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Decres
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA
INSTITUTO NACIONAL DO LIVRO

CORRESPONDÊNCIA
DE

CAPISTRANO DE ABREU
EDIÇÃO ORGANIZADA E PREFACIADA
POR

JOSÉ HONORIO RODRIGUES

VOLUME I

WD

RIO DE JANEIRO 1954


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CORRESPONDÊNCIA

DE CAPISTRANO DE ABREU

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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA
INSTITUTO NACIONAL DO LIVRO

CORRESPONDÊNCIA
DE

CAPISTRANO DE ABREU
EDIÇÃO ORGANIZADA E PREFACIADA
POR

JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

VOLUME I

RIO DE JANEIRO 1954


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CORRESPONDÊNCIA

DE CAPISTRANO DE ABREU

i
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA
INSTITUTO NACIONAL DO LIVRO

CORRESPONDÊNCIA
DE

CAPISTRANO DE ABREU

EDIÇÃO ORGANIZADA E PREFACIADA


POR

JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES

VOLUME I

NA

RIO DE JANEIRO – 1954


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SUMÁRIO DO VOLUME I

PREFACIO IX

CAPISTRANO DE ABREU E A HISTORIOGRAFIA BRA


SILEIRA XXXVII

CARTAS

A RAMOS PAZ 1880-1909 3


A DOMINGOS JAGUARIBE 1880-1915 29
A DIVERSOS 1880-1927 49
A ASSIS BRASIL E SENHORA 1881-1922 72
AO BARAO DO RIO BRANCO 1886-1903 102
A GUILHERME STUDART 1892-1922 139
A JOSÉ VERISSIMO 1893-1914 189
A MARIO DE ALENCAR 1896-1925 201
A DOMICIO DA GAMA 1900-1919 261
A PAULO BRANDAO 1904-1912 270
A AFONSO TAUNAY 1904-1927 274
A J. B. PANDIA CALOGERAS 1905-1927 351
A ARROJADO LISBOA 1911-1924 418

INDICE DAS GRAVURAS

DOMINGOS JAGUARIBE 36 AeB


SENHORA CAPISTRANO DE ABREU 76
ASSIS BRASIL 100
DOMICIO DA GAMA E BARAO DO RIO BRANCO 132
GUILHERME STUDART 172
JOSÉ VERISSIMO
196
FAC- SIMILE DE TRECHOS DE CARTA DE CAPISTRANO 212
MARIO DE ALENCAR 252
AFONSO TAUNAY
300
J. B. PANDIA CALOGERAS 364
99

ARROJADO LISBOA 428

M895103
|

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PREFÁCIO

A EDIÇÃO DA CORRESPONDENCIA

Para comemorar o centenário do nascimento de João Capistrano de


Abreu pensava a Biblioteca Nacional editar a sua correspondência e pro
mover uma exposição sôbre sua vida e obras. Não era possível cogitar
da reedição de seus livros, ensaios e estudos, esgotados ou inéditos, pois
êstes são propriedade da família e estão a cargo da Sociedade Capistrano
de Abreu, fundada a 11 de setembro de 1927, com o propósito de prestar
homenagem à memória do historiador, promovendo a edição de seus
trabalhos e inéditos e a reedição das obras já publicadas.
A correspondência entre João Capistrano de Abreu e João Lúcio
de Azevedo e as cartas avulsas existentes na Secção de Manuscritos da
Biblioteca Nacional eram propriedade desta e só sob sua responsabilidade
poderiam ser editadas. A primeira fóra oferecida à Biblioteca Nacional
a 7 de março de 1928 pelo próprio João Lúcio de Azevedo, em carta
dirigida ao Dr. Mário Bhering, então diretor da Casa . “ Por espaço de
mais de onze anos”, dizia João Lúcio , “ tive a fortuna de entreter ativa
correspondência com Capistrano de Abreu, e tão interessantes achei suas
cartas que as guardei tôdas ou quase tôdas. Elas encerram curiosas par
ticularidades sobre o viver e pensar do escritor e poderão servir útilmente
a quem um dia pretender traçar o perfil de uma figura de tanto presti
gio entre os estudiosos. Pareceu-me por isso que agora, por morte dele,
o lugar adequado para estas cartas seria a Biblioteca Nacional do Rio ,
para onde as dirijo, com endereço a V. Senhoria, seu ilustre Diretor. Aí
ficarão sob boa guarda e acessíveis aos amigos e admiradores do finado
que, se a família não fizer objeção, as poderão ver, copiar ou publicar,
se assim quiserem, porque da minha parte não me oponho a isso .”
X CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

João Lúcio de Azevedo não se opunha, mas a própria família de


Capistrano de Abreu fazia restrições à consulta e publicação de trechos
ou de certas cartas na integra, julgando inoportuna no momento a sua di
vulgação. E não era só a família. O próprio Governo, de ordem do Mi
nistro da Justiça, Sr. Viana do Castelo, determinava em portaria desse
mesmo ano de 1928 que ficassem reservadas e sigilosas tais cartas. Jor
nais da época, como O Globo de 15 de maio de 1928, censuraram o ato do
Sr. Ministro da Justiça. Mas o Diretor da Biblioteca Nacional, obede
cendo rigorosamente as determinações ministeriais, conservava em cofre,
na Secção de Manuscritos, a referida correspondência.
Em 1931 , o Sr. Comandante Eugênio de Castro, membro da Comis
são Executiva da Sociedade Capistrano de Abreu e amigo dileto do histo
riador, desejando consultar aquela correspondência e estudar a possibilidade
de publicar algumas cartas, solicitava permissão do Diretor, que não conce
deu licença sequer para a consulta, argumentando que pelo Regulamento da
Biblioteca Nacional ( decreto n . 8.835, de 11 de julho de 1911 , art. 106 ),
a cópia dos manuscritos ou impressos reservados dependia de autorização
ministerial, cabendo recurso de seu ato para o próprio Sr. Ministro da
Justiça, que era então o Sr. Belisário Pena. Este, depois de visitar a Bi.
blioteca Nacional e informar-se com o Diretor, confirmou a reserva dos
documentos que, assim, de 1931 a 1953 permaneceram inacessíveis à con
sulta pública Foi somente a 2 de julho de 1953, com a promulgação da
Lei do Congresso Nacional n. 1.896, que se determinou fósse editada
aquela correspondência. Solicitado o consentimento da família do his
foriador, foi este fàcilmente conseguido, com a única restrição de que não
fossem editadas algumas cartas ou trechos considerados inconvenientes
ainda neste momento.
Ficou, assim, a Biblioteca Nacional habilitada a editar as cartas de
sua propriedade, que se limitavam , como se disse, à correspondência com
João Lúcio de Azevedo, às avulsas e às dirigidas a Rodolfo Garcia, com
pradas recentemente. Os recursos financeiros foram providos pelo Con
gresso Nacional, por iniciativa do Sr. Deputado Adail Barreto, com a
inclusão de uma verba de 300 mil cruzeiros no orçamento do Instituto
Nacional do Livro para 1953 , destinada exclusivamente à edição daquela
correspondência. As Diretorias Gerais da Biblioteca Nacional e do Ins
tituto Nacional do Livro concordaram que coubesse ao Diretor da Divi
são de Obras Raras e Publicações, que, há mais de dois anos, vinha pre
narando os originais da Biblioteca e colhendo os demais, a organização da
edição que o Instituto mandaria imprimir.
PREFÁCIO XI

A correspondência agora editada inclui várias coleções cedidas pelas


familias de amigos de Capistrano de Abreu e pela sua própria família ao
editor, que também pesquisou e reuniu algumas outras cartas.

A PROCEDENCIA.

As cartas a João Lúcio de Azevedo, a Ramos Paz, a Rodolfo Garcia,


e algumas avulsas, fazem parte do acervo da Biblioteca Nacional ; as
dirigidas a Assis Brasil foram gentilmente cedidas pela sua família, por in
termédio do Dr. Bastián Pinto ; as endereçadas a Rio Branco constam do
arquivo particular do Barão, que se encontra no Arquivo Histórico do
Ministério das Relações Exteriores; as escritas a Guilherme Studart
fazem parte do acervo do Instituto do Ceará. A família de Capistrano
de Abreu possuía péssimas cópias, que foram mandadas corrigir à vista
dos originais, em Fortaleza, graças à gentileza do sr. Ministro Abner de
Vasconcelos, que as encaminhou ao Presidente do Instituto, Dr. Tomás
Pompeu Sobrinho. Incumbiu-se da colação e emenda o escritor Dr. Dolor
Barreira, ajudado pela bibliotecária do Instituto, D. Conceição de Sousa.
As cartas a José Veríssimo já foram publicadas pela Academia Brasileira
de Letras ( Revista , ns. 118-120 , 1931 ) ; as enviadas a Mário de Alencar
e Domício da Gama foram cedidas pela família Capistrano de Abreu ; as
expedidas a Afonso de E. Taunay foram por éste publicadas no Jornal do
Comércio ; as destinadas a Miguel Arrojado Lisboa foram cedidas pelo
Dr. Iseu de Almeida da Silva ; as remetidas a Paulo Prado foram ce
didas pela Sra . Paulo Prado, através a gentileza do Sr. A. A. Monteiro
de Barros Neto ; as escritas a João Pandiá Calógeras foram doadas por
Madame Calógeras à Sociedade Capistrano de Abreu, por intermédio do
amigo comum Comandante Eugênio, de Castro ; as enviadas a Paulo José
Pires Brandão encontram -se no Arquivo da Sociedade Capistrano de
Abreu ; e finalmente as dirigidas a Domingos Jaguaribe pertencem ao
acervo da Biblioteca Nacional. Deixam de ser incluídas nesta coleção as
cartas de Capistrano a Oliveira Lima que se encontram na Lima Library,
na Universidade Católica de Washington. Desde 1944, quando lá estive
mos, procuramos obter cópias das mesmas, o que nos foi impedido pelo
diretor Sr. Manuel Cardoso de Oliveiral.

1. José Honório Rodrigues. “ A Biblioteca Oliveira Lima em Washington ",


O Jornal, 5 de maio de 1946.
XII CORRESPONDÊNCIA DE CAPI : TRANO DE ABREU

Sòmente a correspondência inédita é aqui transcrita, com exceção


das cartas dirigidas a José Veríssimo, Afonso Taunay e algumas avulsas,
já impressas em jornais e revistas. Deixou-se também para outra opor
tunidade a vasta correspondência dirigida a Capistrano de Abreu, es
pecialmente a de João Lúcio, que se encontrava em mãos do Co
mandante Eugênio de Castro e que foi pelo seu filho, Dr. Maurício
de Castro , cedida ao editor. Estas cartas serão publicadas no ano próximo
futuro, juntamente com outras do próprio Capistrano que esperamos
venham a aparecer em face do interesse que esta Correspondência certa
mente despertará. De alguns grandes amigos do Mestre, como Manuel
Barata, Teodoro Sampaio, Coelho Neto, Francisco Sá, Leopoldo Bu
lhões, Tobias Monteiro, Orville Derby, Padre J. B. Hafkemeyer, Alberto
Rangel, Manuel Said Ali, Ida e Tasso Fragoso foi encontrada apenas a
correspondência passiva.

NORMAS DESTA EDIÇÃO.


Na edição desta Correspondência procurou -se seguir fielmente o ori
ginal, escrito, em sua maioria, em letra miúda, de difícil leitura. Lida e
relida, confrontada e colacionada mais de seis vezes, havia sempre o que
corrigir e emendar, As letras ou palavras cuja leitura resistiu a todos
os nossos esforços de decifração estão assinaladas com uma interrogação
ou um sic entre colchêtes.
2
As cartas não foram censuradas ou alteradas. Sòmente duas ou
três vezes cortaram - se pequenos trechos, assinalados com reticências entre
colchêtes [ ... ] . Seria lastimável não transcrever toda a carta pela in
conveniência de uma ou duas frases. Umas poucas cartas, cuja divulgação
foi considerada inoportuna, deixaram de ser publicadas.
Não se desdobraram as abreviaturas e não se fizeram notas, senão
umas, poucas, julgadas absolutamente indispensáveis. Nenhuma toilette
foi usada. As cartas são apresentadas como Capistrano as escreveu, salvo
a atualização da grafia.
Os trabalhos preliminares foram longos e custosos. Não só a leitura
exigiu especiais cuidados. Basta assinalar que algumas coleções não es
tavam em ordem cronológica e há cartas datadas com o dia do mês, sem
referência ao ano , e outras de maneira bizarra : " dia das pêtas ", " dia de

2. Em carta a João Lúcio de Azevedo, de 15 de novembro de 1916, dizia


Capistrano : “ Detesto a censura como a Inquisição ” .
PREFÁCIO XIII

Reis, noves fora nada ”, existindo numerosíssimas com os dias de santos


da Igreja, festas móveis e as oitavas das comemorações religiosas ou ci
vicas e umas poucas sem nenhuma indicação. A determinação de datas
tornou-se assim trabalhosa. Aos funcionários Air de Medeiros, Cidnéia
Bouyer e Zélia Araújo de Medeiros da Secção de Publicações da Biblio
teca Nacional, Filomena Filgueiras e Antônio Pereira da Silva, colabo
radores do Instituto Nacional do Livro , que nos ajudaram com tanto zelo
e dedicação na tarefa de cópia, confronto e revisão ficam aqui os nossos
melhores agradecimentos. Foi Lélio Landucci, cujo carinho pela arte do
livro todos reconhecem , quem fêz, com o bom gôsto e cuidado de sempre,
a marcação tipográfica. Não se lhe deve só isto, pois assistiu e se inte
ressou pela revisão das provas, fazendo valiosas observações. E como
sempre devo à Lêda, minha mulher, a assistência constante, desde os
primeiros momentos da colheita e cópia, até a revisão final.

OS CORRESPONDENTES.

As primeiras cartas aqui publicadas são as dirigidas a Francisco Ra


mos Paz ( 1838–1919) e contêm elementos preciosos sõbre a bibliografia,
o processo de trabalho, as pesquisas e os projetos de Capistrano de Abreu.
Éste escreveu a propósito do amigo, de quem era compadre e admira
dor, um excelente ensaio biográfico que serviu de introdução ao suple
mento do Catálogo da Biblioteca de Ramos Pazu .
As cartas a Joaquim Francisco de Assis Brasil ( 1857-1938) , que
conheceu através de Valentim Magalhães, quando aquele estudava na Fa
culdade de Direito de São Paulo e preparava a História da República Rio
grandense “, mostram vários aspectos das tendências filosóficas de Ca
pistrano, então positivista militante, sua dedicação aos amigos, a alegria
com o casamento , seus estudos e planos de trabalho, suas viagens e im
pressões do Rio Grande do Sul, e curtas e incisivas opiniões sôbre a situa
ção política brasileira.
José Maria da Silva Paranhos, sempre objetivo, dedicado exclusiva
mente à Geografia e à História, foi dos melhores amigos de Capistrano e

3. Francisco Ramos Paz ( 1838-1919 ) , Rio de Janeiro, 1920, reproduzido


in Ensaios e Estudos, 2.a série, Rio de Janeiro, ed. da Sociedade Capistrano de
Abreu, 1932, págs. 201-216.
4. História da República Rio -grandense, Rio de Janeiro, Leuzinger, 1882.
XIV CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

manteve com ele uma correspondência muito ativa e valiosa, na qual


conversam e discutem sobre seus trabalhos. Capistrano, que nutre pelo
Barão e seus estudos o mais alto respeito, pesquisa para ele e pede-lhe que
realize certas investigações nos arquivos europeus, opina sõbre os tra
balhos do amigo e comunica - lhe seus próprios projetos, propõe ques
tões , levanta problemas, discute e argumenta.
Em 1890 , depois de contar-lhe como se processara a Proclama
ção da República, pede-lhe que se resolva a publicar a sua Histó
ria da Marinha e a sua História Militar. “Por que não dá uma
edição preparatória ? Deixe para mais tarde o definitivo ; não é justo
que quem tem feito tantas descobertas e achado tantas novidades,
continue com elas trancadas. Ia terminar esta sem lhe dar OS
parabéns pela sua História do Brasil. É espléndida, e quanto apren
di nela. Veio -me a idéia de traduzi-la, acrescentando-lhe alguns ca
pítulos e notas 5.” Não era uma manifestação de cortesia, não era um
cumprimento da parte de quem dificilmente elogiava ; era uma opinião e
um juízo de que estava tão persuadido que, pouco depois, em outra carta,
repete com a mesma convicção : “ O que me penaliza é não poder apro
Por que não os publica
veitar seus trabalhos sôbre história militar.
aqui ? Por que não os dá em nova coleção, como propus a tempo ? Deixe
a edição perfeita para alguns anos mais tarde. O que tem apurado já é
tanto que podemos esperar o refino mais uns dez anos. Seu nome e
sua pessoa vêm muitas vezes à memória, e sempre com um travo de tris
teza. Quando me lembro que pode dar -se o caso de seus trabalhos não
serem publicados , fico fora de mim e meu desejo era ser ditador para
desligá - lo de tudo e de todos e dar- lhe tudo que precisasse , mas com um
prazo , o mais curto possível , para escrever sua história naval e sua his
tória militar 6. "
Alguns anos depois de morto Rio Branco, Capistrano escreve a João
Lúcio dizendo - lhe que folheara no Instituto Histórico as páginas im
pressas das Efemérides. “ Creio que começou-as para ser agradável ao
Rodolfo Dantas, quando se fundou o Jornal do Brasil. Parece que falta
vam uns dois mêses no espólio que mandaram para o Instituto Histórico,
onde os completaram. Rio Branco tinha o gênio da minúcia , da paciên
cia e da exatidão ? . ” A correspondência dos dois historiadores é muito

5. Carta a Rio Branco, 25 de janeiro de 1890 .


6. Carta a Rio Branco, de 17 de abril de 1890 .
7. Carta a João Lúcio de Azevedo, de 14 de abril de 1918.
PREFÁCIO XV

importante para conhecer-se os dois homens e ver como os aproximou o


mesmo devctado amor à História Pátria.
Do mesmo quilate, da mesma categoria correspondência séria,
objetiva, exclusivamente histórica é a que Capistrano manteve com
Guilherme Studart, o outro barão da nossa Historiografia. Nesse caso
é mais longa e mais pessoal, pela amizade que os uniu desde cedo, em
1863, nos bancos das primeiras letras do Ateneu Cearense Aqui
ao lado dos processos e projetos de trabalho, dos pedidos de cópias
e investigações, do auxílio para a anotação de Varnhagen, encon
tram -se as melhores notas autobiográficas de Capistrano, enviadas a pedido
do amigo, que planejava o Dicionário Biobibliográfico Cearense' ; pala
vras de incentivo : " teus olhos são necessários ao Ceará10” ; censuras a pro
pósito da falta de citação da procedência dos documentos ; críticas e opiniões
sobre os velhos cronistas, os historiadores antigos e os contemporâneos.
Capistrano reconhecia os esforços e contribuições de Studart para o me
lhor conhecimento não só da história cearense como da brasileira .
Ninguém conhecera como Studart o período de 1600 a 163011 ; ele e Rio
Branco renovaram o conhecimento da conquista do Maranhão , dizia e
escrevia sempre. Para a História e a Historiografia e para a biografia
de Capistrano de Abreu, esta correspondência é inestimável.
Capistrano conheceu José Veríssimo logo depois da mudança deste
para o Rio de Janeiro. Fêz parte, com João Ribeiro e Raja Gabaglia, da
banca que o examinou, em 1906, no concurso para o provimento da ca
deira de História Geral do Colégio Pedro II, ao qual candidataram -se
também Feliciano Pereira Pinto, Pedro do Couto, José Francisco da
Rocha Pombo, Armando Dias, Joaquim Osório Duque Estrada, Justinia
no de Melo e Silva, Luís Gastão de Escragnolle Dória, Felisbelo Freire,
Charles Charnaux, Ernesto Carneiro Santiago e Pedro Alexandrino Car
doso Filho. Amigo e admirador de José Veríssimo, Capistrano fêz então
duas inimizades : Rocha Pombo e Escragnolle Dória . A proposito do
primeiro escreve a João Lúcio nestes têrmos : “ Quando houve o céle
bre concurso de história que tanto amofinou o Veríssimo, vendo-se (Ro
cha Pombo ) perdido quis levar a coisa em chalaça. Reprovei-o : ficou
meu inimigo. Ganhamos ambos com o resultado.112 "

