonoser fez um gesto arrogante com a tromba. Baynes viu-se obrigado a
entregar-lhe a gaita de boca. O twonoser examinou-a ligeiramente e devolveu-a a Baynes.
— Não repita esses grasnados de pato — ordenou.
— Grasnados de pato? — chiou Lorde Baynes em tom de incredulidade. — Você
ouviu o que ele disse, sargento?
— Ele não deixa de ter sua razão — disse Kapitanski em tom contrariado. — Essa
sua música acaba enervando a gente.
Baynes mexeu apressadamente no zíper de seu uniforme, assim que os dois guardas
se afastaram. Kapitanski viu-o tirar uma corda comprida, que estivera enrolada em seu
corpo. Kapitanski demorava um pouco para compreender as coisas, mas imaginava que
haveria dificuldades.
— O que vai fazer? — perguntou.
— Vai ver que ficou tão triste que resolveu enforcar-se — disse um dos homens que
se encontravam por perto.
— Eles tiraram nossas armas — explicou Baynes. — Mas não se lembraram de tirar
este laço. Eu lhes disse que faz parte da minha vestimenta.
— Será que você quer enfrentar os trombas vermelhas com uma corda? —
perguntou Kapitanski, assustado.
No rosto de Lorde Baynes apareceram manchas vermelhas.
— Ninguém tem coragem de fazer alguma coisa contra esses tipos arrogantes —
resmungou. — Nem sequer sabemos aonde eles nos levarão.
Alguns dos homens que se encontravam mais próximos aplaudiram
entusiasticamente as palavras de Baynes.
— O Lorde tem razão! — gritou alguém. — Será que Perry Rhodan quer ficar sem
fazer nada enquanto formos maltratados por estes caras convencidos?
— Calma! — recomendou o sargento Kapitanski. — Diante da correlação de forças,
no momento não temos nenhuma possibilidade de fugir. Afinal, Rhodan tentou escapar
num oldtimer. Os twonosers não nos darão uma segunda chance.
— Você está ficando velho! — exclamou Lorde Baynes em tom de desprezo.
Formou laços uniformes com a corda.
— Você ainda não está conosco há muito tempo — disse Kapitanski em tom
paciente. — No entanto, acabará reconhecendo que os atos precipitados só podem render
aborrecimentos.
Baynes bateu furiosamente na testa.
— Aqui atrás há uma inteligência muito aguçada. E esta inteligência me diz que
devemos arriscar alguma coisa para descobrir qual será a reação dos trombas vermelhas
diante de um ataque partido das nossas fileiras.
— Está bem; procure descobrir — fungou Kapitanski.
Lorde Baynes mostrou um sorriso orgulhoso e foi passando entre os homens,
segurando a corda. Quando atingiu a última fileira, parou.
— Afastem-se um pouco — disse.
Os homens recuaram prontamente. Em sua maioria ansiavam por uma oportunidade
de entrar em ação contra os twonosers.
Lorde Kendall Baynes, um sargento de vinte e dois anos que servia no convés F da
Crest II, fez girar a corda quatro vezes em cima da cabeça e soltou a ponta.
O laço fechou-se em torno do corpo de um guarda, que foi tomado de surpresa.
— Formidável! — exclamou Baynes e puxou a corda. O twonoser deu alguns
passos cambaleantes, até que um dos companheiros o libertasse, cortando o laço.
Baynes ficou com o rosto impassível enquanto três guardas se aproximavam. O
chefe dos trombas vermelhas apalpou o corpo de Baynes, à procura de outras armas.
— Não permitiremos que os senhores provoquem incidentes — disse. — O senhor
me acompanhará para junto de seu chefe. Se isso se repetir, mandaremos fuzilar dez
prisioneiros.
Os guardas cercaram Baynes e obrigaram-no a acompanhá-los. Levaram-no para
perto de Perry Rhodan, que se mantinha um pouco afastado dos outros prisioneiros, ao
lado de Atlan, Icho Tolot e John Marshall.
Baynes levou uma pancada que o fez avançar cambaleante. Conseguiu equilibrar-se
bem à frente de Rhodan, que o fitou atentamente.
— Então, sargento Baynes? — perguntou Rhodan, tranqüilo. — Poderia apresentar
mais alguma peça de seu show?
— Sinto muito, senhor — disse Baynes, esforçando-se para dar um tom firme à voz.
— Só quis descobrir qual seria a reação dos twonosers a um ataque nosso.
— Este homem tem de ser castigado — decidiu o tromba vermelha. — Dê-lhe uma
punição adequada.
— Naturalmente — garantiu Rhodan.
— Que é isso, senhor? — exclamou Baynes em tom exaltado. — Vai castigar-me só
porque um desses tipos petulantes exige?
— Desde que me lembro, vejo-me atrapalhado chamando à razão tipos esquentados
que nem o senhor — disse Rhodan com a voz calma. — Nunca falei pessoalmente com o
senhor, sargento Baynes, mas posso garantir que sua fama ultrapassou os limites do
convés F.
— Minha fama de tocador de gaita ou de sargento? — perguntou Lorde Baynes
com um sorriso inseguro.
— Sua fama de fanfarrão — respondeu Rhodan em tom enérgico.
Baynes deixou cair os ombros. Parecia muito infeliz. De repente Icho Tolot, o
halutense, soltou uma estrondosa gargalhada.
— Nosso jovem amigo sempre quebrou a monotonia — disse, satisfeito.
— Não podemos nos queixar de monotonia — disse Atlan em tom irônico. — O
senhor nos fez entrar neste moby, Tolot. Ao contrário do que acontece com o senhor, não
achamos nem um pouco divertido ficar presos no cadáver de um monstro que tem trinta
mil quilômetros de diâmetro e cerca de dez mil quilômetros de altura.
Tolot riu ainda mais alto.
— Pois eu estou gostando — disse em tom decidido.
Kendall Baynes ouviu tudo sem compreender. Até parecia que Atlan e Tolot
estavam conversando numa língua que ele não entendia.
— A marcha começará daqui a pouco — disse um dos trombas vermelhas. — Logo
terão de entrar em forma.
Baynes ficou aliviado ao notar que os três guardas se retiraram.
— Por enquanto o senhor ficará perto de mim — disse Rhodan. — Não quero que
provoque outro incidente.
Baynes acenou com a cabeça. Bem que gostaria que Kapitanski pudesse vê-lo. O
jovem sargento ainda não conseguia acreditar que se encontravam no corpo de uma
criatura enorme. Kapitanski tentara explicar-lhe que o pavilhão em cujo interior se
encontravam era um dos estômagos de armazenamento do monstro.
A Crest II estava sendo cuidadosamente vigiada pelos twonosers. Todas as
máquinas estavam desligadas, e por isso nem mesmo Rakal e Tronar Woolver, os gêmeos
mutantes, podiam voltar à nave.
Baynes soubera que John Marshall descobrira, lendo os pensamentos de alguns
trombas vermelhas, que o raio laser que os twonosers haviam usado para pôr a Crest II
fora de ação tinha um alcance máximo de dez mil quilômetros. Se tivessem tido um
pouco de cuidado, poderiam ter evitado a prisão. Em sua maioria os dois mil tripulantes
não estavam muito contentes com o halutense Icho Tolot, que fizera a sugestão de que
examinassem o moby.
A crítica de Atlan chegou ao ponto de batizar o cadáver do moby com o nome de
Moby Tolot. Mas, segundo Baynes acabara de saber, o halutense não se importava com
essa forma de ironia. Provavelmente era o único entre os prisioneiros que se alegrava
com a situação em que se encontravam.
Os terranos já sabiam que os twonosers estavam divididos em três castas. A casta A,
formada pelos párias, vivia no pavimento abdominal do moby. Suas trombas não tinham
sido coloridas, e por isso mostravam a cor natural, que era o branco. O pavimento médio
do moby era ocupado pelos trombas azuis, pertencentes à casta B. Os soldados eram
recrutados quase exclusivamente entre os membros da casta B. A casta nobre, que
formava o grupo C, tinha-se instalado no setor costal do cadáver do moby. O sinal
distintivo desta classe eram as trombas tingidas de vermelho.
Os cientistas terranos ainda não sabiam como poderia ter surgido esta divisão em
castas, mas acreditavam que a divisão espacial do moby também se aplicava aos planetas
habitados pelos twonosers. Provavelmente os membros da casta A tinham de lutar pela
subsistência em mundos cujas condições eram pouco favoráveis, enquanto à casta B eram
reservados planetas de condições um pouco melhores. Os trombas vermelhas fixavam-se
nas áreas melhores.
Era mais ou menos o que os terranos haviam descoberto. Os trombas vermelhas
eram tão convencidos que não se mostravam dispostos a envolver-se em conversas
prolongadas com seres inferiores como os intrusos. Por isso Rhodan e Atlan dependiam
principalmente das informações fornecidas pelos mutantes.
As reflexões de Lorde Baynes foram interrompidas quando John Marshall se
aproximou de Rhodan e cochichou alguma coisa ao seu ouvido. Rhodan acenou com a
cabeça.
— Parece que pretendem levar-nos ao pavimento abdominal — disse Rhodan,
dirigindo-se aos outros. — Acham que é o melhor lugar para guardar-nos.
— É lá que vive a casta A — lembrou Atlan. Lançou um olhar zangado para Tolot.
— Quem sabe se por lá o senhor não vai perder o senso de humor, Tolot?
— De forma alguma — asseverou o halutense. — Até me sinto ansioso para travar
conhecimento com outros twonosers.
— Não se esqueça de que, se tivermos de sair daqui, dificilmente teremos uma
chance de voltar à Crest. E a nave representa a única possibilidade de fuga que temos.
— Nossa vida não está em perigo — disse Tolot em tom tranqüilizador. — Se a
situação se tornar crítica, vamos pensar em alguma coisa.
Lorde Baynes sentiu-se animado a fazer uma pergunta.
— De que forma pretendem levar-nos ao pavimento abdominal?
— Ainda não descobri — respondeu Marshall prontamente. — Mas tenho certeza
de que não vamos percorrer o caminho a pé.
Baynes surpreendeu-se de que aqueles homens o deixassem entrar na conversa com
tanta naturalidade. Lançou um olhar pensativo para o teto, onde havia uma luminária não
ofuscante, que desempenhava as funções de sol no interior do pavilhão em que se
encontravam. Os twonosers tinham dado uma solução perfeita a todos os problemas
técnicos resultantes da vida no interior do cadáver de um moby. A atmosfera artificial era
respirável. A gravitação do moby era pouco superior ao valor normal de um gravo. No
interior do pavilhão a temperatura era mantida constante ao nível de 25 graus centígrados.
Baynes não tinha a menor dúvida de que em outros lugares no interior do moby as
condições eram as mesmas.
Passaram-se mais duas horas a partir do incidente provocado por Baynes, quando
apareceu novamente um grupo de três trombas vermelhas que se aproximou de Rhodan.
— Já foram tomadas todas as providências para seu transporte — disse o porta-voz
dos twonosers, dirigindo-se ao terrano. — Trate de fazer com que seus homens se
mantenham calmos.
Baynes constatou que os twonosers não davam a impressão de serem hostis ou
traiçoeiros. Só pareciam sentir-se infinitamente superiores.
— Para onde seremos levados? — indagou Rhodan.
— Não queremos perguntas — respondeu o tromba vermelha. — Dirija a palavra
mais uma vez ao seu grupo.
Rhodan fez um sinal para que Tolot se aproximasse.
— Coloque-me nas suas costas, Tolot, para que todos me vejam.
O halutense não teve nenhuma dificuldade em colocar Rhodan sobre o ombro
esquerdo.
Rhodan levantou o braço. Os dois mil terranos emudeceram, fitando o Chefe com
uma expressão de expectativa.
— Não preciso explicar novamente a situação em que nos encontramos — disse. —
Os twonosers não têm a intenção de matar-nos, mas é evidente que não permitirão que
fiquemos neste pavilhão, pois dessa forma permaneceríamos nas imediações da nave em
que viemos. Não nos oporemos ao transporte. Quando chegarmos ao destino, poderemos
elaborar nossos planos.
Rhodan esperava que suas palavras parecessem inocentes. Não havia dúvida de que
as mesmas estavam sendo traduzidas pelos aparelhos dos twonosers. Seria perigoso falar
abertamente na intenção de fugir.
Outros trombas vermelhas apareceram no pavilhão. Os dois mil prisioneiros foram
obrigados a entrar em forma. Rhodan, Atlan, Marshall e Kendall Baynes caminharam na
ponta do grupo.
Vinte trombas vermelhas armados caminhavam à sua frente. Baynes deu um olhar
ligeiro para o lado e certificou-se de que havia mais de cem guardas de cada lado da
coluna. Acreditava que atrás do grupo também havia alguns trombas vermelhas. Todas as
providências capazes de evitar uma fuga haviam sido tomadas.
O pavilhão estreitou-se, formando uma espécie de portão de dimensões muito
grandes. Os trombas vermelhas obrigaram os prisioneiros a seguir na direção do mesmo.
Baynes tentou imaginar que essa passagem, que provavelmente levava a outro pavilhão,
era o vão livre da veia do moby. Naturalmente as veias e artérias do organismo
gigantesco não serviam para transportar um líquido que se parecesse com o sangue, pois
sua finalidade consistia em realizar a condensação da energia que possibilitasse seu
intercâmbio. Durante a vida do moby essas artérias formavam um sistema de condutos
energéticos muito finos, em cujo interior os fluxos energéticos eram concentrados,
direcionados e irradiados de maneira uniforme.
Baynes suspirou. Resolveu não quebrar mais a cabeça com estes problemas. Teria
de conformar-se com a realidade.
Quando se encontravam a cem metros do arco do portão, este abriu-se, pondo à
vista mais um pavilhão. O mesmo também era iluminado por um sol artificial, conforme
esperara Baynes. Os guardas atravessaram o portão antes deles. Havia uma parede que,
segundo parecia, tinha sido construída pelos twonosers.
O chão no qual Baynes estava pisando lembrava um mosaico. Parecia ter sido
revestido por uma porção de pedrinhas coloridas, mas na verdade era inteiriço. Baynes
tentou abrir às escondidas um buraco com o salto da bota, mas o material era muito duro.
Atingiram o pavilhão seguinte, que se parecia até os menores detalhes com aquele
do qual acabavam de sair. Baynes tentou em vão descobrir alguma característica que
pudesse fornecer uma indicação sobre a finalidade do recinto.
Rhodan chegou à mesma conclusão.
— Parece que grande parte do corpo do moby nem está sendo utilizada pelos
twonosers — disse. — Naturalmente isso pode mudar no pavimento intermediário ou
abdominal. Cada um dos nobres trombas vermelhas certamente exige uma área
residencial bem ampla.
Levaram dez minutos para atravessar esse pavilhão. Depois disso entraram em outro
recinto, cujas dimensões eram ainda maiores que as dos dois outros.
Uma pequena povoação apareceu à frente dos homens. Baynes contou cerca de
cinqüenta casas, agrupadas aproximadamente em torno do centro do pavilhão. Os
telhados metálicos brilhavam à luz do sol artificial. As casas eram de formato oval,
lembrando um ovo colocado de pé, cuja extremidade inferior tivesse sido esmagada. Não
possuíam janelas. Em compensação viam-se escotilhas abauladas para fora e inúmeras
reentrâncias parecidas com verrugas. Uma rede de fios estendia-se de um telhado a outro.
Estradas assinaladas por colunas luminosas saíam da cidade, levando em todas as
direções. Numa dessas estradas viajava um veículo em forma de disco, ocupado por três
trombas vermelhas.
Os olhos de lince de Baynes descobriram vários fios, que levavam do teto do
pavilhão ao centro da cidade. Deviam ser os condutores de energia. Já devia fazer vários
séculos que os twonosers viviam no interior do moby. Era a única explicação para as
instalações bem acabadas.
— É lá que eles vivem — disse Rhodan com a voz tranqüila. — Deve haver outras
cidades parecidas com esta.
Prosseguiram. Baynes surpreendeu-se ao ver um parque muito bem cuidado atrás da
cidade. Parecia que os trombas vermelhas sabiam apreciar as belezas naturais.
Provavelmente o relacionamento com os twonosers não seria difícil, se não fossem tão
convencidos.
“Vamos quebrar o orgulho deles”, pensou Kendall Baynes e sentiu-se confiante.
A coluna tomou uma das estradas e passou a trezentos metros da cidade dos
trombas vermelhas. Ninguém parecia dar atenção aos prisioneiros, pois poucos
espectadores apareceram na periferia da cidade.
O chefe do contingente de guardas que caminhava à frente do grupo foi para perto
de Rhodan.
— Vamos levá-los à estação — ouviu Baynes. — Lá seus homens entrarão num
trem intercastas, que os levará ao destino.
Rhodan não disse uma palavra. Limitou-se a acenar com a cabeça. “O que vem a
ser um trem intercastas?”, pensou Baynes, perplexo. “Tomara que isso não represente
uma surpresa desagradável.”
A coluna caminhou sem parar até o fim da estrada. Ao lado da mesma havia uma
depressão que se estendia até o fim do pavilhão. Baynes viu uma espécie de trilho feito
de metal polido no centro dessa depressão.
— O senhor acha que o trem intercastas passa lá embaixo? — perguntou Baynes,
dirigindo-se a Rhodan.
— Acho, sim — respondeu Rhodan. — Parece que ali fica a estação.
Rhodan apontou para uma praça circular, cercada por colunas luminosas, da qual
partia uma estrada que levava à depressão. Baynes nunca teria pensado que isso pudesse
ser uma estação, mas diante das palavras de Rhodan não teve a menor dúvida de que
realmente era. A presença de alguns trombudos na área livre, que pareciam esperar o
trem, parecia confirmar essa suposição.
Baynes esperava ver um veiculo de aspecto futurista. O fato de que pretendiam
transportá-los num simples trem deixou-o confuso.
Os guardas deram ordem para que os prisioneiros entrassem em forma na praça
circular. Os twonosers que esperavam o trem retiraram-se. Pareciam indignados porque
esperavam que ficassem perto dos terranos.
Nenhum dos guardas disse uma palavra e Rhodan não tentou envolvê-los numa
conversa. De vez em quando o Administrador-Geral conversava com John Marshall, mas
Baynes não ouvia sobre o que estavam falando. Lorde Kendall Baynes sentiu-se cada vez
mais decepcionado com Rhodan e seus companheiros. Esperara que ao menos lhe
dissessem alguma coisa sobre um grandioso plano de fuga. Rhodan, Atlan e Marshall
pareciam aceitar tudo com a maior indiferença. E essa criatura monstruosa que atendia
pelo nome de Icho Tolot até dava a impressão de alegrar-se com o que estava
acontecendo.
Baynes começou a preocupar-se seriamente com o estado mental desses homens.
“Quem sabe se os twonosers não os trataram com um gás que paralisou sua vontade?”,
pensou. Nesse caso caberia a ele, Kendall Baynes, empenhar-se a fundo pela libertação
dos tripulantes da nave-capitânia.
Baynes pôs-se a refletir sobre as medidas que teria que tomar em primeiro lugar. Foi
quando o trem chegou.
Saiu em alta velocidade de um túnel que ficava do outro lado do pavilhão. Era uma
lagarta comprida de aço fosco, que parecia deslizar levemente sobre um único trilho.
Quando o trem reduziu a velocidade, Baynes notou que o mesmo era formado por vários
carros articulados. Havia janelas compridas que ficavam cerca de um metro acima do
chão, e Baynes viu alguns vultos atrás das mesmas. As entradas eram formadas por
aberturas semicirculares que não possuíam portas.
Os guardas entraram em forma e gritaram ordens para os prisioneiros. O trem parou
silenciosamente.
Um dos trombas vermelhas aproximou-se de Rhodan.
— Seus homens serão colocados nos últimos três carros. O senhor e os quatro
companheiros viajarão conosco no quarto carro a contar de trás.
Os guardas foram obrigados a tanger os terranos para dentro dos carros, com as
armas apontadas. Houve vários incidentes, porque alguns homens se recusavam a
obedecer às ordens dos trombas vermelhas.
O grupo de Rhodan teve de esperar até que todos se encontrassem no trem.
Finalmente três guardas fortemente armados deram ordem para que os últimos homens
embarcassem.
Kendall Baynes entrou atrás de Tolot. O halutense mal e mal conseguiu passar pela
entrada. Baynes sentiu um cheio de água estagnada. O vagão estava dividido em
compartimentos. Em cada um desses compartimentos havia assentos baixos, colocados
somente de um dos lados. Dessa maneira os passageiros viajavam sempre olhando para a
frente. Foram levados a um compartimento no qual Já havia dois trombas vermelhas.
Quando Rhodan e Atlan entraram, os dois viraram ostensivamente a cabeça,
olhando pela janela. Rhodan e o arcônida sentaram junto à porta. Tolot teve de ficar de
pé, porque as poltronas eram muito pequenas para ele. Marshall sentou ao lado de
Rhodan.
Baynes estava fervendo de raiva por causa do comportamento dos dois trombas
vermelhas. Sentou ao lado dos mesmos.
— O senhor não acha que seria conveniente ficar perto de nós? — perguntou
Rhodan, lançando um olhar ligeiro para os dois guardas armados que se encontravam
junto à entrada do compartimento.
— Estou gostando daqui — respondeu Baynes em tom obstinado. — Se os guardas
tiverem alguma objeção, que falem.
Ficou vermelho por ter dado uma resposta áspera a Rhodan, mas continuou no
mesmo lugar. Bastava erguer-se ligeiramente na poltrona para ver a estação. Perguntou-
se como estariam as coisas nos últimos três carros.
O trem estava parado. Lorde Baynes tirou a gaita de boca e começou a tocar Blue
Heaven. Notou que os dois trombas vermelhas tentavam afastar-se dele. Os guardas
olharam para dentro do compartimento. Se não estavam gostando da música de Baynes,
eles não mostravam.
O trem partiu, dando um solavanco quase imperceptível. Baynes engasgou, parou
de tocar por um instante e olhou pela janela. Perguntou-se o que encontrariam no destino.
Bem que gostaria que Kapitanski estivesse por perto, para que pudesse discutir a
qualidade de sua música.
“Acho que sou o único terrano neste trem que não perde os nervos quando a
situação se torna crítica”, pensou Lorde Baynes, cheio de si.
Dali a instantes os primeiros acordes da música Summertime — altos e desafinados
— enchiam o compartimento.
O trem corria cada vez mais depressa.
2

Quando o trem partiu, Melbar estava de pé no compartimento superlotado. Tentara


entrar no mesmo carro dos gêmeos Woolver, mas não conseguira evitar que os guardas o
levassem ao compartimento em que se encontrava, juntamente com vinte técnicos do
convés E da Crest.
O ertrusiano estava acostumado a permanecer calmo, mesmo nas situações mais
difíceis. Sabia perfeitamente que no lugar em que se encontrava não poderia fazer nada,
porque não havia possibilidade de entrar em contato com Rhodan e Atlan. Seria muito
arriscado agir por conta própria, pois era perfeitamente possível que Rhodan desse início
à execução de um plano diferente.
Kasom afastou-se da janela, virou-se e olhou para fora. A cidade já ficara para trás.
O trem parecia correr em direção ao vão livre de uma das veias do moby, que servia de
túnel. Kasom constatara que cada carro tinha quatro andares. Os prisioneiros tinham sido
colocados no pavimento inferior. Quando o trem chegara à estação, Kasom notara que
nos pavimentos superiores só havia alguns trombas azuis. Concluiu que nos veículos de
transporte coletivo também se obedecia a uma divisão segundo as castas.
