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Travessias inquisitoriais das Minas Gerais aos

cárceres do Santo Ofício:


diálogos e trânsitos religiosos no império luso-brasileiro
(sécs. XVI – XVIII)

Organização:

Júnia Ferreira Furtado


Maria Leônia Chaves de Resende
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T713
Travessias inquisitoriais das Minas Gerais aos cárceres do Santo Ofício:
diálogos e trânsitos religiosos no império luso-brasileiro (sécs. XVI - XVIII) / or-
ganização Júnia Ferreira Furtado , Maria Leônia Chaves de Resende. - 1. ed. - Belo
Horizonte : Fino Traço, 2013.
484 p. ; 23 cm. (História ; 32)
Inclui bibliografia e índice
ISBN 978-85-8054-114-4
1. Inquisição - Minas Gerais - História 2. Brasil - História - Período colonial, 1500-
1822. 3. Inquisição - Portugal. 4. Igreja Católica - Doutrinas e controvérsias. I.
Furtado, Júnia Ferreira. II. Resende, Maria Leônia Chaves de. III. Série.
13-00732 CDD: 981.03
CDU: 94(81)
03/05/2013 03/05/2013

Conselho Editorial Coleção História


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SUMÁRIO

Apresentação 7

Parte 1. O Tribunal do Santo Ofício e o Tribunal Eclesiástico

1. “Com toda a conformidade e boa correspondência”: Inquisição e


episcopado em Portugal (1536-1750) 17
José Pedro Paiva

2. A ação da Inquisição no Brasil: uma tentativa de análise 29


Bruno Feitler

3. O Tribunal Eclesiástico à época de Dom Frei Manuel da Cruz: a afirmação


da jurisdição episcopal (1748-1764) 47
Patrícia Ferreira Santos

Parte 2. Os bastidores, os agentes e os penitenciados do Tribunal do


Santo Ofício

4. Ser comissário do Santo Ofício na Inquisição portuguesa e fingir sê-lo


(séculos XVII-XVIII) 81
Fernanda Olival

5. A Inquisição na comarca do Rio das Mortes: os agentes 103


Aldair Rodrigues

6. Mazelas do cárcere: o atendimento de médicos, cirurgiões e barbeiros aos


presos da inquisição de Lisboa 127
Georgina Silva dos Santos

7. “Negócios entre afins”? Penitenciados do Santo Ofício e os agentes do


tabaco (séculos XVII e XVIII) 143
João Figueiroa Rego

Parte 3. O Tribunal do Santo Ofício e a perseguição aos cristãos-


novos

8. Do outro lado da vida: a construção do discurso marrano 173


Anita Novinsky
9. Trajetórias carto-geográficas de uma família de cristãos-novos dos
sertões das Gerais aos cárceres da Inquisição: o caso dos irmãos Nunes 187
Junia Ferreira Furtado

10. A família Vale: do reino às Minas 237


Lina Gorenstein

11. A Torá nos caminhos do ouro: cristãos-novos e criptojudeus em Minas 253


Angelo Adriano Faria de Assis

12. Inquisição, cristãos-novos e arqueologia (Minas Gerais – séc. XVIII) 279


Carlos Magno Guimarães, Juliana de Souza Mol, Mariana Gonçalves Moreira,
Camila Fernandes de Morais, Thaís Monteiro de Castro,Will Lucas da Silva
Pena

Parte 4. Heresias no Novo Mundo

13. Catolicismo ilustrado e feitiçaria no mundo português 311


Evergton Sales Souza

14. Dois profetas, um levante e um outro Portugal: o sonho emboaba do


Quinto Império nas Minas Gerais 331
Adriana Romeiro

15. Cartografia gentílica: os índios e a Inquisição na América Portuguesa


(século XVIII) 347
Maria Leônia Chaves de Resende

16. Uma nova invenção da bruxaria diabólica: a Jurema e a Inquisição 375


James Wadsworth

17. Convertidos na Verdadeira Fé. Os indígenas, os missionários católicos


e os predicantes: análises comparativas sobre a América Portuguesa nos
séculos XVII 393
Maria Paula Couto Paes

Anexo 415

Minas Gerais sub examine: inventário das denúncias nos Cadernos do


Promotor da Inquisição de Lisboa (século XVIII)

Sobre os Autores 477


2.

A ação da Inquisição no Brasil: uma tentativa de análise

Bruno Feitler

Já se foi o tempo em que os estudos sobre a ação inquisitorial no Brasil,


graças a fontes publicadas, se limitavam às visitações da virada do século XVI
para o XVII.1 Desde a década de 1970 desenvolveram-se, impulsionados pela
professora Anita Novinsky, estudos baseados em documentação dos períodos
posteriores. Desde então, pouco a pouco, o conhecimento das pessoas presas,
dos delitos perseguidos, dos agentes e do impacto da ação inquisitoriais
locais se multiplicaram. Mesmo se os números ainda não são seguros, e se os
estudos sobre a Inquisição portuguesa, em geral durante a segunda metade do
século XVIII, ainda fazem falta, já é possível traçar um panorama da ação da
instituição na América portuguesa.2

A lenta implantação da Inquisição no Brasil

Apesar de muito discreta em seus primeiros tempos, podemos dizer que


a atuação do Santo Ofício na América portuguesa acompanhou a ocupação
do território pelos portugueses. Isso quer dizer que assim como a fundação
de vilas e de paróquias ou a criação de irmandades, a ação inquisitorial pode
ser vista como mais um elemento do complexo de ações e comportamentos
que caracterizam a transformação do espaço extra-europeu em espaço luso e
católico.