8. Carta a João Lúcio de Azevedo, de 9 de julho de 1920.


9. Fortaleza, 1910.
10. Carta a Studart, de 13 de novembro de 1906 .
11. Carta a Studart, de 28 de novembro de 1908.
12. Carta a João Lúcio de Azevedo, de 9 de março de 1921.
XVI CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Já em 1901 ele transmitia a Mário de Alencar o que lhe lhe dissera José
Carlos Rodrigues quando voltara da Europa : " Estão os senhores Nabuco e
Aranha em Londres a se entusiasmar pelos artigos de José Veríssimo e a
dizer dêles maravilhas com o Oliveira Lima . Ele não vale o que eu pago13 ”.
E quando morre o amigo, ele escreve : “ Não posso conformar m
- e com a
idéia de que não mais tornarei a encontrá-lo. Muitas vezes nossas opi
niões e atitudes divergiram inteiramente, mas os laços de boa amizade
nunca afrouxaram e a intimidade foi sempre crescendo mais forte 14."
Nesta correspondência já conhecida, pois divulgada desde 1931 , domina
a história, mas aparecem também opiniões literárias e observações críticas.
Nenhum acervo tem tanta significação intima, pessoal, como o con
junto de cartas dirigidas por Capistrano a Mário de Alencar, a quem o
unia a velha admiração ao pai , José de Alencar. O primeiro encontro
com o escritor causara- lhe tão grande impressão que ele guardava a data :
“ Há hoje 47 anos que vi seu pai pela primeira vez em Maranguape15.”
Não só os estudos históricos, etnográficos e lingüísticos aparecem como
relêvo que sempre lhes deu Capistrano, mas retratam -se suas crises morais,
com a perda da esposa, a ida da filha para o convento , a morte do filho
Fernando. Em nenhuma outra correspondência mostram -se tão eviden
tes sua aspereza crítica e sua franqueza algumas vezes dura. Mário era um
amigo mais môço, e ele lhe desejava tanto bem que se permitia usar de
uma sinceridade às vezes rude. Censura-lhe os caminhos da vida e da
literatura, opina, mostra e defende suas convicções filosóficas, históricas
e literárias. Nesta correspondência manifesta sua formação germânica
e seu profundo respeito e admiração pela cultura alemã . A primeira
carta é uma descrição e uma análise muito interessante do sucedido a Raul
Pompéia e não menos valiosas são as interpretações sobre a imagem do
Pai de Alencar, na vida e na obra de Mário16 .
As cartas a Domício da Gama são poucas, mas não sem interesse.
Conheceram-se nos fins de 1887, quando a Gazeta de Notícias começara a
publicar contos de Domício e Capistrano dêles falara a Raul Pompéia ! .
Foi Capistrano quem deu o primeiro passo para a carreira diplomática

13. Carta a Mário de Alencar, de 28 de agosto de 1901 .


14. Carta a João Lúcio de Azevedo, de 7 de fevereiro de 1916.
15. Carta a Mário de Alencar, de 24 de agosto de 1921 .
16. Cf. especialmente carta de 14 de setembro de 1901.
17. Vide Domício da Gama, “ Capistrano de Abreu ” , Revista do Brasil, julho
de 1924.
PREFÁCIO XVII

do amigo apresentando - o a Rio Branco. "Tenho a honra de apresentar


lhe meu amigo Sr. Domício da Gama, cujo nome já tem firmado brilhan
tes contos na Gazeta. Recomendo - o com instância, certo de que há de
apreciá -lo condignamente 18.” Domício, que não permaneceu sempre fiel
a esta amizade, escreveu, em 1924, aquele admirável ensaio sobre o his
toriador na Revista do Brasil19 e em 8 de junho de 1925, tendo almo
çado juntos em casa de Leopoldo Bulhões, Capistrano observa que ele
“ é o mesmo homem de outros e melhores tempos20. ” As novas ligações
entre o Brasil e os Estados Unidos são censuradas nesta correspondên
cia com um forte acento de descrença pelas vantagens que delas pode
ríamos colher21
Afonso Taunay, seu ex -aluno de História, é, como Mário de Alencar,
um moço a quem orienta e dirige, numa correspondência exclusivamente
histórica. Planos de trabalho, de pesquisa, edição de textos, crítica aos
livros de Taunay, tudo isto é a nossa Historiografia entre 1904 e 1927,
com seus problemas e o estado das questões.
Miguel Arrojado Lisboa ( 1872-1932 ) é também dos melhores ami
gos de Capistrano. Uma amizade franca, leal, decidida, une estes dois
homens de formação tão diferente, mas ligados pelo ideal da unidade das
ciências e do conhecimento do Brasil. Capistrano acreditava que a His
tória, a Geografia, a Etnografia e a Lingüística deviam tornar-se discipli
nas científicas e daí suas leituras e estudos sobre as ciências naturais e
físicas ; Arrojado Lisboa sentia a necessidade de compreender o Brasil
e sua formação, para melhor dirigir suas atividades técnicas. Coube-lhe
pronunciar o discurso na inauguração da placa em bronze oferecida pela
Prefeitura à rua Capistrano de Abreu, e nesta ocasião ele acentuou que
uma elite apurada, representativa de nossa melhor intelectualidade e de
nosso pensamento contemporâneo, ali se unia espontâneamente, sem pro
pósito deliberado e sem concerto, para homenagear o sábio Capistrano.
A correspondência retrata estes traços de união entre um engenheiro de
minas e um historiador, e mais os problemas cotidianos e políticos da
quela época.

18. Carta a Rio Branco, de 27 de maio de 1888.


66
19. Capistrano de Abreu " , Revista do Brasil, julho de 1924.
20. Carta a Paulo Prado, 8 de junho de 1925.
21. Veja - se também sua opinião em 1901, comentando a Ilusão Americana
de Eduardo Prado. Cf. Ensaios e Estudos, 1.a série, Rio de Janeiro, ed. da So
ciedade Capistrano de Abreu, 1931 , pág. 343.
XVIII CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

A mais volumosa correspondência, talvez pelo cuidado com que João


Lúcio de Azevedo a conservou , doando - a à Biblioteca Nacional com as
palavras que já transcrevemos, inicia-se em 1916, por intermédio de José
Veríssimo, que os aproximou . Onze anos de correspondência erudita,
histórica, literária, variada, ligam o mestre brasileiro ao grande historia
dor português daquela época. Aqui, pela primeira vez, um pouco de
maledicência e humor maliciam as cartas. Mais de uma vez22 ele de
clara contar este ou aquele rumor " não para que incorpore esta verba a
meu ativo, mas para falar um pouco da vida alheia ” . As anedotas pi
cantes e as malícias misturam -se às mais sérias pesquisas, aos projetos
eruditos, à crítica severa, às censuras objetivas, aos estudos, reparos
e notas. Será difícil saber por que isto ocorre especialmente nesta corres
pondência. Cartas de uma fase da vida de Capistrano ? Não sabemos,
mas é certo que foi particularmente neste trecho da Correspondência que
se fêz a seleção exigida pela família . O amor à verdade, que sempre
dirigiu seus passos na vida e na História, foi abandonado, em alguns trechos
destas cartas, pelo murmúrio da rua e pelos escândalos da política ; isto
constitui , realmente, uma exceção. Capistrano não demonstra gosto, nas
outras cartas, por estes aspectos, e diz mesmo “sou pouco amante de lama
e crocodilo23." Sabia que " freio morde-se em casa, é o único meio de
estranhos não se rirem de caretas 24."
Se assim era, como compreender-se a transmissão descontrolada de
rumores de maledicências da rua a seu amigo do estrangeiro ? Para fazer
um pouco aquela geologia da lama, como a chama Orville Derby, e que
ele aplicou às Confissões e Denúncias da Inquisição ? Era uma gente
desavergonhada aquela que os depoimentos mostravam . “ Como se men
tia e caluniava naquele tempo de riso nos lábios e paz na consciência ! se
esta remordia, uma simples absolvição arrancava -lhe a dentuça25.” Mas
os vícios e as virtudes do homem não são próprios de 1591-95 ou
de 1618, quando a Inquisição nos visitou, mas de todas as épocas, inclu
sive de 1916 a 1927. Em 1911 a situação o impressiona: “ O termôme
tro da dignidade de poucos graus vai acima de zero : mas abaixo a gra
duação não tem fim 26.” E logo depois escreverá a Calógeras: " Há so

22. Cartas a J. L. de Azevedo, de 2 de abril de 1920 e 18 de março de 1918.


23. Carta a Arrojado Lisboa, de 19 de janeiro de 1919.
24. Carta a Arrojado Lisboa, de 4 de janeiro de 1917.
25. Carta a João Lúcio de Azevedo, de 15 de abril de 1917.
PREFÁCIO XIX

bretudo um desbrio que aterra. Há uma voluptuosidade de lama, como


não me lembro haver assistido a igual. Será a falta de vergonha promul
gada por Roscher para a geração que sucede a cada movimento revolu
cionário ? Talvez coisa pior : já estamos no segundo decênio da grande
crise, e ainda faltam os primeiros rubores da alvorada 27.” Por isso
êsses respingos de lama que não quebram ossos vêem-se e sentem - se por
tôda parte e em todas as épocas. Mas por que só agora ele os recolhe e
espalha ? O João Ninguém , como ele se assina a partir de 1925, estaria
ressentido, amargando frustrações e insatisfações ?
Esta correspondência com João Lúcio de Azevedo é também fonte
valiosa das opiniões de Capistrano sobre contemporâneos, políticos e li
teratos, e especialmente historiadores antigos e modernos.
A seguir, Paulo Prado é seu correspondente mais importante, abran
gendo as cartas de 1918 a 1927. O autor do Retrato do Brasil iniciara
scus estudos históricos, movido pelo interesse que lhe despertara a leitura
dos Capítulos de História Colonial. Nesta correspondência dominam tam
bém os aspectos históricos, há referências a pesquisas, estudos, publicações,
alguma matéria política respingada em frases curtas e incisivas, e, ainda
um pouco de maledicência. Domício contara -lhe que Paulo fôra tido
como uma flor de civilização em casa de Eça de Queirós, e que
dançava, tocava, etc. “ Nunca pensei que V. possuísse esta prenda, es
pero que não a tenha perdido 28. ” Livros, artigos, ensaios de Paulo rece
beram sempre a crítica e a aprovação de Capistrano, que o orientava nos
estudos, informava - o sôbre as fontes e a bibliografia e recomendava-lhe
leituras. O próprio título Paulistica foi primeiro usado por Capistrano
quando andava escrevendo seus trabalhos sõbre São Paulo em 191729.
Não sei se seria avançar demais dizer que esta correspondência mostrará
que Paulo Prado como intérprete de nossa História não seria o que foi se
não contasse com a assistência de Capistrano de Abreu. Mas ela revela
também a formação e as leituras prediletas de Capistrano nestes anos de
influência sôbre Paulo Prado, como sábio e mestre.
A correspondência com Rodolfo Garcia “pernambucano, inteligente,
instruído, mas que não dispensa censor, porque às vezes dispara 30, '

26. Carta a Arrojado Lisboa, de 13 de janeiro de 1911 .


27. Carta a Calógeras, de 9 de abril de 1911 .
28. Carta a Paulo Prado, de 8 de junho de 1918.
29. Carta a Mário de Alencar, de 31 de março de 1917.
30. Carta a J. L. de Azevedo, de 12 de fevereiro de 1923.
XX CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

é, infelizmente, pequena moravam próximo e viam-se quase diària


mente - e de menor significação. Rodolfo Garcia foi quem o ajudou na
revisão de seus trabalhos, a partir de certa época, e a quem coube o
mais importante do seu espólio : as anotações às edições críticas da His
tória Geral do Brasil de Varnhagen , da História do Brasil de Frei Vi
cente e das Denunciações de Pernambuco . A primeira edição de Frei Vi
cente, publicada em 1918, e que é o mais exemplar modelo de crítica histó
rica no Brasil, foi reeditada em 1931 com o nome de Rodolfo Garcia na
capa ; as anotações à História Geral de Varnhagen , cujo primeiro
volume foi publicado por Capistrano de Abreu em 1907, com os demais
volumes quase prontos , como se verá nesta correspondência , foram intei
ramente cedidas a Rodolfo Garcia, que as reviu e acrescentou para a 4.a
edição. Capistrano, que despendera um grande esforço na anotação, por
espaço de vários anos, não pôde resistir ao abalo que significara a queima
do livro no incêndio que destruiu as oficinas da Companhia Tipográfica
do Brasil. Deu ao seu amigo e auxiliar de revisão as notas que possuía
e que foram por ele aproveitadas. As Denunciações de Pernambuco 31 ,
da série Eduardo Prado, editadas por Rodolfo Garcia com uma introdu
ção que é um dos melhores estudos sobre a sociedade colonial brasileira ,
são também continuação da obra iniciada por Capistrano de Abreu com
os dois volumes de Confissões da Bahia ( 1591-1592 ) 32 e Denunciações
da Bahia ( 1591-1593 ) 33. Rodolfo Garcia foi o mais fiel e digno sucessor
da obra de Capistrano de Abreu.
João Pandiá Calógeras ( 1879-1934 ) foi dos maiores amigos de Ca
pistrano de Abreu , como se pode ver nesta correspondência e nas inu
meráveis referências que aos outros correspondentes faz da sua vida e
da sua obra. Conheceram -se, o Mestre e o menino de 14 anos, nos exa
mes de preparatórios do Colégio Pedro II em 1884. Calógeras, nascido
na Rua D. Luísa, onde morou por tantos anos Capistrano de Abreu, foi,
aos 15 ou 16 anos, para Ouro Preto, formando - se em minas e engenharia
civil . Casou-se em família mineira a senhora era sobrinha de Ber
nardo Guimarães, o poeta e romancista, e a especialidade e a política nunca
o afastaram do velho professor do Colégio. Eis o seu próprio testemu
nho : “ Durante quarenta e três anos ligou -me a Capistrano a mais perfeita

31. Primeira visitação do Santo Ofício às partes do Brasil, Denunciações de


Pernambuco, 1593-1595, São Paulo, 1929.
32. São Paulo, 1922.
33. São Paulo, 1925.
PREFÁCIO XXI

amizade, sem nuvem , sem um desfalecimento, no mais elevado convívio


de espírito que se possa imaginar 34."
As censuras ou reparos que uma ou outra vez se podem notar nestas
cartas as obras de Calógeras são ditadas pela amizade, pelo desejo de
evitar os enganos, feitas sòmente entre amigos. Dissesse alguém fora
do grupo dêstes, uma palavra menos respeitosa, ou fizesse qualquer cri
tica a Calogeras e Capistrano se indignaria, pois não admitia reservas ao
amigo. E dêle dizia a Domício da Gama : “ Gostei muito que fosse
nomeado ; ninguém pode competir com ele no conhecimento do Brasil 35. '
Nada se pode comparar a éste julgamento simples e decisivo.
Ainda em 1918, quando Calógeras preparava o trabalho sôbre o re
conhecimento da Independência, Capistrano comentava que sõbre o mesmo
assunto publicara Oliveira Lima um livro muito superficial lá anos, “ e
não há de ficar satisfeito com o contraponto 36 »

Capistrano colabora na obra de Calógeras, informando, pesquisando


sugerindo leituras e bibliografia, emendando originais e provas. A cor
respondência discute idéias, aponta livros, opina sôbre política e mostra
a presença constante, leal, franca, às vezes rude, de um amigo. Capistrano
não foi só isso ; foi também admirador de Calogeras, um dos mais completos
estadistas que o Brasil possuiu no século XX . Nêle se reuniram o conhe
cimento da formação histórica do país e o estudo objetivo dos seus pro
blemas atuais para servir a uma orientação política que era filha da moral
e sã consciência. Os dois correspondentes revelam nestas páginas os in
teresses e os objetivos da Historiografia e da política brasileiras entre
1904 e 1927.
As cartas a Paulo José Pires Brandão são de interesse muito relativo,
abrangendo de 1904 a 1909.
Já a correspondência com seu velho e queridíssimo amigo Domin
gos José Nogueira Jaguaribe Filho ( 1847-1926 ) , seu companheiro de in
fância, a quem sugeria leituras e trabalhos, tem maior significação. A
morte de Jaguaribe abalou - o tanto que, segundo Calógeras , envellieceu - o
de dez anos 37. Nessa época escreve : “ As relações de nossas fami

34. J. P. Calogeras, “ Capistrano de Abreu " , O Jornal, 14 de setembro de


1927, reproduzido in Estudos Históricos e Políticos, São Paulo, 1936, 2.a ed.,
Brasiliana, vol . 74, págs. 13-27.
35. Carta a Domício da Gama, de 23 de janeiro de 1919.
36. Carta a João Lúcio de Azevedo, de 7 de agosto de 1918.
37. Calogeras, “ Capistrano de Abreu ” , ob. cit.
XXII CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

lias datam de quase cem anos . Eles são de Icó, nós de Sobral; Maran
guape nos reuniu ... Uma vez disse - lhe : vamos escolher dentre seus
livros um , vamos revê-lo e emendá -lo ; será sua mensagem 38.” Vários
livros da imensa bibliografia de Jaguaribe, como a Arte de Formar Homens
de Bem39, a Mudança da Capital Federal40, A Inteligência e a Moral do
Homem41 e Reflexões sõbre a Colonização !? encontram nestas páginas
as observações críticas do seu amigo fiel , que tanto se interessava pela sorte
literária dos seus companheiros de estudos.
A última carta desta Correspondência, escrita a João Lúcio de Aze
vedo aos 17 de julho de 1927, pouco antes de sua morte, ocorrida a 13 de
agosto, é o melhor testemunho de sua constante atenção e de seu favor
à História , à qual serviu tôda sua vida com fiel e inspirada devoção.

A SIGNIFICAÇÃO DA CORRESPONDENCIA .

A correspondência de Capistrano de Abreu é um acervo precioso,


não só para a sua biografia, pois nela se vêem seu método de traba
lho e suas pesquisas, como também para a Historiografia brasileira.
Nela opina sobre cronistas, historiadores e escritores antigos e contem
porâneos, estrangeiros e nacionais. Detalha também a vida e a política
do Brasil contemporâneo entre 1880 e 1927. São depoimentos curiosos,
astutos, às vezes mordazes, que revelam Capistrano como um analista in
flexível da história contemporânea e um crítico implacável de sua quadra.
Escritores como Raul Pompéia, que ele considera, com Euclides da
Cunha, das maiores figuras literarias de sua época, e mais Tristão da
Cunha, João do Rio, Graça Aranha, Monteiro Lobato, Laudelino Freire,
Afrânio Peixoto, Jackson de Figueiredo, José do Patrocínio, Elísio de
Carvalho, Aloísio de Castro , Solidonio Leite, Fontoura Xavier, Tristão de
Ataide, João Ribeiro, Oliveira Lima, Tobias Monteiro, Roquette Pinto,
Oliveira Viana, Alfredo de Carvalho, Alberto Lamego, Alberto Rangel
e Alberto Faria, Max Fleiuss, Joaquim Nabuco, Ronald de Carvalho e
Rui Barbosa aparecem com freqüência nestes documentos íntimos, livres

38. Carta a Calógeras, de 15/16 de novembro de 1926 .


39. Réplica à resposta do Dr. Cruls. São Paulo, sem data, 18 págs.
40. Capistrano de Abreu fez uma nota crítica sobre este livro na Gaseta de
Noticias de 5 de março de 1880.
41. São Paulo, 1887.
42. Ed. Garraux, sem data.
PREFÁCIO XXIII

de qualquer peia, onde a severidade do julgamento liga-se, às vezes , à


mordacidade, outras à franqueza e a sinceridade. O devotamento, a
bondade e a ternura aos amigos que lhe ganharam o coração se desven
dará também nestas cartas . Muitas vezes sua amizade foi rude, quando
precisava dizer verdades desagradáveis, e muitas vezes foi carinhosa, quan
do era ocasião de prestar serviços ; e os prestava espontâneamente, não pou
pando passos nem fadigas43.
A originalidade e a heterodoxia, especialmente sobre Rui Barbosa,
hão de causar um certo espanto a determinados grupos acostumados ao
louvor sem restrições ao grande brasileiro . Não foi visando ao escândalo que
se pensou en imprimir estas cartas, mas porque elas esclarecem muito
a literatura e a política do Brasil de 1880 a 1927. O encanto familiar,
e a falta de pose, a paixão, a simplicidade tornam esta correspondência
uma fonte inestimável para a história da nossa época, especialmente in
dispensável à Historiografia literária e social . Já não ensinava Ale
xandre Herculano na Solemnia Verba, ao lançar os fundamentos da
crítica histórica portuguêsa, que cartas ou outros diplomas da época devem
ser preferidos às narrativas dos historiadores44 ? Como documento pri
vado e confidencial, que esclarece aspectos pouco conhecidos ou inéditos,
a correspondência é uma fonte preciosa, uma das melhores para a histó
ria literária, para a história da História, para a história social.
Disse Domício, uma vez, que Capistrano seria “ o mais competente
para escrever sõbre os homens públicos que tem conhecido na sua já longa
carreira de escritor. Ninguém melhor que ele poderia retratar ésses fa
tores da História viva e real 45."

A verdade é que a justiça e imparcialidade com que tratou da his


tória colonial e de trechos e figuras da história imperial não dominam
estas páginas, mais conversa que obra, e por isso mesmo mais caricatural
que real nas imagens das figuras tratadas.