Kasom não se iludia sobre os trombas azuis e os trombas brancas. Estas castas
tratariam os terranos com o mesmo desprezo que os trombas vermelhas.
O ertrusiano pôs-se a refletir intensamente. Tinha de encontrar um meio de entrar
em contato com Rhodan ou Atlan. Os prisioneiros tinham sido colocados nos últimos três
carros, com exceção de Rhodan, Atlan, Marshall, Tolot e um jovem que Kasom não sabia
quem era. Kasom acreditava que os trombas vermelhas tinham separado os homens mais
importantes da tripulação da Crest, para evitar que os prisioneiros elaborassem algum
plano de fuga.
Kasom foi à entrada do compartimento e lançou um olhar para o corredor. O trem
era bastante silencioso. Três compartimentos adiante havia quatro homens armados. Os
mesmos olharam para ele assim que enfiou a cabeça no corredor. Kasom se
desacostumara há muito de considerar os indivíduos de povos diferentes como feios ou
bonitos, mas os olhos facetados rígidos dos trombudos pareciam repugnantes.
Kasom saiu para o corredor. Entesou o corpo, pois esperava que a qualquer
momento houvesse um ataque. Dois guardas aproximaram-se com as armas apontadas.
— Volte ao seu compartimento — disse um dos trombas vermelhas. A tradutora
transmitiu estas palavras no mesmo tom de desprezo com que o guarda acabara de
pronunciá-las.
Kasom tinha certeza de que com um simples salto poderia pôr fora de ação os dois
guardas, mas isso não adiantaria nada. Os outros guardas que se encontravam por perto
logo abririam fogo contra ele.
— O ar está muito viciado no interior do compartimento — disse em tom calmo. —
Não agüento mais por lá.
O ertrusiano cambaleou e apoiou-se na parede com uma das mãos. Os dois
trombudos fitaram-no, indecisos. Kasom prendeu a respiração até que seu rosto ficasse
muito vermelho.
— Não posso ficar aqui — disse em tom de desespero.
— Não pertence a este povo? — perguntou um dos twonosers.
— Acha que sou um deles? — resmungou Kasom em tom de desprezo. — É uma
vergonha eu ter de ficar neste compartimento.
Os dois trombas vermelhas conversaram um instante. O aspecto de Kasom era a
melhor prova de que não era um terrano. Contava com o espírito de casta dos twonosers.
— Como foi parar nessa espaçonave? — perguntou um dos guardas.
— Morrerei antes de poder explicar as condições políticas de que resultou minha
presença a bordo — disse Kasom. — Leve-me ao chefe dos prisioneiros. Preciso falar
com ele.
— Pode ir para lá — disse o twonoser. — Não é necessário que alguém o
acompanhe. Há guardas postados a intervalos regulares. Diga-lhes que foi Sorttiis quem o
mandou.
— Obrigado — disse Kasom e saiu cambaleando pelo corredor. Passou pelos dois
outros guardas sem ser molestado, embora não conseguisse livrar-se da impressão de que
os mesmos mantinham suas armas apontadas para ele o tempo todo. Em sua maioria os
compartimentos estavam abertos, e Melbar Kasom ouvia as discussões exaltadas dos
astronautas. Algumas pessoas o chamaram, mas Melbar não tomou conhecimento das
tentativas de conversar com ele.
Outros seis guardas o deixaram passar, mas acabou sendo detido por um twonoser
muito alto postado na parte traseira do vagão.
— Como chegou até aqui? — perguntou o tromba vermelha. Não carregava
nenhuma arma, mas Kasom acreditava que seria perigoso envolver-se numa luta com ele.
O twonoser tinha mais de dois metros de altura, e provavelmente não teria nenhuma
dificuldade em esmagar um homem normal com as duas trombas que possuía.
— Vim do último vagão — disse Kasom. — Vou para onde está nosso chefe. Foi
Sorttiis que me mandou.
O twonoser ficou parado no meio do corredor.
— Volte ao seu compartimento! — disse.
— Isso seria minha morte — disse Kasom em tom insistente. — Não posso
conviver por mais tempo com esses seres num recinto fechado.
— O problema é seu — respondeu o tromba vermelha. — Volte!
— Seu idiota convencido! — gritou Kasom e saltou.
O impacto fez com que o twonoser fosse atirado contra a parede. Houve um baque
surdo, seguido de uma batida, quando o guarda enlaçou o corpo de Kasom com as
trombas. Dali a pouco Kasom sentiu uma coisa dura encostada na região do estômago.
— Solte-me imediatamente, senão faço um buraco em sua barriga! — chiou o
tromba vermelha, que de repente segurava uma arma na mãozinha.
Kasom recuou e lançou um olhar para a arma minúscula que o twonoser parecia ter
tirado de um cinto largo.
— Como se atreve a pôr as mãos em mim? — esbravejou o adversário de Kasom,
indignado. Kasom ficou espantado quando compreendeu que não fora tanto o ataque
desesperado que deixara o twonoser zangado, mas antes o fato de ele ter tocado o tromba
vermelha.
— Tome um banho — aconselhou Kasom em tom sarcástico e foi levantando as
mãos, para mostrar que não tinha interesse em continuar a briga. Mais três guardas se
haviam aproximado, e ameaçavam o ertrusiano com suas armas.
— Volte logo ao seu compartimento! — disse o twonoser alto, enojado.
Kasom sorriu.
— Só se o senhor me carregar — anunciou. — Não irei de minha livre vontade.
Os guardas discutiram a situação. Ao que parecia, eram de opinião que seria uma
indignidade eles carregarem Kasom.
— Talvez devamos permitir mesmo que o senhor procure seu chefe — disse um dos
trombas vermelhas depois de algum tempo.
Kasom não esperou até que os guardas descobrissem que ele andara blefando. Saiu
andando. O trem reduziu a velocidade. Kasom teve a impressão de que o trilho começava
a descer, pois tinha de esforçar-se para não perder o equilíbrio ao passar de um carro para
outro. Havia dois trombas vermelhas parados à sua frente. Parecia que não eram guardas,
pois não estavam armados e preferiram não tomar conhecimento da presença de Kasom.
Traziam bolsas amarradas às costas. Em cada uma dessas bolsas havia um jovem
twonoser.
As crianças não eram tão arrogantes como os adultos. Fitavam Kasom com um
misto de medo e curiosidade. O ertrusiano sorriu para eles e passou cuidadosamente perto
dos dois adultos. Nesse instante o trem entrou numa curva. A força centrífuga fez com
que Kasom escorregasse. Tentou em vão segurar-se em alguma coisa. Acabou batendo
num dos twonosers e agarrou-se a ele.
O twonoser deu um grito. Não carregava nenhuma máquina tradutora, mas Kasom
sabia qual era o motivo. Soltou o desconhecido e procurou outro lugar para apoiar-se. As
duas crianças divertiram-se com o acidente e uivaram de prazer. Davam gritos para
animar Kasom, que apoiava as costas na porta de um compartimento, procurando
segurar-se no metal liso. O trem saiu da curva e acelerou. Dentro de alguns segundos a
força centrífuga se desenvolveu em sentido contrário. Kasom fez um esforço tremendo
para não perder o equilíbrio. Parecia que os trens que viajavam num túnel desciam em
espiral.
Kasom saiu cambaleando. Conseguiu evitar o contato com os dois twonosers. Parou
cambaleante à frente de um compartimento ocupado por oficiais da Crest II, que estava
com a porta aberta.
— Kasom! — gritou o Major Bernard em tom nervoso ao reconhecer o ertrusiano.
— O que está fazendo do lado de fora?
Kasom abriu a boca para dar a resposta, quando voltou a ser impelido para a frente.
As poltronas dos compartimentos possuíam suportes pneumáticos independentes, motivo
por que o deslocamento rápido do trem não afetava os passageiros.
Kasom viu alguns guardas mais à frente. Os twonosers estavam com as trombas
enganchadas em alças apropriadas. Kasom foi impelido em sua direção com a força de
um projétil. Encolheu a cabeça para melhor resistir ao impacto, mas os trombas
vermelhas apressaram-se em abrir alas.
Kasom atingiu a parte dianteira do vagão mais depressa do que esperava. Quando
atingiu o corredor situado entre o penúltimo e o antepenúltimo carro, finalmente
conseguiu segurar-se numa alça.
A velocidade do trem parecia uma loucura, mas para os guardas a mesma parecia
ser perfeitamente natural. Ficavam agarrados às alças, numa atitude de indiferença.
“Mais um carro”, pensou o especialista da USO, “e estou lá.”
Esperou que o trem saísse da curva e começou a correr. Os guardas postados junto à
entrada dos compartimentos não lhe deram atenção. Certamente acreditavam que se
tratava de um maluco que estava brincando com a morte.
Na curva seguinte Kasom enfrentou uma situação perigosíssima. Uma peça de
bagagem redonda caiu de um dos pavimentos superiores do trem. Quando Kasom se
encontrava a dez metros da mesma, a peça, que tinha dois metros de diâmetro, saiu
rolando. Kasom olhou para o lado e viu que o compartimento que ficava na mesma altura
estava fechado. Atrás dele os guardas falavam exaltadamente. Kasom não entendeu uma
palavra do que diziam.
Quando a peça tinha chegado bem perto dele, o ertrusiano deu um salto para o lado.
Nesse instante o trem inclinou-se de lado, entrando numa curva sem reduzir a velocidade.
Kasom ouviu o impacto do fardo. Seguiu-se um ruído de alguma coisa arranhando. Era a
peça de bagagem girando em torno do próprio eixo que nem um pião. O vagão tinha uma
inclinação lateral de pelo menos dez graus, e Melbar Kasom encontrava-se do lado mais
baixo. O fardo tombou em sua direção.
Os twonosers puxaram-se para cima nas alças em que se seguravam. Os homens
que se encontravam no compartimento viram o ertrusiano de pé, com as pernas afastadas,
vendo a desgraça rolar em sua direção.
Kasom desviou-se no último instante, mas a volumosa peça de bagagem atingiu-o
nos quadris e atirou-o ao chão. Kasom deitou de bruços e levantou a cabeça. Apoiou as
mãos no chão para dar um salto. O fardo se imobilizara junto à parede, mas dois dos
twonosers desceram ao chão e deram-lhe um empurrão, pondo-o em movimento de novo.
O trem mudou mais uma vez de direção, e Kasom deu um salto para o alto. Alguma
coisa parecia ressoar em seus ouvidos. O ruído misturou-se às vozes dos guardas e ao
ruído do fardo.
O ertrusiano compreendeu que sua vida estava em jogo. Saiu correndo, enquanto o
fardo que vinha atrás dele se deslocava cada vez mais depressa. Tentou segurar-se em
duas alças, mas havia dois twonosers por lá, que o empurraram brutalmente. Kasom viu
suas armas pequeninas apontadas para ele.
Deu alguns passos e atingiu o compartimento mais próximo, cuja porta estava
aberta. Kasom atirou-se para a frente. Quase no mesmo instante alguma coisa passou
atrás dele. Os homens que se encontravam no compartimento endireitaram-se nas
poltronas e xingaram os guardas, que os olhavam com uma expressão de indiferença.
Kasom inclinou-se para a frente e olhou para o corredor. O fardo tinha desaparecido.
Parecia que os trombas vermelhas o estavam segurando em algum lugar.
— Descanse um pouco, senhor — disse um dos homens, lançando um olhar
preocupado para as roupas estragadas de Kasom.
— Preciso continuar — resmungou o especialista da USO e retirou-se sem dar
maiores explicações. Saiu para o corredor, respirando com dificuldade. O trem reduzira a
velocidade, facilitando a caminhada de Kasom, que chegou ao quarto carro de trás sem
que houvesse maiores incidentes. Não demorou a descobrir o compartimento em que
estava Perry Rhodan. Os dois guardas postados junto à entrada do mesmo deixaram-no
entrar. Kasom caiu numa poltrona gemendo. Havia dois trombas vermelhas sentados
junto à janela. Ao lado deles um jovem de rosto pálido tocava uma gaita de boca.
O quadro era tão pacato que Kasom não pôde deixar de suspirar.
— Ainda bem que o senhor está aqui, Melbar — disse Atlan.
***
— O problema é sempre o mesmo — disse Rhodan em tom pensativo. — Tudo
depende de que consigamos compreender a mentalidade deste povo estranho e possamos
levar o mesmo a compreender-nos.
— Posso contar-lhe alguma coisa sobre a mentalidade dos twonosers — resmungou
Kasom. — São estúpidos, arrogantes e convencidos.
— Esta atitude tem origem numa certa indiferença — observou Atlan. — Os
trombudos acham que somos seres selvagens. Acham que não representamos nenhum
perigo para eles. Enquanto não conseguirmos convencê-los do contrário, as coisas não
estarão nada boas para nós. É bem verdade que seria uma insensatez tentarmos atacar os
twonosers para provar que somos seres fortes e corajosos.
Rhodan recostou-se confortavelmente na poltrona. Pelos seus cálculos, o trem devia
desenvolver uma velocidade superior a duzentos quilômetros por hora no interior dos
tubos em espiral. Quando se olhava pela janela, via-se de vez em quando uma luz que
parecia acender-se por um instante. Todos os compartimentos estavam iluminados.
Rhodan fazia votos de que os homens que se encontravam nos vagões de trás ficassem
quietos.
O jovem sargento parou de tocar sua gaita e inclinou-se para a frente. Olhou para
Atlan.
— Vamos deixar que eles nos levem a um campo de concentração, senhor? —
perguntou. — Indique um meio de provarmos aos twonosers que não somos uns inúteis.
Estou disposto a fazer uma experiência.
Um sorriso amável apareceu no rosto de Atlan.
— A pior coisa que pode acontecer a um terrano é não receber a consideração que
lhe é devida pelos membros de um outro povo — disse em tom irônico.
Baynes e Kasom protestaram. Parecia que Marshall nem estava prestando atenção à
conversa.
— Não tenho a impressão de que os twonosers dispensem uma consideração
especial a você — disse Rhodan. — Se não fosse assim, como se explicaria que ainda
está conosco?
— Existe um velho provérbio, que diz: Quem se mistura aos porcos, farelo come —
lembrou Atlan.
— Farelo come... — repetiu Baynes em tom zangado. — Acho que as coisas vão
chegar mesmo a este ponto.
— Talvez seria preferível que o senhor tocasse sua gaita enquanto estivermos
conversando — sugeriu Rhodan.
Baynes ficou vermelho e calou-se. Cerrou fortemente os lábios. A idéia de que
havia mais uns cem rapazes do tipo de Baynes espalhados nos últimos três carros não fez
com que Rhodan tivesse uma visão mais otimista do futuro. Só lhes restava esperar que
os homens mais experimentados controlassem esses rapazes esquentados.
— O trem está reduzindo a velocidade! — exclamou Kasom.
As poltronas voltaram à posição normal no momento em que o trem entrou numa
grande reta, saindo das artérias do moby. A luz de um sol artificial penetrou pela janela.
Rhodan olhou para fora.
Parecia que o trem estava entrando num gigantesco pavilhão. Rhodan viu uma
paisagem ondulada, na qual várias casas pequenas se espalhavam a distâncias variáveis.
Havia edifícios compridos junto ao trilho. Na opinião de Rhodan deviam ser depósitos.
Dali a pouco Rhodan viu os primeiros membros da casta B. Fisicamente não se
distinguiam dos trombas vermelhas. A única diferença era que suas trombas tinham sido
revestidas de um verniz azul.
Poucos twonosers pareciam interessar-se pelo trem. Nem olhavam para ele. Rhodan
acreditava que os habitantes do pavimento médio do moby deviam ser tão convencidos
como os trombas vermelhas.
O trem parou junto a uma rampa iluminada. Um guarda entrou no compartimento.
— Haverá uma ligeira parada. O trem receberá carga. Continuem nos seus lugares.
O twonoser falava devagar, dando a impressão de que pensava que se dirigia a
crianças às quais tudo tem de ser explicado muito bem.
— Não vão nos servir um lanche? — perguntou Kasom em tom irônico. Levantou e
fez sinal para que um inspetor se aproximasse. — Meu estômago está roncando, amigo
— disse. — Não acredito que isto seja um sinal de que eu pertença a uma casta superior,
mas pouco importa.
— Sente, Kasom — disse Atlan.
— Estou com fome — disse o ertrusiano em tom enfático. — Não pertenço à classe
dos homens privilegiados que podem jejuar alguns dias.
— Por enquanto sempre fomos adequadamente alimentados — disse Atlan. — Não
faça bobagens.
Kasom voltou à poltrona a contragosto. O número dos trombas azuis reunidos junto
ao trem aumentava cada vez mais. Olhavam pela janela do compartimento e faziam
gestos de desprezo.
Carros baixos, carregados com bagagens, passaram perto do trem. Rhodan ouviu
barulho vindo do último vagão.
— Está acontecendo uma coisa, senhor — disse Marshall. — Estou captando
inúmeros pensamentos indignados de nossos homens.
Rhodan levantou e aproximou-se da janela. Tentou abri-la, mas nesse instante um
tromba vermelha entrou no compartimento.
— Temos problemas — disse. Sua arma estava apontada para Rhodan. — Levante!
O senhor virá comigo.
Rhodan hesitou.
— O que houve? — perguntou.
— Vamos logo! — respondeu o twonoser. Antes que Rhodan pudesse impedi-lo,
Kendall Baynes levantou de um salto e saiu do compartimento atrás de suas costas.
— Quando quiser companhia, eu digo, sargento — disse Rhodan em tom enérgico.
— Queira desculpar, senhor — disse Baynes, que não parecia nem um pouco
deprimido. — Mas sempre é possível que o senhor precise de um homem como eu.
Rhodan olhou para o rosto pálido e decidido.
— Está bem — disse. — Mas pelo amor de Deus pare de tocar sua gaita enquanto
estivermos indo lá para trás.
— Sim senhor! — respondeu Lorde Baynes em tom de alívio.
Quando chegaram ao fim do vagão, o twonoser que ia à frente obrigou-os a sair do
trem. Mal tinha descido para a rampa, Rhodan viu que pelo menos cem terranos haviam
saído do trem e se tinham abrigado atrás de um carro de transporte de bagagem. A
maioria dos homens restantes guarnecia as entradas dos últimos vagões. Ouvia-se uma
gritaria ensurdecedora.
Os guardas formavam um círculo em torno dos prisioneiros. Este círculo só se abria
do lado oposto do trem. Por lá havia uns vinte trombas azuis, que atiravam objetos
disformes para dentro da multidão exaltada.
— Por que não intervém na luta? — perguntou Rhodan ao tromba vermelha que se
encontrava a seu lado.
O olho facetado da estranha criatura fixou-se nele.
— Intervir? — repetiu o membro da casta superior. — Por quê?
Rhodan sabia que seria inútil tentar envolver seu interlocutor numa discussão. Por
enquanto não sabiam nada sobre a forma pela qual conviviam as diversas castas dos
twonosers. Parecia não haver nenhuma dúvida de que a casta C não se interessava pelo
que fazia a casta B.
Rhodan e Baynes chegaram juntos ao círculo dos guardas.
— Quero falar com estes homens — disse Rhodan.
Baynes ficou bem atrás dele. Ficou com os olhos semicerrados de tão nervoso que
estava. Rhodan passou pelos guardas, que não fizeram nenhuma tentativa de detê-lo. À
medida que se aproximava dos cem terranos, o cheiro repugnante de carniça que lhe
entrava pelo nariz tomava-se cada vez mais intenso.
A chegada de Rhodan e de seu acompanhante provocou uma gritaria de triunfo
entre os vinte trombas azuis que se encontravam do outro lado do trem. Uma chuva de
estranhos projéteis desabou sobre os tripulantes indefesos da Crest II.
— Ainda bem que o senhor veio — um sargento abaixou-se para escapar a um
bloco disforme e apressou-se em prosseguir. — Parece que eles nos bombardeiam com
uma coisa viva.
O sargento apontou para uma bola do tamanho de um punho humano jogada ao
chão, que fazia esforços desesperados para atingir os pés de Rhodan.
— Cuidado! — exclamou o sargento. — Isso se gruda ao corpo da gente. É difícil
tirá-lo.
Rhodan reconheceu o objeto jogado no chão. Tratava-se de um bioparasita do
tamanho de uma panqueca. Abaixou-se e pegou a massa flácida. Antes que a mesma
pudesse grudar-se em sua pele, atirou-a de volta para os trombas azuis.
Os trombas vermelhas não se importaram nem um pouco quando viram muitos
homens seguirem o exemplo de Rhodan, atirando de volta os pedaços de matéria viva. Os
trombas azuis bateram imediatamente em retirada.
— Alguém ficou ferido? — perguntou Rhodan. Ninguém respondeu. Rhodan
perguntou ao sargento com o qual estivera falando por que os homens tinham saído do
trem.
— Eles nos provocaram — respondeu o astronauta em tom contrariado. — São
piores que os trombas vermelhas.
Rhodan passou a dirigir-se à multidão reunida.
— Acho que todos já compreenderam que, se sairmos do trem, as conseqüências
poderão ser muito desagradáveis. Mando que todos fiquem em seus compartimentos até
que os guardas dêem ordem para sair.
Rhodan sentiu a raiva dos homens, mas não lhes deu mais atenção. Fez um sinal
para Baynes e saiu andando. C sargento ficara calado o tempo todo, mas neste instante as
palavras saídas de sua boca pareciam atropelar-se.
— Quer mesmo que os homens agüentem tudo isso senhor? Não existe a menor
dúvida de que os trombudos vivem provocando incidentes. Sabemos perfeitamente que
um dos nossos poderia ter sido morto por uma dessas bolas de plasma.
— Se tivessem ficado no vagão, não teria acontecido absolutamente nada —
respondeu Rhodan. — Sei perfeitamente qual é o estado de ânimo dos prisioneiros, mas
devo fazer tudo que estiver ao meu alcance para evitar que sua raiva aumente ainda mais
— segurou Baynes pelo ombro. — O que queria que eu fizesse? Que proferisse um
discurso inflamado, pedindo que os tripulantes da Crest se rebelassem?
— Alguma coisa deve ser feita — exclamou Baynes, nervoso.
Rhodan sacudiu a cabeça.
— Se não estivesse em nosso compartimento, o senhor certamente teria sido um dos
primeiros a sair do trem — conjeturou.
— Perfeitamente, senhor — respondeu Baynes em tom obstinado.
— Parece que o senhor não sabe avaliar a situação — disse Rhodan em tom calmo.
— Para sairmos vitoriosos na luta contra um inimigo como os twonosers, precisamos
saber alguma coisa a seu respeito. E neste ponto ainda estamos tateando no escuro. Não
sabemos absolutamente nada sobre os motivos que os levaram a colocar-nos neste trem.
— O trem está nos levando para cada vez mais longe da Crest — disse Baynes. —
Que mais quer saber?
— Se estivesse no meu lugar, o senhor se arriscaria a lançar os homens numa luta
declarada sobre cujo resultado não pode haver nenhuma dúvida, somente para impedir a
viagem que estamos fazendo?
— Isso é uma pergunta muito esperta, senhor — disse Baynes, exaltado.
Rhodan sorriu. Não disse uma palavra. De qualquer maneira Baynes o levara a
refletir, embora não tivesse certeza de que o mesmo iria mudar de opinião. Desviaram-se
de um carro que estava levando mercadorias que seriam colocadas no trem. Rhodan
perguntou-se como era possível que os trombas azuis estivessem de posse de pedaços de
um bioparasita. Era possível que John Marshall tivesse descoberto alguma coisa a este
respeito. O mutante fora incumbido de manter uma vigilância telepática ininterrupta
sobre os twonosers.