1 Primeira visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo Licenciado Heitor Furtado de
Mendonça: denunciações da Bahia (1591-3), C. de Abreu (pref.), 1925; Primeira visitação do Santo
Ofício às partes do Brasil pelo Licenciado Heitor Furtado de Mendonça: Confissões da Bahia (1591-
2), 1935; Primeira visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo Licenciado Heitor Furtado de
Mendonça:: Denunciações de Pernambuco (1593-5), 1929; Primeira visitação do Santo Ofício às
partes do Brasil pelo Licenciado Heitor Furtado de Mendonça: Confissões de Pernambuco, 1970;
Segunda visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo Inquisidor e Visitador o Licenciado
Marcos Teixeira: denunciações da Bahia (1618), 1927; Segunda visitação do Santo Ofício às partes
do Brasil pelo Inquisidor e Visitador o Licenciado Marcos Teixeira: Livro das confissões e ratifi-
cações da Bahia (1618-20), 1963, XVII.
2 Para um sobrevoo recente da bibliografia sobre a Inquisição portuguesa, e assim também da
sua ação no Brasil, ver Marcocci (2010).

29
Pouco tempo depois da implantação das capitanias hereditárias, ou seja,
pouco depois da instalação dos primeiros núcleos populacionais portugueses,
se deu a primeira manifestação do Santo Ofício na América portuguesa,
quando o capitão donatário de Porto Seguro, Pero do Campo Tourinho, foi
preso pelo vigário e pelos juízes ordinários locais por blasfemar, e remetido em
1546 diretamente para o tribunal da Inquisição de Lisboa.3
Mesmo se o sistema de capitanias não foi completamente abandonado, em
1548 dom João III criou o governo geral do Brasil, com sede na Bahia, com
o objetivo de consolidar, ampliar e defender a ação da Coroa na região. Os
primeiros anos não foram fáceis, e os franceses, antes ativos na costa nordeste,
continuavam presentes, agora no Rio de Janeiro. Jean de Bolès, um desertor da
França Antártica (a efêmera colônia francesa instalada na baía de Guanabara),
parece ter sido a segunda pessoa a ser presa na América portuguesa em nome
da Inquisição, num procedimento bem próximo do que seria mais tarde a
regra de ação inquisitorial no Brasil. Após uma instrução secreta do processo
por heresia, feita pelos jesuítas em 1560, o bispo da Bahia decretou sua prisão,
enviando os autos para Lisboa. No ano seguinte chegava a ordem de prisão
assinada pelo inquisidor geral. Uma vez em Portugal, Bolès abjurou seus erros
em mesa.4 É de se notar que nem o processo de Tourinho nem o de Bolès
foi movido por culpas de judaísmo, que foi não só a grande especialidade dos
tribunais portugueses, como também a culpa da maioria das pessoas presas no
Brasil pelo Santo Ofício de meados do século XVII em diante. Essa ‘anomalia’,
que diferencia a ação da Inquisição no Brasil daquela no reino ou mesmo
no Estado da Índia, se verifica durante as duas visitações feitas ao Nordeste
entre fins do século XVI e os anos 1620 (a Bahia, Pernambuco, Itamaracá e
Paraíba entre 1591 e 1596, e novamente à Bahia entre 1618 e 1620). Então, a
colonização, mesmo que sobretudo litorânea, já se havia consolidado com
núcleos populacionais cada vez mais importantes, justificando assim uma ação
mais efetiva do Santo Ofício por meio do instrumento da visitação, em uso
pelo Santo Ofício em outras paragens desde a década de 1560, ou mesmo da
de 1540.5
O Brasil é dado como um lugar de refúgio para a população de origem
conversa, um lugar onde eles estariam a salvo da Inquisição, pela falta de um
tribunal local, mas também por representar para eles um lugar para recomeçar
a vida e tentar a sorte, como, aliás, para o resto da população portuguesa que

3 Sobre Pero do Campo Tourinho, ver Britto (2000). O interrogatório sofrido por ele em Lisboa
foi transcrito em Abreu ([1907] 1982:225-227).
4 Sobre Bolès, ver entre outros Bicalho (2008). A documentação referente a seu processo lisboeta
foi publicada em Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (vol.XXV, 1903: 215-308,). Jean
de Bolès acabou mesmo assim na fogueira, julgado como relapso por luteranismo pelo tribunal
da Inquisição de Goa em 1572 (Cf. Révah, 1960).
5 Para uma cronologia das visitações inquisitoriais, ver Bethencourt (1987).