43. Constâncio Alves, “ Capistrano de Abreu ” , Jornal do Comércio, 25 de


dezembro de 1928 .
44. Alexandre Herculano, Solemnia Verba, Lisboa, 1850, pág. 16.
45. Domício da Gama, Capistrano de Abreu ", Reyista do Brasil, julho de
1924.
XXIV CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

BIOBIBLIOGRAFIA

Nascido a 23 de outubro de 1853, em Columinjuba, distrito de Ma


ranguape, no recanto dos Honórios 46, filho de Jerônimo Honório de
Abreu e de D. Antônia de Abreu, recebeu na pia batismal o nome de
João Capistrano Honório de Abreu 7. Descendia Capistrano dos funda
dores da terra , de Pero Coelho de Sousa48, que com séquito numeroso
partiu da Paraíba para a conquista do Maranhão, e chegou ao Jaguaribe
em 1603, iniciando a incorporação do Ceará. Falecido a 13 de agosto
de 1927, com 74 anos de idade, os principais fatos de sua vida estão re
gistrados 49 e o próprio Capistrano traçou sua autobiografia até 1906
nas cartas que escreveu a Guilherme Studart, quando este preparava o
Dicionário Biobibliográfico Cearense50 .
Sua bibliografia está também em parte levantada, faltando especial
mente os artigos, ensaios e estudos publicados na imprensa periódica e
seriada51 . A história de sua formação como historiador, de suas obras,
contribuições e influências pode ser escrita à luz desta correspondência,
atendendo -se, dêste modo, ao apêlo de Domício da Gama, de que " um re
trato literário de Capistrano para ser verídico e ter fisionomia, deveria ser

46. Carta a J. L. de Azevedo, de 8 de dezembro de 1923.


47. Carta de Honorina de Abreu a seu pai, in Secção de Manuscritos da
Biblioteca Nacional, sem data.
48. Carta a Paulo Prado, da Oitava de S. Sebastião de 1926.
49. Cf. Barão de Studart , Dicionário Biobibliográfico Cearense , Fortaleza, 1913 ,
vol. 2, págs. 420-428 ; Pedro Gomes de Matos, Capistrano de Abreu , Vida Obra
do Grande Historiador, Fortaleza, Ceará, 1953.
50. Studart pede-lhe notícia biobibliográfica en: carta de 10 de junho de 1894
( original na Biblioteca Nacional, a ser publicada na Correspondência passiva de
Capistrano ) e Capistrano responde-lhe da fazenda Paraíso, em 18 de agosto de
1901 , acompanhada de notas, em 19 de julho de 1902 e em 2 de janeiro de 1906 .
Em 26 de abril de 1906 faz alguns comentários à biobibliografia que Studart já publi
cara, pois o Dicionário começou saindo em jornais e na Revista da Academia Cea
rense entre 1899 e 1907.
51. Studart, ob. cit.; Tancredo de Barros Paiva, Bibliografia Capistraneana,
São Paulo, 1931 ; J. A. Pinto do Carmo, Bibliografia de Capistrano de Abreu,
Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1943. Na carta de 19 de julho de
1902, Capistrano indica ter traduzido do alemão e já estar pronta para entrar no
prelo a Introdução à Ciência do Direito de J. Kohler ( Einführung in die Rechst
wissenschaft, Leipizig, 1902 ). A bibliografia sobre Capistrano encontra -se registrada
em Pinto do Carmo, ob . cit. , pág. 119-133.
PREFÁCIO XXV

feito de colaboração com ele, que sempre foi avesso a falar de si. Só
êle teria memórias do período mais interessante da sua formação moral,
da infância e da primeira mocidade no Ceará e o Rio de Janeiro 52.” Essa
história constitui em si um ensaio à parte, que já escrevemos e em outra
oportunidade será publicado .
Os estudos e ensaios críticos sobre Capistrano formam hoje uma
extensa bibliografia 53. É verdade que se têm destacado muito os as
pectos anedoticos e pitorescos, interessantes para a compreensão de sua fi
sionomia humana, mas nem sempre fiéis e exatos. Mais valeria distin
guir os traços do homem na sua vida diária, seu feitio, suas tendências,
suas características, gostos, costumes e ojerizas. E a correspondência
serve para singularizar e concretizar a pessoa tão genuinamente brasileira
e tão intensamente original de Capistrano.

ALGUNS TRAÇOS DE CAPISTRANO DE ABREU.


Em 1882 era Capistrano um rapaz forte, de estatura meã , grosso de
tronco, de cabeça um tanto cúbica, de pescoço atlético, olhos pequeninos,
piscos, míopes, trajando escuro , com filosófico descuido, segundo a des
crição de Vicente Mindelo na Gazetinha de 19 de abril de 1882. Pos
suía já o hábito da Rosa, graça que não fôra agradecer a S. Majestade,
e apesar da leitura dos cronistas era um espírito leve, arejado , aberto ao
calembourg e à anedota picante. Em filosofia seguia Spencer com a re
solução feita de deixá-lo na estrada se encontrasse outro melhor. Era
muito amigo de Augusto Comte, Lafitte, Littré, Teixeira Mendes e Mi
guel de Lemos .
“ É indolente, acorda tarde, fuma como um turco, anda como um be
duíno . Tem a voz doce, discreta, carinhosa, quando se dirige aos que
ama, aflautada, quando pilheria, asmática e vagarosa, quando trata de
ciência 54. "
Capistrano não era formado e não gostava que o chamassem doutor.
“ Quando estava no Pedro II ajudei a fazer alguns bacharéis, mas de
doutor ou bacharel nunca tive nada e cada vez ando mais afastado. A
um comendador de minha laia chamaram em mofina do jornal comendador

52. Domício da Gama, “ Capistrano de Abreu ” , Rev. do Brasil, 1924, págs.


194-195.
53. Cf. J. M. Pinto do Carmo, ob. cit., págs. 119-133.
66
54. Vicente Mindelo, Capistrano de Abreu ” , Gazetinha, 19 de abril de 1882

2 - 1.•
XXVI CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

xenxém , conta Alencar num romance . A culpa é da lingua que não ad


mitiu Monsieur ou Sir, talvez porque os reis reservaram o Senhor para
si e não havia o equivalente de Sire. No Ceará fui chamado e muitas
vezes chamei : seu home. Bem mostram meus patrícios que têm mais in.
teligência que água 55.”
De sociedades literárias e de conferências não queria saber. Não
!

fazia nem ouvia conferências. “ Em geral não assisto a estas coisas, por
que ficando longe apenas apanho pedaços, ficando perto arrisco m - e a um
acesso de tosse que pode perturbar a assembléia 56.” “ Não quis fazer
parte da Academia Brasileira, e é avesso a qualquer sociedade por já achar
demais a humana. Por exceção única pertence ao Instituto, do qual pre
tende demitir-se em tempo, se não morrer repentinamente 57.” “ Fui ins
crito na Academia Humana independente de consulta e já acho excessivo .
Os fundadores da Academia de Letras daqui eram quase todos meus ami
gos, instaram comigo para que lhes fizesse companhia. Resisti e cada
vez estou mais convencido de que andei com juízo 58. "
É certo que andou namorando, logo depois que aqui chegou, o Ins
tituto Histórico e o Colégio Pedro II . Em artigo na Gazeta Literária
de 18 de novembro de 1879 escreve Capistrano constar " que sua Majes
tade fez um dia a filosofia do caráter brasileiro, dizendo que entre nós
as aspirações limitam-se a duas : ser senador ou lente do Pedro II. " Ele
Capistrano de modo nenhum aspirava ao Senado e cedia desde logo seus
" direitos presentes e pretensões futuras em favor do candidato nacional,
o sr. Martinho de Campos." " A cadeira do Colégio Pedro II bem pode
ser que já tenhamos aspirado, mas para isso são necessárias várias condi
ções : a secularização do Colégio, a liberdade de opinião e a impossibili
dade de reproduzirem -se julgamentos como o do concurso de Filosofia.
Mas não vão, por isso, alegar nosso desinteresse. Pretendemos posição
mais elevada : a de membro do Instituto Histórico. ” É certo que ao
apontar esta pretensão Capistrano a reveste de uma forma irônica, cheia
de restrições. Mas restrições ele fizera também ao Colégio Pedro II,
o que não impedira de a êle candidatar -se em 83, quando já não fazia da
secularização do Colégio uma condição indispensável para sua candidatura.

55. Carta a J. L. de Azevedo, de 14 de setembro de 1916.


56. Carta a J. L. de Azevedo, de 6 de outubro de 1920.
57. Autobiografia que acompanha a carta a Studart, de 18 de agosto de 1901.
58. Carta a J. L. de Azevedo, de 2 de julho de 1917.
PREFÁCIO XXVII

A ironia não o impedia também de aceitar sua eleição, em 1887, para


membro do Instituto Histórico .
Seu ideal de professorado se manifesta também em 1880 , quando
comenta e aniquila a História do Brasil do seu futuro examinador, o
prof . Matoso Maia. Depois de denunciar-lhe vários erros, incorreções e ine
xatidões, responde ao seu pedido de uma lista de correções, afirmando
"não poder satisfazê-lo, entre outros motivos porque muito provavelmente
ainda nos havemos de encontrar frente a frente e reservamos para então
o prazer um pouco malicioso de dar-lhe alguns quinaus.” Conquistada a
cátedra por concurso , declarava a Domício da Gama, em 1919, que há
vinte anos ficara dispensado " de alunos ignorantes e desatentos 59.”
Detestava os elogios e adjetivos. “ Poupe-me de epítetos. Se sou
besse como os achamos ridículos aqui e como os aproveitarão para dar-me
um trote", escreve a Studart, quando lhe envia novas informações para
o Dicionário Biobibliográfico Cearense, solicitadas desde 189460. Quan
do, em 1923, planejaram seus amigos uma obra coletiva de homenagem
ao Mestre, Capistrano enfureceu-se e mandou imprimir um cartão assim
redigido: "Segundo sou informado trama - se para meu próximo aniver
sário uma patuléia, poliantéia ou coisa pior e mais ridícula, se fôr pos
sível. Aos amigos previno que considero a tramoia como profunda
mente inamistosa. Não poderei manter relações com quem assim tenta
desmoralizar-me.

Adorava o mês de abril, em que chegara ao Rio de Janeiro e em que


nascera o filho Fernando, apelidado de Abril. “ 25 de abril, festa de
São Marcos. Há 46 anos, em igual dia, num domingo cerrado que quase
nada permitia ver, aportei a esta terra que desde então é a minha e pro
vàvelmente será até o fim, porque quem comeu a carne roa os ossos 61.”
Esta data nunca mais será esquecida e nas cartas a vários amigos sempre
há motivo para relembrá -la e festejá -la. " Há hoje cinqüenta e dois
anos que sai do Ceará pela primeira vez. Há hoje 43 anos que saí do
Ceará pela segunda vez, depois da libertação a que fui assistir. Era sá
bado da aleluia ; sem minha conhecida modéstia podia julgar-me objeto do
foguetório à despedida 62.”

59. Carta a Domício da Gama, de Pedras Altas s/d ( 1919) .


60. Carta a Studart, de 2 de janeiro de 1906 .
61. Carta a J. L. de Azevedo, de 25 de abril de 1921 .
62. Carta a Paulo Prado, de 25 de abril de 1927, 3.a feira de trevas.
XXVIII CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Que o fazia assim comemorar a saída do Ceará ? Só as aquisições


que fizera no Rio, saber alemão a ponto de lê-lo na rede, sem dicionário,
e compreender que a geografia é tão bela ciência como difícil63 ? Não,
êle devia fugir de algo desagradável e o Rio fôra a libertação, fôra a
posse do seu caminho. Por isso era uma data significativa, como expres
siva lhe era a data da conversão de São Paulo, que desde sete para oito
anos nunca esquecera64.
Suas aspirações sempre foram modestas e simples. Amava o co
nhecimento, seus filhos e seus amigos. Era capaz de sentir a emoção
teórica, que se desespera de descobrir e se rejubila diante da descoberta.
E a emoção afetiva o desequilibra diante da morte da mulher, da entrada
da filha para o convento, da morte do filho, e o perturba quando um
amigo é atacado ou quando ataca e caricatura com paixão Rui Barbosa,
Rocha Pombo, Max Fleiuss e Escragnolle Dória, que seguiram caminhos
que não o agradavam .
Seu pessimismo repontava a cada momento. Em 1910 dizia a Má
rio de Alencar que seu ideal seria " un cul de sac, um beco sem saída :
sem netos, já que tive a infelicidade de ter filhos, sem nome, um per
feito zero na cadeia dos seres. A este ideal não atingi desde o prin
cípio, meus atos vão, às vezes, contra ele, mas há quantos séculos já não
escreveu o poeta : video, meliora, etc. ?65 " Em 1919, 1923 e 1925 sua
ambição limita-se a morrer sem escândalo como nascera : “ Você que ad
ministrou a vida melhor do que eu viveu dos rendimentos, sem ata
car o capital, escreveu não sei quem citado pelo Rui, ainda pode formar
planos e aninhar aspirações. Minhas aspirações depois de cinqüenta anos
de Rio, cheguei aqui a 25 de abril de 1875 reduzem - se a morrer
sem escândalo, sair do mundo silenciosamente como nêle entrei 66." Pre
cisando desfazer-se de dois caixões de livros, diz que a dificuldade é es
colhê-los : “ Cada um representa tanta cousa ! uma veleidade, um pro
grama, uma decepção ! Nêles vejo como por passeio a cronologia do meu
espírito, e a impressão não é fagueira : reduz-se a lançar continuamente
carga ao mar para evitar a submersão completa ."

63. Carta a J. L. de Azevedo, de 19 de março de 1917.


64. Carta a Paulo Prado, de 17 de janeiro de 1920.
65. Carta a Mário de Alencar, de 20 de janeiro de 1910.
66. Carta a J. L. de Azevedo, de 15 de abril de 1925 ; ao mesmo, de 26 de
março de 1919 e a Paulo Prado, de 1 de janeiro de 1923.
PREFÁCIO XXIX

A vida econômica, com suas normas rígidas e especiais, é algo de


sinistro para um homem como Capistrano de Abreu. Em 1912 conta
exclamativamente que tem 5 contos de réis recolhidos no British e em
1920 assinala que possuia 3 contos67. Apesar dessa pobreza franciscana,
muitas pesquisas se realizaram às suas custas68, e em 1923 êle consegue
levantar, incluindo dinheiro seu , oito a nove assinaturas de 50 dólares
para publicar, a pedido de Franz Boas, a obra de Karl von den Steinen 69.
E como João Lúcio recebera elogios germânicos à sua obra, Capistrano
transcreve- lhe o que recebera do explorador do Xingu : " Considero - o como
uma das melhores e mais amáveis pessoas que conheço no mundo 70. ”
Rodolfo Schüller, o investigador da história americana, não dissera
a Domício da Gama que Capistrano de Abreu era o homem mais notável
que encontrara ? 1 ?
Era um homem simples, que festejava a identificação de Andreoni
e Antonil, indo tomar cerveja com Vale Cabral. A história foi conta
da em carta a Studart ( 18 de junho de 1893 ), a João Lúcio de Azevedo
( 18 de novembro de 1916) e a Afonso Taunay (23 de julho de 1921 ) 72.
“ Não preciso dizer que foi um dia de delirio . Jantamos juntos, tomamos
cerveja juntos, conversamos até meia-noite e separamo-nos contre coeur.
Que bom tempo aquele em que a descoberta de um anônimo bastava para
coroar de rosas um dia 73."
Capistrano era desalinhado, tôsco, míope e desmazelado, afetado com
os estranhos, simples com os amigos, e dêsse feitio não se curava 74 .
“ Não compro chapéu de sol de mais de cinco mil-réis, porque costumo
perdê-los e o prejuízo é menor ; não me visto no Raunier, porque sou
como o Homem de Melo , de quem dizia Pedro Luís — o antigo minis
tro : veste - se todo chibante no Raunier, desce aprumado a Rua do Ouvi

67. Cartas a Miguel Arrojado Lisboa, de 28 de outubro de 1912 e a J. L. de


Azevedo, de 20 de outubro de 1920 .
68. Cf. José Honório Rodrigues, Pesquisa Histórica no Brasil, Rio de
Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1952, pág. 132.
69. Carta a J. L. de Azevedo, de 20 de outubro de 1923.
70. Idem, idem.
71. Domício da Gama, “ Capistrano de Abreu " , Revista do Brasil, julho de
1924.
72. Esta última já está transcrita na edição de Afonso Taunay da Cultura e
Opulência do Brasil, de Antonil, São Paulo , 1922, págs. 42-43.
73. Carta a G. Studart, de 18 de junho de 1893.
74. Carta a Paulo Prado, de 15 de dezembro de 1922.
XXX CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

dor, e chega com a roupa machucada na Rua Direita. Minhas finan


ças não permitem mais que o Colombo, mesmo isso sem a freqüência que
fôra para desejar. Entretanto Almeida Rabelo e Quatro Nações não
são incompatíveis 75. ” A disponibilidade do professorado desde 1899 e
a conseqüente diminuição dos vencimentos em sessenta por cento, ainda
mais reduzidos em face da inflação, criaram-lhe dificuldades econômi
cas, apoucando -lhe gradualmente o nível de vida assim como suas aspi
rações e ambições.
Adorava os banhos de mar, as viagens e a rêde, de que era insepa
rável 76. Gostava da comida mineira e do baião 77 , nunca dansara78
e só uma vez ou outra jogara 79. Era em São Vicente, hospedado em
casa de Domingos Jaguaribe, que tomava os "deliciosos banhos de mar80.”
As férias passava-as sempre fora ; e as cartas são enviadas ora de Tere
sópolis, ora da Tijuca, ora do Paraíso, fazenda às margens do Paraíba 81 ,
ora de Minas Gerais, de Caxambu , São Lourenço, Poços de Caldas, Prata,
Machado, aonde ia visitar a filha Matilde. No Rio Grande do Sul, es
têve duas vezes, em 1916 e 1919, ficando em Pedras Altas, a convite de
Assis Brasil . Da primeira vez, na ida, desembarcou em Desterro quase
à noite. “ Dois meninos contratados para isto mostraram -me a cidade.
Ao passarmos por palácio, mostraram -me o Governador na janela ; gri
tei-lhe meu nome ; reconheceu -me, mandou-me entrar 82.” Seguiu pela
costa e permaneceu em Pedras Altas aproximadamente dois mêses. Já
de volta, escreve de Pelotas a Madame Calógeras: " Vou encantado do
Rio Grande do Sul : ainda mais iria se o correio fosse melhor ” . E di
zia-lhe então : “ Visite a Argentina como eu fiz ao Rio Grande : mera
esponja, tratando de absorver a maior quantidade de líquido ; a filtração
se fará melhor no Rio 83.”

75. Carta a Mário de Alencar, de 6 de setembro de 1915 .


76. Carta a J. L. de Azevedo, de 19 de julho de 1925.
77. Carta a J. L. de Azevedo, de 29 de março de 1920.
78. Carta a Rodolfo Garcia, de 4 de abril de 1920.
79. Cartas a Mário de Alencar, de 28 de agosto de 1901 e a J. L. de Azevedo,
de 23 de março e 10 de abril de 1920.
80. Cartas a J. L. de Azevedo, de 20 de outubro de 1923 e 21 de outubro
de 1925.
81. Cf. Carta a José Veríssimo, de 17 de junho de 1901.
82. Carta a Calógeras, de 13 de janeiro de 1916.
83. Carta a Madame Calogeras, de 22 de março de 1916.
PREFÁCIO XXXI

Em São Paulo estéve várias vezes e são freqüentes nesta correspon


dência as referências ao amor que lhe devotara. Conhecera - o pela pri
meira vez em 16 de dezembro de 1880, passara a amá-lo como sua terra
e nunca voltara de la descontente 84. “Gosto tanto de São Paulo , que
acredito ter nascido lá ; quando vi os campos de Mogi das Cruzes e do
Ipiranga, pareceu -me que de muito me eram familiares 85.” “Paulicéia
encantadora que é meu feitiço ”, dizia em 1902 86.
Em 1884 esteve no Ceará, nas festas comemorativas da Abolição da
Escravatura, numa comissão da Gazeta de Notícias, e no mesmo ano es
têve também na Bahia ; foi a Sobragi em 1907, a Corumbá em 1920 e
a Ouro Preto em 1921. Uma viagem ao Ceará , em 1922, que se esten
deria aos Sertões, onde visitaria o Padre Cícero, seu amigo e ex -colega,
e outra a Diamantina, em 1923, goraram .
Capistrano amava os filhos enternecidamente e muito sofreu por eles.
A entrada da filha Honorina para o convento atingiu - o profundamente,
ainda mais do que ele poderia supor. " Só agora vejo como a queria.
Passo os dias sem sair, pensando nela, joguete dos sentimentos mais con
traditórios, desde a indignação até às lágrimas. Só com os filhos, à
hora do jantar, converso sôbre ela. O receio de que qualquer estranho
se possa referir ao assunto dá-me arrepios. O isolamento não me pesa ,
alivia-me. A dor geral transformou -se; sinto um frio íntimo que vai
9)
da espinha aos olhos, mas os acessos vão se espaçando e duram menos 87.”
E na mesma carta dizia não ser esta a primeira vez que tal lhe ocorria .
“ Já me sucedeu isto uma vez, quando Abril ( Fernando ] saiu -me inespe
radamente de casa para vir morar com a Avó. E a impressão foi ainda
mais pungente, porque tratava -se de um companheiro de longos anos e
eu sempre tinha a esperança de que voltasse. Todas as noites ao abrir
o portão espiava se o gás estava aberto, sinal de que tinha voltado.
Ser -me- ia fácil ir à casa da Avó e exigir que ela o fizesse voltar; feliz
mente nunca o fiz. Não queria o corpo, queria a alma ." Quando éste
mesmo filho morre, em 1918, sente-se esfolado. “ A 24 de outubro perdi
um filho querido, meu companheiro inseparável desde a idade de cinco