O chão no qual estavam caminhando Rhodan e Baynes apresentava a estrutura
típica do pavimento costal do moby. Rhodan viu que a superfície áspera tinha sido lixada,
o que facilitava a caminhada. Estradas iluminadas ligavam os depósitos às casas
espalhadas pela paisagem ondulada. Rhodan teve a impressão de que bem ao longe havia
portões em arco, que davam para outros depósitos. No pavimento médio havia inúmeros
depósitos desse tipo. Seria difícil dizer quantos trombas azuis viviam nesta parte do
moby. O pavilhão em que se encontravam não permitia que se tirasse uma conclusão
sobre todo o pavimento médio.
Parecia que o trem estava sendo dirigido automaticamente. Rhodan não viu nenhum
carro motor, nem qualquer sistema de propulsão. Provavelmente a energia do trem era
fornecida pelo trilho. Os twonosers haviam feito um trabalho formidável, construindo
uma rede ferroviária nas veias do moby. Talvez houvesse outras ligações entre os
diversos pavimentos. Rhodan tinha certeza de que existiam outros meios de transporte
além dos trens.
Os twonosers tinham aproveitado o moby e viviam dentro do mesmo tal qual outros
povos que vivem em seus planetas. O moby e seus habitantes representavam uma boa
prova da persistência do povo twonoser. Os trombudos poderiam orgulhar-se pelo que
tinham feito. Rhodan perguntou-se se o motivo do desprezo que demonstravam para com
os terranos realmente era este. A explicação parecia simples demais.
“O que acontecia mesmo com Baynes?”, refletiu. Seus companheiros achavam que
era um tipo convencido e por isso lhe tinham dado um apelido. Por que Baynes
costumava demonstrar certo ar de superioridade perante seus semelhantes?
Haveria algum paralelo entre o comportamento de Baynes e o dos twonosers?
Não havia dúvida de que Lorde Kendall Baynes era um sujeito bem tratável para
quem descobrisse a chave do seu interior. A mesma coisa aplicava-se aos twonosers.
Rhodan esperava que Marshall lhe pudesse fornecer informações valiosas sobre os
mesmos. Mas era importante que a solução fosse encontrada logo. Os twonosers não
esperariam com as medidas que pretendiam tomar até que Rhodan se tivesse informado
sobre sua mente.
3

No início Baynes achara que a forma pela qual Perry Rhodan pusera fim ao conflito
entre parte da tripulação da Crest e os trombas azuis não era genial. Mas quando voltou a
ocupar sua poltrona no quarto vagão de trás, teve certeza de que as medidas tomadas por
Rhodan felizmente eram acertadas. Baynes não conseguira compreender a ordem de
todos ficarem no trem.
Rhodan entrou no compartimento atrás de Baynes. Sentou ao lado do mutante John
Marshall.
— Como foi que nosso jovem se comportou durante a aula ao vivo? — perguntou
Atlan em tom de deboche.
Baynes preferiu fechar os olhos, fingindo que estava dormindo. Ouviu o rangido da
poltrona de Rhodan, quando o Administrador-Geral a dirigiu na direção de Marshall.
— Já descobriu alguma coisa, John?
— O moby é habitado por nove milhões de twonosers — respondeu o telepata. —
Esta população divide-se quase exatamente em partes iguais entre as três castas. Quer
dizer que em cada pavimento vivem cerca de três milhões de trombudos.
Rhodan assobiou entre os dentes.
— Quer dizer que a população é maior do que eu acreditava. Descobriu alguma
coisa sobre o relacionamento entre os twonosers e os bioparasitas?
— Não há dúvida de que este moby gigante foi morto pelos bioparasitas — disse o
mutante. — Os twonosers criam estes seres, pois aproveitam os mesmos como alimento e
matéria-prima. Toda vez que um bioparasita atinge um tamanho que, graças ao aumento
do número de ligações celulares, lhe permita alcançar certo grau de inteligência, os
twonosers o cortam em pedaços. Com isso obtêm uma ótima matéria-prima alimentar,
formada principalmente por proteínas. Existem verdadeiras fazendas, nas quais os
parasitas são criados em grande escala.
— A idéia não é nada agradável — disse Melbar Kasom.
— Parece que os trombas azuis pertencentes à casta B são incumbidos do
policiamento no interior do moby — prosseguiu Marshall. — O fato de habitarem o
pavimento médio é um detalhe interessante. Não acredito que isso aconteça por acaso.
Acho que as relações entre os trombas vermelhas e os membros da casta A, que é a mais
baixa, não são nada boas. Os trombas brancas provavelmente tentariam invadir o
pavimento da casta C, se a casta B, que é a classe armada, não tivesse sido colocada entre
as duas.
— O senhor tem alguma prova disso? — perguntou Atlan.
— Não tenho — respondeu Marshall com a voz triste. — Mas certos fluxos mentais
permitem que se construa um quadro da situação.
Baynes abriu os olhos. Sentiu-se inclinado a fazer uma pergunta, mas hesitava,
porque tinha medo da ironia do arcônida. Mas para seu espanto justamente Atlan parecia
ter tido a mesma idéia que ele.
— É estranho — disse o arcônida. — Por que os trombas vermelhas nos mandam
levar ao pavimento abdominal, habitado pela casta A, se vivem numa espécie de guerra
fria com a mesma?
— A resposta é simples — disse Marshall. — Os trombas vermelhas acreditam que
todos os membros da casta A são seres inferiores. E nós fomos classificados num nível
ainda mais baixo. Quer dizer que resolveram levar-nos ao lugar em que segundo eles vive
a escória da sociedade.
Baynes cerrou os dentes, fazendo-os ranger. Não eram eles mesmos os culpados de
serem considerados seres inferiores? Afinal, obedeciam às ordens dos guardas que nem
um rebanho de ovelhas.
— Valho pelo menos tanto quanto qualquer um desses trombas vermelhas! —
exclamou. — Precisamos mostrar a eles qual é nosso lugar.
Rhodan fitou-o com o rosto impassível.
— Por que não vai lá fora e tenta explicar aos guardas? — perguntou em tom
amável.
Baynes lançou um olhar furioso pela janela. Os dois trombas vermelhas que tinham
viajado no mesmo compartimento já tinham descido do trem. Este não demoraria a partir.
— Não custa tentar — resmungou Baynes e levantou abruptamente.
— Boa sorte! — exclamou Melbar Kasom.
Baynes saiu todo empertigado. Havia dois guardas no corredor. Os mesmos
apontaram suas armas para Baynes assim que o mesmo passou pela porta.
— Aonde vai? — perguntaram.
— Preciso falar com o chefe dos senhores — disse Baynes em tom provocador.
Esforçou-se para fitar diretamente o olho facetado do guarda que estava à sua frente.
— Não há motivo para isso — disse o tromba vermelha em tom arrogante.
Baynes fazia votos de que os homens que se encontravam no compartimento não
ouvissem a conversa.
— Pois nesse caso falo com os senhores — disse em tom obstinado. — Sou
descendente de uma família nobre. Meus antepassados ocupavam os cargos mais
importantes de meu povo. Quero protestar por estar sendo levado à área habitada pelos
trombas brancas.
— O senhor é um dos astronautas primitivos — respondeu o guarda.
— Vou... — principiou Baynes em tom indignado, mas interrompeu-se ao ver o
cano da arma apontada para ele ser erguido. Engoliu em seco. — Está bem — disse,
abatido, e voltou ao compartimento.
Melbar Kasom levantou e fez uma mesura irônica. Baynes voltou ao seu lugar,
cabisbaixo. O compartimento estremeceu com a risada estrondosa de Icho Tolot. O
halutense nem tentou esconder o quanto isso o divertia.
“Que tipo bárbaro”, pensou Baynes, indignado. Perguntou-se como era possível
que Tolot fosse capaz de fazer cálculos com maior rapidez que qualquer computador
positrônico, se não possuía nenhuma cultura. De repente Lorde Baynes teve a impressão
de que já sabia por que Rhodan e seus companheiros não faziam nada para impedir que
os twonosers os tratassem dessa maneira. Faltava-lhes o amor próprio. Não se
importavam nem um pouco em serem considerados seres inferiores.
Ele, Lorde Kendall Baynes, era o único homem culto entre os tripulantes da Crest
II.
Os pensamentos amargurados de Baynes foram interrompidos pela arrancada do
trem. O comboio intercastas foi saindo lentamente da estação. Baynes viu os grandes
carros de carga serem levados de volta aos depósitos. O trem deixou para trás a última
construção e o sargento pôde ver novamente a paisagem. Quando atingisse a extremidade
oposta do gigantesco pavilhão, o trem voltaria a desaparecer nas artérias do moby.
Atrás da estação havia uma cidade grande. As construções enfileiravam-se lado a
lado. Baynes viu que havia campos de pouso para pequenos aviões nos telhados. O
equipamento técnico dos trombas azuis parecia ser muito bom. Baynes viu algumas
construções abobadadas nas proximidades do túnel. Talvez fossem abrigos que poderiam
servir de fortificações se houvesse um ataque vindo das profundezas. Gostaria de chamar
a atenção de Rhodan para o fato, mas seu orgulho não permitia que ele o fizesse.
O que mais o preocupava era a possibilidade de John Marshall estar espionando
seus pensamentos. Seria bastante constrangedor se esse homem sério descobrisse seus
pensamentos ocultos. Dizia-se que os mutantes só usavam suas faculdades quando isso se
tornava necessário, mas Baynes disse a si mesmo que se encontravam numa situação
extraordinária, que justificaria uma vigilância constante de suas intenções. Só lhe restava
esperar que Marshall se ocupasse intensamente com os twonosers.
O trem intercastas saiu da área residencial. Baynes viu edifícios em forma de
escada, que não pareciam possuir portas nem janelas. Provavelmente as entradas ficavam
do outro lado. Os twonosers não tinham um estilo arquitetônico definido. Suas
construções deviam mudar de geração para geração, ou então projetavam as mesmas de
forma arbitrária, segundo as necessidades de cada momento.
Baynes teve a impressão de que as construções existentes no pavimento superior
eram mais bonitas. Na área residencial dos trombas azuis as mesmas pareciam seguir um
estilo puramente utilitário. Baynes não viu um único parque. E não parecia haver
plantações no pavilhão em que se encontravam.
Se a casta B executava as tarefas militares e tinha de cuidar do policiamento, a
mesma certamente não tinha tempo para fazer qualquer outro trabalho. Baynes
perguntou-se por que em vez de assumir o poder a casta B seguia as ordens da casta C. O
poder da casta B devia ser bem superior ao da casta C.
Por que os twonosers não conseguiam formar uma sociedade homogênea? Isso
simplificaria bastante as coisas.
Com o sistema de castas, tomava-se bem mais difícil compreender o inimigo.
Baynes espantou-se ao constatar que sem querer se apropriara de uma idéia de
Rhodan. Mas isso não significava nada. Naturalmente Baynes também sabia identificar as
dificuldades que cercavam o problema. Mas se dependesse dele teria tomado medidas
bem diferentes para resolver o mesmo.
“O ataque sempre foi a melhor defesa”, pensou Baynes, enquanto o trem aumentava
de velocidade.
— Estou curioso para ver o que nos espera na próxima parada — disse Kasom,
interrompendo os pensamentos de Baynes. — Tenho certeza de que o trem vai parar mais
algumas vezes antes de chegarmos ao destino.
O trem subiu por uma elevação alongada, sem reduzir a velocidade. Baynes
encostou o rosto à vidraça. Olhou para cima e viu que o teto do pavilhão só tinha trinta ou
quarenta metros de altura. Sua cor lembrava a do marzipã. Nesse instante sentiu um vazio
no estômago. Fazia muito tempo que não lhes davam nada para comer.
— Quando seremos alimentados de novo, senhor? — perguntou, afastando o rosto
da janela.
— Não acredito que os trombas vermelhas ainda nos dêem alguma coisa —
respondeu Rhodan. — Teremos de dirigir-nos à casta A, quando entrarmos na área
habitada pela mesma.
— Talvez eles nos dêem um filé de bioparasita bem acebolado — disse Kasom,
esperançoso.
— Isso eu não como — observou Baynes, compenetrado.
Kasom deu uma estrondosa gargalhada.
— O que pensa que andou comendo nos últimos dias?
Baynes teve um calafrio. Sentiu náuseas. Só mesmo um tipo embrutecido como o
ertrusiano seria capaz de rir de uma coisa dessas. Baynes começou a invejar Tolot.
Graças ao seu estômago conversor, o halutense era capaz de digerir quase tudo em que
pusesse as mãos.
O trem entrou num túnel. Ficou escuro do lado de fora. As luzes dos
compartimentos acenderam-se no mesmo instante. Baynes sentiu que suas mãos tremiam.
Deu-se conta de que estava muito distante da Terra, e que havia poucas chances de voltar
para lá num futuro próximo. Bem que gostaria que Kapitanski estivesse perto dele.
Aquele sargento ranzinza e grosseiro do convés F parecia ser o único homem que o
compreendia. Mas havia muitas coisas sobre as quais Baynes não seria capaz de falar
nem mesmo com Kapitanski.
O que aconteceria se um dia os tripulantes que serviam no convés F descobrissem
que Kendall Baynes de forma alguma descendia de uma família de nobres?
Baynes sentiu a velha ferida de sua mente sangrar de novo.
Lembrou-se de quando foi levado a um asilo, quando tinha dezesseis anos de idade.
O diretor, que era um homem obeso com o rosto vermelho por causa do álcool, olhara
para Baynes e dissera:
— Você vem da sujeira e sempre será um pedaço de sujeira. Aqui será tratado como
tal.
Baynes tentara bater no diretor e dali a três dias saíra do asilo. Trabalhara durante
dois anos como garção e freqüentara escolas. Arranjara boletins e carteiras de identidade
falsas e conseguira ser admitido na frota.
Ninguém jamais poderia saber do verdadeiro passado de Baynes.
Baynes olhou para a escuridão do túnel que parecia não ter fim. Viu seu rosto
refletido pela vidraça. Bem devagar, pegou sua gaita.
— O senhor se incomoda se eu tocar um pouco? — perguntou, dirigindo-se a
Rhodan.
— De forma alguma, sargento — respondeu Rhodan. — Isso nos distrairá um
pouco.
O trem prosseguiu em sua corrida através das artérias do gigante morto. Era uma
viagem fantástica, que continuava a levá-los para as profundezas. Baynes encostou a
gaita à boca e fechou os olhos. Tocou três vezes em seguida a Rhapsodie in Blue, sem
desafinar uma única vez.
***
Baynes parou de tocar. A viagem monótona do trem intercastas o deixou cansado.
De vez em quando Perry Rhodan e John Marshall conversavam em voz baixa. Kasom
mantinha os olhos fechados, enquanto Tolot permanecia de pé, imóvel, no centro do
compartimento. Por maior que fosse a velocidade com que o trem entrava numa curva, o
halutense não se abalava.
Baynes perguntou-se sobre o que se passava na cabeça do gigante. Tolot lhe
causava simpatia e repugnância ao mesmo tempo. Baynes achava que o halutense era
capaz de fazer uma avaliação puramente objetiva das pessoas. Tinha medo de que Tolot
pudesse descobrir o que havia em seu interior. Mas de outro lado o sargento se sentia
entusiasmado porque Tolot reagia com alegria diante de cada aventura.
Baynes virou a cabeça e olhou para Atlan. O arcônida
Mantinha-se ainda mais calado que John Marshall. A dignidade que Atlan irradiava
não contribuía em nada para torná-lo simpático aos olhos de Baynes. Não era que sentisse
antipatia por Atlan, mas tinha a impressão de que não seria capaz de impor-se aos olhos
desses homens que corporificavam exatamente aquilo pelo que ele tanto ansiava.
Lorde Baynes estreitou os olhos. “A sorte favoreceu estes homens desde o
nascimento”, pensou. Foram empurrados para as posições em que se encontravam, e
agora se mostravam poderosos, experientes e calmos. Um homem como Kendall Baynes
não significava nada para eles.
Baynes gostaria de mostrar-lhes o que valia. Afinal, era capaz de fazer coisas de que
ninguém o julgaria capaz em virtude da situação em que se encontravam.
Os homens que serviam no convés F julgavam-se superiores a Baynes, ou ao menos
acreditavam que eram iguais a ele. Baynes aprendera que até mesmo homens com grande
experiência de combate, como o sargento Kapitanski, pensavam muito devagar para, nos
momentos decisivos, poderem tomar decisões com a necessária rapidez. Baynes
lamentava que seu pedido de transferência para um dos centros de artilharia fora
recusado. Lá ele poderia dar uma prova de sua capacidade.
Dentro de dois anos seria promovido ao cargo de primeiro sargento, e dali a mais
dois anos daria mais um salto em sua carreira. Mas isso não adiantaria muito, se não
conseguisse dar o passo decisivo que o levasse aos postos de comando de uma grande
espaçonave.
“É tudo tão devagar”, pensou Baynes, sonolento. Às vezes tinha medo de que,
quando ficasse mais velho, pudesse perder as boas idéias. Afinal, era bem possível que
seu cérebro deixasse de produzir boas idéias, se ninguém lhe dava atenção.
Baynes adormeceu de vez com este pensamento. Só acordou quando alguém
sacudiu seu braço.
— Acorde, sargento! — gritou a voz retumbante de Kasom. — Parece que daqui a
pouco o trem vai parar de novo.
Baynes piscou os olhos e olhou pela janela. Sentia-se confuso. Do lado de fora
estava muito escuro. Concluiu que ainda estavam atravessando as veias do moby. Baynes
lamentou que tivessem tirado até mesmo os relógios da maior parte dos tripulantes da
Crest. Certamente os twonosers não estavam dispostos a assumir qualquer risco.
Baynes acreditava que os calendários terranos registravam o dia 25 de julho de
2.402. A data não tinha nada de especial. Baynes espreguiçou-se na poltrona. Percebeu
que o trem intercastas realmente estava andando mais devagar.
Será que já estamos chegando? — perguntou Rhodan, dirigindo-se ao mutante.
— Não senhor — respondeu Marshall em tom convicto. — Deduzi dos
pensamentos dos guardas que faremos uma parada em mais uma estação, onde entrarão
no trem mais alguns criminosos domésticos — sorriu. — Não me pergunte o que vem a
ser um criminoso doméstico. Ainda não consegui descobrir.
— Quer dizer que alguns criminosos vão viajar no trem? — perguntou Atlan.
— Provavelmente, senhor — respondeu Marshall.
— Tomara que isso não nos cause problemas — disse Rhodan.
Tolot riu como se alguém tivesse contado uma piada. Mal conseguia disfarçar a
alegria que a idéia de viajar com os criminosos lhe dava.
— O moby Tolot está ficando cada vez mais interessante — disse. — Talvez
aprendamos tanta coisa com ele que os senhores ainda me agradecerão pela sugestão de
aproximar-nos do mesmo.
— A esta hora já tenho de fazer um grande esforço para reprimir o sentimento de
gratidão — disse Kasom, contrariado. — Talvez devêssemos dar uma festinha em sua
homenagem, como prova de nossa gratidão.
Tolot deu uma risada que fez doer os ouvidos de Baynes. O sargento ficou satisfeito
quando o trem saiu do túnel e o halutense se distraiu com a paisagem que apareceu diante
de seus olhos.
Baynes também olhou pela janela. Um quadro fantástico descortinou-se diante de
seus olhos. O trem não viajava numa planície, mas passava por uma ponte que descia
fortemente. Essa ponte atravessava o pavilhão numa curva arrojada. Era o maior pavilhão
que Baynes já tinha visto no interior do moby. Kendall Baynes não conseguia distinguir a
outra extremidade do pavilhão. A paisagem que se estendia mais embaixo era ondulada.
Baynes teve a impressão de que havia alguns edifícios espalhados por vários vales. Três
grandes luminárias estavam suspensas no alto, fornecendo luz e calor ao recinto.
Baynes viu uma montanha de topo plano a uns três quilômetros de distância. A
ponte interrompia-se nesse lugar, já que o trilho passava pela montanha.
Quando chegaram mais perto, Baynes viu que se tratava de uma montanha artificial.
Inúmeros elevadores levavam para o alto da mesma. Baynes inclinou-se bem para a
frente, para poder olhar para trás. Viu claramente a abertura da veia do moby pela qual
tinha vindo o trem. A ponte começava logo após a mesma. Baynes teve a impressão de
que a construção era tão leve que dificilmente agüentaria o trem.
O sargento foi à janela e olhou para baixo. Ainda se encontravam mais de cem
metros acima da superfície, embora a partir da saída da artéria a ponte descesse
fortemente.
O trem intercastas reduziu a velocidade quando chegou ao topo da montanha.
Baynes examinou os elevadores. Pareciam ser de dois tipos: de carga e de passageiros.
Baynes viu que eram utilizados exclusivamente por trombas azuis. Os guardas do trem
pareciam ser os únicos trombas vermelhas que havia na área.
Baynes perguntou-se se os terranos seriam os primeiros desconhecidos que
passavam pela área no trem intercastas. Certas observações dos trombas vermelhas
poderiam levar à conclusão de que outros povos estelares tinham tentado o salto para
Andrômeda antes dos terranos. Kendall Baynes tentou imaginar quando isso poderia ter
acontecido. Devia ter sido num passado muito remoto. Dali não se concluía que os
senhores da galáxia já dominavam Andrômeda há muito tempo?
A idéia provocou um calafrio em Baynes.
“Eles não nos deterão”, pensou quase que numa exorcização. Não suportava a idéia
de ser apenas uma pessoa sem importância num sem-número de grupos que tinham
tentado chegar a Andrômeda, passando por Andro-Beta. Se ficassem presos no interior do
moby, ninguém jamais saberia qual fora seu destino. Num futuro distante talvez, quando
outros astronautas da galáxia de que tinha vindo Baynes aparecessem por ali e fossem
presos, um guarda insensível faria uma observação sobre alguns idiotas de duas pernas e
sem tromba, que tinham sido aprisionados com a maior facilidade. Baynes olhou pela
janela, sem ver direito o que havia do lado de fora. De repente a voz de Marshall se fez
ouvir, obrigando-o a voltar ao presente.
— Já sei o que é um criminoso doméstico, senhor — disse o telepata. — Pertencem
à classe mais baixa, a dos trombas brancas. Foram condenados por um tribunal.
— Qual foi o crime que cometeram? — perguntou Rhodan.
— Violaram o orçamento do setor de administração de alimentos — respondeu o
mutante. — Trabalham nas fazendas de criação de bioparasitas. Criaram às escondidas
um parasita para seu uso. Isso é um crime grave, porque o parasita que atingir um estágio
de evolução que lhe permita desenvolver certo grau de inteligência pode tomar-se
perigoso. Por isso foram estabelecidas penas pesadas para as tentativas de criação
clandestina. Os criminosos domésticos têm de submeter-se a essa pena. Trata-se de
quatro homens, que entrarão no trem na estação à qual estamos chegando.
— O senhor sabe alguma coisa sobre o tipo de pena? — perguntou Atlan.
Marshall hesitou. Baynes fitou-o com uma expressão de curiosidade. Imaginava que
Marshall faria uma revelação terrível. Notou que os cantos da boca do mutante tremiam,
dando a impressão de que o mesmo não estava disposto a falar.
— É uma pena muito rigorosa — disse Marshall com a voz apagada. — Os quatro
criminosos serão trancados juntamente com os parasitas.