30
aqui se instalou.6 Mas segundo os dados da documentação originada das duas
primeiras visitações, mesmo se o maior número de denúncias foi de culpas
de judaísmo (207), elas parecem não ter originado mais que 17 processos,
enquanto as visitações provocaram a instauração de 31 processos por blasfêmia,
19 por irreverências e 18 contra pessoas que desqualificavam o estado religioso
(Siqueira, 1978:217, 227 e 255). As pesquisas de Anita Novinsky também
apontam para a mesma direção: dos 223 processos instaurados no século XVI
contra habitantes ou naturais do Brasil (187 homens e 36 mulheres), somente
16 o foram por judaísmo, surgindo em primeiro lugar da fila os 68 processos por
proposições heréticas, seguidos dos 29 por blasfêmia, dos 18 por gentilidades,
e logo após, os 14 por sodomia (Novinsky, 2002:27-43). Esta aparente
discrepância da ação inquisitorial no Brasil e no Reino, onde os judaizantes
foram, nessa época e desde o início das atividades inquisitoriais em Portugal,
o maior alvo do tribunal, pode ter duas causas; seja, como chegaram a aventar
alguns historiadores, que não interessava à coroa desbaratar ou afugentar os
cristãos-novos da colônia por seu importante papel na ocupação territorial, o
que desestabilizaria o difícil adensamento populacional de origem branca, seja
a perda de uma parte da documentação da primeira visitação à Bahia, mais
especificamente relativa ao recôncavo baiano, região açucareira de importante
população cristã-nova (Prado, 1976:107).7
De acordo com a documentação subsistente, durante a primeira visitação
– a única que pode ser comparada a um tribunal itinerante, com instrução de
processos e em alguns casos, a cerimônia de leitura de sentenças (ou seja, o
auto-da-fé) e execução de penas –,8 os delitos mais escandalosos, e que deram
mais trabalho ao visitador, o licenciado Heitor Furtado de Mendonça, foram os
casos da santidade do Jaguaripe (Ver Vainfas, 1995).
Vale aqui lembrar que os índios, mesmo convertidos, não estavam sob a
alçada do Santo Ofício. Uma comissão enviada pelo cardeal dom Henrique em
1579 ao bispo do Brasil dom Antônio Barreiros (1576-1600) lhe dava poderes
sobre os fatos de jurisdição inquisitorial “sendo as pessoas culpadas dos
novamente convertidos”. O bispo os deveria julgar com o auxílio dos jesuítas
locais, e a provisão ainda encomendava que tal fosse feito “com moderação
e respeito que se deve ter com gente novamente convertida para que não se
intimidem os outros vendo que se usa de todo o rigor do direito com os já
convertidos”, o contexto missionário justificando assim a medida.9 Apesar de
não termos provas de uma ação real desse tribunal, a comissão enviada ao

6 Para a problemática do Brasil enquanto terra de refúgio e de degredo, ver Pieroni (2000).
7 Ronaldo Vainfas (1935:11) informa do desaparecimento de cinco dos nove livros produzidos
pela primeira visitação do Santo Ofício na sua introdução às Confissões da Bahia.
8 Sobre os autos-da-fé coloniais, ver Mello (1996). Ninguém foi, claro está, queimado na fogueira
no Brasil. Apenas os casos menos graves foram sentenciados localmente.
9 O translado dessa provisão encontra-se transcrito, entre outros, em Pereira (1987: 56-57, doc.
52).

31
bispo excluiu oficialmente e na prática os índios da jurisdição inquisitorial,
delegando-a ao prelado, seu pastor natural e instância originalmente detentora
do poder de julgar os casos de heresia. Esta isenção dos índios da América
portuguesa pode ser posta em paralelo com o que aconteceu nos territórios
castelhanos, onde a criação dos tribunais inquisitoriais do México e de Lima
em 1568 coincidiu com a retirada dos indígenas da sua alçada. No caso
espanhol eles deviam ser julgados pelos tribunais civis ou episcopais.10 Os raros
casos de indígenas do Brasil presos pela Inquisição (sobretudo por bigamia)
aconteceram durante a segunda metade do século XVIII, quando a política
pombalina tendeu a aplainar as diferenças entre os portugueses e os índios.11
Voltando à análise das visitações inquisitoriais ao Brasil e as razões de suas
realizações, devemos atentar para o fato de a primeira visitação estar ligada
ao contexto da expansão geral do Santo Ofício pelos domínios atlânticos
portugueses e das visitações efetuadas na mesma época no reino, sem que se
possa aventar concretamente nenhuma outra motivação mais específica. Já a
segunda visitação à Bahia (1618-1620), a pouco conclusiva visitação ao Rio
de Janeiro, a São Paulo e ao Espírito Santo (1627-1628) e o projeto de uma
segunda visitação a Pernambuco e à Paraíba na mesma época, pelos relatos
que chegavam a Portugal sobre a liberdade em que vivia a população do Brasil,
sobretudo os cristãos-novos, podem ser mais facilmente conectados a uma
vontade de repressão mais ampla ao criptojudaísmo, e ao medo de um conluio
entre os cristãos-novos e os inimigos holandeses.12
Apesar dos contínuos rumores, de súplicas feitas ainda no século XVIII,
ou dos desejos de Felipe III, o Brasil nunca chegou a abrigar um tribunal
permanente da Inquisição, contrariamente aos territórios portugueses da Ásia
e África oriental (sob jurisdição do tribunal de Goa, fundado em 1560) e à
América espanhola, que contou com três tribunais, instalados no México, em
Lima e em Cartagena de Índias. Toda a América portuguesa, assim como os
territórios portugueses banhados pelo Atlântico e as praças do Norte da África
permaneceram sempre sob a jurisdição do tribunal da Inquisição de Lisboa.
O período filipino (1580-1640), coincidindo com um franco desenvolvimento
econômico em torno da cultura da cana-de-açúcar e com um aumento
populacional dos domínios portugueses na América, foi para o Santo Ofício
um momento de experimentação e finalmente de fixação dos métodos locais de
ação. Para além das visitações mencionadas, que se mostraram um instrumento
caro e nem sempre efetivo de ação, Lisboa enviou ao Brasil o que podemos
chamar de ‘super-comissários’, com poderes para inquirir, mas não para