84. Carta a Assis Brasil , de 11 de junho de 1918.


85. Carta a Rio Branco, de 17 de abril de 1890.
86. Carta a Jaguaribe, de 1 de novembro de 1902.
87. Carta a Mário de Alencar, de 18 de janeiro de 1911 . Quase com as

mesmas expressões, carta a Calógeras, de 14 de janeiro de 1911 ( datada, com evi


dente equívoco, de 1910) .
XXXII CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

anos em que ficou órfão, amparo e esperança de minha velhice. Deso


rientado vim refugiar-me em Pedras Altas 88.”
Esta perda, dizia a Mário de Alencar, lembrava-lhe " outras duas bem
dolorosas, uma quando a Mãe morreu e você estava na Tijuca, outra
quando Honorina entrou para o convento 89.” Ainda em Pedras Altas
dizia : " Fiz bem em vir. O sentimento de esfoladura deixado pela mor
te de Abril vai se atenuando : sinto -me reencourado em certas partes,
noutras já se formou o cascão. Às vezes vem uma lancetada mais forte
e sinto -me como quem despertasse de um pesadelo para defrontar uma
realidade, ainda mais terrível 90 "
Tinha grande amizade e admiração pela sogra, D. Adélia Josefina
de Castro Fonseca ( em solteira Castro Rabelo ) , a quem várias vezes
se refere nesta correspondência. Aos 9 de dezembro de 1920, aos 93
anos de idade, falecia D. Adélia. “ Criou os filhos e os netos, nem um
dever deixou por cumprir e as atribulações da vida nunca venceram sua
alegria. Sua inteligência, que dia a dia baixava, foi extraordinária. Gon
çalves Dias, que a conheceu em 47, dedicou - lhe uma poesia, impressa no
primeiro ou segundo volume 91. Descansa agora e ganhou bem o des
canso 92. "
Capistrano sempre contou com a ajuda de D. Adélia na criação dos
filhos, órfãos de mãe desde 1891. Quando se casou, a 30 de março de
1881, “ dois meses antes do que esperava", pois poderiam sobrevir “ obs
táculos insuperáveis”, tem um dos raros momentos de otimismo e anima
ção que se podem notar em suas cartas. “ Desculpe -me e abrace-me" ,
diz a Assis Brasil. Sou feliz ! a minha grande e constante aspiração rea
lizou -se e a realidade apenas comentou e esclareceu o ideal 93.”
Fôra seu padrinho de casamento Tristão de Alencar Araripe
Júnior 94 .
Morava então na Rua Paula Matos 59, " bastante longe da cidade
para não ser distraído por seu burburinho ; bastante perto para poder

88. Carta à Sra. Assis Brasil, de 17 de novembro de 1918.


89. Carta a Mário de Alencar, de 29 de outubro de 1918.
90. Carta a Mário de Alencar, de 1 de janeiro de 1919.
91. Gonçalves Dias, Obras Poéticas, ed . de M. Bandeira, São Paulo, 1944,
t. 1 , pág. 339.
92. Cartas a J. L. de Azevedo, de 15 de dezembro de 1920, e Oitava de
São João de 1920 ( 1.9 de julho) .
93. Carta a Assis Brasil, de 6 de abril de 1881.
94. Cf. Gaseta de Noticias, de 31 de março de 1881 .
PREFÁCIO XXXIII

vaquer à toutes mes occupations 95." Capistrano variou muito de resi


dência. Em 1881 morava à Rua do Lavradio, 78 ; em 1882, na Pedreira
da Candelária , 32 ; em 1883, na Rua D. Luísa, 13, e aí permaneceu até
1887. Em 1888 reside à Rua Marquês de Paraná, 10, até 1892 ; em
1893, viúvo, passa -se para a Ladeira da Glória 2 ; em 1896 transfere -se
para a Rua S. Januário 88, até 1895 : em 1896 mora na Rua das Laran
jeiras, 2, até 1898 ; em 1902 vive no Campo de Santana, 25, próximo ao
Corpo de Bombeiros; em 1906 escreve os Capítulos de História Colonial
na Rua Almirante Tamandaré n.° 2 ; em 1908 muda - se para a Rua D.
Luisa , 67 (numeração moderna, 193 ) , e esta é a sua residência por longo
tempo, ou seja até 1923. “Segunda- feira 10 transpus irrevogàvelmente
a casa em que residia desde 1909. Nela dispersou -se toda a minha fa
milia ; a filha mais velha partiu para o convento ; a mais moça casou e
está com o marido patrício, amigo, médico de valor, que clinica em Minas
e felizmente não tem , e espero não terá, descendência ; o mais môço jun
tou-se à mãe e a um irmão que não pôde resistir à orfandade. Resta o
filho mais velho, chefe de secção no Ministério da Viação, pai de três
filhas, uma das quais cega, que em outubro completará 40 anos 96.”
" Tomei um cômodo provisório na Travessa Honorina em Botafogo,
junto de meu filho com que tomarei as refeições. Não pretendo de
morar muito ; estou enxergando tão pouco que não distingo os bondes
e só posso morar antes do Largo do Machado para onde todos passam 97.”
Agora sua vida e sua moradia eram ainda mais modestas. Quando
João Lúcio, nesta época, aconselha-o a morar na Glória, Capistrano acha
graça e diz-lhe : “ Nos fins da monarquia abriram entre Laranjeiras e Rio
Comprido um túnel, até hoje abandonado e deserto. Quem sabe se não
irei parar lá. Uma esteira para descansar os lassos membros, duas es
teiras para tapar as extremidades satisfarão minhas modestas ambições98.”
É a partir de 8 de dezembro de 1923 que ele passa definitivamente para
a Travessa Honorina, 45. “Honorina”, diz ele, “ é o nome da freira e
o irmão, que já reside aqui há um par de anos, escolheu-a em lembrança
dela. Nossa família no pequeno recanto do Ceará em que se funda cha
ma - se dos Honórios. Uma neta chama-se Honorina. Quarenta e cinco
reporta -se muitos anos atrás ; era o meu número no colégio em que, há

95. Carta a Assis Brasil, de 6 de abril de 1881 .


96. Carta a J. L. de Azevedo, de 17 de setembro de 1923.
97. Idem, idem.
XXXIV CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

sessenta anos ou quase, labutava com as primeiras letras 99. ” Foi nesse
porão que de 8 de dezembro de 1923 a 13 de agôsto de 1927 viveu seus
últimos dias o grande Mestre de nossa História, e onde se fundou a So
ciedade Capistrano de Abreu.
Capistrano nunca foi, como se verá também nesta correspondência,
um destes trabalhadores heróicos de que necessita a ciência . Trabalhava
pouco e lia muito e sempre. Sofria crises de desânimo e desencanto que
o levariam, em 1925, a assinar-se João Ninguém. Nesta época ele temia
que a surdez, unida à miopia, formassem “ uma das acumulações piores que
as proibidas pela Constituição. Se a cousa se realizar, mudar-me - ei do
Rio para qualquer lugar escuro 100.” Sonhava com freqüência. “ Agora
estou passando regularmente: durmo com facilidade e não tenho sonhos
agitados”, dirá em 1915 a Mário de Alencar101 . Em 1920 conta a
João Lúcio que, tendo contemplado o retrato de Paul Groussac, sonhara
que conversavam os dois, êle e João Lúcio, sob a proteção do Gigante de
Pedra , o Corcovado 102

Bom humor nunca lhe faltou e a correspondência está repleta de


anedotas, piadas e ditos populares. Como um homem inteiramente inte
lectual, ele se admira que alguém sacrifique a obra de sua vida por “ uma
reles pasta ministerial” , pois não é à toa que “Ministro começa por mi
nus 103.” Como todo teórico , ele se obstina em ver na ilustração a única
alavanca do progresso .
Não faltam algumas opiniões políticas, especialmente sõbre a poli
tica nacional, mas sem omitir conceitos sobre as correntes internacionais
de sua época. Alude ao comunismo e ao integralismo . Capistrano veio
do positivismo de Buckle, de Comte, de Spencer e até mesmo das leituras
positivistas do Centro, aos domingos104, para as teorias alemãs na Histó
ria e mais radicais na política. Em 1910 êle modificava suas opiniões
sobre o socialismo. “ Acho que a struggle for life nunca deve ser perdida

98. Carta de J. L. de Azevedo, de 4 de julho de 1923.


99. Carta de J. L. de Azevedo, de 8 de dezembro de 1923.
100. Carta a Paulo Prado, de 19 de fevereiro de 1925.
101. Carta a Mário de Alencar, de 15 de setembro de 1915.
102. Carta a J. L. de Azevedo, de 16 de agosto de 1920 .
103. Carta a Arrojado Lisboa, de 18 de fevereiro de 1917.
104. Carta a Assis Brasil, de 12 de março de 1881.
PREFÁCIO XXXV

de vista, mas não a considero mais a lei suprema da sociologia, embora a te


nha como lei secundária de primeira ordem, a que os políticos e estadis
tas devem estar sempre atentos. O socialismo é sobretudo uma questão
moral e reduz-se a não fazer caso de dinheiro. Penso que Carnegie com
seu desprendimento é mais socialista que Jaurès com suas tiradas retum
bantes. O socialismo é a vitória do quarto estado. Garante-nos ao menos
contra a formação do quinto estado. E este há de vir. Serão os men
digos, os aleijados, os criminosos, não sei. Tenho, porém , certeza que
depois do quinto virá o sexto, etc. 105. "
Em 1917 Capistrano considerava o positivismo uma camisa -de-força
e, em 1924, assinava e lia jornais da esquerda106. Conhecia várias lín
guas: francês, espanhol, italiano, inglês, latim e mais alemão, holandês e
sueco 107 . Animado de patriotismo, "amo, admiro o Brasil e espero
dêle 108 , ” achava que o futuro reservava ao nosso país um trabalho muito
mais árduo que o dos holandeses, “obrigados a fazer a Holanda depois
de Deus ter feito o mundo 109.”

Considerado e aceito geralmente como um dos maiores historiadores


brasileiros , Capistrano é hoje pouco lido e suas obras se encontram em
grande parte esgotadas. A legenda, a reputação e a lembrança de Capis
trano permanecem vivas e presentes, mostrando que ao lado de suas obras
êle deve ter dado ao mundo alguma coisa mais. Essa participação se
revela na correspondência que ora se publica, escrita com seriedade de pro
pósito, sem convencionalismo, sem preocupação de público ou letra de
fôrma.

O desejo de estudá -lo há de se satisfazer muito com essa associação


intima que o mede em épocas e períodos, em mudanças de opinião, de sen
timento e de endereços. Ela revela seu caráter e pensamento e combina, em
bora aparentemente, as personalidades de Capistrano no trato da vida co
tidiana.

105. Carta a Pandiá Calógeras, de 28 de dezembro de 1910.


106 . rta a J. L. de Azevedo, de 27 de março de 1917. Assinava o Mano
Guardian, The Nation e The Republican. Cf. carta a J. L. de Azevedo, de 30 de
março de 1924.
107. Carta a J. L. de Azevedo, da oitava de São Pedro de 1925.
108. Carta a Urbano ( Duarte de Oliveira) , de 7 de setembro de 1895.
109. Carta a J. L. de Azevedo, de 7 de agosto de 1918.
XXXVI CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Sempre se acreditou na força e na significação da correspondência para


a revelação da existência humana ; mas nesse momento, em que se editam
inúmeras Correspondências parece que uma nova valorização se quer dar
a esta forma intima de parceria entre um autor e seus admiradores.

J. H. R.
CAPISTRANO DE ABREU E A HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA1

A 7 de fevereiro de 1876 , o conselheiro Tristão de Alencar Araripe,


historiador e membro do Instituto Histórico, pronunciava uma conferência
Como cumpre escrever a História Pátria, que bem serve para caracte
rizar e fixar a posição da historiografia brasileira quase um ano depois
da chegada do jovem historiador João Capistrano de Abreu ao Rio de
Janeiro. Dizia Alencar Araripe que só dois historiadores, desde Rocha
Pita, haviam sabido desempenhar com acerto sua missão : Robert Southey
e o Conselheiro Pereira da Silva. Sôbre Varnhagen, que já então renovara
com sua obra imensa a historiografia brasileira e preparava a segunda
edição de sua História Geral do Brasil a sair no ano próximo, ele expende
êste juízo seco, média geral da opinião presente e corrente : “ Francisco
Adolfo de Varnhagen escreveu sem crítica e sem estímulo, consumindo
largas páginas com fatos de somenos, quando deixava nas sombras de li
geiros traços acontecimentos dignos de mais desenvolvida notícia. É,
porém , autor de grandes serviços de investigações de antigos documentos
em bem da história nacional. Se como investigador de fontes históricas
tem mérito, como historiador as suas obras História Geral do Brasil e
Holandeses no Brasil o não realçam ."
Uma reviravolta no pensamento histórico opera -se dois anos depois,
promovida e realizada por um jovem de 25 anos, acabado de chegar da
província, com uma formação teórica atual, um conhecimento incomum
dos fatos, um novo ideal de história do Brasil e uma gana incurável de
saber. João Capistrano de Abreu no necrológio de Varnhagen publicado

1. Conferência pronunciada no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a


7 de outubro de 1953, quando das comemorações do centenário de Capistrano de Abreu.
XXXVIII CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

no Jornal do Comércio ( 16 e 20 de dezembro de 1878 ) assim analisava


a obra do pai da historiografia brasileira : " É difícil exagerar os ser
viços prestados pelo Visconde de Porto Seguro à história nacional, assim
como os esforços que fez para elevar -lhe o tipo. Não se limitou a dar
o rol dos reis, governadores, capitães-mores e generais, a lista das ba
talhas, a crônica das questiúnculas e intrigas que referviam no período
colonial . Atendeu sem dúvida a estes aspectos, a uns porque dão meio
útil e empírico de grupar os acontecimentos, a outros, porque rememo
ram datas que são doces ao orgulho nacional, ou melhor esclarecem as
molas que atuam sob diferentes ações. Fez mais. As explorações de in
terior, a cruzada cruenta contra os tupis, o aumento da população, os
começos da indústria, as descobertas das minas, as obras e associações lite
rárias, as comunicações com outras nações, assumem lugar importante
em sua obra .”
Era o começo da reabilitação de Varnhagen , agora reputado o maior
historiador brasileiro. Não era estranho que essa visão rápida e de con
junto fosse um moço quem a tivesse, ainda sem aquela autoridade com que
Nabuco, aos 49 anos, falando no Instituto Histórico em 1898 , atribuiria
a Pereira da Silva um lugar provisório na historiografia brasileira, porque
em seu trabalho não há crítica nem critério certo ? Fôra, aliás, Capistrano
quem começara a desfazer a reputação de Pereira da Silva, quando, em
artigo sôbre a História da Fundação do Império Brasileiro, em 1877 (pu
blicado em O Globo, de 10 de março e a ele atribuído ), dizia não ser raro
achar o seu autor diferentes vezes em contradição numa só página.
A verdadeira compreensão das tarefas da historiografia brasileira
cumpridas ou a cumprir, de seus feitos e achados, do estado atual das
questões, ninguém revelou tão cedo, num descortinio claro, lógico e exato,
como éste jovem em seus ensaios de 1878 a 1882, os melhores que até
hoje se escreveram . Capistrano ai define as contribuições de Varnhagen ,
aponta suas realizações, compara-as com as de seus predecessores e con
temporâneos e conclui que nenhum brasileiro se lhe podia comparar na
quela época. Mas não se limita a indicar o que fizera o mestre, o guia,
o senhor da geração do século XIX ; examina as deficiências, aponta as
lacunas, resume o estado da historiografia brasileira, nomeia os estudio
sos e enumera os trabalhos que iam adiantando os estudos históricos no
Brasil depois da passagem de Varnhagen .
Quem assim começa, começa bem. Sabe o que está fazendo, o
que é preciso fazer, onde o caminho cessa e onde se deve retomá-lo.
Os artigos sobre Rocha Pita ( 23-3-80 ), Melo Morais ( 30-10-80 ), Oliveira
CAPISTRANO DE ABREU E A HISTORIOGRAFIA XXXIX

Martins ( 19 e 22-10-80 ) e as Efemérides de Teixeira Mendes (8-4-81 )


evidenciam seu conhecimento da historiografia brasileira anterior e de sua
ёроса.
Em “ Uma grande idéia ”, em 1880, ele discute como cumpria escre
ver a história do Brasil segundo o plano esboçado por Beaurepaire Rohan
na Organização da história física e política do Brasil, publicada em 77.
Não lhe faltavam o conhecimento dos fatos, a formação teórica, o mé
todo. Neste artigo ele é implacável com historiadores como Pereira da
Silva, Joaquim Manuel de Macedo, Moreira de Azevedo, César Marques,
indulgente com outros e admirador de estudiosos, por exemplo, como Capa
nema, Beaurepaire Rohan, Ramiz Galvão, Vale Cabral e Sílvio Romero.
Sua idéia de uma História do Brasil variou com o tempo, os es
tudos e as pesquisas. Em 1874, aos 21 anos, depois de ler Taine,
Buckle e Agassiz, planejava uma História que deveria mostrar as in
fluências permanentes da natureza sobre a civilização. Lia muito nessa
época Stuart Mill, Spencer, Buckle, Taine. Conhecia bem o Francês, o
Inglês e o seu Latim . “ Quando vim do Ceará ”, é ele mesmo quem
conta, “ escrevia bem regularmente a língua inglêsa, depois de ter con
vivido um ano com Shakespeare e Dickens" . Até a época dos artigos da
Gazeta de Notícias e em O Globo, as duas maiores influências que so
freu foram as de Taine e Buckle. Ainda em 74, no Ceará, procurava,
segundo Taine, o germe primordial de Casimiro de Abreu e comparava
o ovo .ao herói, do mesmo modo que aquele estabelecia paralelos entre
a virtude e o vício, o açúcar e o vitriolo.
Em 25 de abril de 1875 chega ao Rio, animado das melhores as
pirações, cheio de ideais, convencido de que era possível conseguir na
Côrte, com seus estudos, uma posição intelectual e social de relevo. Ain
da não estava contaminado por aquele pessimismo que reduziria, nos úl
timos anos de sua vida, suas aspirações a sair deste mundo como nêle
entrara, sem escândalo seu nem dos seus, e o levaria a assinar suas
cartas aos amigos como “ João Ninguém ”. Ensina no Colégio Aquino
entre 1876 e 1879 a estréia em O Globo em 75, publicando suas con
ferências pronunciadas na Escola Popular do Ceará. Logo a seguir,
em 76 , escreve dois artigos sobre “ O caráter nacional e as origens do
povo brasileiro" de crítica a Sílvio Romero. O magistério particular e
a crítica literária e histórica, feita à luz da doutrina positivista e evo
lucionista, resumem suas atividades.
Em 79 entra para a Biblioteca Nacional, onde teve oportunidade de
exercitar - se em todas as disciplinas auxiliares e especialmente no conhe
XL CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

cimento direto das fontes e da bibliografia histórica. A Biblioteca Na


cional era o seu laboratório científico e lá participou do maior empreen
dimento bibliográfico jamais realizado no Brasil : o Catálogo da Expo
sição de História do Brasil. Ela e o jornalismo estimulam suas am
bições intelectuais. Desde então Capistrano começa a almejar a cátedra
do Colégio Pedro II e a eleição para o Instituto Histórico.
Seu ideal de professorado manifestava - se em 1880 no artigo da
Gazeta de Notícias em que comentava e desaprovava a História do Brasil
de seu futuro examinador, o professor Matoso Maia. Depois de denun
ciar vários erros, incorreções e inexatidões do lente do Colégio Pedro
II, observava que este dissera que ele, Capistrano, embirrava com o
Visconde de Porto Seguro. “ Era exato " , replicava com ironia, " tanto
que quando morreu o Visconde a única voz que se ergueu para memo
rar os seus serviços e reconhecer a dívida que com êle todos contraímos
foi a nossa ” . E para concluir, respondendo ao professor que dizia es
tar pronto a aceitar uma errata, afirmava “ não poder satisfazê-lo, entre
outros motivos porque muito provavelmente ainda nos havemos de en
contrar frente a frente e reservamos para então o prazer um pouco ma
licioso de dar-lhe alguns quinaus”.
Seria esta a única aspiração de Capistrano nesta quadra ? Em 79 ,
depois de contar que Sua Majestade fizera um dia a filosofia do caráter
brasileiro dizendo que entre nós as aspirações limitavam - se a duas : ser
senador ou lente do Colégio Pedro II , e de afirmar secamente que de
modo algum aspirava à senatoria, escrevia : “ À cadeira do Colégio Pedro
II pode ser que tenhamos aspirado, mas, para isso, são necessárias várias
condições : a secularização do Colégio, a liberdade de opinião e a impossi
bilidade de reproduzirem-se julgamentos como o do concurso de filosofia.
Mas não vão por isso alegar o nosso desinteresse. Pretendemos posição
mais elevada : a de membro do Instituto Histórico . " A ironia e o tom
zombeteiro não conseguem esconder, como as restrições ao Colégio Pe
dro II, para o qual se candidata em 1883, o desejo de ser admitido como
sócio do Instituto Histórico, como realmente o foi em 1887. Professor de
meninos, quando, pela sua formação, deveria dirigir seminários de in
vestigação em escolas de nível superior, Capistrano sofreu sua primeira
desilusão. Pôsto em disponibilidade em 99, ficou, na sua própria ex
pressão, " dispensado de alunos ignorantes e desatentos ” .
Os seus artigos de 79, alguns ainda não reunidos e reproduzidos
pela Sociedade Capistrano de Abreu, revelam a decisiva influência da
escola positivista, não só na investigação como na interpretação dos
CAPISTRANO DE ABREU E A HISTORIOGRAFIA XLI