Baynes levou algum tempo para compreender o que significava isso, mas quando
compreendeu que os criminosos domésticos praticamente serviriam de alimento aos
parasitas, deu um passo para trás e apoiou-se na janela. A frieza do material ao qual
encostou a palma da mão deixou-o um pouco mais calmo. Baynes olhou para Rhodan,
mas o homem alto e magro parecia tranqüilo como sempre.
— Estamos viajando no mesmo trem — disse Kasom em tom apressado. — Será
que não pretendem fazer a mesma coisa conosco?
— Foi o que pensei — disse Rhodan.
“Esta não!”, pensou Baynes, apavorado. Não compreendia que estes homens
pudessem permanecer calmamente em seus lugares, se havia a menor possibilidade de
que a suposição de Kasom fosse verdadeira.
— Deduzo dos pensamentos dos guardas que os trombas vermelhas pouco se
importam com o que possa ser feito de nós — disse John Marshall. — Supõem que
sejamos obrigados a trabalhar numa fazenda, mas não têm certeza.
Kasom passou as mãos pela barriga.
— Meu aspecto deve ser bem apetitoso — constatou. — É a primeira vez que isto
me deixa preocupado.
— Como pode fazer piadas em torno de uma coisa dessas? — disse Baynes em tom
exaltado e empurrou-se da janela.
Kasom estreitou os olhos.
— Será que o senhor vai perder os nervos, Lorde Baynes? — perguntou em tom
penetrante.
Baynes virou-se abruptamente e voltou a olhar pela janela.
— Sinto muito — disse com a voz quase imperceptível.
— Quando quiser pedir desculpas, olhe para mim — disse Kasom.
Baynes ficou com tanta raiva que quase se esqueceu de respirar. Ficou com o rosto
vermelho de tão indignado que estava. Engoliu em seco antes de olhar novamente para
Kasom.
— Queira desculpar, major! — exclamou com a voz áspera.
O trem parou. Baynes olhou pela janela e viu claramente metade do topo da
montanha. Uma malha densa de estradas levava dos elevadores para os trilhos. Havia
trombas azuis armados ao longo do trem. Um alto-falante vivia berrando ordens.
Veículos de carga versáteis aproximaram-se, vindos de todos os lados.
De repente Baynes viu os criminosos domésticos. Eram quatro trombas brancas,
conforme dissera Marshall. Três soldados trombas azuis os levaram ao trem. As trombas
dos prisioneiros estavam amarradas, de forma que dependiam exclusivamente dos
bracinhos.
O grupo veio na direção do vagão em que estava Baynes. Os trombas brancas
andavam bem eretos. Recebiam insultos de todos os lados. Baynes teve pena deles,
embora os achasse tão repugnantes quanto os outros twonosers.
— Parece que vêm ao nosso carro, senhor — disse, dirigindo-se a Rhodan.
— Isso mesmo — confirmou Marshall. — Serão trazidos para cá. Para o nosso
compartimento.
Os soldados trombas azuis pararam quando atingiram a entrada do vagão.
Esperaram que os prisioneiros entrassem e foram-se afastando. Baynes acreditava que os
criminosos domésticos ficariam sob a guarda dos trombas vermelhas. O pessoal do trem
era formado por membros da casta C. Baynes perguntou-se se as diversas castas
costumavam revezar-se, ou se os trombas vermelhas também ocupavam um lugar de
destaque absoluto nos trens intercastas.
Enquanto ficava observando e refletindo, recuperou o equilíbrio interior.
Compreendeu que Kasom evitara que ele entrasse em pânico ao provocá-lo. “Droga!”,
pensou Baynes, zangado consigo mesmo. “Sempre desejei estar numa situação em que
pudesse mostrar minhas qualidades.”
E justamente numa oportunidade destas ele se descontrolara.
Baynes ficou de costas para a janela. Fitou a porta do compartimento com os olhos
ardentes. Havia um único guarda no corredor. Observava alguma coisa. Deviam ser os
quatro trombas brancas que vinham em sua direção. O tromba vermelha gritou algumas
palavras, mas Baynes não compreendeu o que estava dizendo, já que o guarda estava com
a tradutora desligada.
Dali a instantes os quatro criminosos domésticos atingiram a porta do
compartimento. Seus sentimentos eram de raiva e orgulho, percebeu Baynes e admirou-se
de ser capaz de constatar as emoções de criaturas completamente diferentes.
O guarda pertencente à casta C abriu a porta do compartimento.
Os criminosos domésticos entraram. Baynes acreditara que suas trombas estavam
amarradas com correntes, mas constatou que se tratava de um trançado resistente.
Os trombas brancas lançaram um olhar de desprezo para os terranos e tiveram o
cuidado de não se aproximar dos mesmos. Demonstraram o mesmo desprezo para com
Tolot, mas o halutense os examinou com grande interesse. Nenhum dos criminosos
possuía uma tradutora.
O guarda ficou encostado à porta e ligou sua tradutora.
— Eles irão com os senhores até o pavimento abdominal — disse. — Deixem-nos
em paz.
Fechou ruidosamente a porta e pôs-se a caminhar de um lado para outro.
— O que acha? — perguntou Atlan, dirigindo-se a Perry Rhodan. — Devemos
tentar entrar em contato com estes caras?
— Não — respondeu Rhodan. — Não podemos fazer nada por eles, e eles não
podem fazer nada por nós. Quando o trem chegar ao destino, seremos separados deles, a
não ser que resolvam usar-nos como alimento em suas fazendas de criação. Nesse caso
seríamos obrigados a tentar a fuga. Se isso acontecer, ainda poderemos aproximar-nos
dos criminosos domésticos.
Baynes não compreendia por que Rhodan queria esperar tanto para tentar a fuga.
Não sabiam quais eram as condições que encontrariam no pavimento abdominal. Os três
milhões de trombas brancas certamente levavam vida muito pobre. Na área habitada pela
casta A não encontrariam os recursos técnicos que poderiam conseguir nos dois
pavimentos de cima. Se fugissem, uma força poderosa da casta B iniciaria a perseguição.
Quanto a isso Baynes não tinha a menor dúvida.
A suspeita de que a capacidade de decisão de Rhodan tinha sido afetada por alguma
ação dos trombas vermelhas voltou a martirizar o cérebro de Kendall Baynes. Mas se os
twonosers eram capazes disso, não se compreendia por que haviam amarrado os
criminosos domésticos, em vez de aplicar-lhes o mesmo tratamento.
“Quem dera que possuíssemos ao menos algumas armas”, pensou Baynes,
desesperado.
O trem partiu, deixando rapidamente para trás a montanha achatada. Dali a mais
alguns minutos Baynes avistou o fim do gigantesco pavilhão. Tal qual na entrada, a ponte
levava diretamente ao vão da artéria. Baynes lançou mais um olhar para a estranha
paisagem. O solo brilhava num amarelo vivo, enquanto as construções formavam
manchas negras que se destacavam na área clara. Em algum lugar lá embaixo viviam os
twonosers, dedicando-se ao trabalho e cuidado de suas tarefas. Deviam estar acostumados
a ver passar os trens, pois nem levantaram os olhos para a ponte arrojada.
As luzes do compartimento acenderam-se. O trem intercastas aumentava
constantemente de velocidade, enquanto penetrava nas veias do cadáver do moby.
“Somos que nem micróbios num corpo humano”, pensou Baynes num acesso de
sarcasmo. A comparação até que se aplicava aos bioparasitas, que tinham matado o moby
antes que os twonosers se apoderassem dele.
O estômago de Baynes estava roncando. Fazia muitas horas que não comia nada, e
ainda não se sabia quando iria terminar a viagem. Observou discretamente os quatro
criminosos domésticos. Não conversavam, mas mantinham-se de pé, em silêncio, no
meio do compartimento, com as trombas amarradas agarradas às alças.
Será que eles sabiam o que os esperava? Certamente, pensava Baynes. Afinal, não
haveria nenhum motivo para não lhes comunicar a decisão.
Baynes sentiu-se dominado por um sentimento de desolação, mas fez avançar
obstinadamente o queixo e cerrou os lábios, como costumava fazer antigamente. O tempo
que passara no planeta Terra parecia estar bem longe. Até parecia que estas experiências
tinham sido feitas por outra pessoa.
Baynes sabia que, se um dia conseguisse sair dali, nunca se esqueceria dos
acontecimentos que havia presenciado.
***
O trem parou abruptamente, fazendo com que Baynes caísse para a frente e tivesse
de apoiar fortemente os pés no chão para não ser arremessado para fora da poltrona.
Ainda se encontravam no interior do túnel. Os criminosos domésticos começaram a
conversar animadamente.
— Aconteceu alguma coisa! — afirmou Kasom.
Como que para confirmar suas palavras, um guarda abriu a porta e apontou uma
pequena arma energética para os prisioneiros.
— Fiquem sentados! — disse o tromba vermelha.
— Que houve? — perguntou Rhodan.
— Não sei — respondeu o tromba vermelha. — Deve ter sido um ato de sabotagem.
Não quis dizer mais que isso, mas Marshall, que acompanhava os pensamentos do
guarda, comentou em voz baixa:
— Ele receia que o trilho tenha sido destruído por alguns criminosos domésticos.
Parece que muitos condenados conseguiram fugir das fazendas de criação. Vivem no
grande sistema arterial do moby e não há como pôr a mão neles. Vivem praticando
atentados contra os trens intercastas. Pode demorar bastante até que o trem seja rebocado.
E é bem possível que tenhamos de voltar ao pavimento médio.
— Não falem! — ordenou o guarda.
Rhodan fez sinal para que seus companheiros obedecessem. O twonoser de tromba
vermelha parecia muito nervoso. Convinha não irritá-lo.
Ouviram barulho vindo do corredor. Baynes olhou para a janela; queria ver alguma
coisa. Mas do lado de fora estava tudo escuro, e a luz dos compartimentos não era
suficiente para iluminar o túnel.
Pelos cálculos de Baynes devia haver uns cinqüenta guardas da casta C no trem,
todos eles fortemente armados. Além disso havia os civis. Alguns deles certamente
também possuíam armas, uma vez que a área era bastante perigosa.
O barulho vindo do corredor aumentava cada vez mais. Apareceu mais um guarda,
que começou a conversar em voz baixa com o que já estivera lá. Os dois entraram. Um
deles apontou para Rhodan.
— Venha conosco! — gritou. Baynes levou um susto ao ver que o guarda apontava
para ele e lhe fazia um sinal para que se aproximasse. Parecia que os twonosers
acreditavam que era um personagem importante, porque já tinha saído do vagão em
companhia de Rhodan.
— Há um problema, senhor — cochichou Marshall em tom apressado. — Não se
trata de um ato de sabotagem dos criminosos domésticos. Aconteceu outra coisa. Os
guardas ainda não sabem exatamente o que é, mas pensam que um dos nossos homens
está causando problemas.
Rhodan já se levantara. Baynes apressou-se em colocar-se ao lado do mesmo.
Rhodan se movimentou com uma lentidão propositada, mas Marshall se limitou a
fazer alguns movimentos com os braços, dando a entender que no momento não
conseguira descobrir mais nada.
Baynes espantou-se ao notar que estavam sendo levados para os carros da frente, e
não para os de trás, onde se encontravam os prisioneiros.
Baynes viu que quase não havia passageiros comuns no trem. Só os pavimentes
superiores, onde eram transportadas as cargas e bagagens, pareciam estar atulhados.
Atravessaram três carros e foram obrigados a parar à frente de um grupo numeroso
de trombas vermelhas. O twonoser que, segundo sabia Rhodan, era o chefe dos guardas,
olhou demoradamente para Rhodan e apontou para um compartimento fechado.
— Aqui fica o centro gerador do trem — disse o twonoser, falando muito devagar.
Até parecia que receava que Rhodan não pudesse acompanhá-lo se falasse mais depressa.
Baynes prestava atenção às suas palavras. — Um dos seus homens está lá dentro.
— Como ele poderia ter entrado? — perguntou Rhodan, espantado.
— Não sabemos — respondeu o guarda.
— Por que não o tiram de lá? — perguntou Rhodan.
O twonoser abanou a tromba, mostrando-se aborrecido.
— Não é fácil. Ele nos apresentou um ultimato. Quer obrigar-nos a levar o trem de
volta para o pavimento médio. Diz que, se nos recusarmos a fazer isso, vai destruir o
centro gerador. E fará a mesma coisa se entrarmos ali à força. Nesse caso o trem ficaria
parado aqui por algum tempo. Para os criminosos domésticos isso seria um convite para
entrar em ação.
Rhodan ouvira em silêncio.
— O que pretende fazer? Aceitar o ultimato? — perguntou.
O twonoser negou resolutamente.
— Fale com ele! — pediu. — Diga que, se não sair voluntariamente, começaremos
a fuzilar alguns prisioneiros. Se necessário, fuzilaremos todos. Este é nosso ultimato.
— Por que o senhor mesmo não disse isso a ele? — perguntou Rhodan.
— Eu disse — respondeu o tromba vermelha em tom de desprezo. — Ele acha que
estamos blefando.
Rhodan aproximou-se da porta e encostou o ouvido à mesma. Baynes não sabia o
que significava isso.
— Aqui fala Rhodan! — gritou o Administrador-Geral. — Saia daí, Woolver.
“Só poderia ser!”, pensou Baynes. “Quem mais poderia ter entrado neste recinto
sem que ninguém o notasse? Só mesmo um dos sprinters. Provavelmente um dos irmãos
gêmeos transportou-se por conta própria pelos condutos de energia.”
Baynes ouviu alguém bater à porta do lado de dentro.
— Aqui fala Rakal Woolver, senhor! — as palavras eram perfeitamente
compreensíveis. — Temos uma ótima oportunidade de pressionar estes caras. O senhor
quer mesmo desperdiçar essa chance? Têm tanto medo de perder seu trem que não
cumprirão a ameaça.
Baynes viu Rhodan segurar calmamente a maçaneta da porta com ambas as mãos.
Abriu repentinamente.
— Saia daí, Woolver — disse. — Isto é uma ordem.
O mutante saiu para o corredor. Foi cercado imediatamente pelos guardas.
— Volte ao seu compartimento, major — disse Rhodan. — Pelo caminho normal.
O chefe dos guardas dirigiu-se a Rhodan. Baynes fechou apressadamente a porta da
unidade energética.
— Como esse homem conseguiu entrar num recinto fechado? — perguntou o
twonoser em tom enérgico.
— Não sei — respondeu Rhodan, dando de ombros. O guarda ergueu a tromba,
num gesto de ameaça.
— Qualquer pessoa que tentar isso de novo será fuzilada.
— Muito bem — disse Rhodan. — Não me esquecerei disso.
— Volte ao seu compartimento — disse o guarda. — O trem já pode prosseguir.
Quando voltaram a sentar no compartimento, Icho Tolot riu de novo.
— Isso não poderia mesmo dar certo — disse em tom alegre. — O único ser que
pode tirá-los daqui é o mesmo que os trouxe para cá: Icho Tolot.
— O que pretende fazer? — perguntou Atlan, irritado. — Vai conquistar sozinho o
moby Tolot?
— Até que seria interessante — disse Tolot sem mostrar-se aborrecido. — Mas
seria um tanto monótono.
Baynes começou a inquietar-se. Como poderiam sair dali, se estes homens nunca
chegavam a um acordo? Baynes sempre acreditara que a elite dirigente do Império Solar
era um grupo homogêneo, mas naquele momento teve de constatar que era formada por
alguns individualistas, que não hesitavam em exprimir seus pensamentos ironia diante
dos planos dos outros.
Baynes começou a admirar-se de que a humanidade tivesse chegado a Andro-Beta.
Era um jovem cheio de dúvidas e de problemas. Mas sem que o percebesse estava
aprendendo.
Quando o trem partiu, deu-se conta de que Perry Rhodan nunca seria capaz de
sacrificar levianamente uma vida humana, somente para cumprir um plano arriscado.
Lembrou-se do que dissera certa vez o sargento Kapitanski a respeito do
Administrador-Geral:
— Não podemos compará-lo com homens que nem você e eu, Lorde, pois ele
possui uma experiência incrível. Mas todos estes anos que passou combatendo no espaço
não foram capazes de afetar seus elevados padrões éticos. Pelo contrário: só serviram
para robustecer seu senso de responsabilidade.
“O velho Kapitanski”, pensou Baynes. Às vezes, quando dizia uma coisa, acertava
em cheio. Quem dera que não fosse um ranzinza incorrigível, que sempre encontrava
defeitos na música de Baynes.
4

O trem intercastas saiu em alta velocidade de uma das veias do moby. Lorde
Kendall Baynes sentiu-se ofuscado e fechou os olhos quando contemplou a estranha
paisagem. A luz do sol artificial que iluminava o pavilhão em que acabavam de entrar
refletia-se em inúmeros blocos de quartzo e fragmentos de cristais.
A paisagem desértica estendia-se a perder de vista. Era um quadro fantástico, que
fez com que Baynes esquecesse de repente o cansaço e a fome. A paisagem cintilava, e os
reflexos mudavam constantemente, uma vez que o trem continuava a deslocar-se em alta
velocidade.
De repente Baynes viu uma faixa escura vinda de longe, que ia ter ao trilho. “Deve
ser uma estrada”, pensou o sargento. Nas proximidades do trilho, o solo cristalino tinha
sido aplainado de ambos os lados da estrada. Baynes não viu um único twonoser que
fosse. A estrada parecia vir do nada e levar ao nada.
Tinha-se a impressão de que o pavilhão não estava habitado. Os únicos sinais da
presença de vida inteligente eram a estrada e o sol artificial.
O trem cruzou a estrada, e dali a pouco Baynes perdeu de vista a faixa escura que
atravessava a paisagem desértica. Mas dali a mais alguns minutos apareceu outra estrada
e alguns edifícios, veículos e twonosers de tromba branca.
O trem foi reduzindo a velocidade. As construções que Baynes via ao longo do
trilho eram miseráveis e algumas delas pareciam estar em ruínas. Quanto mais olhava,
mais deprimido se sentia Baynes. Ninguém parecia dar-se ao trabalho de reparar o que
quer que fosse nessa área. Havia enormes blocos de quartzo espalhados pela estrada, que
em alguns lugares estava arrebentada. Baynes viu um veículo de rodas passar com grande
dificuldade pelos inúmeros obstáculos.
Finalmente o trem parou entre as fileiras de construções antiqüíssimas. Havia cerca
de duzentos trombas brancas armados na rampa que ficava ao lado do trilho. Baynes teve
a impressão de que seu equipamento era muito pobre.
— Parece que chegamos — disse Perry Rhodan.
Baynes fazia votos de que não fossem obrigados a sair do trem e caminhar pelo
deserto desolado. Em sua maioria as casas eram desabitadas. Baynes podia olhar para
dentro das mesmas, já que algumas portas tinham sido arrancadas e várias paredes
haviam desabado.
Um guarda abriu a porta do compartimento.
— Desçam! — gritou. — Entrem em forma lá fora.
Desligou a tradutora e passou a conversar com os quatro criminosos domésticos,
que saíram sem dizer uma palavra e acompanharam o guarda.
Quando os terranos saíram do compartimento, não viram nenhum guarda no
corredor. Mas quando desceram do trem, um tromba vermelha com a arma apontada
estava à sua espera. Baynes procurou ficar atrás de Tolot e Rhodan. Olhou para o último
vagão. Os prisioneiros estavam saindo do trem intercastas para entrar em forma na
plataforma da estação.
Os duzentos trombas brancas armados mantinham-se numa atitude de expectativa.
— Seremos entregues à casta A — disse Marshall, dirigindo-se a Perry Rhodan.
Rhodan olhou para a paisagem desolada.
— Acho que não vamos ficar aqui — disse em tom indiferente. — Não se vê
nenhum veículo de grande tamanho. Dali só se pode concluir que seremos levados a pé.
Baynes passou a língua pelos lábios ressequidos. Esperava que antes de pô-los em
marcha lhes dessem alguma coisa para beber. Tentou identificar o sargento Kapitanski na
multidão dos prisioneiros. Os trombas vermelhas tiveram o cuidado de evitar que o
pequeno grupo de Rhodan pudesse entrar em contato com o resto da tripulação da Crest.
O grupo principal dos prisioneiros estava sendo vigiado por quarenta e oito trombas
vermelhas, enquanto os outros dois permaneceram ao lado de Rhodan. Baynes teve a
impressão de que um deles era o chefe dos guardas.
Os quatro prisioneiros domésticos continuaram amarrados. Foram colocados entre
os dois grupos.
Os guardas esperaram até que os terranos se acalmassem. Depois disso o chefe
gritou algumas palavras para os soldados trombas brancas. A tropa de duzentos homens
começou a movimentar-se.
O chefe dos trombas vermelhas ligou a tradutora. Baynes viu que os membros da
tão desprezada casta A também usavam esses aparelhos.
Os trombas brancas distribuíram-se pela plataforma. O chefe aproximou-se dos dois
twonosers que se encontravam ao lado de Rhodan.
— O que é isso? — perguntou, dirigindo-se aos guardas.
Baynes entendia tudo, pois o tromba vermelha continuava com sua tradutora ligada.
— Estamos entregando os prisioneiros — respondeu o guarda em tom de desprezo.
O membro da casta baixa agitou nervosamente a tromba.
— Só recebemos aviso da chegada dos quatro criminosos domésticos. O que vamos
fazer com tantos seres estranhos?
Baynes percebeu que o tromba branca os fitava um após o outro e estava cada vez
mais aborrecido.
— Nem sequer possuem tromba — disse cheio de desdém. — O que vamos fazer
com estas criaturas inferiores? Garko o Forte não quer nada com eles.
O chefe do comando dos trombas vermelhas parecia indiferente às palavras de seu
interlocutor. Os protestos do outro twonoser não pareciam incomodá-lo nem um pouco.
— Atirem-nos nas câmaras de criação de bioparasitas — sugeriu. — Dessa forma o
problema da alimentação estará resolvido por algum tempo.
Baynes estremeceu. Seus olhos procuraram os de Rhodan, mas o Administrador-
Geral acompanhava atentamente a discussão dos dois twonosers.
— Talvez Garko o Forte saiba como utilizar estes desconhecidos — disse o tromba
branca, um pouco mais pensativo.
O chefe dos trombas vermelhas fez um sinal aos seus homens. Os guardas voltaram
para dentro do trem. Os últimos volumes de bagagem foram colocados nos vagões e o
trem voltou a movimentar-se, retomando na direção da qual tinha vindo.
— Ponto final! — disse Melbar Kasom e bateu furiosamente com a ponta da bota
no chão duro. — Chegamos. O número de guardas quadruplicou.
— Não há motivo para ficar nervoso — advertiu Rhodan. — Por enquanto estamos
numa estação ferroviária afastada e não sabemos para onde seremos levados. Estou
curioso para saber quem é Garko o Forte.
— Pelo que pude deduzir dos pensamentos dos twonosers, é o chefe de governo
deles — informou Marshall.
— É um homem muito conceituado entre os trombas brancas.
— Talvez tenha bastante visão para não tomar conhecimento da sugestão dos
trombas vermelhas — disse Atlan.
— Bem que eu gostaria que encontrássemos logo um twonoser com o qual a gente
pudesse ter uma conversa sensata. Estes trombas brancas não são menos arrogantes que
seus parentes que habitam a parte superior do moby.
Icho Tolot deu uma risada.
— Devem sentir-se aliviados porque finalmente encontraram alguns seres ainda
mais baixos que eles — disse.
— Vejam, meus chapas. Nem sequer temos uma única tromba, quanto mais duas.