10 Para uma análise do contexto ibero-americano, ver Piazza (2010:1037-1040, vol. 2).
11 Sobre os índios e a Inquisição, ver o texto de Maria Leônia Chaves neste volume. Sobre a polí-
tica indigenista pombalina, ver Almeida (2010).
12 Sobre o discurso antijudaico e anti-cristão-novo e sua relação com a ameaça protestante no
contexto brasileiro, ver França (1970), Novinsky (1972) e Schwartz (2000).

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efetuar prisões em nome da Inquisição.13 Em 1630, encontrava-se em Olinda
o dominicano Antônio Rosado, que dizia ter sido enviado pelo inquisidor
geral a Pernambuco enquanto comissário, com poderes para nomear notários,
meirinhos e possivelmente também familiares. Também disse ter poderes para
prender e soltar em nome do Santo Ofício, mas apesar disso, Rosado parece
ter-se interessado mais pelas vantagens financeiras que poderia tirar de tal
posição. As exações cometidas localmente pelo dominicano, de conchavo com
o visitador das partes do sul do Brasil, Luis Pires da Veiga, então de passagem
por Pernambuco, fizeram com que os dois fossem exonerados pelo Conselho
Geral. Esta situação inédita, de um visitador que na verdade não o era, visto
não ter o poder de julgar nenhum caso localmente, não foi, contudo, única.
Este episódio pode ser posto em paralelo com a ordem do rei ao inquisidor
geral de Portugal dom Fernão Martins Mascarenhas, emitida em 1623, para
que este nomeasse um jesuíta enquanto “comissário-inquisidor” para a Guiné;
mas também com a “grande inquirição” estudada por Anita Novinsky (1972),
realizada em 1646 pelo jesuíta Manoel Fernandes na Bahia, quando este não
fez mais que recolher os dizeres de um grande número de testemunhas, em
seguida analisados em Lisboa. A “grande inquirição” da Bahia e a ação de
Antônio Rosado não causaram nenhuma prisão, e o visitador das partes do Sul
não efetuou mais que três.
Também houve, por parte da Coroa, tentativas de criação de um tribunal
da Inquisição no Brasil, mesmo que dependente do tribunal lisboeta. Essas
tentativas, feitas no mesmo contexto de medo de um conluio dos inimigos
calvinistas com os cristãos-novos locais, encontraram resistência da parte
da própria instituição, já que nos projetos de Felipe III (em 1622) e depois
de Felipe IV (em 1639), por questões puramente econômicas (um tribunal
completo custaria muito caro), o poder inquisitorial deveria ser entregue ao
bispo da Bahia e ao futuro bispo do Rio de Janeiro, o que não interessava
ao Santo Ofício. O sistema proposto pela Coroa para o tribunal brasileiro
implicaria no julgamento de hereges diretamente pelos bispos, o que, apesar
do “enlace entre a Inquisição e os bispos em Portugal”, poderia levar outros
antístites do mundo português a querer exercer esse poder quase natural dos
bispos independentemente do Santo Ofício (Ver Feitler, 2007).14 O sistema
proposto pelos Felipes foi, contudo, instaurado tardiamente na chamada

13 Para o problema da dificuldade de controle dos visitadores e os altos custos das visitações, ver
Siqueira (1978:135-139) e Pereira (2006).
14 Sobre a ligação entre o episcopado português e a Inquisição, ver a contribuição de Paiva
(2010). Esse autor trata especificamente das tentativas de criação de um tribunal no Brasil (Paiva,
2010:191-196). Vale salientar que alguns bispos podiam ver a Inquisição como um auxiliar do
múnus e do trabalho do tribunal episcopais, e não o contrário. Em carta de 14/11/1609 o bispo de
Cochim dom frei André de Santa Maria escreveu que “o ofício da Santa Inquisição [ter-se orde-
nado] pelos Sumos Pontífices de 400 anos a esta parte para ajudar aos bispos a lançar de seus bis-
pados os que são hereges ou o parecem” (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Mss 25, 1, 2, n.83).

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visitação do Santo Ofício às partes do norte. Com efeito, a ação de Giraldo José
de Abranches enquanto enviado inquisitorial, como o mostrou recentemente
Yllan de Mattos (2009), estava subordinada a seu papel de vigário geral e
governador do bispado do Maranhão, cujo prelado foi destituído a mando do
marquês de Pombal pelo próprio Abranches.15
A impossibilidade de se criar um tribunal local, e a pouca adaptação dos
sistemas excepcionais de ação (visitações e ‘super-comissários’) à realidade
luso-americana, fez com que a Inquisição tivesse que se contentar com um
funcionamento ordinário.