fatos da história do Brasil . Em " O Brasil durante o primeiro século


de nossa história", a sociedade brasileira é apresentada como um orga
nismo de tipo inferior. “Era pouca a massa, não definida a estrutura,
não diferenciadas as funções, não extremados os órgãos. ” As leituras
positivistas que ouvia aos domingos, a partir de 1881, no Centro, e a
amizade de Teixeira Mendes e Miguel Lemos robusteciam sua formação
teórica iniciada no Ceará .
Mas as pesquisas e os estudos na Biblioteca Nacional, a leitura
constante de Varnhagen e o convívio continuado dos autores alemães,
que agora freqüentava desembaraçadamente, começavam a produzir seus
efeitos . Na Gazeta de Noticias de junho de 1880 ele já traduz um ar
tigo da Gazeta de Colônia, jornal onde iniciara seus trabalhos Friedrich
Ratzel, o futuro chefe da escola antropogeográfica. O fato é que, a
partir dessa época, Capistrano começa a aferrar - se com todas suas
forças à realidade da história, ou, como disse muito bem o Sr. Barbosa
Lima Sobrinho, inicia a procura obstinada das realidades, a missão mais
importante do historiador, segundo ideais alemães e não positivistas.
Continua ainda a divulgar teòricamente as concepções positivistas,
mas é evidente nos seus artigos de história que não deduz nem genera
liza mais com a mesma facilidade com que o fazia antes de sua entrada
para a Biblioteca e de suas leituras alemãs. É naturalmente difícil mar
car precisamente o ponto de uma reviravolta de seu pensamento. Não
há isso. Os germes de suas influências novas e de seus caminhos novos
observam -se quando ele ainda era um militante do positivismo, em 1881-82.
Há artigos de 79 , como o estudo sobre " A indústria brasileira no século
XVI”, objetivo e em que, a rigor, a realidade é representada sem as for
mas simples com que o positivismo manejava os fatos da história, e há
artigos posteriores em que os fatos estão simplificados às leis naturais
com que o positivismo quis reduzir o conhecimento histórico. A verdade
é que os fatos históricos não nos são dados, mas pesquisados à luz
dos documentos. A pesquisa dos fatos na Biblioteca Nacional e a influência
da antropogeografia e dos métodos crítico-históricos do pensamento ale
mão, onde a repercussão do positivismo foi quase nenhuma, orientaram
no para outro rumo e são vários os artigos dessa época que já revelam
um realismo histórico em lugar de um positivismo histórico . Os artigos
vão se tornando mais objetivos, despindo - se do aparato e da linguagem
positivistas.
A historiografia crítica iniciada por Niebuhr, Ranke e Humboldt
criara um novo instrumento do saber histórico : a pesquisa e edição dos
XLII CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

documentos limpos de toda a suspeita. Só a arte da interpretação e a


crítica podem dar bons resultados no manejo dos antigos textos. Agora
não se buscavam mais leis e fatos sujeitos a leis, mas a compreensão ba
seada na segurança dos dados. A prova é a edição, entre 1880-86 , do
Clima do Brasil de Cardim , dos textos de Anchieta e de Nóbrega, da
História do Brasil de Frei Vicente do Salvador, textos e mais textos,
seguros, fidedignos, autênticos, integros. Este é o seu programa , pro
grama que evidencia o rumo crítico-histórico alemão, na colheita dos
fatos e na pesquisa dos documentos, embora ainda se note, como na
tese de concurso de 83, a influência de Spencer na interpretação, sobre
tudo quando trata da evolução da família, da religião, da indústria e
das profissões.
Por volta de 1900 são ainda mais evidentes os estímulos da litera
tura histórica germânica. Agora é nos métodos de seminário de Ranke
e na doutrina antropogeográfica de Ratzel que ele vai buscar os elemen
tos de investigação e interpretação dos fatos. Ele quer seguir o método
crítico-filológico, pesar o valor do testemunho, pesquisar as fontes, sua
autenticidade e credibilidade. Começa a abandonar o positivismo, do
qual dirá mais tarde que é uma camisa -de- fôrça, e depois de várias via
gens por São Paulo e Minas, ao ver o domínio do homem sobre a na
tureza, exclama: “ Como isto quadra mal com as afirmações de Buckle !” .
As traduções de Wappaeus ( 1884 ), Sellin ( 1889 ) e Kirchhoff
( 1909) e as leituras de Ratzel , Peschel, Ernst Friedrich, Wagner, Semple
e Maull mostram a decisiva orientação geográfica e encaminham seu
espírito para quadros teórico-práticos mais concretos, que não reduzem
o conhecimento histórico ao conhecimento próprio da ciência natural, nem
submetem a vida histórica a uma assombrosa simplificação dos problemas,
como haviam feito Taine com a sua teoria da raça, meio e momento , e
Buckle, que não fôra ele próprio um grande historiador, mas exercera
sôbre as novas gerações um efeito estimulante, com a tese da inteira
subordinação do homem à natureza . Taine queria compreender as almas
e as paixões que animaram a humanidade e sua história é uma anatomia
psicológica .Ele pretendia descobrir a faculté maîtresse e talvez expli
casse tudo no grande homem , exceto sua grandeza, pois as molas do gê
nio escapam a todas as supersimplificações.
A plenitude da vida e o mistério da personalidade pedem , às vezes,
um tratamento mais sutil e diferenciador. Os estudos iniciais de Capis
trano de Abreu sobre a história intim : e externa, sobre os festejos, sõbre
a família, a busca desesperada por um traço diferenciador e individual
CAPISTRANO DE ABREU E A HISTORIOGRAFIA XLIII

da nossa história , pelos pequenos fatos significativos, evidenciam a ten


tativa de reduzir os fatos aquilo que é típico, regular, constante.
O atual positivismo lógico, do Círculo de Viena, filho espúrio de
Comte, não quer que o trabalho científico do historiador consista nesta
redução e na concepção de juízos gerais sobre os quais ela se baseia ? O
historiador sabe que não pode reduzir as ações humanas a regras natu
rais, porque assim não veremos a vida real, o drama da história. Os fatos
reconstruídos, percebem -no todos que exercitam a história, não se en
quadram nas causas amplas e gerais com que o positivismo quis explicar
o curso da humanidade.
Se compararmos a escola positivista, a que estêve ligado Capistrano
até sua aprendizagem do alemão, com os historiadores do realismo histó
rico, a que passou a filiar-se, vê-se imediatamente como os resultados da
quela foram notávelmente simplistas e precisamente no ponto de partida,
isto é, na obtenção dos fatos. Não se distinguem as fontes, nem sua
credibilidade, autenticidade e integridade. Foi só depois de germanizar
seu espírito que ele se voltou para a pesquisa das fontes, na base critico
filológica, para a edição crítica, para o exame da fidedignidade e inter
pretação das fontes . Não é qualquer texto, qualquer testemunho que
deve servir ao historiador ; é só aquele que passou pelo exame rigoroso
da crítica histórica. Em 1900 ele sustenta em carta ao Barão de Stu-
dart uma das teses mais importantes da edição crítica : a interpretação
é o elemento fundamental deste gênero de edição. E em 1904 vemos
Ranke aparecer , enfàticamente, ainda em carta ao Barão de Studart . Fa
lando-lhe da necessidade imprescindível de indicar precisamente as fon
tes utilizadas, perguntava -lhe Capistrano : “ Por que não dás a procedên
cia dos documentos que publicas ?... Por que motivo, portanto , te in
surges contra uma obrigação a que se sujeitam todos os historiadores,
principalmente desde que com os estudos arquivais, com a criação da
crítica histórica, com a crítica de fontes criada por Leopold von Ranke
na Alemanha, foi renovada a fisionomia da história ? "
Ao lado das anotações à História Geral de Varnhagen, Capistrano
preparava -se, então, para escrever o seu belo livro os Capítulos de His
tória Colonial, reunindo não só elementos de fato como teóricos . Em
1901 o encontramos estudando ao lado da História, Economia e Psico
logia. Dizia numa carta : “ Tenho estado lendo coisas diversas, um livro
de Wundt sõbre psicologia, necessário para se entender sua grande obra
sôbre psicologia dos povos, de que já tenho dois volumes ; um livro de
Breysig sôbre a história da civilização dos tempos modernos, em que
XLIV CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

espero aprender alguma coisa aplicável à história do Brasil , uma his


tória universal de Helmott... Tenho lido também Carlyle ." Noutra
carta escreve : “ Estou lendo economia política de Schmoller, que é um
livro monumental. Quando me lembro que por certas críticas fidein
dignas, como hoje reconheço, passei tantos anos sem fazer conhecimen
to com um espírito superior e luminoso, com cuja privança podia ter
adiantado anos , fico triste." Em 1903 dirá ainda a Studart : " Estou
metido em economia política até os olhos, e agora encontrei o livro de
um professor da Politécnica de Zurique, que junto ao Bücher, hoje tra
duzido em francês e que muito lhe recomendo, me tem ajudado bastante."
Em resumo, pode dizer- se sõbre as etapas de sua formação teórica
que o estágio na Biblioteca Nacional ensinara - lhe a pesquisa das fontes
e a descoberta dos fatos ; a metodologia histórica alemã guiara - o no
exame rigoroso dos documentos; os conhecimentos geográficos e econô
micos focalizavam a visão na estrutura real dos acontecimentos histó
ricos ; a psicologia de Wundt , início da psicologia experimental, fazia-o
abandonar a vaga anatomia psicológica, impedindo-o de cair no factu
alismo pela compreensão da vida dos povos. Essas influências causam
uma reviravolta no seu espírito num sentido realista. Agora sua con
cepção é o realismo histórico, dos teóricos alemães, e sua tarefa narrar
o que realmente aconteceu. Uma única peça parece sobrar, sem perigo
de perder sua organização mental a severidade lógica : os restos de
Spencer, tão influente no próprio Schmoller. O importante é que a rea
lidade não deve mais amoldar-se aos quadros teóricos preestabelecidos.
Ela é pesquisada e revelada tal como é, ajuste-se ou não às concepções
preconcebidas. Um realismo histórico que se nutre na observação dos
fatos, apurados em fontes autênticas e fidedignas, que busca na terra
e na economia seus fundamentos de estrutura , sem comparação com os
processos naturais, e que procura compreender o fim e o sentido histórico
e a imprevisível criação de valores.
Justamente agora a Alemanha é o pão da vida de um espírito
forte como o de Capistrano. Seu entusiasmo refletia - se na vida fami
liar e ele interna, em 1905, sua filha Matilde na Escola Alemã recém -fun
dada. Ao sair, nos Estados Unidos, um novo livro sobre Washington,
feito na base da crítica histórica , com excelentes resultados, comenta
para João Lúcio de Azevedo : " É a prova de que os métodos alemães
impiantados nos seminários produzem frutos ”.
Capistrano traduziu tudo desde sua aprendizagem do alemão com
Carlos Jansen, no grupo de que faziam parte Ferreira de Araújo e
CAPISTRANO DE ABREU E A HISTORIOGRAFIA XLV

Machado de Assis : Geografia, Medicina, Historia Natural, Viagens e


Direito . Sim, traduziu a Introdução à Ciência do Direito de Kohler,
tradução que não foi publicada, como se vê na autobiografia que fez
para Studart. Sua biblioteca revela a predominância da formação alemã ;
não são só os historiadores e geógrafos alemães que ali figuram , como
Ranke, Mommsen , Meyer, G. Friederici, o Dicionário das Ciências So
ciais, Sombart e outros ; são os teóricos como Kemmerich e Riess, os
psicólogos, filósofos e antropólogos, como Wundt, os juristas como Puchta,
Liszt e Kohler. Ele próprio explica por que estudara o alemão : " Fi- lo
porque certos livros alemães satisfaziam -me algumas curiosidades de meu
espirito, e esperar que fossem traduzidos importava na melhor hipótese
uma demora de anos ” .
Era o que havia de melhor a leitura de Capistrano. Na sua maioria
os autores que freqüentou são ainda hoje reputados e lidos. Eles lhe
serviram para, sob nova luz, interpretar a história do Brasil, a que se
dedicava todo de corpo e espírito, em 1901. E por isso ele podia falar
a Mário de Alencar, aconselhando -o, que " era possível dar uma direção
nova à vida, como gato que se vira no ar e cai sobre os pés ; em nosso
tempo, Goethe fêz isto, depois da viagem da Itália ; Comte fêz isto
depois de conhecer Clotilde ; anteriormente Dante tivera a idéia da Vita
Nuova ; precedentes não faltam ; falta é quem se inspire nêles e aumente o
número " . E embora acrescentasse que ele infelizmente não o conseguira
e já dera de mão a tais ambições, o certo é que também se aplicava a
éle, restaurado da crise dolorosa da perda da mulher em 91 , refeito pelas
novas leituras, tocado de novo pela paixão de comunicar ao presente as
contas do passado. E agora começa uma obra nova, monumental, que
lhe acrescentará o nome de uma reputação extraordinária.
Desde 1900 vinha Capistrano preparando a nova edição da História
Geral do Brasil de Varnhagen . Ao sair o 1.º volume, em 1907, José
Carlos Rodrigues o saúda como uma contribuição notável à historiografia
brasileira.
“ Cremios não errar garantindo que o trabalho do Editor não
foi menor que o do Autor." E ajuizava com razão que " podendo ele
mesmo prendar-nos com uma história, modelada em formas novas, se
ele quisesse vencer a tal ou qual repugnância que tem por escrever, o
Sr. Capistrano de Abreu preferiu dar-nos esta terceira edição do mestre,
reproduzindo-lhe fielmente o texto e as notas" .
Não podemos apreciar particularmente, nesta oportunidade, as suas
contribuições especiais à periodização, à crítica histórica, à pesquisa,
o que aliás já fizemos em livros publicados. Seu papel na historiografia
XLVI CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

brasileira, a significação de sua obra, os caminhos novos que aponta


podem ser bem avaliados no estudo dos Capítulos de História Colonial,
dos seus ideais e conceitos e ro exame de suas contribuições à história
colonial.
Este homem que nunca certificou coisa senão de muitos aprovada
e por documentos que mereciam fé, nem recontou mais largo que devia,
antepondo a simples verdade à formosa falsidade, teve a mais austera
dúvida de republicar seus Capítulos de História Colonial, obra única,
exemplar e modelar como síntese e composição, um livro que respondia
às incertezas, satisfazia as dificuldades, colhia, informava, concluía e
resumia o que de melhor se sabia da nossa formação colonial. Não é
um livro que se compara ; é um livro que se distingue na historiografia
brasileira, escrito numa linguagem simples, branda, enxuta, onde havia
doutrina que persuadia, compreensão que se fazia perceber e novidade
apertada, colhida na vastidão sem fim de suas pesquisas. Não acumu
lava só fatos, mas com sua intuição compreendia os homens e suas ati
vidades, tornando vivo o recontamento.
A história não é só fato : é também a emoção , o sentimento e o
pensamento dos que viveram a parte mais difícil de captar dos
negócios humanos. Capistrano não observava o desdém com que carac
terizara o periodo transoceânico, desdém pela terra , desdém pelos na
turais ? Não percebera a revolução psicológica que se operara no ter
ceiro período de nossa história, nos primeiros anos do século XVIII ? Não
queria captar a sensação interior dos cronistas ? Não considerava a nossa
independência como a tradução da consciência de superioridade a Por
tugal ? Os sentimentos, as especulações, os pensamentos do povo, suas
aspirações são uma coisa que nunca se repetirá, que viveu e que inte
ressa ao historiador tanto quanto os fatos materiais.
Apreciando a metodologia de Ranke, como se verá em sua corres
pondência, seria incapaz de adotar aquela atitude e estilo objetivos que
apagavam todo o eu , para poder ver os acontecimentos tal como acon
teceram . Nunca seus adversários, como os de Ranke, poderiam comparar
seu comportamento ao das esfinges da segunda parte do Fausto :
66
Sentados diante das pirâmides
Contemplamos a vida dos povos,
Inundações, guerras e paz,
Sem pestanejar.”

Ninguém lerá os Capítulos sem ver de imediato que Capistrano


se preocupa com o "povo durante três séculos capado e recapado, san
CAPISTRANO DE ABREU E A HISTORIOGRAFIA XLVII

grado e ressangrado ”. Por isso eles são uma síntese social e econômica
limpa e enxuta, que evita transformar -se, como tantos outros livros de
história, numa conversa entre eruditos. Capistrano conhecia muito bem
este tipo de palestra, sabia quando e como usá-la, mas não a queria agora
que seu livro pretendia ensinar simplesmente o segredo do Brasil aos bra
sileiros, numa época em que, como escrevia José Veríssimo, a história
nacional era tão prodigiosamente desprezada que, com exceção da obra
de Varnhagen, uma conversa só para eruditos, era com os estrangeiros
que teríamos de ir aprender a história de nosso país.
O livro nascia do desejo de divulgar e atualizar, em forma simples,
mas não erudita, sem pedantismo, o conhecimento de nossa história, mais
social e econômica que política, liberta o mais possível da seriação de
datas e nomes, livre da cronologia dos vice-reis e governadores, que su
focaram ou ajudaram os anseios do povo brasileiro em sua luta trissecular
pela Independência.
Não era o inédito que o preocupava, mas sim a clara certidão da
verdade, buscada e colhida nos arquivos e bibliotecas, apertada e resu
mida em poucas linhas, exposta com razões próprias que esclareciam e
convenciam . Capistrano foi sempre o homem da síntese e basta ler sua
correspondência para logo se ver que ele admitia de mau grado os estu
dos em vários e grossos volumes. Mas para compor esta síntese era
necessário proceder a uma imensa atividade investigadora que o precipi
tava como um nadador num mar sem limites. Os Capítulos eram uma
síntese da pesquisa realizada para anotar a História Geral de Varnhagen
e preparar a edição de textos históricos fundamentais ; eram o filho le
gítimo de uma análise demorada, cuidadosa e ilimitada. Em várias partes
dêste livro logo se notará a compreensão e não a simples descrição , o
entendimento e não só os fatos.
E por que não incluiu nesse livro a Inconfidência Mineira, recen
temente considerada como o mais importante movimento precursor da
Independência ? O fato é que entre 1878, quando criticava Varnhagen
por considerar a Conjuração Mineira como uma cabeçada e um conluio,
e 1903, quando se intrigava com as honras prestadas a Tiradentes em
detrimento dos Mascates e dos Republicanos de 17, êle parece ter-se
convencido de que a Conjuração realmente não tivera a importância que
começavam atribuir-lhe. Muito mais importantes eram as lutas dos
Emboabas e dos Mascates, a consciência da riqueza do país, as proezas
dos Bandeirantes, os atritos armados e sangrentos, as lutas dos Repu
blicanos de 17. Ele mesmo dira, em carta a Mário de Alencar, que
XLVIII CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