Isto sem falar da cor.
— Não acho graça — disse Atlan. — Está na hora de fazermos alguma coisa.
— É verdade! — disse Rhodan, para surpresa de Baynes. — Tolot, o senhor deveria
tentar escapar na primeira oportunidade e dar uma olhada por aí. Espere até que
cheguemos ao destino, para que possa manter contato conosco.
O halutense não fez nenhum esforço de disfarçar o contentamento causado pelas
palavras de Rhodan.
Baynes lançou um olhar desconfiado para os duzentos soldados. Teve a impressão
de que não seria fácil enganá-los.
Baynes aspirou fortemente o ar do pavilhão, que parecia seco e quente. Dormira
bastante no trem, mas sentia-se esgotado e deprimido. Invejava os que usavam um
ativador de células pela boa disposição física que demonstravam. Tolot e Kasom, que não
usavam ativador, eram tão robustos por natureza que as canseiras não poderiam afetá-los.
Os companheiros de infortúnio de Baynes eram os dois mil tripulantes da Crest II.
O chefe do comando de trombas brancas dirigiu-se a Perry Rhodan.
— Já que estão aqui, teremos de encontrar uma solução. Por enquanto ficarão em
outro pavilhão. Garko o Forte decidirá sobre seu destino.
— Quero pedir que responda a uma pergunta — disse Rhodan em tom áspero, antes
que o twonoser lhe desse as costas. — Por que veio com duzentos soldados, só para
receber quatro criminosos domésticos? O senhor disse que não tinha sido informado
sobre nossa chegada.
— A pergunta tem sua razão de ser — disse o tromba branca em tom um pouco
mais acessível. Apontou com a tromba para as casas em ruínas. — Nem sempre a
chegada do trem é tão calma como desta vez — prosseguiu. — Às vezes ocorrem
conflitos com os soldados da casta C. Por isso costumamos aparecer em grande número.
“Quer dizer que a conclusão a que chegou Marshall, o telepata, vigiando os
pensamentos de alguns twonosers, é verdadeira”, pensou Kendall Baynes. A casta A e a
casta C não se davam bem. Já houvera tiroteios no pavilhão em que se encontravam. Se o
pavimento médio do moby não fosse habitado pelos membros da casta B, que serviam de
pára-choque, talvez já teria havido uma guerra entre os trombas vermelhas e os trombas
brancas.
— Não sei quem é Garko o Forte — disse Atlan em voz baixa, dirigindo-se a
Rhodan. — Mas sei que devemos tentar tirar proveito dos seus conflitos com a casta C.
Temos de provar-lhe que podemos ser bons aliados.
— Tolot apresentará a primeira prova — disse Rhodan.
Os soldados agruparam-se de ambos os lados da coluna de prisioneiros. Os quatro
criminosos domésticos foram obrigados a marchar à frente do grupo.
— Vamos para a estrada! — gritou um tromba branca, usando a tradutora.
— Eu me esqueci de fazer uma pergunta a este sujeito — disse Melbar Kasom,
zangado. — Deveria ter perguntado quando vamos comer alguma coisa.
“É uma boa idéia”, pensou Baynes num acesso de ironia. Mas como é que os
trombas brancas poderiam arranjar comida neste deserto? Provavelmente só traziam suas
rações de campanha.
Baynes dirigiu os olhos para as costas largas de Tolot e saiu andando. Os raios
escaldantes do sol artificial pareciam dardejar em seu corpo. Sua boca estava ressequida.
Alguém chegou perto dele.
Era John Marshall, o mutante.
— Por que não toca alguma coisa em sua gaita? — perguntou o telepata.
Era a primeira vez que alguém pedia a Baynes que tocasse uma música, mas sabia
que seria incapaz de tirar qualquer som do instrumento.
— Não estou com vontade — disse em tom obstinado, pois não queria confessar
que não podia tocar.
Espantou-se ao notar que esperava no seu íntimo que Marshall descobrisse o
verdadeiro motivo da recusa, fazendo uma incursão ligeira em seus pensamentos.
— Temos uma marcha longa através do deserto pela frente — disse o mutante em
tom conciliador. — Quem sabe se não acaba mudando de opinião?
— De forma alguma! — asseverou Lorde Kendall Baynes em tom condescendente.
Deixou cair a cabeça e foi colocando automaticamente pé ante pé. Certa vez lera
que a melhor maneira de poupar as forças numa caminhada era realizar uma espécie de
trote de lobo.
“Acontece que nunca vi um lobo trotando”, pensou, cheio de sarcasmo. Ouviu o
ruído de dois mil pares de botas arranhando a areia, vindo de trás.
Saíram da estação e foram para a estrada, que quase não era usada. O deserto
cintilava diante dos olhos de Baynes. Em certos lugares emitia um brilho vermelho,
enquanto em outros lugares cambiava para o amarelo-claro. Baynes estreitou os olhos,
pois sentia-se ofuscado. Tentou enxergar o fim da estrada, mas esta se perdeu na
luminosidade escaldante do deserto.
Cada pedra de quartzo parecia refletir em dobro o calor do sol artificial.
Os joelhos de Baynes tremeram. Teve a impressão de que seu estômago estava
encolhendo.
“Nunca mais sairei daqui”, pensou.
Suas botas esmagaram alguns pedaços de cristal. Houve um rangido, que fez com
que Baynes sentisse calafrios. Apressou o passo e colocou-se ao lado de Kasom.
— Quanto tempo ainda vai durar esta marcha, senhor? — perguntou.
Kasom dobrou para trás o capacete em forma de concha, que usava desde o
momento em que saíra da Crest, e passou a mão pelo penteado em forma de foice.
— Não sei — confessou. — Nem quero saber.
Rhodan dirigiu-se a Baynes.
— Não estou gostando do senhor, sargento — constatou. — Sente-se doente?
— Tudo bem comigo, senhor — apressou-se Baynes em dizer.
Rhodan olhou-o com uma expressão pensativa.
— Se quiser, pode voltar para onde estão os tripulantes do convés F — sugeriu
Rhodan, apontando para trás.
Baynes sentiu que estava começando a transpirar. Teve de fazer um grande esforço
para fitar os olhos de Rhodan.
— Caso não se importe, prefiro ficar aqui, senhor.
— Está bem, Baynes — disse Rhodan e voltou a dirigir os olhos para a estrada.
Enquanto se encontravam no trem, Baynes tinha certeza de que uma coisa
importante aconteceria assim que chegassem ao destino. Mas continuavam na incerteza.
Era bem possível que estivessem todos marchando para a morte — para uma morte
terrível.
Toda vez que olhava para o deserto escaldante, Baynes sentia tonturas. Fazia um
grande esforço para olhar somente para as costas largas de Tolot. Teve a impressão de
que os blocos de quartzo que margeavam a estrada ficavam cada vez maiores. A estrada
parecia entrar num desfiladeiro.
“Quem sabe se lá não é mais fresco?”, pensou Baynes, cheio de esperança.
Os duzentos twonosers pareciam estar muito atentos. Cercavam constantemente a
coluna com as armas destravadas, embora esta se tivesse espalhado mais.
Em algum lugar, bem atrás de Baynes, os pés chatos de Kapitanski pisavam a
estrada quente. O sargento devia suportar tudo com a maior paciência. “É um soldado de
verdade”, pensou Baynes. Não se importaria em marchar quatrocentos quilômetros com
seus pés chatos. Nem chegaria a pestanejar.
E ele, Lorde Kendall Baynes, sofria tonturas quando mal tinha percorrido mil
metros.
“Tenho muita resistência”, pensou Baynes. “Tenho uma resistência danada quando
isso é necessário.”
O rangido das botas o deixava sonolento. Os pés ardiam. Perguntou-se se realmente
fazia tanto calor, ou se era apenas uma impressão sua. Abriu a parte superior do casaco
do uniforme. Seus dedos tocaram a gaita de boca. Agarrou-a por um instante. Sentia a
frieza do instrumento através do tecido do uniforme.
Um bloco de cristal rachou bem ao lado da estrada. Parecia que a raiz de uma árvore
gigantesca estivesse estalando. Teve-se a impressão de que inúmeros cristais dançavam
bem no alto, que nem flocos de neve tangidos pelo vento. Baynes voltou a concentrar-se
nas costas de Tolot.
— Que país estranho — disse Melbar Kasom, que caminhava a seu lado. —
Qualquer um poderia ficar com medo se estivesse aqui sozinho.
— Medo? — repetiu Baynes. — Não sei por quê, senhor.
Kasom olhou-o de lado — com um pouco de pena, segundo pareceu a Baynes. Mas
não disse nada, e Baynes sentiu-se grato por isso.
A estrada voltou a sair do desfiladeiro, mas ainda não se via o fim. Toda vez que
Baynes olhava para trás tinha a impressão de ver uma mancha escura no deserto. Só
podiam ser os edifícios que ficavam junto à estação.
Era de onde tinham vindo. Quanto a isso não havia dúvida.
Mas ninguém sabia o que tinham pela frente.
***
Deixaram para trás o deserto de quartzo e atravessaram outro espaço oco do corpo
do moby. Quando atravessaram o portal largo, John Marshall descobriu que já estavam
próximos ao destino.
— Os edifícios que ficam no vale pertencem às fazendas de criação de bioparasitas
— disse o telepata. — Mais adiante ficam os campos de cultura, onde os twonosers
cultivam produtos agrícolas que também são usados na alimentação.
Logo depois do portal o terreno descia fortemente, de forma que a planície que
ficava em nível mais baixo praticamente formava um vale extenso. Uma estrada bem
conservada levava às fazendas. Embora ainda se encontrasse a grande distância, Kendall
Baynes viu que o pavilhão em que se encontravam era mantido em perfeita ordem pelos
trombas brancas.
Quando tinham percorrido mais alguns quilômetros, Marshall voltou a dirigir-se aos
homens que o acompanhavam.
— Parece que esse edifício de telhado claro é o depósito de prisioneiros — disse. —
Por enquanto seremos levados para lá.
— Depósito de prisioneiros? — repetiu Rhodan. — Será que existem outros
prisioneiros além de nós?
Marshall apontou para os quatro criminosos domésticos.
— Os trombas brancas não tomam conhecimento das sentenças proferidas contra
estes homens. Não matam os criminosos, mas usam-nos como trabalhadores nas fazendas
de criação. Os pensamentos dos guardas revelam que Garko o Forte tolera de forma tácita
as infrações cometidas pelos criminosos domésticos. Há boatos segundo os quais até
chega a estimular as atividades desse grupo de resistência, para manter ocupados os
trombas vermelhas e os soldados pertencentes à casta B.
Baynes, que se sentia melhor desde o momento erra que haviam saído do deserto de
quartzo, acenou com a cabeça. Parecia que as palavras de Marshall retratavam a
verdadeira situação.
Baynes passou a dedicar sua atenção aos campos que se estendiam de ambos os
lados da estrada. Pareciam bem cuidados. Em toda parte viam-se plantas que tinham certa
semelhança com o milho. Era bem verdade que as espigas de milho desse povo quase
tinham a espessura de uma cabeça de criança e eram de cor marrom-escura.
Os campos eram cortados a intervalos regulares por pequenos caminhos. Havia
máquinas robotizadas trabalhando em vários lugares. Graças ao sol artificial e à
temperatura uniforme reinante no pavilhão em que se encontravam, os twonosers podiam
plantar e colher praticamente em qualquer época.
Passaram pelos primeiros edifícios. Baynes acreditava que se tratava de depósitos
destinados a guardar os produtos do campo.
A fuga de Icho Tolot interrompeu as reflexões de Baynes. O gigantesco halutense
separou-se de repente do grupo e saiu correndo para fora da estrada.
Os guardas soltaram um grito de advertência. Quando viram que não parava,
abriram fogo com as armas energéticas. Baynes acompanhava tudo com o maior
interesse. Os raios energéticos mortíferos bateram no corpo do halutense sem produzir
qualquer efeito. Tolot fizera a conversão de sua estrutura molecular. Quando se
encontrava nesse estado nada lhe podia acontecer, mesmo que uma bomba explodisse
perto dele.
Tolot desapareceu entre a vegetação densa. Três guardas saíram em sua
perseguição. O chefe dos guardas chegou perto de Rhodan.
— Se fugir mais alguém, fuzilaremos dez dos seus homens — disse o tromba
branca em tom de ameaça.
Rhodan fitou-o por algum tempo.
— Este ser de quatro braços não pertence ao meu povo. Não posso dar-lhe ordens.
Se resolveu fugir, isso é problema dele. Mas quero avisar que este indivíduo é muito
forte. Vocês viram que suas armas não conseguiram derrubá-lo.
O twonoser ficou refletindo por um instante.
— Será que se um dos seus homens for atrás dele ele voltará?
— Não sei — respondeu Rhodan. — Só experimentando.
— Se os criminosos domésticos o atacarem, ele estará perdido — afirmou o guarda.
— Tenho lá minhas dúvidas — respondeu Rhodan.
O twonoser ficou brincando com sua tradutora e afastou-se sem dizer mais uma
palavra. Os outros soldados mantinham as armas apontadas em atitude ameaçadora para
os prisioneiros, que pareciam bastante agitados. Baynes foi para perto de Melbar Kasom.
— O senhor acredita que os guardas alcançarão o halutense?
Kasom fungou de desprezo.
— Tolot é capaz de correr a cem quilômetros por hora, se necessário. Encontrará
um esconderijo muito mais depressa do que os twonosers acreditam.
Baynes não parecia muito confiante.
— Acontece que é uma fuga inútil. O que é que ele poderá fazer por nós?
— Procurará um bom esconderijo — respondeu Atlan no lugar de Kasom. — Dessa
forma Kasom e os gêmeos Woolver também poderão fugir.
— Ainda não fizeram a contagem do nosso grupo — observou Rhodan. — Talvez
possamos libertar cinqüenta homens sem que os twonosers percebam.
Os soldados fizeram questão de que dali em diante os prisioneiros marchassem
sempre à mesma velocidade. Parecia que queriam evitar outros incidentes. Finalmente a
ponta da coluna atingiu as primeiras fazendas de criação. Eram grandes edifícios
circulares. Ficavam atrás de muralhas altas, e por isso Baynes não conseguiu distinguir os
detalhes. Um silêncio apavorante parecia reinar atrás dessas muralhas. Havia
pouquíssimos twonosers nas estradas que passavam perto das fazendas de criação.
Conforme previra Marshall, foram levados ao edifício maior, que já tinham visto de
longe. Os dois mil homens foram colocados num salão sem janelas. Havia somente
algumas aberturas de ventilação no telhado.
Os trombas brancas ficaram parados junto à porta. O chefe fez um sinal para que
Rhodan se aproximasse.
— O senhor irá comigo! — decidiu. — Os outros por enquanto ficam aqui.
Baynes lamentou que desta vez não pudesse acompanhar Rhodan. Sentou no chão,
ao lado de Kasom. Os quatro criminosos domésticos estavam trancados no mesmo salão.
Alguns oficiais aproximaram-se de Atlan, para discutir a situação. Os homens da
Crest II sentiam-se indignados. Queixavam-se de que ainda não lhes haviam dado
nenhum alimento desde o momento em que tinham sido colocados no trem intercastas.
Baynes ouviu-os sem maior interesse. Enquanto Rhodan não voltasse, não poderiam
fazer nada.
5

Assim que a porta se fechou atrás de Rhodan, o chefe dos guardas mandou embora
os outros soldados. O tromba branca nem tirou a arma do cinto. Parecia ter certeza de que
Rhodan não o atacaria.
Rhodan tentou descobrir alguma reação nos olhos facetados rígidos dessa criatura.
O twonoser ligou a tradutora. Logo em seguida o alto-falante do aparelho
reproduziu sua voz. Rhodan perguntou-se como funcionavam estes aparelhos. O
desempenho era espantoso. As tradutoras usadas na Frota Solar tinham de ser
previamente programadas com certos grupos de símbolos, mas parecia que para usar uma
tradutora desse povo bastava ligar o aparelho na recepção. Bastava proferir algumas
frases para que a tradutora colhesse os dados de que precisava. Estas informações eram
suficientes para fazer uma tradução praticamente sem erros.
— Vamos ao edifício do governo — anunciou o tromba branca. — Garko o Forte
foi informado sobre sua chegada e já está à nossa espera.
— Meus homens estão com fome e precisam beber alguma coisa — disse Rhodan.
— Providencie para que recebam alguma coisa, senão pode haver uma revolta.
Rhodan espantou-se ao notar que o twonoser reagiu imediatamente ao seu pedido.
Chamou alguns trabalhadores e deu-lhes ordens. Depois disso Rhodan e seu
acompanhante twonoser retiraram-se. Rhodan ficou satisfeito quando saiu para o ar livre.
Tal qual acontecia no trem intercastas, no interior do edifício havia um cheiro esquisito,
que provocava náuseas.
— Meu nome é Storkeet — disse o tromba branca quando estavam saindo pelo
portão principal. — Talvez queira comer alguma coisa.
Rhodan surpreendeu-se com a súbita amabilidade.
— Meu nome é Rhodan — respondeu. — Posso esperar até que estejamos com
Garko o Forte.
Storkeet foi à beira da estrada e inclinou-se sobre uma coluna luminosa. Mexeu na
mesma e voltou a dirigir-se a Rhodan.
— Logo alguém virá buscar-nos — explicou.
— Um serviço de táxi muito bem organizado, não é? — disse Rhodan com um
sorriso.
Storkeet não respondeu. Parecia que a tradutora não podia traduzir a palavra táxi,
porque os twonosers não a conheciam. Para os twonosers Rhodan devia ser um ser muito
estranho, mas os transeuntes quase não lhe davam nenhuma atenção. Neste ponto os
trombas brancas eram iguais aos membros das outras castas. Uma das características
desses seres parecia ser o desprezo que demonstravam perante qualquer ser
desconhecido. Era um comportamento estranho para seres inteligentes — e os twonosers
eram inteligentes — pois na opinião de Rhodan os twonosers deveriam ter demonstrado
mais interesse por ele e por outros desconhecidos.
Rhodan imaginava o alvoroço que o aparecimento de um twonoser despertaria na
Terra. Resolveu pedir informações ao homem que o acompanhava.
— Por que ninguém se interessa por mim, Storkeet? — perguntou. — Seus
semelhantes que andam pela estrada devem ver que pertenço a uma forma de vida
diferente.
Storkeet fitou-o com uma expressão pensativa. Até parecia que queria encontrar um
meio de responder à pergunta de Rhodan sem ofender o mesmo.
— O senhor não possui tromba — disse depois de algum tempo. — Logo, só pode
pertencer a uma casta inferior.
— Sou um ser estranho — disse Rhodan em tom enfático. — Não posso ser
enquadrado no sistema rígido de castas que prevalece aqui. Eu e meus companheiros
temos de ser avaliados por padrões completamente diferentes.
Storkeet pigarreou. A conversa estava ficando desagradável para ele.
— O senhor não tem tromba. É só o que importa. Não interessa o que o senhor
possa representar no lugar do qual veio. Se possuísse três trombas vermelhas, sem dúvida
seria recebido com todas as honras.
— Mas custa acreditar que alguém possa adotar uma concepção falsa como esta —
exclamou Rhodan. — Os twonosers são um povo inteligente. A tecnologia de vocês pode
competir com a nossa em qualquer terreno; até chega a ser superior à nossa. Como é que
um povo como o de vocês pode desenvolver preconceitos desse tipo?
— Não costumo refletir sobre isso — respondeu Storkeet. — Conformo-me com os
fatos como eles são. E o fato é que nenhum dos prisioneiros recém-chegados possui
tromba.
— O senhor sabe que os membros da casta C têm de pintar suas trombas
regularmente de vermelho — lembrou Rhodan. — Com a casta B acontece mais ou
menos a mesma coisa. A natureza deu a mesma cor às trombas das três castas: a cor
branca!
— É verdade — confirmou o guarda.
— Quer dizer que a única coisa que o senhor tem de fazer para subir de casta é
pintar sua tromba — ponderou Rhodan.
O tromba branca deu um passo atrás e puxou a arma. Rhodan assustou-se. Sem
querer cometera um erro.
— Nunca mais diga isso! — chiou Storkeet, exaltado. — Se voltar a fazer uma
sugestão como esta, eu o mato na hora. Ninguém pode quebrar um tabu ou sequer falar
nisso.
Rhodan sentiu o cano trêmulo da arma. Respirou aliviado quando Storkeet voltou a
baixar a arma. Mas o twonoser não voltou a guardá-la no cinto. A amabilidade com que
surpreendera Rhodan tinha desaparecido.
— Não se mexa! — disse. — Vamos esperar o veículo.
Rhodan preferiu ficar em silêncio por enquanto. Havia coisas que se devia guardar
para si para continuar vivo. Rhodan sabia por experiência própria que era muito difícil
libertar uma inteligência estranha dos preconceitos que pesavam sobre ela.
Provavelmente estes seres mantinham fielmente o espírito de casta há várias gerações.
Era impossível libertá-los de repente. Afinal, não era a primeira vez que Rhodan se
encontrava com seres muito inteligentes, que eram martirizados por angústias
inconcebíveis ou defendiam idéias que não tinham nenhuma lógica.
Os motivos mais variados podem criar um tabu invencível no curso dos séculos.
Rhodan tinha certeza de que era exatamente o que acontecia com o espírito de casta dos
twonosers.
Storkeet parecia impaciente. Só guardou a arma quando um veículo saiu da estrada
que vinha do outro lado do pavilhão. O veículo movimentava-se sobre vários rolos. A
parte superior era abobadada e opaca. Havia um tromba branca mais ou menos no centro
da abóbada. As duas trombas do mesmo seguravam vários controles.
— Vamos — disse Storkeet.
O carro parou perto dos dois. A cúpula foi levantada, e uma espécie de passadiço
saiu do veículo. Rhodan viu cinco poltronas no interior do mesmo. Eram semelhantes às
do trem intercastas.
Rhodan sentou ao lado do motorista sem que ninguém o convidasse. O tromba
branca fez como se não tivesse notado. Storkeet também entrou e fechou a abóbada.
— Vamos! — disse a voz de Storkeet, reproduzida pelo alto-falante da tradutora.
O motorista mexeu em alguns comandos, sem olhar para os instrumentos. O veículo
dirigiu-se silenciosamente ao centro da estrada. Storkeet recostou-se na poltrona. Na
opinião de Rhodan, a velocidade do carro não ultrapassou os 150 quilômetros por hora.
De vez em quando se encontravam com algum veículo, mas nem por isso o motorista foi
obrigado a reduzir a velocidade.
A estrada passava perto de fazendas de criação e depósitos. Rhodan viu poucas
construções exclusivamente residenciais. Geralmente os twonosers davam preferência às
construções abobadadas. Os grandes depósitos eram os únicos edifícios que tinham a
forma de galpões alongados de telhado baixo.
Rhodan viu alguns grupos de trombas brancas que se dedicavam a algum tipo de
trabalho. Os twonosers da casta A pareciam mais trabalhadores que os trombas azuis e os
trombas vermelhas. Parecia que o alimento para os nove milhões de twonosers era
produzido exclusivamente no pavimento abdominal. Rhodan tinha certeza de que havia
inúmeros pavilhões grandes destinados exclusivamente às plantações e às fazendas de
criação.
Levaram pouco tempo para sair do centro da área em que ficavam as fazendas.