O funcionamento e os agentes da Inquisição

O que aqui chamamos de funcionamento ordinário dependia sobretudo


das denúncias feitas espontaneamente ou em reação à leitura de editais da fé,
regularmente enviados à colônia a partir do começo do século XVIII. Era baseado
nessas denúncias, e também naquelas feitas por pessoas já presas nos cárceres
inquisitoriais, que o Santo Ofício conseguia os testemunhos necessários para se
lavrar um mandado de prisão. Para que esse sistema funcionasse, a instituição
contou com a participação não só de oficiais inquisitoriais, mas também
necessitou da estreita colaboração do clero e das autoridades administrativas
locais.16 Com efeito, a rede de oficiais do Brasil, composta de familiares,
comissários, notários e os raros qualificadores e visitadores das naus, demorou
a se formar. No longo espaço de tempo durante o qual essa rede se constituiu, e
em seguida, se consolidou, foram pessoas que oficialmente não faziam parte do
corpo inquisitorial que lhe serviram de agentes locais, efetuando inquirições,
coordenando capturas e distribuindo editais da fé. As pessoas que serviram de
agentes extra-oficiais da Inquisição variaram de acordo com o tempo e a região
em questão, mas podem ser principalmente divididas em membros do clero
secular e das ordens religiosas.
Nos anos 1670-1690, na Bahia, vários carmelitas foram os correspondentes
privilegiados dos inquisidores e, aproximadamente na mesma época,
franciscanos no Rio de Janeiro. Mas dessa colaboração do clero regular se
sobressai o papel dos jesuítas. Seguindo o exemplo do colégio inaciano de Angra,
nos Açores, cujos sucessivos reitores foram explicitamente nomeados a partir

15 A sua nomeação enquanto visitador pelo Santo Ofício só foi lavrada depois da provisão de
vigário geral. A visitação não foi contínua como as anteriores, mas sim intermitente, Abranches
evocando o título de visitador apenas quando surgiam casos de alçada inquisitorial (Mattos,
2009:117).
16 Está ainda por fazer o estudo sobre as relações das autoridades laicas locais com a Inquisição
no Brasil, apesar de ser conhecido seu papel como agentes do Fisco régio, assim como as dispu-
tas que surgiram em torno dos privilégios dos oficiais do Santo Ofício. Sobre o Fisco, ver Feitler
(2003:104-113) e sobre os conflitos em torno dos privilégios, Wadsworth (2006).

34
de 1619 como os representantes locais do Santo Ofício, os reitores dos colégios
de São Luís e de Belém transmitiram tacitamente o cargo de comissário a seus
sucessores a partir de 1688. Também em São Paulo, um pouco mais tarde (não
sabemos exatamente a partir de quando), os reitores do colégio local fizeram
“as vezes de Comissarios nossos naquella Cidade” (Lisboa. Arquivo Nacional
da Torre do Tombo [ANTT]. Inquisição de Lisboa [IL], livro 20, fl. 254v. Carta
dos inquisidores de Lisboa ao familiar de São Paulo José Ramos da Silva de 14
de fevereiro de 1719). Os jesuítas também tiveram papel importante enquanto
representantes inquisitoriais nas primeiras décadas do século XVIII no Rio de
Janeiro e em Pernambuco, transmitindo denúncias e efetuando inquirições em
nome do Santo Ofício (Feitler, 2003:127-131).17
Curas, vigários da vara, bispos ou membros dos tribunais episcopais (os
bispados do Rio de Janeiro e de Pernambuco foram desmembrados em 1676 do
da Bahia, então elevado a arcebispado, e o do Maranhão criado no ano seguinte)
foram essenciais ao bom funcionamento da Inquisição no Brasil; quem sabe até
de modo mais evidente do que em Portugal, onde existiam tribunais locais
e onde a rede de comissários se constituíra já durante o século XVII.18 Com
efeito, mesmo sem o título oficial de comissários, vigários gerais, visitadores
episcopais, juízes dos casamentos e os próprios bispos foram colaboradores
privilegiados dos inquisidores, transmitindo-lhes denúncias surgidas durante
as visitações e processos começados em seus tribunais. Eles também faziam, é
claro, inquirições a pedido dos juízes de Lisboa. Mas queremos aqui salientar
o papel de toda a malha formada pelo clero secular, que ia dos bispos até a
mais distante paróquia do sertão ou capela de engenho na distribuição e leitura
dos editais da fé, no qual eram descritos os crimes sob alçada inquisitorial e
se incitava, sob pena de excomunhão, a que se denunciassem os culpados em
tais crimes (Feitler, 2003). Finalmente, a ligação entre episcopado e Inquisição
também se desvela no Brasil por meio da nomeação a bispos de vários antigos
inquisidores ou deputados do Santo Ofício, sobretudo depois das frustradas
tentativas de criação de tribunais locais da Inquisição (Feitler, 2003:76-77).
Pouco a pouco, com a consolidação da rede local de comissários oficiais
nos anos 1740, estes começaram a ser os correspondentes preferenciais dos
inquisidores, mas os prelados, os jesuítas, franciscanos e capuchinhos nunca
deixaram de receber, de quando em vez, inquirições delicadas ou mandatos de
prisão para efetuar em nome do Santo Ofício.19 O regimento inquisitorial de
1613 instituía que os principais lugares de cada distrito, sobretudo os portos

17 Para as complexas relações entre jesuítas e Inquisição em Portugal, é essencial o artigo de


Marcocci (2004).
18 Para a formação da malha inquisitorial em Portugal ver Torres (1995).
19 Podemos aqui mencionar o caso pernambucano. Apesar da existência de comissários nos anos
1730 e 1740, encarregados de fazer inquirições de genere de candidatos a familiares e comissários,
foram aos jesuítas que os inquisidores pediram que se fizessem as inquirições-crime referentes
a denúncias ou processos em andamento (Ver Feitler, 2003:215-227).