“ na Suíça é proibido, hoje, nas escolas públicas introduzir a história de


Guilherme Tell, depois da crítica histórica ter demonstrado sua inanidade.
Por que, tendo estudado o depoimento de Tiradentes e a sentença da
alçada, sou obrigado a repetir a versão corrente e a colocá -lo no Panteon ?
Nunca escrevi sobre éle : nos Capítulos, dada a escala , não entrou porque
não cabia ; tenho emitido minha opinião em conversa .'
Vê- se que Capistrano não valorizava o movimento da Inconfiden
cia nem lhe dava a importância que, nesta época, começavam a confe
rir- lhe. E mais . Não entrara nos Capitulos porque não cabia, não só
dadas as proporções da obra uma sintese, conio porque não escrevia
uma história das idéias e dos movimentos ideológicos. A Inconfidência
não foi um fato, um acontecimento : foi um pensamento quase sem ação
e, como tal, pertence à história das idéias formadoras da consciência na
cional. Capistrano nunca foi subjetivista para considerar a História não
como o que realmente aconteceu, mas o que uma minoria intelecutal
pensou ou sentiu quando a História estava in statu nascendi. Queria,
isto sim , como bom historiador, colocar- se em simpática comunhão com
o espírito dos atores e autores do drama, reconstruir o processo do
pensamento, penetrar as conclusões e motivos que ditaram a ação e fi
zeram acontecer o acontecimento. Mas o que só estêve no espírito dos
homens e veio a influí-los mais tarde, como exemplo e virtude para rea
ver fôrça na força dos grandes homens, pertence a outra história , ou
pelo menos não cabe àquela história que ele concluía no periodo colonial.
O suplicio de Tiradentes não é só um ato físico, mas um ato sim
bólico. a expressão de um grande caráter, é dos primeiros pro
testos da mentalidade republicana brasileira em face dos desmandos da
Metrópole . Mas para o realismo histórico que se agarra com todas
suas forças ao mundo, à realidade da história, a sublevação realmente não
aconteceu . ( historiador de 1906 não podia contentar - se com pensa
mentos conscientes que não chegaram a agir , que não se transformaram
em ação, ou cuja ação, de tão tênue, não afetou o povo. Era importante
saber e compreender por que as dramatis personae agiram . Mas se não se
chegou à ação ? Se seu pensamento foi violado e sua ação impedida ?
O que aquela minoria intelectual pensou, sentiu e agiu numa pequena
roda só aconteceu na história intelectual e não na história social e econo
mica que Capistrano escrevia. Aquilo que não foi só conspiração, mas
rebeldia e revolução, os Emboabas e Mascates, as lutas entre colonos e
jesuítas, a história social e econômica do povo, sua vida e alimentação, seus
tipos étnicos, as condições geográficas, as estruturas económicas dos vários
CAPISTRANO DE ABREU E A HISTORIOGRAFIA XLIX

grupos, o povoamento , os caminhos, as feiras, as formas psicológicas, os


escravos, seu comportamento e papel, a educação, os divertimentos, os
costumes , as crenças religiosas, as profissões, as ideologias que se refle
tem na prática, as diferenças sociais, a posição da mulher, o comércio e os
comerciantes, as palestras, a vida urbana e rural , tudo tem lugar nesta sínte
se, que é a mais condensada e a mais viva história colonial do Brasil. Não era
a gente de ficção que andava em suas páginas, mas a gente real e concreta,
que vivera e trabalhara . Ele dava, assim , carne e sangue à sua história
e, como historiador, achava mais bela a verdade que a novela .
Os ideais variam tanto de século a século que era natural que nos
Capítulos de História Colonial fosse agora o povo a personagem princi
pal. Sim , aqui se vê o povo capado e recapado, sangrado e ressan
grado. Mas, para vê-lo assim era preciso ter tido a formação que o
próprio Capistrano se dera, ler o que ele lera, os clássicos, os liberais,
os socialistas, os radicais, e viver livre de interesses e proveitos.
Seu ideal de história do Brasil, sua concepção historiográfica variou
muito, desde o primeiro esboço de 74. Em 90 ele transmitira a Rio
Branco seus novos planos : " Estou resolvido a escrever a história do
Brasil, não a que sonhei há muitos anos no Ceará, depois de ter lido
Buckle, e no entusiasmo daquela leitura que fêz época em minha vida
uma história modesta, a grandes traços e largas malhas até 1807 ” . Es
perava reunir muita coisa esparsa, encadear melhor certos fatos e chamar
atenção para certos aspectos até então menosprezados. “ Parece-me que
poderei dizer algumas coisas novas e pelo menos quebrar os quadros de
ferro de Varnhagen , que introduzidos por Macedo no Colégio Pedro II são
ainda hoje a base do nosso ensino." Queria, como fez primeiro que todos
sugerir os novos caminhos que tanto modificaram o nosso conhecimento
histórico, estudar as bandeiras, as minas, as entradas, a criação de gado,
desconhecidas até então .
Em 1903 seu projeto adquire novas formas. “ Pretendo acompanhar
cada volume de Varnhagen ( serão três, o primeiro acaba na conquista
do Maranhão ) de uma introdução de cem páginas fazendo a síntese do
período correspondente. Se levar isto ao cabo fica pronto o livro a que
reduzi minhas ambições da História do Brasil, um volume do formato
de um romance francês." O resultado foram os Capítulos de História
Colonial.
Capistrano, como um verdadeiro historiador, era sensível ao espirito
do fato. A história não é somente uma questão de fato, ela exige ima
ginação que penetre o motivo da ação, que sinta a emoção já experi
L CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

mentada que viva o orgulho ou a humilhação já provados. Ser desapai


xonado é perder alguma verdade vital do fato ; é impedir -se de reviver
a emoção e o pensamento dos que lutaram , trabalharam e pensaram.
Não é a conquista da Colônia do Sacramento só que o interessava ;
não é só a coisa, é o espírito da coisa. Por isso diria que “ o Regimento
de Manuel Lobo é um dos documentos que maior prazer me tem cau
sado no estudo da nossa história, porque mostrou -me que o Regente estava
de boa -fé, coisa de que eu duvidava .”
A formação teórica, a pesquisa incansável, a imaginação criadora ,
as qualidades especiais, as faculdades novas e o estilo deram a éste ho
mem um destaque incomparável na sua época e entre os de sua geração.
Seu papel na historiografia brasileira entre 1878 e 1927 não se exprime
só com os Capítulos. Seguindo a linha de Varnhagen, Cândido Mendes
de Almeida, João Francisco Lisboa e Joaquim Caetano da Silva, Capis
trano de Abreu foi um erudito e um incansável pesquisador dos fatos
novos ou por esclarecer. Fêz pesquisa documental, aquisição de fatos,
edição crítica de textos históricos. Era a primeira orientação a seguir
para quem quisesse trazer uma contribuição nova. É evidente que na pes
quisa, como na interpretação, o preparo teórico joga o mesmo papel
importante. Quem não sabe o que perguntar, o que formular, não en
contra nos textos as respostas. Ele próprio não escreveria a João Lú
cio de Azevedo que " n10 seu processo de trabalho, o documento devia
confirmar a adivinhação? ” Sim , porque é preciso levar bem formuladas
as perguntas que se originam de uma leitura incansável e de um extraor
dinário poder de intuição. O historiador não cria , como na ficção, antes
recria um mundo realmente vivido, sofrido, aproveitado ou perdido.
E nesta recriação é guiado pelas teorias, concepções ideológicas do mundo,
que variam segundo os interesses presentes, enquanto o documento é a
única coisa permanente na mudança contínua.
Para acrescentar ao mundo dos fatos mais fatos, a pesquisa e a
edição dos textos eram o primeiro caminho, que a escola da crítica his
tórica de Ranke o faria seguir obstinadamente. E neste sentido a iden
tificação do “ Nono " da Gaseta Alemã com D. Nuno Manuel, a de An
tonil com Andreoni, a de Brandônio com Ambrósio Fernandes Brandão,
a do Padre do Ouro com o Padre Gouveia, as edições de Anchieta,
Frei Vicente do Salvador, Fernão Cardim , dos Diálogos das Grandesas
do Brasil, dos Materiais e Acheras para a História e Geografia do Brasil,
os estudos sõbre os jesuítas, sobre Pero de Magalhães Gandavo, sôbre os
processos da Inquisição, a “ Coleção para melhor conhecer o Brasil ”,
acrescentaram muito ao estudo dos séculos XVI e XVII .
CAPISTRANO DE ABREU E A HISTORIOGRAFIA LI

O próprio Capistrano supriu muitas das deficiências notadas na


historiografia brasileira da época de Varnhagen e apontadas no seu
artigo de 82. Nas anotações de Varnhagen e de Frei Vicente esclareceu
toda a jornada do Maranhão e os anos escuros de 1590 a 1607 e, baseado
nas pesquisas de Guilherme Studart, explicou o período pouco conhe
cido de 1600 a 1630 . Suas contribuições à história das minas e das
bandeiras, pequenas na extensão mas valiosas nos caminhos que indicou ,
serviram muito aos que o sucederam. Ainda nos Capítulos de História Co
lonial ele declarava que faltavam documentos para redigir-se a história das
bandeiras. A publicação documental e a pesquisa de Afonso d'E. Taunay
não são frutos das indicações de Capistrano de Abreu ?
A edição das Cartas Jesuíticas, das quais a de Anchieta é obra
sua e a de Nóbrega feita com sua ajuda, iluminou a história dos pri
meiros anos ; a edição de Frei Vicente esclareceu a história até 1627 ; os
Diálogos das Grandezas do Brasil e especialmente seu prefácio chama
ram atenção para a história econômica, social e os costumes, que nenhum
livro elucidou como éste ; os processos da Inquisição de 1591-95 trou
xeram uma contribuição definitiva à história social e dos judeus no
século XVI ; seu prefácio às Denunciações da Bahia relatam , numa sín
tese admirável, a melhor que conheço, a vida social e familiar do Brasil
quinhentista. Foi aí que ele definiu a vida da família brasileira nesta
síntese : Pai soturno, mulher submissa, filhos aterrados ; no prefácio às
Confissões da Bahia esclareceu as relações da Bahia e de Pernambuco com
o Rio São Francisco. A contribuição de fato e interpretativa que nos
deu Capistrano para o conhecimento dos séculos XVI e XVII não é
pequena na extensão, como se pode imaginar à primeira vista , e ilumina
como nenhuma outra aquela história social tão abandonada até seu apare
cimento .
Falta ainda um aspecto para pôr em relevo seu papel exato na his
toriografia brasileira. Já acentuamos, em trabalho anterior, que como
todo grande historiador, Capistrano periodizou mas não dividiu a matéria
histórica, que flui sem cessar. Tentou, nos seus ensaios e livros, reunir
os elementos estruturais e os objetivos espirituais que marcam uma fase
característica. Não deformou a realidade do sucedido dedicando-se exclusi
vamente à vida econômica, política, administrativa ou biográfica. Praticou
todo gênero histórico, procurando apreender a vida humana na multi
lateralidade dos seus aspectos fundamentais. Nunca mutilou a unidade do
sucesso histórico, conjunto complexo de fatos de estrutura e de feno
menos ideais, mesmo ao dedicar- se ao período colonial. O historiador dos
LII CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

períodos recria a vida integralmente, embora faça um finito no infinito


da história . O historiador economico, administrativo, político, religioso
e o biógrafo ferem a vida histórica pela unilateralidade da visão, pela
incapacidade de realizar a missão própria do historiador que é a com
preensão total e criadora do curso histórico. Nisto não pecou Capis
trano de Abreu, antes salvou - se pela graça de ver o homem todo.
Ele pagara sua dívida ao solo com a divulgação de Wappaeus e Sellin ;
ao elemento ocidental, com o estudo da história ; e aos indígenas, como
estudo dos caxinauás e bacairis. Quem examinar a lista de problemas
obscuros que, em 1882, aos 29 anos, ele apontava à mocidade estudiosa,
há de notar que este seu conhecimento preciso da situação da historio
grafia brasileira no século passado foi um dos fatores decisivos para a
radical transformação que se operou no nosso saber histórico. A his
tória das sesmarias, das municipalidades, dos bandeirantes, dos jesuítas,
das minas são capítulos que sofreram grande alargamento de perspecti
vas e de conhecimento .
A historiografia brasileira enriqueceu -se, graças à sua formação, de
novos conceitos. O conceito de cultura substitui o de raça ; seus estudos
indígenas renovaram nossa etnografia ; a importância da história
social e dos costumes aparece pela primeira vez nos Capítulos ; e o próprio
sistema da casa -grande e da senzala e sua importância no Norte viu - o pela
primeira vez em 1910. Em carta a Pandiá Calógeras, de 22 de fevereiro
de 1910, escreveu : “ A situação do Norte me aparece assim : população
muito escassa ; na Casa-Grande , muita fartura, graças à economia na
turista ou caseira, em que o produto e o consumo se ultimam no mesmo
âmbito limitado ; pouco dinheiro. Como objeto de comércio o gado
vacum ou cavalar. Quando éste se vendia no Recife ou na Bahia, o
retorno era quase todo em gêneros. Dinheiro imobilizado em jóias : varas
de condão ; também escravos decorativos. Pelos meados de 700 a cultura
súbitamente desenvolvida do algodão deve ter modificado as coisas; não
conheço particulares."
Em resumo pode dizer-se que na obra de Capistrano de Abreu
quatro estudos se distinguem : os Capítulos de História Colonial, os Ca
minhos antigos e o povoamento e as edições críticas da História do Brasil
de Frei Vicente do Salvador e da História Geral do Brasil de Varnhagen.
Os Capítulos de História Colonial são a mais perfeita síntese jamais
realizada na historiografia brasileira . É um livro para todos, que todos
podem e devem ler mais de uma vez .
CAPISTRANO DE ABREU E A HISTORIOGRAFIA LIII

Os Caminhos antigos e o povoamento definiram os roteiros da época


colonial , explicaram a articulação das várias capitanias, mostraram um
campo novo na historiografia. Ninguém atribuira, como Capistrano,
desde o fim do século, tanta importância à conquista e ao povoamento
do sertão; ninguém estudara como ele com tanto afinco e coin tanta

base documental este tema de nossa história ; não seria uma mistura de
dados históricos, antropológicos, geográficos e fatos contemporâneos, como
Os Sertões de Euclides da Cunha, livro de 1902. Seria um desenvol
vimento sucinto e legível daquele capítulo da tese de 1883 ou dos Cami
nhos de 1889, com a base histórica, geográfica e antropológica que nin
guém conhecia em particular e em conjunto como ele nessa época. Os
Caminhos antigos e o povoamento são, para a historiografia brasileira, o
que The Frontier in American History de F. Turner é para a historio
grafia americana.
Quando Capistrano de Abreu apareceu na historiografia brasileira,
esta centralizava seu interesse especialmente nas comunidades do litoral.
Ele viu o sertão e o caminho como processo de incorporação e dilatação
da fronteira ocidental: era um campo novo, um método de investigação
e interpretação original da formação colonial do Brasil . O sertão e os
caminhos são um fator de criação da vida brasileira. Insatisfeito com
as histórias puramente políticas que mutilam a unidade humana, ele não
divide com sua geografia e economia aprendidas dos alemães o suceder
histórico. Ao estudar a ocidentalização do Brasil, estava particularmente
interessado em achar aquilo que a distinguia da velha civilização européia.
O sertão e o caminho são ilustrações dos processos de desenvolvimento
da história brasileira. O verdadeiro ponto de vista da história do Brasil
não é a costa atlântica, mas o sertão e o caminho que a ele conduzem
e o articulam com o Governo Geral . No processo de transformar o
sertão, o colono a princípio se barbariza e depois ele próprio e o sertão
se alteram e, nesta mudança, cria-se uma nova personalidade, que é dis
tintamente brasileira . O papel do sertão e dos caminhos, entrevisto agora
pela primeira vez , modificou profundamente o escrito e a metodologia
histórica no Brasil . A história do Brasil colonial não era só a da
colonização da costa atlântica, mas a expansão pela terra, livre ou ocupada
por bárbaros.
Capistrano nunca foi um historiador regional . Pelo contrário, sempre
soube valorizar as contribuições de cada região ao todo da formação do
Brasil. Desde cedo compreendeu que a nossa história é um ato de
incorporação e dilatação. Em 94, numa crítica ao livro de Oliveira
LIV CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Viana, Pernambuco. Seu desenvolvimento histórico, depois de várias


observações e críticas, concorda com o autor que cabe a Pernambuco a
hegemonia do Brasil no século XVI e continua : " Se quiséssemos de
signar cada século da nossa história por um epíteto aproximado, caberia
o de pernambucano ao XVI , o de baiano -paulista ao XVII , o de mineiro
ao XVIII, como o de fluminense ao que breve terminará.”
Os Caminhos antigos e o povoamento do Brasil são de 1899. A
Fronteira na História Americana é de 1893. Capistrano, como Turner,
com um ensaio , renovou todo o método e o espírito da historiografia
brasileira. Enquanto os Caminhos antigos representam um livro para
estudiosos, a edição da História Geral do Brasil de Varnhagen e da
História do Brasil de Frei Vicente do Salvador são uma conversa para
eruditos, o mais sério e o mais perfeito exemplo de crítica historica,
com todo o rigor da metodologia alemã. Em 1907, quando já haviam
sido publicados os Caminhos antigos, os Capitulos de História Colonial
e a 3.a edição da História Geral de Varnhagen ( 1.9 vol . ) , Capistrano de
Abreu era reputado a mais incontrastável autoridade na história pátria.
Será realmente modesto seu espólio literário diante de tantas con
tribuições definitivas, de ensaios tão originais, da seriedade e novidade
do método e do fato, das perspectivas novas que abriu aos caminhos da
historiografia ? Poderia ter sido maior a contribuição de Capistrano, mas
não nos parece que tenha sido pequena. Estaremos sempre satisfeitos
com o que nos legou, mas ele próprio disse que “ Imaginava outra coisa
e não pude realizá -la, parte por culpa minha, parte por culpa das cir
cunstâncias. Acreditei muito na extensão da vida e na brevidade da arte
e fui punido .” Ele que escolhera como epígrafe de sua tese de con
curso a frase de Goethe, que a minúcia obscurece a visão, esclareceu como
ninguém a historiografia brasileira. Projetos, idéias, conhecimentos nunca
lhe faltaram . Esta correspondência que é agora publicada revelará quantos
planos nutriu e quanto guiou e orientou seus amigos e os que o procuravam
para a solução dos problemas da historiografia brasileira.
Quando se estudar exatamente sua herança científica, com a publi
cação da correspondência e dos ensaios ainda não reunidos, será possível ver
os novos problemas e teses que ele sugeriu e indicou aos seus amigos.
É preciso escrever uma história do regime de terras no Brasil , dizia ; é
necessário estudar e escrever a história do Direito e da Legislação ; a
história das Côrtes constitucionais ; a história dos partidos ; a história do
Parlamento ; um dicionário de História ; é preciso olhar definitivamente a
documentação existente na Europa e publicar mais textos históricos ; é
CAPISTRANO DE ABREU E A HISTORIOGRAFIA LV

indispensável fazer o atlas histórico, pelo qual tanto trabalhou entre 1916
a 1920. Seu engano foi pensar que não teria, como Goethe, o livro lido
por aqueles que mais quisera, um verso do prólogo do Fausto que sempre
O comoveu . Os Capítulos de História Colonial há cinqüenta anos são
lidos e relidos pelos que estudam o Brasil e admiram a devotada paixão
com que Capistrano de Abreu quis descobrir o segredo do Brasil aos
brasileiros .
Claridade e crítica, sobriedade e competência , probidade e erudição
completam e formam as qualidades do seu espírito e de seus trabalhos.
Não importam os grossos volumes ; devemos fixar-nos não só no que
Capistrano realizou como historiador, mas no que aspirava realizar, no
que queria, no que postulava. É na novidade deste principio e na es
tranha energia com que soube mantê-lo que reside seu mérito essencial e
incomparável.
Diante de tudo isso , novamente se impõe a pergunta : onde repousa
o valor permanente de Capistrano ? Na interpretação. Ele foi um
intérprete, porque foi um grande humanista. Que significa isto ? Que
êle, como historiador, se preparou para conhecer tudo o que a espécie
e o destino humanos podem realizar no mundo, neste mundo que é o
Brasil . Tudo que é humano tem interesse, exatamente porque é hu
mano ; o bom e o mau , o nobre e o comum , o gosto e o desgôsto pela
vida, o titanismo da mocidade e o desespero da maturidade, as belezas
da vida e os temores da morte, a proximidade e o afastamento de Deus,
tudo cai no âmbito do humano.
Pode-se desde logo notar o contraste entre a estima que lhe devotavam
e a lição que ensinou . Capistrano de Abreu tornou-se uma legenda no
campo da historiografia, onde todos prestam seu culto ao mestre. Estêve
na moda louvá-lo, mas desprezou-se seu conselho. A razão para o con
traste é fácil de achar. Êle é uma companhia desagradável para quem
procura o êxito imediato, pois combinava uma espécie de ironia socrática
com uma intolerância puritana contra a presunção.
Como disse recentemente Eduard Spranger, em artigo publicado o
ano passado na Revista de História Alemã, no volume dedicado ao 90.
aniversário do maior historiador europeu, Friedrich Meinecke, a cons
ciência histórica é uma forma alta e própria de genialidade. Ela é a
mais valiosa criação do espírito europeu. “ Não reconheceríamos sua
força se a considerássemos apenas como essencialmente reprodutiva.
Muito mais do que isso, o grande historiador constrói o mundo espiritual
LVI CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

que começa nèle de maneira indissolúvel . A vida, de cuja compreensão


ele se apropriou, torna -se imediatamente um força presente e formadora
do futuro. Assim, o verdadeiro historiador liberta seus contemporâneos
da pressão de um passado que simplesmente pesa sobre eles.”
A história, deste modo, é catarse , mas é também relembrança do le
gado espiritual, daquele bem que participa do eterno, que é a única
coisa que não nos pode ser roubada, pois pertence individual e humana
mente a cada um e a todos. Assim , quem diz consciência histórica signi
fica e sugere duas coisas, dois sentimentos ambivalentes: a libertação do
mal que padecemos ou nos ameaça , e a conquista de um bem ou a conservação
do que já possuíamos. Duas salvações, uma só compreensão — a cons
ciência histórica que presta contas e nos diz o tesouro espiritual que nos
coube e que, ao superar o passado, participa da criação do futuro .
Animado de patriotismo, “ amo, admiro o Brasil e espero dele ",
Capistrano foi a mais lúcida consciência da historiografia brasileira .

José Hoxório RODRIGUES


CARTAS

- 1
A RAMOS PAZ 1880-1909

Amigo Sr. Paz,

Consinta que antes de responder a sua prezada carta de 20, ontem


recebida, lhe dê uma explicação. Meu folheto sôbre a armada de D.
Nuno só na véspera de minha viagem ficou pronto. Por isso não lhe
enviei o que lhe prometera .
Saindo do Rio no dia 16, cheguei a S. Paulo no mesmo dia, sem
novidade. Aí Valentim Magalhães levou-me para casa, e tanto conver
samos, tanto passeamos, tanto lemos Leconte de Lisle, que só a 20 vim
para Rio Claro.
É uma cidade nova e pequena, mas imensamente simpática esta
do Rio Claro . As ruas não são calçadas, mas são tão largas! Ais casas
não são precisamente primores, mas são tão frescas ! Sinto-me chez moi,
e desde que sai do Ceará, só dois lugares me têm agradado tanto : Ti
juca e Praia das Flechas e Icaraí. Já começo a estudar, ou antes, a ler,
porque continuo com a seção da Gazeta, e quero antes de tudo ficar
livre daqueles pesadelos, a fim de pertencer -me total e exclusivamente.
Vou começar desde amanhã a revisão de Oliveira Martins ; mas
parece-me que de onde a deixei por diante não há muita cousa a corrigir,
porque o autor saiu das minúcias para as generalizações, e aí ele foi muito
feliz.

Tivemos poucos livros Varnhagen , que pretendo ler de fio a pavio ;


as Memórias de Cândido Mendes, que me são indispensáveis para os dois
capítulos da Hist. do Brasil, que pretendo escrever aqui ; Vaz Caminha,
4 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Gabriel Soares e Léry, sobre que vou escrever ; e um tratado de econo


mia política, indispensável para A Indústria Brasileira no Século XVI,
de que pretendo escrever o último capitulo, porque os outros já estão
prontos, e apenas exigem a consolidação das autoridades.
Estive em S. Paulo com o Abílio Marques, que, em última análise,
não sei bem o que me disse a respeito da Biblioteca Útil. Assegurou -me
que não acabara com ela ; que, pelo contrário , ia torná - la mais barata,
vendendo os exemplares brochados; mas ao mesmo tempo disse que só
no fim do ano tomaria resolução definitiva.
Enquanto demorei na Capital, tive por mais de uma vez a idéia de
ir à Biblioteca ver o Barbosa ; mas um motivo ou outro sempre me impediu
a realização deste desejo. Quando voltar, provavelmente no dia 6 ou 8,
farei por não esquecê- lo .
Adeus receba , com esta, muitas baforadas de fresco.
Bien à vous ,
J. C. DE ABREU
23 de riezemiro de 1880.