Extensos campos de cultura estendiam-se de ambos os lados da estrada. O aspecto da
paisagem não mudava. O sol artificial derramava sua luz de maneira uniforme e fazia
com que a temperatura fosse mantida constante. Os twonosers haviam fixado gigantescos
radiadores no teto de cada pavilhão, radiadores estes que desempenhavam as mesmas
funções que um sol natural. Nas áreas periféricas havia eclusas e comportas que isolavam
o moby do espaço cósmico, fazendo com que as condições reinantes em seu interior
fossem praticamente as mesmas de um planeta.
Devia haver um gigantesco centro gerador no interior do gigante. Era possível que
só os trombas vermelhas tivessem acesso ao mesmo, o que explicaria o poder da casta C.
A estrada foi ter a uma das numerosas aberturas das artérias do moby. O motorista
fez o carro entrar no túnel natural sem reduzir a velocidade. Quatro holofotes potentes
acenderam-se, iluminando a área. As reentrâncias e outras irregularidades que havia no
interior da artéria tinham sido preenchidas com uma substância transparente, de forma
que mesmo ali o chão era completamente plano.
Rhodan ficou observando Storkeet. Esperava que o twonoser já se tivesse acalmado.
Resolveu fazer uma pergunta.
— Storkeet! — disse.
As duas trombas do twonoser tremeram levemente. O olho rígido estava voltado
para a estrada.
— O que deseja? — resmungou Storkeet.
— Quando poderei voltar para junto dos meus homens? — perguntou Rhodan.
— Não sei — respondeu Storkeet, contrariado. — Talvez tenha de ficar para sempre
perto de Garko o Forte. Ele mantém uma criação de seres estranhos como passatempo.
— O que quer dizer com isso?
Storkeet girou ligeiramente a poltrona e olhou para Rhodan. Este nunca tinha visto
um órgão de visão tão estranho como o dos twonosers. Tinha doze centímetros de
diâmetro e era incapaz de fazer qualquer movimento. Parecia um tumor.
— Depende do que Garko o Forte resolver. Talvez dê ordem para que os
prisioneiros sejam levados às fazendas de criação e distribuídos entre os bioparasitas.
Mas acho mais provável que o senhor e seus companheiros sejam transformados em
trabalhadores. Estamos perto da colheita.
Storkeet apontou a tromba cautelosamente para o motorista, dando a entender que
havia coisas sobre as quais não queria falar na presença do mesmo.
Dali a pouco saíram do túnel. Conforme Rhodan esperara, o pavilhão no qual
entravam também possuía campos extensos e várias fazendas de criação. Storkeet
entregou uma tradutora a Rhodan.
— O senhor precisará disso para falar com Garko o Forte — disse.
O motorista dobrou para a esquerda assim que o veículo saiu do túnel e permaneceu
junto à parede do pavilhão.
Dali a mais alguns minutos chegaram a uma barreira, guarnecida por oito soldados
trombas brancas. Os twonosers mandaram que o carro parasse. Storkeet resmungou
alguma coisa e reclamou em altas vozes com o motorista.
Storkeet conversou com os soldados e o veículo prosseguiu.
— Garko o Forte mandou colocar guardas em toda parte — disse Storkeet,
dirigindo-se ao terrano. — Os criminosos domésticos têm sido bastante ativos nos
últimos tempos.
— Não vejo nenhum edifício grande — disse Rhodan. — O chefe dos trombas
brancas vive numa casa igual a qualquer outra?
— Não — limitou-se Storkeet a responder.
O veículo teve de parar mais uma vez. Os três ocupantes foram obrigados a descer.
Storkeet deu ordem para que o motorista parasse.
— Venha! — disse Storkeet, dirigindo-se a Rhodan, sem preocupar-se com os
soldados.
Rhodan e seu acompanhante tiveram de atravessar uma fileira de trombas brancas
armados, impedindo Rhodan de ver o estranho edifício. A entrada da sede do governo de
Garko o Forte era formada por um enorme portal. Rhodan viu à sua frente um hall
iluminado, enfeitado por inúmeras flores.
Storkeet parou junto à entrada e fez uma mesura. Rhodan teve a impressão de que
alguém o estava observando.
— O senhor terá de continuar sozinho — disse Storkeet.
Rhodan examinou rapidamente o hall. Não viu um único twonoser.
— Vai esperar por mim no carro? — perguntou, dirigindo-se a Storkeet.
— Depende de Garko — respondeu Storkeet.
Virou-se e saiu andando. Rhodan olhou para os soldados. Os mesmos não lhe
davam atenção, mas Rhodan tinha certeza de que seria detido se tentasse seguir Storkeet.
Rhodan entrou no hall. A temperatura no interior do mesmo era alguns graus mais
baixa que a temperatura exterior. O chão estava revestido com placas de pedra
esculpidas. Eram quase todas de cores diferentes. Havia uma panela prateada cheia de
flores vermelhas no centro do hall, sobre um pedestal semicircular. Havia corredores
ladeados por colunas junto às paredes. Estes corredores ficavam em nível um pouco mais
baixo que o corredor central. Rhodan absorveu estes dados em pouco tempo e procurou
formar uma imagem sobre o habitante do edifício.
Havia uma pequena porta arqueada pela qual se saía do hall, penetrando nas outras
peças do edifício. Rhodan forçou-se a andar mais depressa. Quanto mais cedo chegasse
perto de Garko o Forte, menos demoraria para conhecer os planos do tromba branca.
Quando Rhodan já tinha atravessado quase todo o hall, um twonoser apareceu à sua
frente, junto à passagem que dava para a outra sala. Era baixo mas robusto e tinha ombros
largos. Não trazia nenhuma arma. Suas trombas eram brancas.
Rhodan parou, esperando que o twonoser lhe dirigisse a palavra. Acreditava que
fosse um serviçal.
O twonoser aproximou-se. Não tirava os olhos dele.
Carregava uma tradutora, presa a um cinto colocado sobre o ombro direito.
Parou à frente de Rhodan e andou lentamente em torno dele.
— Realmente; não tem tromba — disse a voz do twonoser. O alto-falante da
tradutora que Rhodan recebera de Storkeet no interior do veículo não reproduzia
corretamente o tom grave da voz.
— O senhor é Garko o Forte — constatou Rhodan em tom indiferente.
— Naturalmente — confirmou o tromba branca. — O senhor acha que se eu não
fosse estaria aqui?
— O senhor não está armado — disse Rhodan. — Se quisesse, poderia atacá-lo.
Garko o Forte grasnou; talvez fosse uma risada. Balançava as trombas de tão alegre
que estava.
— O senhor veio de uma galáxia estranha, viajando numa espaçonave — disse. —
Por que iria arriscar a vida justamente agora, num ataque insensato à minha pessoa.
— Nossa conversa é bastante esquisita, se considerarmos que sou seu prisioneiro e é
a primeira vez que o senhor me vê — disse Rhodan.
Garko o Forte fez um sinal.
— Acompanhe-me — disse.
Não parecia uma ordem. O twonoser não parecia mesmo arrogante, só demonstrava
uma grande autoconfiança.
Rhodan imaginava que o destino dos tripulantes da Crest dependeria do encontro
que estava tendo com o tromba branca. Garko o Forte parecia ser um homem que
apreciava as decisões rápidas.
Poderia decidir bem depressa que os terranos continuariam vivos, mas era possível
que decidisse com a mesma rapidez que deveriam morrer.
***
Lorde Kendall Baynes acordou do cochilo quando alguém lhe deu uma forte
pancada no peito. Abriu os olhos. Melbar Kasom estava inclinado sobre ele. A comida
que lhe fora dada pelo tromba branca fizera muito bem a Baynes e o deixara sonolento.
Baynes apoiou-se nos cotovelos.
— Os twonosers tiraram trinta homens daqui enquanto o senhor estava dormindo.
Baynes assustou-se.
— Eles foram... — principiou em tom exaltado.
Kasom sacudiu fortemente a cabeça.
— Acho que foram destacados para algum trabalho. É possível que precisem de
mais trabalhadores.
Baynes olhou para o ertrusiano como quem não compreende nada. Por que Kasom
estava falando tão baixo? Atlan e os gêmeos Woolver eram os únicos que estavam por
perto.
— Quando os twonosers entrarem para escolher mais homens, faça com que
estejamos entre os escolhidos — prosseguiu Kasom.
— O que pretende fazer? — perguntou Baynes.
Kasom sorriu.
— Tolot está lá fora, esperando apoio.
Baynes olhou em tomo. Não parecia muito seguro de si.
— Rhodan ainda não voltou — disse. — E parece que Atlan não tem conhecimento
dos seus planos, major.
Kasom apertou-o com uma das mãos, obrigando-o a deitar de novo.
— Não sabia que o senhor tem medo.
— Medo? — perguntou Baynes em tom exaltado. — Diga o que tem em mente.
— Tinha sido combinado que eu seria o próximo a fugir — disse Kasom. — É claro
que seria melhor que Rhodan estivesse aqui. Mas temos uma boa chance. O senhor deve
fazer com que haja um tumulto junto à porta quando vierem buscar os outros prisioneiros.
Aproveitarei a oportunidade para fugir.
— O senhor será morto — disse Baynes, desconfiado.
— Pode ser — resmungou Kasom com a voz apagada. — Mas antes isso do que
viver o resto dos meus dias comendo sopa de bioparasitas.
Baynes deu uma risada.
— De acordo, major — disse.
Sentia-se orgulhoso porque Kasom escolhera justamente a ele para cuidar disso. O
ertrusiano voltou ao seu lugar sem dizer mais uma palavra. Baynes pôs-se a refletir sobre
como deveria agir.
Antes que elaborasse seu plano, a porta abriu-se repentinamente. Dois trombas
brancas postaram-se de cada lado da entrada. Outros três twonosers foram para onde
estavam os prisioneiros.
Baynes olhou para Kasom e viu o mesmo dar-lhe um sinal discreto. Os três trombas
brancas já tinham escolhido algumas pessoas. Desta vez só queriam dez prisioneiros.
Quando o grupo passou perto de Baynes, este se levantou e acompanhou o mesmo. Os
twonosers não fizeram nenhuma objeção. Não pareciam importar-se em levar mais um
homem.
Antes de chegar à porta, Baynes conseguiu colocar-se atrás do astronauta que
caminhava na frente. Quando ia passando pela porta, fez o homem que caminhava à sua
frente tropeçar sobre sua perna e deu-lhe um forte empurrão. O ataque inesperado fez
com que o prisioneiro perdesse o equilíbrio. Bateu em um dos quatro guardas postados
junto à porta. Baynes virou-se abruptamente e atirou-se sobre o homem que estava atrás
dele.
Os guardas berravam ordens e agitavam suas armas. Os homens tentaram segurar
Baynes, mas este escondeu a cabeça entre os braços e conseguiu libertar-se.
De repente sentiu a pressão de um objeto duro nas costas.
— Pare! — berrou uma voz transmitida pela tradutora.
Dois guardas tinham chegado perto dele e o ameaçavam com as armas. Baynes
levantou os braços. Olhou para o lugar em que Kasom estivera pouco antes. O ertrusiano
tinha desaparecido. Provavelmente aproveitara o incidente para fugir.
— O senhor fica aqui! — decidiu um dos trombas brancas.
Baynes baixou a cabeça e foi voltando devagar. Atlan olhou para ele.
— Quem lhe deu ordem para provocar este incidente, Baynes? — perguntou o
arcônida.
— Foi o Major Kasom, senhor — respondeu Baynes, nervoso.
— Sabe que com isso pôs em perigo a vida de alguns dos nossos homens, sargento?
— Inclusive a minha, senhor — observou Baynes.
— De qualquer maneira já temos dois combatentes de primeira fora do campo de
prisioneiros — disse Rakal Woolver. — Tronar e eu detectamos numerosos fluxos de
energia que levam para fora. Podemos sair a qualquer momento e entrar em contato com
Tolot ou Kasom.
— Isto se Kasom não for preso de novo — objetou John Marshall.
— De qualquer maneira, não faremos mais nada enquanto Perry não voltar —
decidiu Atlan.
Baynes deixou-se cair no chão. Não tinha muita esperança na atuação de Tolot e do
ertrusiano. O que poderiam conseguir os mesmos no interior do gigantesco moby?
***
No momento Melbar Kasom não pensava tanto em como contribuir para a
libertação dos prisioneiros, pois estava preocupado principalmente com a possibilidade
de voltar a ser preso logo depois de sair do acampamento dos prisioneiros. Não tinha
certeza sobre se a fuga fora descoberta. Atravessara a porta no momento em que os
guardas dedicavam sua atenção a Baynes, que se mostrava enfurecido.
Sentiu-se aliviado ao notar que não havia guardas do lado de fora. Quando chegara,
Kasom tentara formar uma imagem precisa do lugar. O mais importante era evitar a
estrada principal, que passava junto ao edifício em cujo interior estavam guardados os
prisioneiros.
Saiu correndo rente ao edifício e chegou aos fundos do mesmo, onde pôde arriscar a
primeira pausa. A uns duzentos metros do lugar em que se encontrava começavam os
campos cultivados com plantas de porte alto. Mas para chegar lá teria de atravessar uma
área completamente livre.
Felizmente o edifício no qual tinham sido colocados os prisioneiros era tão alto que
quem se encontrasse nas casas vizinhas não poderia ver Kasom. O tráfego na estrada era
pouco intenso, mas em toda parte se viam pequenos grupos de trabalhadores twonosers.
Kasom constatou que não fazia muito tempo que o campo cultivado chegava até o
edifício. Por algum motivo que ele não conhecia os trombas, brancas limparam o terreno
e começavam a aplainar o chão.
Kasom teve a impressão de que a povoação era limpa, mas em comparação com as
cidades dos pavimentes superior e médio parecia rudimentar. Havia poucos veículos. Em
sua maioria eram utilizados no trabalho. Kasom começou a desconfiar que os membros
das duas classes mais elevadas só usavam a casta A no trabalho. Mas no momento não
podia refletir sobre os problemas sociológicos. O importante era que as armas dos
trombas brancas não eram menos perigosas que as de seus semelhantes das classes
nobres.
Kasom gostaria que no interior do gigantesco pavilhão não fosse tão claro. Ouviu
barulho vindo da frente do edifício. Olhou pelo canto do mesmo e viu os dez prisioneiros
sendo levados. Baynes não estava com eles. Preferia mesmo que este ficasse na
segurança relativa do edifício. O jovem parecia ser um tipo descontrolado. Um novo
incidente só contribuiria para chamar ainda mais a atenção dos twonosers.
Kasom observou os grupos de trabalhadores twonosers que talvez poderiam vê-lo
quando atravessasse a área livre. Os trombas brancas estavam concentrados
exclusivamente no trabalho, mas Kasom não se iludiu. Era bem provável que um deles
levantasse os olhos justamente no instante em que saísse correndo.
Um ronco leve de motor fez com que Kasom olhasse para a estrada. Um grande
veículo de carga estava dobrando para o lado em que ficavam os campos. Atravessaria a
área livre, que no momento era o único obstáculo que Kasom tinha de superar. Acontece
que estava muito distante; Kasom não poderia atingi-lo para proteger-se atrás dele.
O especialista da USO viu o carro passar a cem metros do edifício. Mas de repente
aconteceu uma coisa que ele não esperava. Os twonosers abandonaram o trabalho e
seguiram o veículo. Kasom não perdeu tempo. Lançou um olhar rápido para os lados e
viu que a oportunidade era favorável. Afastou-se da parede que evitara que pudesse ser
visto pelos trombas brancas.
***
O recinto era iluminado por três esferas luminosas suspensas embaixo do teto.
Havia trepadeiras nas paredes. O chão estava coberto por grossas esteiras, que abafaram o
ruído dos passos de Rhodan. Garko o Forte se acomodara numa espécie de rede e
balançava a mesma de um lado para outro. O recinto se parecia antes com uma cabana na
selva que com uma sala do palácio.
— Esta é por assim dizer a sala mais íntima que possuo — disse o tromba branca,
dando a impressão de que acabara de ler os pensamentos de Rhodan. — Aqui ninguém se
atreve a incomodar-me.
Rhodan aumentou o volume da tradutora, já que Garko o Forte estava falando em
voz baixa. O twonoser apontou para outra rede, pendurada num canto diferente. Rhodan
acomodou-se na mesma.
— O cargo que ocupo exige muita diplomacia — disse o tromba branca, depois que
os dois se tinham entreolhado por algum tempo em silêncio. — Enquanto produzirmos
bastante para alimentar todos os twonosers que vivem no interior do moby, não causamos
nenhum problema às duas castas superiores. Dessa forma posso ocupar-me com outros
problemas.
— Notei que as relações entre sua casta e os twonosers pertencentes as classes mais
elevadas são bastante tensas — observou Rhodan. Queria descobrir até onde chegava o
ressentimento deste homem contra a casta C.
— Atacaríamos imediatamente os trombas vermelhas, se não fosse o poderoso
exército da casta B — respondeu Garko o Forte. — Para nós o pavimento intermediário é
um obstáculo insuperável. Seriamos detidos no interior do sistema arterial.
— Quer dizer que estão conformados? — perguntou Rhodan. O twonoser fez um
gesto ligeiro com a tromba.
— Estou esperando uma oportunidade — disse. — Os criminosos domésticos estão
organizando uma tropa parasitária móvel nas artérias mais afastadas do moby. Será um
exército pequeno, capaz de causar problemas aos soldados.
— Mas o senhor não pode esperar que os parasitas possam debilitar as castas
superiores o suficiente para que seus trombas brancas estejam em condições de partir
para o ataque — objetou Rhodan.
— Um dia — afirmou Garko o Forte — teremos nosso próprio depósito de energia.
Aí seremos mais independentes. Deixaremos de fornecer alimento aos trombas vermelhas
e azuis. Mas o momento em que isso vai acontecer ainda está muito distante.
Rhodan levantou e dirigiu-se ao centro da sala.
— Somos dois mil homens experimentados no combate — disse. — Conforme as
condições, poderíamos estar dispostos a fazer uma aliança com os trombas brancas,
abrindo caminho para o pavimento superior.
Garko o Forte usou os pés para frear o movimento da rede.
— Querem voltar para sua nave? — perguntou.
— Queremos — respondeu Rhodan.
O twonoser ficou muito pensativo. Rhodan observou-o ansiosamente. Se contassem
com o apoio dos trombas brancas, talvez conseguissem chegar à Crest II.
— Impossível — disse Garko o Forte depois de algum tempo.
Rhodan esforçou-se para não mostrar o desapontamento que estas palavras lhe
causaram.
— O que vão fazer conosco? Pretendem colocar-nos nas câmaras de criação dos
bioparasitas?
— Não — respondeu o twonoser. — O senhor e seus homens trabalharão aqui
embaixo. Se houver uma possibilidade, criaremos condições de vida mais ou menos
suportáveis para os senhores.
Rhodan resolveu fazer mais uma tentativa.
— Permita que avancemos sozinhos para o pavimento superior — insistiu. —
Mande abrir as portas do acampamento dos prisioneiros.
— Não — respondeu o tromba branca. — Os chefes das castas superiores logo
perceberiam. Seríamos castigados por isso.
— Não somos prisioneiros muito agradáveis — advertiu Rhodan.
— Ouvi dizer que um dos seus homens fugiu antes de chegar ao acampamento —
disse Garko o Forte. — Ainda não conseguimos encontrá-lo. Por isso sei com quem estou
lidando. Mesmo que consiga libertar cem dos seus homens, isso não mudará nada. Nunca
conseguirão chegar à espaçonave.
— Pense mais um pouco sobre a sugestão que acabo de fazer — pediu Rhodan.
— Não é necessário. Não tente fugir, pois isso só pioraria sua situação — Garko o
Forte ergueu-se da rede. — Pode voltar para junto dos seus homens. Storkeet o levará de
volta ao acampamento. É o comandante da guarda. Se tiver um assunto importante a
tratar, dirija-se a ele.
Rhodan compreendeu que a breve audiência tinha chegado ao fim. Viveriam, mas
Garko o Forte não estava disposto a celebrar uma aliança com eles ou facilitar sua fuga.
Rhodan compreendia sua atitude. Havia uma força praticamente invencível no pavimento
intermediário do moby.
“De qualquer maneira temos de abrir passagem entre os trombas azuis”, pensou
quando estava saindo do edifício atrás do twonoser.
6

Pelos cálculos do sargento Kendall Baynes, já devia fazer três dias terranos que
Melbar Kasom tinha fugido.
Perry Rhodan voltara ao acampamento algumas horas depois da fuga bem-sucedida
de Kasom. Trouxera uma tradutora, além da notícia de que o chefe dos trombas brancas
nem pensava em celebrar uma aliança com os dois mil prisioneiros.
Dali em diante os gêmeos Woolver passaram a introduzir-se em todos os circuitos
energéticos para fazer um discreto reconhecimento da área. Levaram um dia para
descobrir o halutense, e dali a mais algumas horas Tronar Woolver encontrou o ertrusiano
Melbar Kasom. Icho Tolot tinha encontrado o melhor esconderijo: abrigara-se numa
artéria pequena do moby. Tronar Woolver informara Kasom, e o especialista da USO
dirigira-se imediatamente ao mesmo lugar em que estava Tolot.
Tolot e Kasom esperaram que Perry Rhodan conseguisse fugir com mais alguns
homens. Os twonosers não se deram ao trabalho de fazer a contagem dos prisioneiros, e
dessa forma provavelmente nem notariam a falta de uns cinqüenta homens.
Depois que Rhodan regressou da visita que fizera a Garko o Forte, um número cada
vez maior de terranos foi levado para trabalhar nas fazendas de criação dos bioparasitas.
Às vezes não havia mais de mil homens no acampamento. Baynes chegou a trabalhar por
algumas horas. Sentiu-se aliviado por não ter entrado em contato com nenhum
bioparasita.
Pouco depois de ter voltado ao acampamento, Rhodan foi procurado por Storkeet, o
comandante da guarda, que condecorou Perry Rhodan por ordem de Garko o Forte.
Tratava-se de uma tromba de plástico, que Storkeet prendeu ao peito de Rhodan,
provocando a risada dos prisioneiros que se encontravam presentes. Com isso, segundo
explicou Storkeet, Rhodan foi promovido à condição de portador da primeira tromba.
***
Baynes já estava acostumado ao aspecto de um sprinter. Por isso nem virou a
cabeça quando Rakal Woolver materializou repentinamente junto a uma tomada, perto da
porta, e saiu andando para onde estava Rhodan. Tronar Woolver materializara instantes
antes. Os dois mutantes mantinham o contato com o esconderijo de Tolot e Kasom.
— Tolot foi dar uma olhada no pavimento superior, senhor — principiou Rakal
Woolver. — As notícias que trouxe não são boas. Um grupo formado por cerca de trinta
trombas azuis se dirige à área habitada pela casta A. Tolot acredita que este grupo passará
a vigiar os prisioneiros. Parece que a casta C não confia nos trombas brancas.
— Tolot sabe dizer quando mais ou menos deverão chegar os soldados? —
perguntou Rhodan.
— Eles têm de parar muitas vezes para discutir com trombas brancas zangados, que
parecem não querer conformar-se com a idéia de que os membros da casta B interfiram
nos assuntos da casta A. Na opinião de Tolot, o senhor ainda dispõe de algumas horas
para tentar a fuga. Acha conveniente levar os quatro criminosos domésticos, já que os
mesmos conhecem a área e poderão fornecer informações valiosas.
— Kasom sugere que o incidente que possibilitou sua fuga seja repetido em estilo
maior — disse Rakal Woolver. — Algumas centenas de homens deverão encenar uma
revolta. A confusão deverá possibilitar a fuga de um pequeno grupo.