35
marítimos, deviam ter um comissário inquisitorial e um escrivão para assisti-
lo, inclusive “nas capitanias do Brasil” (Regimento de 1613, título I, § II).20 Vale
notar que os notários nomeados para o Brasil poucas vezes serviram como
escrivães dos comissários, mas agiram frequentemente como comissários eles
mesmos, não tendo merecido, por suas ‘qualidades’, o cargo superior. Já em 1611
o padre dom João de Membrive havia sido nomeado comissário para o Rio de
Janeiro, mas trata-se de uma exceção: apesar de algumas esparsas nomeações
de jesuítas enquanto visitadores das naus e comissários para a Bahia (1642)
ou o Maranhão (1643), a rede de altos oficiais inquisitoriais no Brasil só se
solidificou na Bahia nos anos 1690, no Rio de Janeiro e em Pernambuco nos
anos 1710-1720 e ainda mais tardiamente no resto da colônia.21
O mesmo se verifica no que toca aos familiares. Seu número, no Brasil,
foi incipiente até fins do século XVII, quando a curva de pedidos e nomeações
começa a subir exponencialmente, atingindo seu ápice em 1790, alguns anos
mais tarde do que no resto do mundo português, decaindo então pelas mesmas
razões das de lá, ou seja, a perda de prestígio do Santo Ofício, o que também
se verifica pela maior dificuldade dos oficiais inquisitoriais em assegurar seus
privilégios e o serviço do Santo Ofício. Como na metrópole, a maioria dos
familiares eram mercadores em busca de marcas de distinção racial. Mais
especificamente, no caso do Brasil, sobretudo reinóis enriquecidos (Ver
Calainho, 2006 e Wadsworth, 2007). Em troca dessa distinção, o tribunal
conseguia desses oficiais laicos uma penetração social que extrapolava o papel
repressivo tanto do Santo Ofício quanto dos próprios familiares, pois, como
os inquisidores de Lisboa fizeram questão de lembrar em 1719 a um familiar
zeloso demais de suas prerrogativas de bastião da fé, “o Santo Ofício também
se serve sem familiares” (ANTT. IL. Livro 20, fl. 254v. Carta dos inquisidores
de Lisboa ao familiar de São Paulo José Ramos da Silva de 14 de fevereiro de
1719).22
Estimações feitas por James Wadsworth (2007) apontam para um total de
entre 4000 e 5000 candidaturas à familiatura para todo o Brasil, com cerca de
3500 nomeações efetivas para familiares. A região pernambucana, por exemplo
(o caso estudado mais de perto), contou com 885 candidaturas e 663 nomeações.
A Bahia pode ter tido números similares, enquanto o Rio de Janeiro teve pelo
menos 658 candidaturas e Minas Gerais, 345. As primeiras nomeações para
o Brasil datam da década de 1640, mas mais da metade delas são da segunda
metade do século XVIII (Wadsworth, 2007:37-41). O número de nomeações,
evoluindo de modo oposto ao das prisões, em grande declínio após meados

20 Publicado, entre outros, em anexo a Franco e Assunção (2004).


21 Sobre João de Membrive, ver Pereira (2006). Para a cronologia do estabelecimento da rede de
comissários no Brasil, ver Feitler (2003:88-94).
22 Os inquisidores ainda lhe escreveram “hum homem leigo como VMce, [...] não pode nem
deve admitir denunciaçoens, e muito menos pesquizar nas vidas alhea”, e que o tribunal “não se
agrada de zelos indiscretos e imprudentes”.

36
do século XVIII, mostra a importância honorífica do cargo, assim como dos
privilégios a ele relacionados. Esta inflação não era do gosto da Coroa, e o
número de familiares que gozavam de privilégios (os chamados ‘familiares do
número’) no Brasil foi limitado pelo rei em 1720, a 30 para a Bahia, 20 para
o Rio e 10 para Olinda (esta limitação já havia ocorrido no reino por leis de
1682 e 1693), mas a questão só se complicou, pois a lei não especificava se esses
números correspondiam somente às cidades mencionadas ou a toda a capitania
correspondente, ou ainda qual a situação dos familiares das outras regiões. Essa
ambiguidade da legislação, que vigorou até a extinção do Santo Ofício, pode ser
a razão da manutenção do crescimento do número de candidaturas no Brasil
mais tardiamente do que no resto do império (Wadsworth, 2006).
A formação de instituições ligadas ao Santo Ofício, como era de se esperar,
segue a cronologia dos homens que as compunham. Assim, a companhia dos
familiares só surge no Brasil no século XVIII, enquanto a primeira festa de
são Pedro Mártir acontece na Bahia em 1697, um ou dois anos depois em
Pernambuco, e em 1733 nas Minas. Inicialmente os oficiais inquisitoriais
residentes no Brasil faziam parte da irmandade lisboeta, as antenas locais do
sodalício surgindo provavelmente bem entrada a segunda metade do século
XVIII (Feitler, 2003:138-148).23 Quanto ao cargo de juiz conservador dos
familiares e de juiz do fisco, responsável pelo sequestro e subsequente confisco
dos bens dos processados pela Inquisição, ele parecia ser tacitamente conexo
ao cargo de ouvidor geral (isto é, o juiz local, nomeado por três anos) ou a
um outro cargo similar, pelo menos nas regiões costeiras, de colonização mais
antiga. Na região das minas, o cargo de juiz do fisco só foi criado em 1734, pelo
rei, sob recomendação do inquisidor geral (Feitler, 2003:112).