My dear,
Tacho, isto é , cuba ou bacia grande de metal, não se pode traduzir
bem em guarani, digo, tupi, que não conheciam metais.
A tradução menos insuficiente que encontrei foi nhaenguaçu. Nhaen
( ñaen ) , segundo Batista Caetano, significa : continente, vaso, vasilha, bacio,
bacia... ; conduto, o em que se transporta ou leva, prato em geral ou
receptículo, louça, panela, ola ; guaçu significa grande.
Poder -se - ia também dizer : ita -nhaenguaçu : cuba grande de pedra,
porque os indios, depois de conhecer os metais, chamaram -no : ita.
Demorei esta resposta, para ver se eni mapas antigos de Minas Gerais
encontraria a antiga denominação indigena.
Não encontrei.
Bien à voils ,
J. C. DE ABREU
CARTAS A RAMOS PAZ 5

Jly dear,
Fui hoje à rua de S. Pedro, n.º 2, onde há uns inglêses que escrevem
por máquina, para começarem a passar a limpo o meu trabalho. Não os
encontrei ; só 4.a feira.
Meu trabalho vai depressa agora . Está pronta a primeira parte (Des
crição Geográfica ) ; espero acabar hoje ou amanhã a segunda ( 0 Colono
na Mata ) , para passar à 3.a ( Cultura do Café ).
Na quarta pretendo dar as estradas de ferro, escolas, alimentação, etc.
Provavelmente no fim da semana estará pronto tudo, e como os ingle
ses trabalham depressa, espero entregá -lo à companhia antes do fim do
mês.
Bien à voils,
C.
Rio, 19 de junho.

Uly dear,

Um rio -grandense com quem me dou , Amaro da Silveira, deseja


publicar no dia 20 do corrente um folheto comemorativo da Guerra dos
Farrapos.
Ao texto, que já está completo, deseja juntar retratos de Bento
Gonçalves, Neto, Canabarro e Garibaldi. O 1.º e o 4.º ele possui, mas
faltam-lhe o 2.° e 3.º.
Ele pergunta se pode emprestar-lhos para que Ângelo Agostini os
copie ? Na Biblioteca, não há senão os seus ; por isso é que viemos
incomodá - lo .
Adiós.
Bien à vous,
J. ABREU

Aly dear,
Mando -lhe alguns dos volumes que pede. Veja o que falta e depois
de amanhã mande nova lista. Como Saldanha da Gama não estava
presente, e parece não ter entendido bem o que lhe disse, não mando
todos.
6 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

As suas Efemérides, 1.º vol. e indice (aparado tudo ) disse -me Tei
xeira de Melo que entregou a Júlio para lhe ser dado em mão própria.
Está perdido, naturalmente.
Adiós.
Bien à vous,
J. C. ABREU
Rio, 26 de julho de 1882.

Rio de Janeiro, 15 de junho de 1883.

My dear,
Agradeço-lhe sinceramente quanto diz da minha tese.
Há dela duas tiragens; uma, a que lhe remeti, apenas de cinqüenta
exemplares meus, pois cem ficam na Instrução Pública ; outra de cento
e cinqüenta, que não está pronta, e em que, além da folha de rosto , deve
estar modificado o último capítulo, que a angústia do tempo me obrigou
a reduzir extraordinàriamente.
Desta mandar-lhe -ei os exemplares pedidos, quando estiver pronta,
isto é, dentro de vinte a trinta dias.
Da tese do Berquó poderei talvez arranjar-lhe um exemplar -- foi
tão bem impressa pelo Leuzinger; das de Nunes Pires e Bettencourt
ceder - lhe -ei os meus, depois do concurso, se não conseguir outros
foram impressas pelo Dias da Silva Júnior.
Bien à vous,
J. CAPISTRANO DE ABREU

My dear,
Escrevo-lhe da cidade do Salvador, onde acabo de desembarcar, e em
sua honra procurarei dar um suspiro no túmulo de Paraguaçu .
Escrevo -lhe para pedir o obsequio de, unido ao Chaves ou separado ,
conseguir -me a passagem de que lhe falei .
.
A passagem seria para mim o ideal em dois casos : 1.0 : de ir para
o Ceará no vapor de 20 do corrente mas sem fixar definitivamente
o vapor em que deveria eu embarcar, para que pudesse eu fazê - lo a
10 ou 20 de abril , conforme me conviesse ;
CARTAS A RAMOS PAZ 7

2.° : se me permitisse ficar na Bahia entre um vapor e outro, para per


correr ligeiramente os arquivos e ficar conhecendo a antiga capital dos
vice-reis,
Isto é, porém , o ideal, e eu contentar -me-ei com o real, isto é,
com a passagem simples.
E adeus.
Bien à vous,
J. ABREU
Bahia, 14 de março de 1884.

No caso da passagem me permitir demora na Bahia, embarcarei no


Ceará a 10 de abril e chegarei na Bahia a 18 ; daqui embarcando a 26
ou 27, chegarei no Rio de Janeiro a 1 de maio aproximadamente.

My dear,
Não sei se já lhe disse que com alguns amigos estou encarregado
de publicar uma coleção de documentos sobre a História do Brasil,
por conta do governo.
O primeiro volume será distribuído por estes dias, e contém dois
interessantes trabalhos de Anchieta, um dos quais até hoje inédito e o
outro quase inédito, tão incorretamente foi antes impresso na Revista
do Instituto .
A este seguir-se-á outro, contendo cartas de jesuítas, datadas de
1549 a 1568, em número de 80, mais de 50 das quais inéditas.
Trato agora de reunir elementos para outro volume, que deve ir
de 1570 a 1600, e, por causa dêste, venho incomodá -lo. Vi no Catálogo
da Biblioteca do Pôrto que la existe, em espanhol, uma história da fun
dação do colégio de Pernambuco em 1576. Não conheço o documento,
mas este com certeza deve ser curioso, porque, sobre ser contemporâneo,
trata de objeto virgem .' Simão de Vasconcelos, como sabe, termina sua
Crônica na morte de Nóbrega, isto é, em 1570.
Sei que tem relações na Biblioteca do Pôrto, e por isso venho pedir
lhe o obsequio de obter -me uma cópia exata e autêntica. Embora o
Catálogo não indique o número de páginas do ms., julgo que não há de
Ser grande.
Desejaria também obter cópia de uma Memória, que trata da Capitania
de Pernambuco. Para não causar, porém, desde já , tão grande incômodo,
8 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

peço - lhe o obsequio de indagar qual o nome do autor, a data em que


escreveu e os objetos de que trata .
Qualquer dêstes dias mandar -lhe -ei seu exemplar e outro que, espero ,
terá a bondade de remeter à dita Biblioteca na remessa que está pre
parando.
A pressa não dá lugar a mais.
Bien à vous,
J. CAPISTRANO DE ABREU
S. C., 17 de maio de 1886 .

Rio de Janeiro, 4 de julho de 1888.


My dear,
Imagine que 2.a feira tenho de deitar artigo sôbre a Confederação
Argentina, e não tenho nada.
Peço-lhe, pois, que me empreste a História de Belgrano ; se puder
deixá -la hoje na Gazeta, é favor, porque já pedi a Júlio para mandar
me a casa .
Se tiver outros trabalhos relativos ao mesmo assunto, pego -lhe de
mandar -mos também .
Bien à vous,
Cap.

Meu caro cavalheiro,

Muito obrigado por sua amável carta, mais uma prova de sua ines
gotável bondade.
Estou pronto, com a vantagem que o dr. Göldi prometeu ajudar-me.
Resta, porém , que me mande alguns exemplares do livro ; que me diga
se tem de sair com nome de F. F.; se o livro é propriedade da
Metropolitana; enfim , as questões congêneres, que conhece tão bem e me
lhor que ninguém.
Pretendo ficar por aqui até o fim de março e poderia levar o tra
balho pronio, se não houver a urgência de antes. Mas mande -me o mode
lo, que é o principal .
Tenho -me dado muito bem por aqui. Meus meninos têm passado
admirávelmente ; Adriano ligou -se com um indio que trouxe comigo e
CARTAS А RAMOS PAZ 9

já anda de pé no chão e o arco e flecha. Se chegar a matar alguma


cousa, já sei que nunca mais o verei, porque ele mete- se pelo mato .
Para o Teresópolis há correio todos os dias, mas, de lá para cá,
só vem um dia sim, o outro não, nos dias ímpares. Não escolha ,
porém , dia, porque às vezes há portadores extraordinários para Teresó
polis, que dista daqui duas léguas, e trazem a mala .
Adeus e muito obrigado.
Bien à vous,

C.
Colônia Alpina, 14 de fevereiro de 1893.

My dear,

Recebi sua carta e os folhetos, de que lhe sou muito obrigado.


Vejo que não se trata de simples impressão ou condensação do
opúsculo de Félix Ferreira, mas de cousa absolutamente nova. Melhor,
porque me dá mais liberdade, pior, porque me dá muito mais trabalho
e maçada.
Peço -lhe que me obtenha um folheto de Morel, para os imigrantes
do Rio, o livro de Picanço ou Pessoa sobre as estradas de ferro ; o
último almanaque da Gazeta com o mapa do Brasil, que estão distribuindo .
Gostaria muito de ter o mapa que deve acompanhar o folheto, por
que poderia me servir e eu talvez pudesse dar indicações úteis.
Por hoje a pressa não dá lugar a mais.
Bien à voils .

T. ABREU
S. Rita de Teresópolis, 26 de fevereiro de 1893.

My dear,
Se não houver qualquer obstáculo imprevisto, pretendo descer para
a cidade na próxima semana.
Lá falaremos melhor sobre a noticia do Rio de Janeiro, de que pou
co tenho podido ocupar-me ainda especialmente e que só lá farei.
10 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Se Júlio não estiver na temporada de ir às civilidades, peço -lhe o


obsequio de me obter dele 200 $ para as despesas de viagem.
Devem ser endereçados à Colônia Alpina, Santa Rita de Teresópolis.
Até à vista .
Bien à vous,
J. C. ABREU
Colônia Alpina, 23 de março de 1893 .

My dear,
Escrevo -lhe de S. Rita de Passa -Quatro, quase no extremo da linha
Paulista. Aqui estou desde dezembro, e provavelmente não voltarei antes
do meado de fevereiro.
Aqui planta-se café, e, segundo tenho ouvido calcular, o município,
que aliás não é grande, exportou o ano passado pelo menos 600 mil
arrôbas .
Por causa do café exatamente é que lhe escrevo.
Há anos publicou -se um livro de van Delben Laerne sobre café
do Brasil. Tenho uma idéia vaga que muito poucos exemplares foram
postos à venda ; mas ou a Associação Comercial, ou alguns cafèzistas
ficaram com grande número dêles. Meu parente deseja muito possuir
um. Será possível obtê-lo por seu intermédio ?
Vim buscar Adriano, que desde outubro saíra do Rio, gravemente
doente. Felizmente posso considerá-lo restabelecido ; está forte, gordo,
já anda muito a cavalo , e conseguiu realizar uma de suas grandes am
bições : aprender a nadar.
Desejo que tenha entrado corn o pé direito no ano novo .
Bien à vous,
CAP.

S. Rita de Passa - Quatro, 23 de janeiro de 1896 .

My dear,
Junto a nota dos primeiros livros, que encontrei.
Contém apenas os encadernados.
Farei outra remessa de brochuras .
Bien à vous,
J. C. DE ABREU
Rio , 3 de setembro de 1896 .
CARTAS A RAMOS PAZ 11

Caro Compadre,
Recebi com tanto prazer sua carta quanta foi a mágoa que senti,
sabendo de sua partida a horas de já não poder procurá -lo.
Estive na Biblioteca, porém não consegui ver o manuscrito a que
se refere, e que é uma longa carta de D. João de Castro. Para o outro
vapor com certeza darei conta de sua incumbência.
Talvez seja melhor comemorar o descobrimento das Índias, dando
uma edição portuguêsa popular do livro que a Academia de Viena pu
blicou agora, acompanhado de muitos mapas. Seria fácil arranjar aí
um tradutor e, dispensados os mapas, a despesa não seria grande.
Mande buscar desde logo na Itália o livro de Sophus Ruge, que é
hoje a primeira autoridade sobre questões de Geografia histórica e História
geográfica, intitulado : Storia delle Scoperte Geografiche, originàriamente
escrita em alemão, mas já traduzida em italiano e até em espanhol. Nela
terá o melhor dos guias; se não me engano, ele cita um ms. português
de Dresda, escrito no século XVI e ainda inédito, e que talvez conviesse
mais que a carta de D. João de Castro.
Agradeço-lhe seus amáveis oferecimentos e, para começar, far-lhe-ei
dois pedidos : 1.°, veja se obtém para a Biblioteca Nacional um catálogo
de Fernando Palha ; 2.º, que há de relativo ao Brasil na livraria de
Carvalho Monteiro ?
Estamos em estado de sítio ditadura fraternal , chama - o o Pa
trocínio .
O assassino já começou a falar, dizendo que agiu por ordem de
Diocleciano Mártir, ao sinal dado por um irmão de Medeiros e Albu
querque, com a pistola entregue por um distribuidor da República, cha
mado Veloso, que já está preso. Deviam ser mortas umas quinze pessoas,
entre as quais o presidente, ministros da guerra e marinha, presidente
da Câmara, comandante da polícia, deputados e senadores, entre os quais,
já se sabe, o Rui.
Diocleciano tinha entrevistas diárias com Barbosa Lima e, parece,
com Guanabara, o qual , está provado na polícia, foi o mandante do
assassinato do Gentil.
Sua afilhada vai crescendo sem novidade, chegando aos seus seis
anos, que completará para o mês. Ainda não sei se em janeiro irá para
o colégio. Os outros vão bem , exceto o incorrigível Adriano, a quem
não vejo jeito.
12 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Pretendia ir a S. Paulo em janeiro, mas vejo que é quase impossível.


Para quando sua volta ? Estará disposto a esperar na Europa pela
exposição de 1900 ?
Recomende -me ao amigo Assis Brasil, a quem escreverei 110 pró
ximo vapor.

Saudades.
Bien à vous,
C.
Rio, 16 de novembro de 1897 .

Meu caro Compadre,

Nos primeiros dias do ano, passando casualmente os olhos por um


jornal, vi com espanto seu nome na lista dos passageiros. Só então !
Julgava-o partido uns três ou quatro meses antes.
Acho muito boa sua idéia de concorrer para o centenário por meio
de uma impressão ou reimpressão.
Uma impressão seria naturalmente preferível , se houvesse qualquer
crônica antiga interessante e inédita. Deve haver ; de muita cousa faz
relação Barbosa Machado, que não se terá perdido tudo com o terremoto
de Lisboa. Ou na Biblioteca Nacional, ou na Torre do Tombo, ou
em mãos de particulares hão de existir preciosidades. Ai , na mina mal
explorada ainda , ser-lhe-á fácil a descoberta.
De reimpressões eu lhe recomendaria a da primeira edição da Gra
mática da Língua -Geral do Padre Luís Figueira. Aqui não existe exem
plar, na Biblioteca Nacional de lá existe. É pequena, menos de 100
páginas, creio. A segunda edição foi reimpressa na Alemanha, em fac
simile, por Julius Platzmann. Se a sua reimpressão fósse também fac
similar, seria mais elegante e creio não sairia mais cara.
Se não estou enganado, são boas suas relações com o Carvalho
Monteiro e ele não se negará a mostrar-lhe a preciosa biblioteca.
Que tem êle sobre o Brasil ? Refiro-me a manuscritos, porque
quanto a impressos ou reimpressões muito pouco falta aqui. Ele po
deria também reimprimir o Catecismo de Antônio de Araújo, 1.a edição,
de que existem em Lisboa pelo menos dois exemplares e um em Paris.
A segunda edição, impressa em 1686 por Baltazar de Leão, já foi também
CARTAS A RAMOS PAZ 13

reimpressa pelo infatigável Platzmann, que bem mostra não se ter es


quecido da baía de Paranaguá, a respeito da qual fez um livro.
Minha memória vai mal. Está ainda em começo, e basta que me
sente à mesa , na intenção de continuá-la, para aparecerem todos os
demônios da preguiça, da má-vontade e da estupidez.
Sua afilhada goza saúde e beija -lhe as mãos.
Sempre
Seu

J. C. DE ABREU
Rio, 17 de fevereiro de 1900 .

Dois dos donatários eram naturais de Viana, que com o Brasil teve
o maior comércio, pelo menos até a guerra holandesa. Não haverá ves
tígios destas relações antigas no cartório daquela cidade ?

Meu caro Compadre,


Só depois de realizada, tive conhecimento de sua partida. Senti
muito, porque queria ao menos dar-lhe o abraço de despedida.
Em falta distu, venho dar -lhe dois incômodos. Vi em um livrecu
alemão que o ano passado publicou -se em Lisboa um livro de Ravens
tein, intitulado Martim da Boêmia. Se fôr de fácil aquisição, desejo
um exemplar, que poderá ser dirigido para a Casa Colombo, rua do
Ouvidor, 74 .
Disse Eduardo Prado que num trabalho de Sousa Viterbo sõbre
trabalhos marítimos dos portuguêses, que ainda não vi e provavelmente
não existe aqui, dá -se notícia de uma justificação dos serviços de Mem
de Sá, existente na Torre do Tombo. Peço-lhe o obsequio de ne
mandar extrair cópia deste documento, já em forma de se poder impri
mir, e enviar-me com a maior brevidade. Nas anotações ao Varnhagen
já estou me aproximando deste período e desejaria aproveitar-me dele,
que deve conter muita novidade.
Estou terminando a impressão dos Diálogos das Grandesas do Brasil;
diga -me para onde devo enviar seu exemplar.
14 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Sua afilhada está boa. Vai entrar para o colégio no próximo mês.
Já não é sem tempo, que em dezembro completa dez anos.
E agora até quando ?
Saudades do
Compadre e am .
CAPISTRANO DE ABREU
Rio, 23 de maio de 1901.

Meu caro Compadre,


Vai este bilhete só para avisá-lo de que até agora não me chegou
às mãos a encantada justificação de Mem de Sá.
Alguma demora por parte do Pons ?
Nova excursão de seu parente do Alentejo ?
Brilhatura do correio nacional ou internacional ?
Tem -me feito falta enorme ; demorei a anotação de Varnhagen por
causa dela. Agora não esperarei mais.
Reza-se amanhã a missa de sétimo dia da mulher de Machado de
Assis. Vi-a duas ou três vezes, não guardo idéia do que era. Estive
no entêrro .
Faleceu também Ladário, apanhado sem sentidos numa casa de
quartos por hora. Há sempre um quê de singular em padre que morre
dizendo missa.
Sua afilhada vai crescendo e engordando muito.
Para quando o próximo abraço ?
Do Compadre e amigo
CAP.
Rio, 27 de outubro de 1902.

My dear,
Peço-lhe o obsequio de tomar providências sobre a cópia da jus
tificação de Mem de Sá, de que estou sentindo falta enorme.
Creio que o mais simples será o seguinte : escrever ao seu sobri
nho para procurar Pons, e pagar- lhe a cópia, se já está feita, ou encar
regá-lo de fazê-la, se não tiver recebido sua carta .
CARTAS A RAMOS PAZ 15

As informações sobre os documentos existem no livro de Viterbo,


Trabalhos Náuticos dos Portuguêses.
Quero ver se dou o 1.º volume de Varnhagen em setembro ; para
o texto , a justificação não serve mais, porém servirá para o apêndice
e para a introdução de cem páginas, em que pretendo fazer a síntese
da época a que o volume corresponde (1500/1624 ).
Ando agora às voltas com a embrulhada questão do bispo e D. Duarte
da Costa. Que bispo !
Saudades do Compadre e velho amigo
J. C. DE ABREU
Alm. Tamandaré, 2.
[ 1904 ?]