— Deve ser nossa única chance — confirmou Rhodan. — Vou falar com os
criminosos domésticos.
Pegou a tradutora e dirigiu-se aos quatro trombas brancas que tinham sido trazidos
ao acampamento juntamente com os terranos. Baynes tinha suas dúvidas de que os
twonosers se dispusessem a conversar, mas Rhodan não demorou a voltar e acenou com a
cabeça. Parecia satisfeito.
— Eles concordam — disse. — Acabariam fugindo de qualquer maneira. Em
pagamento do auxílio que nos prestarão, querem que os levemos à povoação clandestina
dos criminosos domésticos.
— Não estou gostando — disse Atlan. — O que adianta irmos de um campo de
prisioneiros para outro?
— Não acredito que tenhamos algo a temer dos criminosos domésticos — disse
Rhodan. — Acho que poderão ajudar-nos a chegar à Crest.
Baynes perguntou-se por que Rhodan tinha tanta certeza de que o plano daria certo.
Sabiam pouco a respeito dos twonosers para poderem confiar neles. Assim mesmo o
sargento fazia votos de que pudesse fazer parte do grupo que tentaria a fuga. Não
poderiam deixar de assumir este risco. À medida que o tempo passava, as chances de
chegarem à Crest II e encontrarem a mesma em condições de vôo seriam cada vez mais
reduzidas. Os cientistas da casta C certamente fariam experiências com a nave.
Além disso o alimento fornecido pelos trombas brancas não estava fazendo bem aos
prisioneiros. As refeições eram fartas, mas muitos homens se queixaram de reações
alérgicas, vômitos ou um mal-estar generalizado. Baynes não estava sentindo nada, pois
estava acostumado desde os primeiros anos de vida a receber uma alimentação
inadequada.
Além disso o estado psíquico dos astronautas não era bom. A inatividade
prolongada no acampamento os deixava deprimidos e irritadiços. As brigas eram cada
vez mais freqüentes. Às vezes os oficiais tinham de recorrer à força para pôr fim às
mesmas.
Baynes entrara em contato duas vezes com o sargento Kapitanski, que se alojara
juntamente com os homens do convés F na outra extremidade do recinto enorme.
Kapitanski não se mostrara muito loquaz; até parecia um pouco desconfiado.
— Você passou à classe dos homens importantes, Lorde — dissera.
— Bobagem — respondera Baynes. Isso só contribuíra para aumentar a
desconfiança de Kapitanski, pois o mesmo estava acostumado a ver Baynes aproveitar
qualquer oportunidade para promover a própria pessoa.
— Você pertence ao convés F — resmungara Kapitanski.
Baynes se aborrecera.
— Quero aprender, sargento! — falava tão alto que chegara a provocar a atenção
dos outros. — Vou aproveitar qualquer oportunidade para isso.
— Pois volte à sua escola, Lorde — respondera Kapitanski.
Baynes se retirara. Dali a algumas horas voltou a procurar o sargento, mas o mesmo
fingiu que estava dormindo.
“Patife de pé chato”, pensou Baynes, amargurado.
Voltou a prestar atenção a Perry Rhodan, que conversava com os gêmeos Woolver
sobre a distância entre o campo de prisioneiros e o esconderijo de Tolot.
— A artéria pequena fica a uns cinqüenta quilômetros daqui — informou Rakal
Woolver. Tronar confirmou com um gesto. Baynes só conseguia distinguir os dois
sprinters pelas letras pintadas em seu uniforme. A semelhança física entre os dois era
perfeita. Baynes se lembrou de que essa semelhança ajudara os terranos a abafar a
invasão dos maahks no nascedouro.
— Para Icho Tolot a distância não é muito grande — disse Atlan. — Kasom
também se locomove mais depressa que um terrano normal. Nós levaríamos pelo menos
seis ou sete horas para chegar lá.
— Sei o que quer dizer, arcônida — disse Rhodan com um sorriso. — Quanto mais
tempo levarmos para atingir a veia em cujo interior fica o esconderijo, maior será o
perigo de sermos perseguidos ou descobertos.
Atlan ergueu a mão.
— É claro que meu voto é a favor da tentativa de fuga — disse em tom enfático.
— Storkeet acaba de ser informado de que seu grupo será substituído por um
contingente de soldados trombas azuis — observou John Marshall. Rhodan dera ordem
para que o telepata vigiasse regularmente os pensamentos do comandante twonoser.
— Quer dizer que a suspeita de Tolot tem fundamento — constatou Rhodan. —
Qual será a reação de Storkeet diante da substituição?
— Está zangado — informou Marshall. — Mas não oferecerá nenhuma resistência.
Garko o Forte já deu ordens neste sentido. E Storkeet obedecerá às mesmas.
— Quer dizer que está na hora — disse Rhodan.
Foi ao centro do pavilhão. Os prisioneiros ergueram-se nos leitos, numa atitude de
expectativa.
— Todos sabem onde nos encontramos no momento — principiou Rhodan. — Os
oficiais informaram todos os tripulantes. Quer dizer que os senhores sabem que
precisamos chegar à Crest, antes que chegue o momento em que não teremos mais a
menor possibilidade de escapar de dentro do moby. É impossível abrir caminho à força
com todo o grupo, pois não temos armas e seríamos caçados impiedosamente. Por isso
vamos tentar sair às escondidas com um grupo menor e alcançar a Crest. Vamos
apresentar um espetáculo aos twonosers, antes que os soldados trombas azuis cheguem
aqui. A um sinal meu todos os homens que se encontram nos fundos desta sala encenarão
uma revolta barulhenta. Dirão que pretendem destituir-me para nomear outro
comandante. É de esperar que os twonosers procurem ajudar o portador da primeira
tromba... — Rhodan sorriu e bateu no distintivo de plástico que trazia no peito. — Os
“rebeldes” farão o possível para manter ocupados os guardas postados junto à porta por
alguns minutos, permitindo que cinqüenta dos nossos fujam.
Os tripulantes da Crest concordaram imediatamente. Baynes percebeu que só
aguardavam a oportunidade de fazer alguma coisa capaz de mudar a situação em que se
encontravam.
— Se conseguirmos chegar à nave-capitânia, encontraremos um meio de libertar
todo mundo — prosseguiu Rhodan. — Mas se formos presos antes de chegar lá... —
Rhodan fez um gesto indefinido e deixou por conta de cada um imaginar as
conseqüências.
O Administrador-Geral voltou para junto dos oficiais. Escolheu cinqüenta homens
que tentariam fugir do acampamento. Quase todos os oficiais tinham de ficar. John
Marshall também não sairia. Era importante que mantivesse os outros prisioneiros
informados sobre os planos dos twonosers. Dessa forma os que ficassem poderiam
preparar uma saída forçada, se os trombas brancas por acaso mudassem de opinião e
resolvessem matar os prisioneiros.
Os gêmeos Woolver participariam da fuga. Seriam indispensáveis, pois
estabeleceriam a ligação entre os diversos grupos.
Kendall Baynes foi um dos cinqüenta escolhidos.
***
O ruído repetia-se a intervalos regulares e Kasom estremecia toda vez que ouvia o
mesmo. Tinha-se a impressão de que uma avalanche de pedras estava desabando bem ao
longe.
— Gostaria de saber o que é isso — disse o ertrusiano, dirigindo-se a Tolot. — Será
que por aqui existem máquinas instaladas numa caverna?
Estavam parados lado a lado junto à entrada meio obstruída da pequena artéria e
olhavam para o vale do qual tinham fugido.
— Já sei de onde vem este ruído — respondeu Tolot.
— Há uma artéria principal lá adiante, que é usada como túnel. Toda vez que passa
um trem, quem se encontra aqui embaixo ouve.
— O senhor tem razão — disse Kasom. — Acho que esta artéria vai terminar num
túnel. Se as paredes não tivessem desabado em alguns lugares, poderíamos penetrar
melhor no moby.
Lá embaixo viam-se os edifícios e os campos da povoação twonoser. A distância
era muito grande para que se distinguissem os seres que viviam lá. A uns três quilômetros
do lugar em que se encontravam havia uma pequena estação conversora. Era onde os
gêmeos Woolver materializavam toda vez que se dirigiam ao esconderijo. Não havia
nenhum caminho que levasse à artéria do moby. Tolot descobrira outros espaços ocos que
não estavam sendo usados, mas a situação daquele em cujo interior se encontravam era
mais favorável. Viam todo o vale. Um eventual perseguidor seria visto muito antes de
chegar lá.
— Ali vem um dos imartenses — disse Tolot.
Kasom olhou para a estação conversora. Tratava-se de um edifício pequeno,
construído com blocos de quartzo iguais aos que estavam espalhados por toda a área. O
ertrusiano viu o mutante passar rapidamente por cima dos blocos de pedra.
— Parece que traz uma notícia importante — observou Tolot.
— É Rakal Woolver — disse Kasom, que vira o R no uniforme do mutante.
Woolver fez um sinal para eles. Levou meia hora para chegar à artéria. Sua
respiração era tranqüila. Nada indicava que o esforço que acabara de fazer o tivesse
deixado cansado. Para os pulmões enormes encerrados em seu peito de tonel a carga
adicional não representava quase nada.
Woolver tirou do cinto dois “grãos de milho” twonosers e entregou-os a Kasom.
— Pensei que talvez não encontrassem muita coisa para comer aqui em cima —
disse com um sorriso.
Kasom pesou os grãos na mão, com uma expressão triunfante no rosto. Mostrou-os
a Tolot.
— Está vendo como funciona a colaboração na USO? — perguntou.
Tolot continuou com o rosto sério.
— Por que foi mandado para cá? — perguntou, dirigindo-se a Woolver.
— Marshall descobriu que os trombas azuis realmente foram enviados para
substituir nossos guardas — disse Rakal Woolver. — Rhodan quer fugir com cinqüenta
homens antes que cheguem os soldados. Pretende vir para cá — virou a cabeça e lançou
um olhar para o vale. — Acho que a fuga já aconteceu — disse.
— O senhor fica aqui? — perguntou Kasom.
O mutante acenou com a cabeça.
— Meu irmão e os quatro criminosos domésticos servirão de guias aos fugitivos.
Ficarei à sua espera num lugar que fica abaixo da estação de comando.
Kasom mordeu um dos grãos. Mastigou com grande gulodice. Woolver franziu o
nariz.
— Nunca me acostumarei a essa comida — disse. — Mais alguns homens
adoeceram. Os médicos acham que é por causa da alimentação à qual não estão
habituados. Infelizmente quase não dispomos de medicamentos.
Kasom acariciou a barriga.
— Também sou de opinião que a comida poderia ser melhor — disse, falando com
a boca cheia. — Mas neste ponto me pareço com Tolot — lançou um olhar triste para os
blocos de quartzo que cobriam o chão. — Mas ainda não sou capaz de me alimentar com
pedras.
— Ainda bem — escarneceu o halutense. — Se fosse, o senhor já teria aberto um
buraco no moby e os twonosers nos veriam...
— Não costumo roer as coisas — resmungou Kasom e cuspiu um caroço junto aos
pés de Tolot. — Como.
— Gostaria que um dia o senhor explicasse qual é a diferença — pediu Tolot.
Woolver interrompeu a conversa dos dois homens tão diferentes um do outro.
— Tolot, talvez seria conveniente que o senhor também abandonasse o esconderijo
e aguardasse Rhodan lá embaixo. Poderia ajudá-lo, se necessário.
— Está bem — disse o halutense. — Suba nas minhas costas. Assim chegaremos
mais depressa.
— Ei! — exclamou Kasom. — Vocês querem deixar um velho sozinho nestas
montanhas selvagens?
Woolver deu uma risada e saltou para a nuca de Tolot. O halutense apoiou-se nos
braços de salto. Kasom viu os dois astronautas desaparecerem entre os blocos de quartzo.
Voltaram a aparecer alguns metros abaixo. Tolot, que era um homem muito pesado,
movimentava-se com a agilidade de uma gazela.
Kasom apoiou-se na parede da artéria, cuspiu alguns caroços e olhou para o vale
como quem espera alguma coisa.
***
O berreiro dos homens foi ensurdecedor. Setecentos astronautas puseram-se de pé e
avançaram para a parte da frente do pavilhão. Rhodan distribuía os homens escolhidos
para a fuga de ambos os lados da porta.
O próprio Rhodan encontrava-se junto à porta, com Baynes e Tronar Woolver a seu
lado.
O Administrador-Geral encostou a tradutora aos lábios.
— Storkeet! — gritou. — O senhor me ouve, Storkeet?
A primeira fileira dos “rebeldes” já estava lutando com os homens que Rhodan
escolhera como “defensores”.
— O que está acontecendo por aí? — perguntou uma voz quase imperceptível.
— É um motim! — gritou Rhodan. — Querem livrar-se de mim, porque não
concordei com um plano de fuga insensato.
A barulheira dos astronautas ficou mais forte, dando a impressão de que queriam
reforçar as palavras de Rhodan. Os homens que estavam mais na frente bateram com os
pés no chão. Um bolo de corpos entrelaçados surgiu junto à porta.
A encenação era tão perfeita que Baynes teve medo de que alguém saísse
machucado. Parecia que os terranos estavam descarregando a raiva reprimida. Baynes viu
um homem alto e corpulento sair cambaleante da multidão. Cobria o olho inchado com
uma das mãos.
A porta abriu-se repentinamente. Primeiro só se viu o cano de uma arma energética.
Finalmente Storkeet espiou para dentro da sala.
— Ajudem-nos! — pediu Rhodan, apontando para trás.
Storkeet gritou algumas ordens e entrou correndo, acompanhado por sete guardas.
Alguns tiros energéticos passaram chiando por cima das cabeças dos homens envolvidos
na luta.
Rhodan inclinou-se para a frente e olhou pela porta.
— Ainda há dois guardas do lado de fora — cochichou para Baynes.
— Temos de encontrar um meio de trazê-los para dentro — disse Tronar Woolver.
— Eu me encarrego disso — disse Baynes em tom resoluto. Saiu antes que alguém
pudesse segurá-lo. Fechou os olhos, pois esperava ouvir o chiado de uma arma energética
que daria cabo dele. Mas foi agarrado pelos braços e empurrado de volta para a entrada.
Os dois guardas empurraram-no para dentro do pavilhão. Baynes viu Storkeet e seus
guardas tanger os pretensos rebeldes para os fundos da sala.
Chegou a pensar que o plano tivesse fracassado, quando sentiu que a pressão
exercida sobre seus braços diminuía. Os dois twonosers que o tinham trazido para dentro
viram-se expostos ao ataque de alguns “amotinados” que tinham rompido as linhas
inimigas e viram-se obrigados a pegar suas armas.
Atlan deu um empurrão em Baynes, que saiu cambaleando.
— Corra! — gritou alguém atrás dele.
Baynes olhou para os lados. Não viu nenhum twonoser. Em compensação distinguiu
alguns homens da Crest II. Além de Perry Rhodan, que corria a passos largos para a parte
dos fundos do edifício.
“Conseguimos sair”, pensou Baynes, incrédulo.
Ouviu o berreiro dos prisioneiros, vindo do interior do acampamento. Storkeet
levaria mais algum tempo para restabelecer a calma.
Baynes nunca seria capaz de acreditar que cinqüenta pessoas pudessem fazer tanto
barulho. O ranger das botas, a respiração pesada, tudo parecia conspirar para atrair outros
guardas.
Finalmente viram-se na extremidade do edifício, não muito longe dos campos onde
encontrariam proteção.
— Twonosers! — exclamou um homem que se encontrava bem atrás de Baynes.
O sargento também os viu. Os trombas brancas estavam trabalhando na área livre,
mas o barulho que se fazia ouvir no acampamento os perturbara. Olhavam fixamente para
lá.
Baynes sentiu o coração bater mais forte. O que poderiam fazer?
— Por aqui não passaremos! — chiou Rhodan. — Vamos tentar do outro lado.
Do outro lado ficava a grande estrada. Baynes lembrava-se de que o tráfego não era
muito intenso, mas de vez em quando passava um veículo que poderia colocá-los em
perigo de serem descobertos.
Tronar Woolver também parecia lembrar-se disso.
— Por lá não conseguiremos passar — objetou o mutante. — Teríamos de caminhar
algumas centenas de metros pela povoação.
— Tem uma sugestão melhor? — perguntou Rhodan. O imartense baixou a cabeça.
As mãos de Baynes tremiam de tão nervoso que estava. A sensação de estar
completamente desarmado era horrível. Rhodan tomou uma decisão.
— Tentaremos cruzar a estrada.
Voltaram correndo pelo mesmo caminho pelo qual tinham vindo. Baynes viu que
Kapitanski fazia parte do grupo. Não sabia como, mas aquele homem baixo conseguira
atrair a atenção de Rhodan.
O barulho no interior do acampamento ainda não tinha diminuído. Baynes teve
esperança de que chegassem pelo menos até a estrada sem que os guardas os detivessem.
Rhodan foi o primeiro a chegar à extremidade do edifício. Comunicou por meio de
sinais que não havia nenhum twonoser por perto. Conseguiram chegar sãos e salvos ao
edifício mais próximo, onde ainda estavam mais ou menos protegidos, já que não
poderiam ser vistos nem do acampamento, nem da estrada.
— Baynes, fique de olho na estrada! — ordenou Rhodan.
— Sim senhor — Baynes saiu correndo. Ficou satisfeito por não ter de ficar parado
com o coração palpitante. Enquanto se mantivesse ocupado, não teria tempo para pensar
nos perigos que os cercavam.
Baynes contornou o edifício e olhou para a estrada. No momento não havia
ninguém na mesma, mas Baynes teve a impressão de que se tratava de um palco no qual
se fixavam milhares de pares de olhos. O trecho da estrada que pretendiam atravessar
podia ser visto de pelo menos dez edifícios diferentes. E quando chegassem do outro lado
ainda não estariam em segurança, pois havia outros edifícios. De repente Baynes teve a
impressão de que seus pés pesavam como chumbo. Sabia perfeitamente qual era a causa.
Tratava-se da manifestação exterior do medo, mas não podia fazer nada para impedi-la.
De repente ouviu um ruído. Virou abruptamente a cabeça. Era Atlan, o arcônida.
Atlan fez como se não tivesse notado o estado em que se encontrava o sargento,
embora Baynes receasse que o pânico que tomara conta dele era bem perceptível.
— Como estão as coisas, Lorde? — perguntou o arcônida.
Baynes engoliu em seco.
— Tudo abandonado, senhor — murmurou com a voz surda. — Mas a qualquer
momento pode aparecer um veículo atrás dessa fazenda — apontou para a fazenda à qual
se referia, onde a estrada desaparecia atrás dos edifícios. — Além disso — Baynes
respirava com dificuldade — além disso poderemos ser vistos de algumas casas.
— Um de nós tem de ir para o outro lado da estrada — disse Atlan em tom resoluto.
— De lá a gente vê um bom trecho da mesma.
— Permita que eu vá — disse Baynes.
— Atravessar estradas sempre foi uma das minhas especialidades — respondeu
Atlan.
Baynes quis formular uma objeção, mas Atlan logo saiu andando. O sargento ficara
vermelho ao ouvir as palavras do arcônida.
“Ele viu o que está acontecendo comigo”, pensou Kendall Baynes, desesperado.
“Não quis que eu fosse, porque acreditava que meus nervos não agüentariam.”
Viu o arcônida correr pela estrada com a manta esvoaçante. Era uma figura alta e
magra com cabelos brilhantes. Atlan logo chegou ao outro lado e encostou-se à parede da
casa mais próxima.
Fez um sinal para Baynes, pedindo que esperasse mais um pouco, até que tivessem
certeza de que ninguém vira Atlan.
O arcônida acenou com o braço.
Baynes correu de volta para onde estavam os outros.
— Atlan já atravessou a estrada — disse, dirigindo-se a Rhodan. — De lá ele tem
uma visão ampla e poderá avisar-nos se aparecer um veículo.
— Quer dizer que só poderemos atravessar a estrada um de cada vez — disse
Rhodan, tranqüilo. — Isso atrasará ainda mais nossa fuga. Tomara que Storkeet ainda não
tenha percebido o verdadeiro motivo da “revolta”.
Baynes entesou o corpo.
— Eu gostaria de ficar, senhor.
Rhodan franziu a testa.
— O senhor ficou louco, sargento?
— Não sou homem para isso, senhor — conseguiu dizer Baynes. — Fiquei parado
ali, acreditando que seria incapaz de andar.
— Mas andou — disse Rhodan.
— Foi só porque Atlan apareceu. Fiquei como que... paralisado. Uma coisa dessas
não pode acontecer, senhor.
Um homem baixo de ombros largos apareceu ao lado de Rhodan. Era o sargento
Kapitanski.
— Desculpe minha intromissão, senhor — disse. — Este sujeito só quer fazer-se
importante. É um fanfarrão. Não dê muita importância ao que ele diz.
Baynes ficou com os olhos semicerrados. Fez menção de investir contra Kapitanski,
mas Rhodan colocou-se entre os dois.
— Se continuarem a pôr em risco a fuga, os dois enfrentarão um tribunal de bordo
— disse o Administrador-Geral em tom penetrante. — Vamos logo! Não temos tempo a
perder.
Baynes gritou para o sargento.
— Seu patife de pé chato! Eu ainda o matarei por isso.
Kapitanski exibiu um sorriso matreiro e deu as costas ao seu interlocutor sem dizer
uma palavra. Acompanhou os outros, Baynes praguejou baixinho e também saiu correndo
em direção à estrada.
Baynes conseguiu chegar novamente perto de Rhodan.
— Queira desculpar o incidente, senhor — disse, falando entre os dentes.
— Todo mundo tem de passar por isso — disse Rhodan em tom amável.
Baynes passou a dedicar sua atenção ao que estava acontecendo do outro lado da
estrada. Viu Atlan agachado à sombra do edifício mais próximo. O arcônida fez sinal
para que esperassem. Dali a pouco viram um veículo ocupado por três twonosers, que
desapareceu numa estrada lateral.
Atlan levantou e fez um sinal.
Rhodan mandou que vinte homens saíssem correndo. Baynes cerrou os lábios
enquanto via os astronautas atravessarem a estrada. Chegaram do outro lado sãos e
salvos.
Atlan voltou a fazer um sinal.
— Vamos todos de uma vez — decidiu Rhodan.
Os terranos saíram correndo a um comando do Administrador-Geral.
Só ficou um: Lorde Kendall Baynes.
Ele teve seu motivo para isso.
***
Foi por um simples acaso que Baynes viu o tromba branca solitário. Quis sair
correndo, mas resolveu olhar para trás. Esteve a ponto de gritar uma advertência para
Rhodan, quando viu um twonoser parado na entrada do edifício mais próximo, olhando
fixamente para eles. O sargento engoliu no último instante as palavras que pretendia
proferir.
Esperou que os homens atingissem o outro lado da estrada e desaparecessem entre
os edifícios juntamente com Atlan. Baynes fazia votos de que demorassem um pouco
para dar pela sua falta.
Parecia que o tromba branca estava só. Baynes não pôde ver se possuía uma arma.
Por um instante os dois seres vindos de galáxias diferentes entreolharam-se sem
fazer nenhum movimento. De repente o twonoser empertigou o corpo e desapareceu no
interior da casa.
Daria o alarme, a não ser que alguém o impedisse. Baynes voltou a certificar-se de
que na estrada estava tudo em paz e saiu correndo em direção à entrada mergulhada na
escuridão. Sabia que não podia perder tempo. Deu um salto enorme pela porta. Sentiu
imediatamente o cheiro característico de carniça, encontrado em qualquer edifício
habitado pelos twonosers. Não foi atacado.