A ação inquisitorial no Brasil

A ação do Santo Ofício no Brasil também variou bastante no tempo


e no espaço, geralmente acompanhando o ritmo de ocupação territorial
e de crescimento econômico das regiões, o que evidentemente fazia com
que a população também crescesse e assim, as ocasiões de se encontrar
réus. Ela também se deixou influenciar pela falta de uma estrutura local de
funcionamento e pelos contextos geopolíticos europeus, como denota a baixa
do número de casos brasileiros durante o século XVII, como vimos, período
de experimentação para o Santo Ofício no Brasil, mas também de guerras,
o que dificultava a comunicação entre os dois lados do Atlântico. Assim, as

23 James Wadsworth (2003) avança a criação de irmandades de São Pedro Mártir para a época de
realização das primeiras festas em homenagem ao padroeiro da Inquisição, mas não me parece
dar provas documentais dessa existência.

37
primeiras décadas do século XVIII – quando a rede de oficiais locais se
constituiu, quando, apesar dos ataques franceses ao Rio de Janeiro, a guerra
se concentrou na Europa, e quando o lugar do Brasil como a “vaca de leite”
da Coroa portuguesa se consolidou com a descoberta do ouro, em 1694, na
região posteriormente chamada Minas Gerais – foram o momento de maior
ação inquisitorial no Brasil, particularmente voltada contra os judaizantes.
Ela resultou no desbaratamento das comunidades cristã-novas da colônia,
sobretudo o tradicional e importante grupo do Rio de Janeiro, destruído com
as mais de duzentas prisões, mas também de grupos de regiões periféricas,
como foi o caso do núcleo paraibano, onde foram presos, nessa época, cerca
de cinquenta pessoas acusadas de judaísmo. A importância do Brasil sobressai
inclusive do aumento da porcentagem de pessoas dele provenientes nos autos-
da-fé de Lisboa, contando em média por 21,25% dos condenados dos autos do
século XVIII. Depois de 1760 a atividade repressiva do Santo Ofício no Brasil
cai drasticamente, tornando-se inexpressiva após a instauração das reformas
pombalinas (1768-1774).24
Vejam-se os Quadros 1 e 2 com os lugares de residência e a distribuição
dos delitos ao longo do tempo dos 1076 casos até agora repertoriados para o
Brasil em estudo feito por Anita Novinsky (2002:27-43). Quanto ao primeiro
Quadro, vale a pena esclarecer que os casos por região não se distribuem
homogeneamente no tempo, mas que boa parte dos casos da Bahia aconteceu
durante as visitações de 1592 e 1618, os de Pernambuco na mesma visitação
de 1592, enquanto os casos do Rio de Janeiro, da Paraíba, e evidentemente
de Minas, se concentram no século XVIII. Os casos do Pará se concentram
em torno da tardia visitação lá feita entre 1763 e 1769. A grande diferença
dos números entre homens e mulheres revela o caráter colonial da sociedade
local, sobretudo no primeiro século da presença portuguesa, onde a mulher
branca, mais suscetível de cair nas teias inquisitoriais que as índias ou negras,
era escassa. A diferença se aplainou no século XVIII, como também diminuiu
a porcentagem de pessoas naturais do reino entre os presos do Brasil, mas essas
diferenças continuaram nas regiões de fronteira ou de ocupação efetiva mais
recente, como foi o caso em Minas Gerais e nos territórios constituintes do
Estado do Maranhão.

24 Para estes números, ver Wadsworth (2007:47).

38
Quadro 1 - Lugar de residência dos réus

Região Homens Mulheres Total


Rio de Janeiro 185 162 347
Bahia 208 41 249
Pernambuco 120 15 135
Minas Gerais/ Goiás 60 5 65
Paraíba 26 29 55
Pará 40 12 52
São Paulo/ Santos 13 1 14
Maranhão 10 1 11
Outros 37 4 41
Sem dados 79 28 107
Total 778 298 1076
Fonte: Novinsky (2002)

39
40
Quadro 2- Distribuição dos delitos inquisitoriais

1ª metade 2ª metade Séc. Séc.


Delitos/Época Séc. XVI Séc. XVII Sem data TOTAL
Séc. XVIII XVIII XIX

H M H M H M H M H H/M H M
Judaísmo 6 11 41 9 268 202 5 2 322 222
Bigamia 7 2 6 32 4 27 3 6 76 11
Proposições
67 1 1 3 8 2 5 84 3
heréticas
Sodomia 19 5 12 3 6 1 4 44 6
Blasfêmia 24 5 2 6 1 33 5
Feitiçaria 2 2 6 5 8 5 1 11 25 15
Solicitação 4 6 5 4 19
Gentilidades 16 2 1 17 2
Luteranismo 13 2 15

Outros/sem dados 35 8 8 26 28 9 1 68 143 34

TOTAL 187 36 78 9 344 211 93 14 2 102 778 298

Fonte: Novinsky (2002)


A situação colonial das terras portuguesas na América também sobressai
das ocupações ou profissões declaradas pelos homens presos. Enquanto no
reino os artesãos foram as principais vítimas da Inquisição, seguidos dos
profissionais do comércio (comerciantes e tendeiros), surgindo só então os
homens que viviam da terra, vemos que no Brasil a ordem se inverte. Com
efeito, dada a grande importância da mão de obra escrava para a economia, o
que desqualificava o trabalho manual, os artesãos livres eram poucos, como
também foram poucos (mas não inexistentes) os cativos presos pelo Santo
Ofício, apesar de sua importância numérica no Brasil. Excluindo-se o alto
número de processos sem dados (238) surgem em primeiro lugar aqueles
que trabalhavam na agropecuária e no comércio, contando ao todo por volta
de 40% do total (respectivamente 20,56% e 19,44%), seguidos pelos artesãos
(10,3%) e pelos eclesiásticos (10,19%).25
É bastante difícil vislumbrar objetivamente qual foi o impacto da ação
inquisitorial sobre a população e sua importância na história local. Contando-
se o número de prisões, não se pode dizer que sua ação tenha sido muito grande,
beirando apenas os cinco casos por ano quando se consideram os 223 anos que
medeiam a primeira visitação ao Brasil (1592) e a abolição do Santo Ofício
português em 1821, número bem abaixo das médias metropolitanas, que giram
em torno de 45 casos/ano para o período 1536-1821. Do total de 1076 prisões
efetuadas, 29 resultaram em pena capital (2,7%), com 20 relaxações “em carne”
e 7 em efígie, o que tampouco pode ser considerado como extremamente
violento, quando se vê que, para o tribunal de Lisboa como um todo, as
relaxações perfizeram 12% do total das penas (Novinsky, 2002:40). Também
devem ser contempladas nesta quantificação as muitas denúncias feitas ao
Santo Ofício que não resultaram em processo, pois elas são uma prova tangível
da incorporação da mensagem inquisitorial pela população. Entre 1590 e 1810,
pouco menos de 200 pessoas da região pernambucana (Pernambuco, Paraíba,
Alagoas, Rio Grande do Norte) foram presas pelo Santo Ofício, mas quase 700
foram lá denunciadas (Wadsworth, 2007:45-49).
O Santo Ofício também atuou como instrumento especificamente
disciplinador do clero (nos casos de solicitação) ou moralizante dos hábitos
sociais da população em geral (com a punição da bigamia e da sodomia, por
exemplo), mas é sobretudo nos casos de judaísmo que, atingindo grupos mais
amplos, podemos ver com mais clareza o seu impacto local. No caso do Rio
de Janeiro das primeiras décadas do século XVIII, por exemplo – então a mais
importante praça de comércio do Atlântico sul e porto de saída do ouro das
Minas –, pela importância política e econômica de certos personagens presos,
o impacto da ação inquisitorial sem dúvida não foi pequeno, mesmo que seja

25 Para os números de Portugal, ver Bethencourt ([1995] 2004:321-322). Os números referentes ao


Brasil encontram-se em Novinsky (2002:37).

41
difícil quantificar essa interferência na economia ou na sociedade locais.26
Como em todos os lados, através do medo que propositalmente incitava, ou
por ter sido por vezes utilizado como instrumento de confronto, o Santo Ofício
desestruturou cadeias de solidariedade, familiares ou outras, mantendo os
cristãos-novos – enquanto durou a distinção racial no mundo português – na
eterna posição de párias sociais, seja na prática, seja na simples possibilidade
de quebra de vínculos a que estes estavam mais sujeitos do que outros.
Contudo, a ação da Inquisição não pode (e não deve) ser avaliada apenas
a partir dos números de prisões ou de execuções, pois sua influência sobre
as sociedades em que atuava ultrapassava em muito sua ação penal. Como já
mencionado, no mundo português como um todo, o cargo de familiar acabou
sendo instrumentalizado por aqueles que a ele se candidatavam como uma
ferramenta de ascensão social. Acrescenta-se a isto o respeito e o temor que a
ação real desses oficiais, ou sua simples presença enquanto corpo, podia significar
(por meio das festas de são Pedro-Mártir e das milícias de familiares), além das
impactantes visitações inquisitoriais, das eventuais leituras de editais da fé e da
exposição dos retratos dos relaxados nas suas paróquias de origem, as quais foram
outras das vias de penetração da Inquisição no seio da sociedade local.

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26 Dom Luis da Cunha, em seu Testamento político, lembra o impacto das prisões dos cristãos-
-novos do Rio: “Depois que a Inquisição descobriu no Rio de Janeiro a mina dos judeus, e se
lhes confiscaram os bens, de que os principais eram os engenhos de açúcar, que se perdiam,
foi preciso que S. Majestade ordenasse que os ditos engenhos não fossem confiscados, vendo
o grande prejuízo que se fazia ao comércio deste importante género” (http://www.arqnet.pt/
portal/portugal/documentos/dlc_testamento3.html). Sobre os cristãos-novos do Rio de Janeiro,
ver Dines (1992) e Gorenstein (2005).

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