Assim mesmo continuou deitado rente ao chão e pôs-se a escutar. A única coisa que
ouviu foram as batidas de seu coração e sua respiração forçada. Os olhos começaram a
habituar-se à escuridão. A luz vinda de fora permitiu que Baynes distinguisse uma escada
em caracol que ficava a alguns metros do lugar em que se encontrava e levava aos
pavimentos superiores.
Baynes viu portas fechadas de ambos os lados da escada. As mesmas davam para os
recintos do pavimento inferior. O sargento tinha suas dúvidas de que o twonoser tivesse
fugido para lá. O ser trombudo só poderia ter ido aos pavimentos superiores.
Baynes pôs-se de pé e com alguns passos atingiu a escada. A mesma não possuía
degraus, mas apenas saliências em forma de verruga, que proporcionavam apoio para os
pés. Baynes sorriu zangado ao iniciar a subida. Quando tinha percorrido alguns metros,
ficou completamente escuro em torno dele. Via lá embaixo o setor retangular iluminado
que era a entrada do edifício. Baynes manteve-se do lado direito, onde poderia tatear a
parede. Do lado esquerdo havia o corrimão, mas o terrano teve a impressão de que não
poderia confiar muito no mesmo.
Provavelmente o twonoser sabia que estava sendo perseguido. Devia estar à espreita
na escuridão. Talvez já se tivesse trancado num quarto e estivesse pedindo auxílio pelo
rádio. Ou então se inclinava para fora da janela, a fim de chamar a atenção dos twonosers
para os homens que tinham fugido.
Lorde Baynes parou na oitava volta da escada. Nem sequer via a entrada. Estava
tudo escuro. E fazia frio. Parecia que o ar frio vinha de cima. Ouviu um estalo.
Baynes estacou e comprimiu o corpo contra a parede. Ao tato a superfície granulada
parecia ser de couro. Naquele momento Baynes desejaria que tivesse atravessado a
estrada com os outros. Não importava o que o twonoser poderia fazer. O medo apertava-
lhe a garganta.
“Tenho de subir mais”, pensou.
Passou a avançar mais devagar. Os pés tateavam cuidadosamente, à procura das
saliências no chão. Não queria arriscar-se a escorregar de repente. A escada chegou ao
fim depois da décima segunda curva. Baynes voltou a sentir chão plano sob os pés.
A escuridão era cada vez mais apavorante. Todo seu ser ansiava para descer
correndo pela escada e sair da casa. Mas continuou onde estava. Finalmente estendeu os
braços e saiu andando bem devagar. Certamente o inimigo estava à sua espera na
escuridão, com o olho facetado rígido voltado para o inimigo, com uma arma mortífera
nas mãozinhas aleijadas.
De repente Baynes ouviu um farfalhar. Estivera decidido o tempo todo a dar um
salto para o lado assim que ouvisse qualquer ruído, mas o medo o prendeu ao lugar em
que estava. Acreditava que qualquer ruído que fizesse, por menor que fosse, poderia
provocar um ataque do inimigo. Ficou parado pelo menos um ou dois minutos. O
farfalhar continuou.
Baynes respirou aliviado, em silêncio. Ainda estava vivo. Prosseguiu e suas mãos
tocaram uma parede. Encostou na mesma, sentindo-se mais leve. Pelo menos suas costas
estavam protegidas. Saiu andando junto à parede com uma cautela extrema. O farfalhar
era cada vez mais forte. Baynes estava caminhando na direção da qual vinha o mesmo.
De repente compreendeu o que era. Alguém estava remexendo apressadamente um
monte de papel ou de um material semelhante.
As mãos de Baynes deixaram de sentir a parede e tocaram uma peça de metal
sólido.
Era uma porta. Estava fechada. O farfalhar vinha do outro lado da mesma. Era lá
que estava o twonoser. Baynes não tinha a menor dúvida de que o tromba branca se
encontrava no recinto que ficava atrás da porta. Passou os dedos abertos pela superfície
mecânica, até encontrar o mecanismo de abertura da porta.
No acampamento de prisioneiros aprendera como funcionava esse mecanismo.
De repente a situação em que se encontrava parecia ter algo de irreal. Tentou
imaginar qual era a distância que o separava da Terra. Não conseguiu. E não conseguia
compreender que se encontrava no interior de um monstro gigantesco, habitado por uma
raça estranha.
“Só posso estar louco”, pensou Baynes.
Empurrou o mecanismo de abertura abruptamente para baixo. Ouviu-se um tilintar
semelhante ao do vidro rachado e uma torrente de luz abateu-se sobre Kendall Baynes.
***
Um técnico baixo e fraco foi o único a descer cambaleante pelo caminho. Rhodan
segurou o homem e deixou-o cair suavemente no chão. As pálpebras do astronauta
tremiam e sua respiração era irregular.
— Procure acalmar-se! — pediu Rhodan. — Por enquanto estamos em segurança.
Seus olhos encontraram os de Atlan. Os dois se entenderam. Ainda não estavam em
segurança. Só tinham deixado para trás a povoação. Encontravam-se nos campos
cultivados. Alguns homens estavam jogados no chão, exaustos. Nunca tinham corrido
tanto.
Entre as plantas altas a temperatura era fresca e agradável. Os astronautas não
demorariam a recuperar-se. Depois disso prosseguiriam na fuga. Rhodan não acreditava
que alguém os tivesse visto. Fazia votos de que Storkeet não tivesse a idéia de levar
Rhodan a Garko o Forte, depois da “revolta”. Os twonosers costumavam ser bastante
despreocupados. Achavam que os terranos eram seres inferiores, e por isso facilitavam na
sua vigilância. As reflexões de Rhodan foram interrompidas quando um homem baixo
chegou perto dele. Era o sargento Kapitanski.
— Baynes desapareceu — disse Kapitanski.
— O sargento? — Rhodan pegou um torrão de terra e o esmagou entre os dedos. —
Quando foi que o senhor notou?
— Neste instante, senhor! — respondeu o sargento.
— Mas é possível que já se tenha separado de nós na povoação.
Atlan enfiou a cabeça entre duas plantas.
— Está com tanto medo que pode impossibilitar nossa fuga — disse. — Deve ter-se
escondido em algum lugar. Os twonosers não demorarão a encontrá-lo.
— Lorde Baynes não seria capaz de esconder-se, senhor — respondeu Kapitanski
com uma violência que surpreendeu a todos. — Muito menos de medo.
— Ei! — exclamou Rhodan em tom de surpresa. — Pensei que vocês não se
gostassem.
— É um fanfarrão e um convencido, senhor — fungou o sargento. — Além disso é
medroso, mas seria incapaz de abandonar-nos.
— O senhor tem uma explicação melhor? — perguntou Atlan.
— Permita que eu volte para procurá-lo — pediu Kapitanski.
— Vamos mandar Tronar Woolver — disse Rhodan.
— Ele sabe locomover-se mais depressa que o senhor.
Kapitanski fez girar o corpo, para pôr-se de joelhos.
— Conheço esse rapaz — disse. — Terei mais facilidade em encontrá-lo.
— Um instante — disse Rhodan, dirigindo-se aos outros homens, que estavam
agachados entre as plantas. — Quem viu Kendall Baynes pela última vez?
Rhodan ficou sabendo que nenhum dos astronautas havia visto o sargento depois
que tinham cruzado a estrada principal. Concluiu que Baynes ficara do outro lado.
— O senhor terá de andar quase três quilômetros — disse Rhodan, dirigindo-se a
Kapitanski. — E não deve ser visto. Se possível, traga Baynes. Tente descobrir ao menos
o que aconteceu com ele.
Kapitanski estalou os dedos.
— Quer dizer que o senhor permite que eu vá?
— Isso mesmo — disse Rhodan. — Tenha cuidado. Tronar Woolver ficará à sua
espera neste lugar e lhe dirá qual foi o caminho que tomamos daqui em diante.
— Obrigado, senhor! — disse Kapitanski em tom de alívio.
Desapareceu entre as plantas sem dizer mais uma única palavra.
— É muito arriscado mandar este homem de volta — disse Atlan ao amigo terrano.
Rhodan colocou a mão no ombro de Tronar Woolver.
— Siga-o — disse. — E cuide um pouco dele.
O sprinter mostrou um sorriso compreensivo e também se retirou.
— Um verdadeiro arsenal moralista — escarneceu Atlan. — Quem diria que você é
capaz disso nas condições em que nos encontramos! E quem me dá apoio moral?
Rhodan sorriu.
— Confie em mim — pediu. — Em caso de necessidade, minha competência
estende-se até mesmo aos arcônidas.
Atlan suspirou preocupado, mas não disse nada. Rhodan olhou para os lados.
Gostaria de conceder uma pausa mais prolongada aos homens, mas ainda estavam muito
perto da povoação. Ligou a tradutora e dirigiu-se aos quatro criminosos domésticos.
— Daqui em diante vocês terão de guiar-nos — disse. — Vocês sabem onde estão
nossos amigos.
***
Kendall Baynes sentiu-se ofuscado e deixou cair os braços. Foi uma reação errada,
que por pouco não lhe custou a vida.
Um twonoser estava de pé bem à sua frente, num recinto bem iluminado. Estava
encostado a três cilindros de vidro e disparou uma arma energética contra Baynes. O
terrano ouviu um chiado. A porta incendiou-se atrás dele. O calor refletido pela mesma
bastou para que Baynes soltasse um grito de dor. Este grito salvou-lhe a vida. O tromba
branca ficou perplexo e baixou a arma por um instante.
Baynes saltou em sua direção, com o rosto desfigurado pela dor. A mãozinha
atrofiada ergueu-se e um dos dedos quis puxar o gatilho, mas Baynes já se encontrava
perto dele e desviou a arma com uma pancada. Bateu no twonoser. O peso dos seres
inimigos fez balançar os cilindros de vidro.
Baynes sentiu duas trombas robustas que o envolveram. Investiu com os punhos
contra o twonoser.
A luta só durou alguns segundos. A robustez do tromba branca logo se impôs contra
o inimigo. Baynes ficou desesperado ao notar que seu tórax cedia à pressão das trombas.
Mal conseguia respirar. Empurrou-se furiosamente com as pernas. O twonoser perdeu o
equilíbrio. Os cilindros de vidro voltaram a balançar.
Baynes respirava com dificuldade. Os golpes que desferia no tromba branca não
pareciam incomodar o mesmo, pois ele os aceitava com a maior calma. Baynes voltou a
empurrar-se com os pés. O twonoser soltou um grunhido e os dois tombaram para trás,
juntamente com os recipientes. Os cilindros arrebentaram com um estrondo que antes
parecia uma explosão, quando os dois corpos pesados caíram sobre os mesmos. Os dois
seres envolvidos na luta rebolavam sobre os cacos de vidro. A pressão das trombas era
cada vez mais forte.
Começou a escurecer diante dos olhos de Baynes, que fazia um esforço desesperado
para respirar. O horrível olho facetado brilhava bem à sua frente. O twonoser lutava para
matar.
Baynes quis gritar, mas só conseguiu soltar alguns grasnados. Batia furiosamente
com as mãos. A direita atingiu violentamente os cacos de vidro.
De repente Baynes segurou um caco em forma de foice.
O twonoser soltou um grunhido triunfante enquanto aumentava a pressão das
trombas. Baynes teve a impressão de que milhares de agulhas incandescentes penetravam
em seu corpo. Alguma coisa quebrou dentro dele.
Tomou impulso com a mão. Brandiu o caco de vidro com as forças que lhe
restavam. O olho facetado do twonoser brilhava à sua frente. Foi a última coisa que viu.
E foi também o alvo de sua arma improvisada.
Um grito horrível atingiu seu ouvido.
Baynes perdeu os sentidos.
***
Quando acordou, Baynes sabia que iria morrer. Ficou deitado com os olhos
fechados e a tosse o martirizava. Sentiu que sangrava pela boca.
Virou-se lentamente. Os cacos de vidro rangeram. Deitado de lado, as dores no
peito tornavam-se mais suportáveis. Finalmente fez um grande esforço e abriu os olhos.
A poucos metros dele jazia a figura retorcida do twonoser. O tromba branca estava
morto. Baynes não sabia quanto tempo ficara inconsciente, mas acreditava que impedira
o twonoser de dar o alarme.
Depois de algum tempo o sargento conseguiu ficar de joelhos. O cadáver do
twonoser não poderia ficar no centro da sala. Qualquer um que entrasse o veria e logo
saberia o que tinha acontecido. Baynes rastejou entre o monte de cacos, aproximando-se
do cadáver do inimigo. A cavidade do olho do tromba branca fitava Baynes; estava negra
e vazia. Um pedaço de caco de vidro sobressaía da mesma. Baynes pensou que tivesse de
vomitar. Seu corpo balançou.
Mais alguns minutos passaram antes que Baynes conseguisse levantar, apoiando-se
na armação dos cilindros de vidro. Passou os olhos pela sala. Perto da janela havia uma
depressão no chão, que poderia abrigar o cadáver do twonoser. Baynes gemeu enquanto
se abaixava e segurava o cadáver nas extremidades das trombas. Tossia e cuspia. Os
cacos de vidro tilintaram enquanto Baynes arrastava o cadáver flácido. Quando ainda
faltavam alguns metros Baynes cambaleou, mas conseguiu levar a carga ao destino. Teve
de apoiar-se na parede, totalmente esgotado.
“Os cacos de vidro”, pensou. “Tenho que tirar os cacos de vidro. E este sujeito
precisa ser coberto.”
Baynes voltou a passar os olhos pela sala. Viu uma comprida faixa de metal. Usou o
mesmo para empurrar os cacos de vidro e o que restava dos recipientes para dentro da
depressão. Quase não se via mais o tromba branca, que estava completamente coberto
pelos cacos de vidro. Além disso Baynes atirou as folhas de plantas espalhadas por toda
parte para cima do cadáver. O sargento não sabia qual tinha sido a finalidade dessas
folhas. Tinha certeza de que o farfalhar que ouvira antes de entrar na sala fora produzido
pelo tromba branca ao caminhar sobre estas folhas. Quando finalmente terminou, Baynes
teve a impressão de que o serviço era praticamente inútil. Só lhe restava fazer votos de
que algum twonoser que ali entrasse por um instante não visse os evidentes sinais de luta.
Baynes sentiu-se tão fraco que se julgava incapaz de fazer mais alguma coisa. Além
disso precisaria reunir as forças que lhe restavam para esconder-se num lugar onde
ninguém pudesse descobri-lo. Chegou à porta, quase cego de dor. Pôs-se a escutar
atentamente, embora tivesse suas dúvidas de que o rugido e os estrondos que enchiam sua
cabeça permitissem que ouvisse qualquer outro ruído. Saiu caminhando em direção à
escada com passos titubeantes. Sentou cuidadosamente no chão. Tinha certeza de que
nunca conseguiria chegar ao pé da escada caminhando sobre as próprias pernas. Deitou
de barriga e escorregou cuidadosamente até a primeira curva da escada.
Baynes chegou a perder o apoio e bateu com violência no corrimão da escada. Fez
um esforço para não gritar. O que mais o preocupava era que pudesse perder os sentidos.
Finalmente chegou ao pavimento inferior. Gemia e estava com o uniforme rasgado.
Sabia que enquanto estivesse perto da entrada o perigo de ser descoberto era maior, mas
teve de ficar deitado por um instante. As dores já não eram tão fortes, mas sentia-se tão
esgotado que tinha medo de desmaiar. Viu o retângulo luminoso formado pela porta e
olhou para fora. A claridade doía-lhe nos olhos.
Finalmente levantou e saiu caminhando em direção à porta, com as pernas bem
afastadas. Os objetos pareciam girar diante dos seus olhos. Os edifícios mais próximos
formavam um desenho confuso de formas e cores. Não notou nenhum movimento que
pudesse levar a crer que havia um twonoser por perto.
Baynes saiu da casa.
Permaneceu junto à mesma. Assim podia apoiar-se e procurar um lugar em que
estivesse protegido.
Sabia perfeitamente que não poderia alcançar os fugitivos, mas tinha de encontrar
um lugar onde estivesse a salvo dos twonosers.
Baynes andou em torno da casa. Viu do outro lado da rua o muro alto de uma
fazenda de criação de bioparasitas.
Sacudiu o corpo. Tinha de fazer um grande esforço para pensar logicamente.
“Lorde Kendall Baynes...”, pensou com certo sarcasmo. Um sorriso forçado
desfigurou seu rosto. Um veículo passou pela estrada principal. Baynes só o viu por um
instante, enquanto passava entre dois edifícios.
Ficou tossindo até que seu sangue tingisse a parede de vermelho.
Seus joelhos tremiam. “A próxima chuva lavará a parede”, pensou. “Chuva? Por
aqui nunca chove.”
Atravessou a estrada estreita e dali a pouco estava junto ao muro da fazenda. Estava
tudo em silêncio. Olhou para cima. O muro era muito alto. Alto demais para que pudesse
escalá-lo. Mas devia haver uma entrada. Afinal, os twonosers tinham de entrar.
De repente Baynes ouviu passos. Virou-se abruptamente. A idéia de que tudo
pudesse ter sido em vão deixou-o desesperado. Névoas densas cobriam seus olhos. Uma
figura emergiu dessas névoas. Aproximou-se dele. Era um terrano. Um homem baixo.
Era o sargento Kapitanski.
Baynes levantou os braços, num gesto de protesto. Será que estava tendo
alucinações?
— Você ficou louco? — perguntou a voz de Kapitanski, que ouvira tantas vezes. —
Por que está andando por aí, Lorde?
— Seu patife de pés chatos — exclamou Baynes.
— Pelo amor de Deus! — cochichou Kapitanski.
Baynes apressou-se em fechar a boca. “Ele viu o sangue”, pensou.
— Você tem de voltar imediatamente ao acampamento — ordenou Kapitanski. —
Precisa de cuidados médicos. O que houve com você?
Baynes agarrou-se ao uniforme de Kapitanski.
— Encoste-se ao muro! — disse, falando com dificuldade.
Percebeu que o sargento tremia de tão nervoso que estava. Tentou empurrar a figura
robusta contra o muro, mas estava muito fraco.
— Encoste-se ao muro! — repetiu, desesperado.
— O que pretende fazer? — resmungou Kapitanski. Sua voz parecia insegura. O
sargento perdera a autoconfiança ranzinza.
— Preciso entrar nesta fazenda — murmurou Baynes.
— Lá estão...
O resto da frase apagou-se num estertorar.
— Você lutou com alguém? — perguntou Kapitanski.
Baynes fez que sim.
— Matou um twonoser?
Baynes acenou novamente com a cabeça. Depois esta caiu sobre o peito.
— Acho que já estou compreendendo — disse Kapitanski, bem mais calmo.
— O muro! — conseguiu dizer Baynes.
Não via mais nada, mas sentiu que o sargento estava atendendo ao seu pedido.
Baynes abriu o bolso do casaco e tirou a gaita de boca. Enfiou-a no cinto de
Kapitanski. Depois agarrou-se ao sargento.
Kapitanski era um homem robusto. Ergueu o jovem com um só movimento. As
mãos de Baynes ficaram tateando e conseguiram agarrar-se à borda do muro. Puxou-se
para cima e ficou de pé sobre os ombros de Kapitanski.
— Nunca vi um idiota tão perfeito — gritou Kapitanski.
Baynes deu uma risadinha. Parecia zangado. Reunindo as forças que lhe restavam,
conseguiu saltar por cima do muro. Nem sentiu quando foi cair no meio de um bando de
parasitas, pois já estava morto.
O sargento Kapitanski ouviu o baque surdo provocado pelo impacto do corpo de
Baynes. Sabia o que significava isso. Chegara tarde.
Kapitanski tirou o instrumento musical do cinto e contemplou-o com uma atitude
pensativa. Nunca mais alguém tocaria nesse objeto gasto. E nunca mais alguém chamaria
o sargento Kapitanski de patife de pés chatos.
Antes de sair correndo, o sargento atirou a gaita por cima do muro.
***
A maior parte dos homens dormia no interior da artéria, a vários metros da entrada.
A fuga cansativa os deixara esgotados. Icho Tolot, Atlan, Rakal Woolver e Perry Rhodan
eram os únicos que estavam parados do lado de fora, olhando para o vale.
— Se quiser, poderei voltar à povoação para procurar meu irmão e Kapitanski —
disse Rakal Woolver. — Sinto que Tronar já está voltando, mas sem o sargento.
— Nesse caso vamos esperar — decidiu Rhodan.
Olhou para dentro da artéria. Os quatro criminosos domésticos tinham-se separado
dos terranos. Tinham fugido com eles, mas ao que parecia não pretendiam abandonar sua
atitude arrogante. A companhia dos fugitivos parecia ser ditada exclusivamente por
considerações utilitárias.
— Tronar está chegando! — exclamou Rakal Woolver dali a pouco.
Rhodan viu o mutante aparecer à frente do centro de comando. Dali a pouco outro
homem apareceu no vale, a algumas centenas de metros de distância.
Foi Tolot quem primeiro descobriu Kapitanski e chamou a atenção dos outros para
o mesmo.
— Baynes não está com ele — disse o halutense, perplexo. — Não o encontrou, ou
então aconteceu alguma coisa com o sargento.
Esperaram que Tronar Woolver chegasse.
— Quando cheguei já era tarde, senhor — disse o imartense quando se viu à frente
de Rhodan. — Encontrei Kapitanski, mas já estava tudo consumado. O sargento já estava
voltando. Por isso também resolvi voltar.
— Sabe o que aconteceu? — perguntou Atlan.
Tronar Woolver respondeu que não. Icho Tolot saiu ao encontro de Kapitanski, que
parecia exausto.
Dali a uma hora o halutense chegou com o astronauta. Kapitanski estava com o
rosto pálido e encovado. Relatou em tom áspero o que tinha acontecido.
— Não sei de que forma Baynes se viu envolvido na luta — concluiu. —
Provavelmente ele quis distrair a atenção de um twonoser.
Rhodan ouviu em silêncio. Mandou que os outros entrassem na veia do moby. Atlan
e Tolot foram os únicos que ficaram com ele. Tolot permaneceu em silêncio. Rhodan
imaginava que o halutense se recriminava por ter sugerido que fossem para perto do
moby.
Não sabia por quê, mas nos últimos dias eles se tinham habituado à presença de
Kendall Baynes.
Rhodan tirou o distintivo de plástico que representava uma tromba e partiu-o em
vários pedaços. Atirou os pedaços para longe.
Começou a falar sem olhar para os outros.
— Não creio que a habilidade diplomática seja suficiente para levar-nos de volta à
Crest. Teremos de lutar, e alguns morrerão.
Virou-se e saiu caminhando na direção da entrada da artéria.
— Preparem-se! — gritou. — Vamos partir.
Os homens foram saindo.
— Os quatro twonosers nos levarão ao acampamento dos criminosos domésticos —
disse Rhodan.
Esperou que os trombas brancas se colocassem na ponta do grupo e indicassem a
direção. Também saiu andando.
Os outros foram atrás dele.

***
**
*

Foram presos, mas nem pensam em


abandonar a luta.
Querem recuperar a liberdade, e por isso
provocam a guerra das castas. A base da qual
lançam suas operações é O Campo dos Fora-
da-Lei!
Saiba como continua a história, com
Perry, Icho Tolot e os outros, lendo o próximo
volume da série, que traz o título No Campo dos
Fora-da-Lei.

Visite o Site Oficial Perry Rhodan:


www.perry-rhodan.com.br

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