Meu caro Compadre,


Recebi sua carta de Viana, a terra de Duarte Coelho, Pero de
Campos, Cardim e sua, e fiquei satisfeito com as notícias de boa
viagem .
Já tinha-lhe escrito, mas como pus no endereço apenas Lisboa ,
foi devolvida a carta : hei de pô-la novamente 110 correio com o ende
reço, para ver se desta vez lhe chega às mãos.
Pode imaginar a impaciência com que espero a justificação de
Mem de Sá : quanta novidade não há de conter ! Apenas chegue, trata
rei de imprimi-la nos Anais da Biblioteca, como já está o processo de
Bolès, de que lhe guardarei um exemplar. O foral será mesmo da
cidade e não da Capitania da Bahia ? Se för da cidade, peço-lhe mande
também copiar, porque é de todo desconhecido : as vilas fundadas pelos
donatários todas tinham forais, mas, caso esquisito, só o de Olinda é
conhecido.
O bibliotecário pede-lhe que compre e remeta o Catálogo do Palha,
e a edição de Marília de Dirceu, se estiver bem conservada.
Mandar - lhe-ei pròximamente as folhas de Varnhagen, apenas che
gue a Mem de Sá, quer dizer, se Laemmert não fizer uma interrupção,
como agora, lá para o fim do próximo mês, à sua chegada dos Estados
Unidos .
16 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Matilde está boa, e se recomenda ao padrinho : está crescendo


muito .
E aqui fica com muitas saudades o Conpadre e amigo obrigado

J. CAPISTRANO
Rio , 31 de agosto de 1904 .

Meu caro Compadre,

Recebi ontem a última parte da justificação de Mem de Sá. Dias


antes, ao chegar de uma rápida excursão a S. Paulo , recebera a pri
meira, juntamente com sua prezada carta . Muitissimo obrigado .
Estou deixando que a impressão chegue a Mem de Sá para lhe
enviar as páginas de Varnhagen. Antes sinto acanhamento de remetê
las, porque parece estarem em trajes menores. Vou ver se apresso
Laemmert, mesmo porque estou ansioso por passar as férias no sertão
do Rio ou de S. Paulo .
Já dei ao bibliotecário seu recado sobre o Peregrino da América.
Peço -lhe adquira um para mim , pois é livro que desejo possuir desde
a infância, e, além disso, a primeira vez que li o nome de Vale Cabral,
foi no Ceará, assinando um artigo sobre este livro, que então ainda
não conseguira ver.
Não sei quanto durará sua demora em Lisboa. Se se prolongar,
peço -lhe indague na Tôrre do Tombo de cartas escritas por D. Fran
cisco de Sousa ou Diogo Botelho ou quaisquer outras pessoas de 1590
a 1607. São anos verdadeiramente escuros e estéreis : só conheço um
papel relativo a Diogo Botelho, existente na biblioteca de Pombal, de
que Lino de Assunção me mandou cópia. Passamos aqui uns dias bem
tristes, felizmente menos tristes e vergonhosos do que poderiam sê-lo.
Desde o iempo do Prudente anda alguma cousa no ar, que o assas
sinato do Bittencourt até certo ponto comprimiu, e Manecão teve a
felicidade de afastar temporàriamente. Rebentaria o ano passado a pro
pósito do Acre, se não fosse a diplomacia e o dinheiro do Rio Branco.
Desta vez reuniu -se o grupo , não sei se grande, se pequeno, de
Vicente de Sousa, ao elemento incoercivel, sempre disposto a insurgir-se
porque dispensa chefes e' é uma espécie de mundéu sempre armado
contra a ordem , à mutilança, em sua totalidade, senão ativa, pelo me
nos passiva, pois adeririam aos fatos consumadós mesmo os que nêles
não entrassem .
CARTAS A RAMOS PAZ 17

A felicidade foi quererem imaginar planos complicados, em vez

de confiar tudo ao acaso, como na fundação da república. Que faria


Rodrigues Alves, que faríamos no dia 15, diante de 34 peças, vindas
municiadas de Realengo e Campinho, duma brigada embalada com outras
providas apenas de cartuchos de festim ? Isto tudo no meio de uma
parada !
Rodrigues Alves portou -se calmamente, nem mais nem menos do
que a ocasião exigia. As pessoas que o viram, ficaram venerando-o.
Sua afilhada vai bem e manda -lhe saudades.
E receba um abraço do
Compadre e am .
J. ABREU
Rio , 30 de novembro de 1904.

Meu caro Compadre,


Esta carta de hoje não passa de um rol de encomendas.
A Biblioteca Nacional fica com a cópia de Mem de Sá, que para
o ano será publicado.
Portanto, peço -lhe mande extrair da Torre do Tombo todos os
documentos relativos ao Brasil de 1570 a 1608. Um ou outro haverá
aqui, mas não fazem mal duplicatas, porque não podem ser em grande
número.
Peço-lhe me adquira as seguintes obras :
Aires ( creio ) , monografia sôbre Fernão Mendes Pinto , publicada
em junho ou julho do corrente ano ;
Gabriel Pereira, Roteiros , etc.... ;
João de Lisboa , Livro de Marinharia, etc.... ; editado por Libânio .
Desejo saber se a edição do Esmeraldo, De Situ Orbis, dada por
Epifanio no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa será tirada
em volume. Se fôr, desejo um.
Por aqui continuamos sem grande novidade.
O governo pediu prorrogamento do estado de sítio, creio que para
poder exportar os desordeiros e cáftens para o Acre, e prender o Varela,
até agora inatingível.
Seabra tem tomado por assessor Rui Barbosa, que pratica a poli
gamia das opiniões e agora , ao contrário do que, não digo, pensou,

1.º
18 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

mas pelo menos escreveu sempre, julga que a sedição deve ser julgada
pelos tribunais militares. O resultado final será fiasco completo.
Um amigo, chegado ontem da Bahia, conta a história da Bahia
de modo muito diverso do que contam os jornais. Tôda a guarnição
estava disposta a aderir ao movimento daqui. Sotero de Meneses, que
burlou a tentativa do turbulento alferes Teodomiro, devia assumir o
governo. Tôda a dissidência consistiu no seguinte : Teodomiro pensava
que se devia prosseguir no movimento a todo o transe. Pensavam ou
tros que não tinha mais objeto, depois do fracasso da Escola Militar .
E o caso das pedras, que ainda dura ? Diz-se que o Didimo e cúmplices
serão condenados pelo Supremo Tribunal .
Antes de terminar : conquanto Sousa Viterbo não seja especialista
da História do Brasil , provavelmente poderá informar sobre os do
cumentos da Tôrre do Tombo , relativos à nossa terra .
Junto uma nota dos documentos citados por Varnhagen para o
período que me interessa .
Sua afilhada continua bem e lhe manda saudades .
Do trabalho de Calogeras já está publicado o primeiro volume.
Não o mando porque tenho de fazer um artigo e meu exemplar
está aparado.
Quando torna
Saudades do
Compadre e am.º obr.
J. C. ABREU
[ 1912 )
Nota ] :

Carta da Câmara da Bahia , gav . 13, 7, 18.


Carta de Manuel Teles Barreto de 7 de agosto de 1583.
Martim Leitão de 15 de abril de 1584 .
19
Salvador Correia de Sá de 7 de março de 1584 .
Manuel Teles Barreto de 14 de agosto de 1581 .
Manuel Teles Barreto de 25 de fev. de 1584 .
Livro 3.º de Filipe 1.° f . 282.
Gav. 3, 20 , 53 : Informação de 7 de julho de 1584.
Carta de Martim Leitão de 12 de julho de 1585 .
Provisão régia de 19 de set. de 1606 .
CARTAS A RAMOS PAZ 19

Meu caro Compadre,

Como lhe escrevi , recebi a última parte da justificação de Mem de


Sá e conheço já a maior parte do conteúdo.
#
Contém grandes novidades sõbre a primeira e terceira expedições
do Rio de Janeiro, e agora ficam explicadas certas alusões de uma
carta do Governador e de Nóbrega. Dá diversas particularidades sobre
a viagem , até agora mal conhecidas, de Lisboa para a Bahia. Final
mente fixa certas datas e revela certos fatos de todo ignorados. Em
suma, é documento muito importante, que completa outros. Nêle revela
se a psicologia de Mem de Sá. Não era um grande espírito ; não teve
a intuição de que o Brasil poderia vir a ser um grande país. Consi
derou-se não como um pastor dos povos, mas como um funcionário da
Coroa, e sua grande preocupação é mostrar que foi sempre zeloso,
acautelou os interesses que lhe eram confiados, e muito fez pela nossa
santa religião.
Por ter chegado tarde, não pode entrar no volume dos Anais da
Biblioteca que está no prelo. Sairá para o ano.
Conhece o cônsul Pontes ? Outro dia escrevi-lhe uma carta, pe
dindo encarregasse alguém de extrair cópia de alguns documentos, que
o senador Barata deseja possuir. Não me respondeu. Se o vir, peça
lhe a nota e encarregue alguém do trabalho.
O Barata deseja ter aí alguém que se possa encarregar de cópias.
Creio que na Tôrre do Tombo haverá pouco a fazer, pois a his
tória do Pará começa no século 17.0. Seria preferível alguém da Bibl. Nac .
Para começar, convirá dar uma busca nos requerimientos. A julgar
por um documento trazido pelo Rio Branco, deve haver aſ preciosidades.
Varnhagen cita muitas cartas do governador Manuel Teles Barreto,
a partir de 1583. Ainda existirão ? Seria bom mandar copiá-las, por
que o periodo é desconhecido.
Sõbre uma das indicações, são III (maço 3 ? ] , 20, 53 . Parece
curiosa .
A notícia que primeiro correu sõbre Veríssimo foi de congestão
cerebral. Creio, porém , que nem para lá pendeu . Ficou logo bom , con
quanto muito abatido, e posso garantir que a inteligência nada sofreu
com a crise .
Talvez no outro vapor seja possível mandar -lhe o primeiro volume
do trabalho de Calogeras sobre as minas do Brasil.
20 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Sua afilhada vai de saúde e manda saudades.


As mesmas com um abraço lhe transmite o Compadre e am.° obr.º
J. C. DE ABREU
Rio, 6 de dezembro de 1904 .
Boas saídas e melhores entradas de ano .

Caro compadre,
Boas saídas e melhores entradas de ano desejo-lhe neste dia, que
é o maior do nosso hemisfério .
Deve - lhe chegar, pelo vapor que esta leva, o primeiro volume do
livro de Calógeras. Dê-o a ler a alguém que possa escrever sobre o
assunto .
Vi que o Alfaia de Santos está botando abaixo a papelada da Torre do
Tombo. Dá-se com ele ? Lembre-lhe a conveniência de publicar os do
cumentos mesmo aí, onde sairão mais corretos . Se Alfaia não estiver
por isto, peço-lhe cópia da carta de Brás Cubas, agora descoberta.
Como sua demora pode prolongar -se, peço-lhe reserve uma hora por
dia, ou um dia por semana para visitar os arquivos, e tomar nota dos
manuscritos. Que há na Ajuda ? O que contêm os 300 volumes da
Symınitica (creio que assim se escreve ) de interessante para nossa terra ?
Sua afilhada manda com muitas saudades a esperança de vê -lo para
o ano no seu 14.° aniversário .
Saudades do amigo velho
C.
Rio , 21 de dezembro de 1904.

Meu caro Compadre,

Escrevo- lhe éste bilhete só para dizer que ultimamente não tenho
tido notícias suas.
Talvez tenha recebido uma carta minha, pedindo novos documentos .
Remeti -lhe por um dos vapores passados o primeiro volume do Calo
geras sõbre as minas do Brasil; o segundo está adiantado ; o terceiro
deve sair para maio .
Nosso amigo Peixoto me trouxe da Europa um exemplar do Pere
grino da América : era o volwe 761 de um alfarrabista seu conhecido,
CARTAS A RAMOS PAZ 21

cujo nome não me acode agora . Está bem conservado, mas o sujeito é
um espertalhão : no prólogo a Nossa Senhora da Vitória faltam pelo me
nos duas páginas.
Que notícias há da segunda parte ? Não sei quem me disse que
existe inanuscrita na Coleção Pombalina.
Ainda não achei meio de conseguir o Livro de Marinharia de João
de Lisboa, impresso por Libânio .
Sua afilhada passa bem e lhe envia saudades.
Bien à vous,
Cap.
Rio, 27 de janeiro de 1905.

[Fôlha sôlta ]
Diz Varnhagen que na Biblioteca das Necessidades houve em tem
po um ms. de Frei Vicente do Salvador. Viu - o ele uma vez ; depois
não houve mais meio de encontrar - se.
São passados mais de 60 anos. Já terá reaparecido ?

Caro Compadre,
Recebi seu bilhete, e não forme mau conceito de mim , se lhe disser
que gostei de saber que não vem já.
Há tanta cousa a ver por aí ! E sua estadia pode ser tão útil !
Outro dia, lendo os Aditamentos à Sinopse Cronológica, de João
Pedro Ribeiro, encontrei duas grandes novidades :
P. 184. 1517 – abril 6. R. que se deu a João da Costa, quando foi
iescobrir terras ao Brasil.
Arq : R. Corpo Cr. p. 1 , maço 7, doc. 18.
Será possível que este documento ainda exista ? Como tem es

capado até hoje a todas as investigações ? Peço -lhe mande verificá -lo
com tôda urgência e, se existe, mande copiá -lo. Imagine como estou
impaciente. Se fosse rico, teria ido telegrama.
O outro documento deve relacionar-se com Cristóvão Jaques, com
quem tenho contas velhas a saldar.
1528. Março 25. Alvará que proibiu a saída dos navios dos portos
do Brasil antes de outubro.
Arq. R. Corpo cronológico, p. 2, maço 154, doc. 94 [à margem :
pág. 212. )
22 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Eis uma série de incumbências para nossa Biblioteca :


1.9 : Publicam - se ai uns Documentos para a história do município
de Lisboa de Fernandes de Oliveira, creio . Será publicação oficial de
que se possa obter coleção grátis ?
2.0 : À Biblioteca faltam alguns volumes do Instituto de Coimbra .
Creio poder mandar-lhe a nota com esta : não se poderá conseguir os
volumes que faltam pelo mesmo processo ?
3.° Que há sobre o Arquivo dos Açores ? A B. possui encaderna
dos os volumes até 1889. Este ano recebeu um fascículo. Houve algu
ina suspensão ?
Mostrei as páginas do Catálogo ao Barata.
Diz que, se os manuscritos forem realmente originais, estiverem em
bom estado e custarem 200 $, o livreiro pode sacar e mandá- los.
Espero poder remeter- lhe os números de Kosmos com meus quatro
antigos por este vapor , se houver qualquer obstáculo, irão pelo outro.
Pus ontem sua afilhada interna em um colégio alemão, aberto onteni
pela primeira vez. Ao saber de minha resolução, ficou muito triste
e chorou ; a avó ficou muito zangada. Ontem , porém , correu tudo do
melhor modo .
Entre os redatores do Arquivo Histórico há alguns que poderiam
dar boas notícias sobre documentos relativos ao Brasil. É uma impor
tante publicação : vou ver se escrevo alguma cousa sõbre ela, para arran
jar-lhe alguns assinantes e ver se trata também do Brasil .
Manuel Barata, senador cujo mandato expira este ano , mora Hotel
Guianabara, cais da Glória, não sei que número.
Tenho de escrever para o Kosmos, este mês, o artigo sobre Duarte
Coelho : não há muita cousa, mas sempre se pode dizer mais que
Varnhagen . No Laemmert prometem dar pressa à composição, mas ain
da não deram . Espero éste mês terminar a anotação de todo o pri
meiro vol .
Ainda para a Biblioteca : Na Imprensa Nacional dai deve existir,
nein que seja em folha, o 10.0 volume (haverá mais ? ) da coleç . de
Andrade e Silva ( Inocêncio, IV, p . 417 ) . A B. só possui 9 ; o Deslandes
disse Ed . Prado que é sujeito muito difícil de tratar-se não pode
rá arranjar isto. Adeus . Saudades do C. e am .

[ 1905] J. C. ABREU
CARTAS A RAMOS PAZ 23

Compadre, Am ."
Não tenho tido cartas suas nem recebido notícias. Na última, avisa
va -me que iria aquela semana à Torre do Tombo mandar fazer as cópias.
Tenho esperado por elas todos os vapores.
Um dos dias últimos do ano passado um dos proprietários do Kosmus,
empregado na Biblioteca Nacional, encontrou -me no momento psicológico
e prometi-lhe publicar lá a minha História do Brasil.
Tomei como fato consumado meu folheto sobre o descobrimento,
impresso pelo Laemmert, e comecei com as primeiras explorações. Já
sairam três artigos, o quarto está-se compondo ; desde ontem estou li
berto da terrível divisão em capitanias, o assunto mais incapaz de receber
forma apresentável que eu conheço.
Por este teor caberia em cada capítulo a narrativa de 8 anos, e
a cousa assumiria proporções descomunais. Isto será só no principio :
o quinto, sexto e sétimo abarcarão mais de quinze anos cada um, em
Pernambuco , S. Paulo e Bahia, de 1534 a 1549; depois a cousa correrá
mais depressa.
Ainda poderia aproveitar -me a carta de Brás Cubas, descoberta
pelo Alfaia, se não fôr a de 25 de abril de 1562, que já está impressa ;
e uns documentos sobre Jerônimo de Albuquerque, citados por Varnha
gen com as indicações :
Imp. em 7 de julho de 1584, III ( maço ? gaveta ? ) 20, 53.
Carta de Teles Barreto, de 7 de agosto de 1583.
Peço - lhe, pois, que dê urgência e preferência à cópia destas três
preciosidades.
Depois de publicado o 4.º artigo no Kosmos, remeterei os quatro
números, se o Visconde, a quem não vi mais depois da missa do irmão,
me disser que ainda poderão encontrá-lo no além -mar.
Minha edição de Varnhagen esteve em crise com a morte de Gus
tavo Massow , que, caladinho, deixou uns oitocentos contos. Agora o
Wittmann ( não sei se escreve assim ) está muito interessado em botá -la
para fora. Espero que nestes três meses poderei pôr na rua o pri
meiro volume.
Amanhã sigo em excursão às margens do Paraíba, desde Volta
Redonda até Pôrto Novo. Tornarei no fim do mês para trabalhar a
tôda a força durante sete meses.
Desejo resposta às seguintes perguntas :
24 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

1.9 : Gana Barros, autor da História da Administração Pública em Por


tugal, ainda está vivo ? Há outros volumes prontos a serem publicados
alein dos dois que já conheço ?
Quem é o A. de Sousa Silva Costa Lôbo, autor de uma História
da Sociedade no Século XV, com cuja leitura tanto lucrei ?
Não há possibilidade de obter o Livro de Marinharia de João de
Lisboa, editado por um Sr. Libânio , e outros publicados por Gabriel
Pereira e Bento Rabelo ? Há edição aparte do Esmeraldo, publicado
por Epifanio na Revista de S. de Geografia ?
Sua afilhada vai de saúde ; ainda ontem a vi ; manda-lhe saudades .
E aqui fica sempre
o compadre e velho amigo
J. C. DE ABREU
Rio, 12 de abril de 1905 .

Caro Compadre,
Escrevi-lhe por vapor passado, chamando sua atenção para dois do
cumentos citados por Antônio Ribeiro dos Santos no Suplemento à Si
nopse Cronológica um de 1517, outro de 1528 .
Na Biblioteca Nacional de Lisboa, fundo de Alcobaça, n.º 431 da
antiga século XVII - n.° 306 da moderna numeração, há uma
cópia da Vida de José de Anchieta pelo padre Pedro Rodrigues, já
impressa pela B. N. Mandar - lhe -ei um exemplar para tirar certas dúvidas.
Agora o que desejo é o seguinte : uma carta de Fernão Cardim
ao padre geral Aquaviva da Bahia, a 8 de maio de 1608 , à dedica
tória do livro, a apreciação, uma lista dos governadores-gerais, dos pro
vinciais, visitadores -gerais, escrita no principio e no fim do tal códice.
A letra é 1620 ; não precisa recorrer a copistas paleógrafos.
Desta vez irão os números do Kosmos.
Sua afilhada foi interna para o novo colégio fundado pela Deutsche
Schule. Nunca vi contentamento igual ao dela, quando saiu no primei
ro domingo: creio até que preferia passar o dia no colégio a vir para
a casa da avó .
Adeus . Saudades do C.e e am . °
J. C. ABREU
Rio, 9 de maio de 1905 .
CARTAS A RAMOS PAZ 25

Caro Compadre,
Tenho recebido bilhetes seus com promessa de ser mais extenso
em outra ocasião ou de mandar documentos em outro vapor. Até ago
ra nada tenho recebido.
Comuniquei seu recado ao Barata.
Quando começou a estudar as cousas do Pará, não fugia de des
pesas; agora, continuando com a mesma perseverança na Biblioteca, no
Instituto e no Arquivo, já anda mais apertado. É este o último ano de
senatoria ; talvez venha disso . Entretanto é rico e não tem filhos.
Estamos aqui às voltas com a eleição presidencial. Apesar de todas
as acusações justas ou injustas lançadas contra Bernardino, creio que
a eleição dêle será fácil ; mas será a única facilidade. Depois, não sei
prever o que poderá sobrevir.
Tenho folheado com bastante interesse o Arquivo Histórico Portu
guês. Ainda nada achei sobre o Brasil; estou à espera que terminem as
cartas de quitação de D. Manuel, para lê-los miùdamente e ver se serei
mais feliz.
Não posso compreender como tão pouca cousa se tenha salvado do
Brasil antes de 1535 ! A propósito : recebeu meu pedido relativo ao
Regimento que se Deu a João da Costa, quando foi descobrir terras ao
Brasil ?
O original estava na Torre do Tombo, Corpo Cron ., p. 1.º, maço 7,
doc. 18, segundo João Pedro Ribeiro, Aditamentos à Sinopse Cronológica,
p. 184.
Acabo neste mesmo instante de ver que o Arquivo Bibliográfico
da Universidade de Coimbra começou a publicar um ms. jesuíta, muito
curioso , intitulado De Algumas Cousas mais Notáveis do Brasil. Saiu
nos números 1 , 3, 7, 8, 11 do ano passado, 2 deste ano .
Peço -lhe dois obsequios: 1.° : influir, se puder, para que terminem
a impressão, a que já deve faltar muito pouco ; 2.° : comprar -me os
números indicados e os que hajam saído depois do 4.º do corrente
ano, último chegado à Biblioteca, se contiverem a conclusão ou a con
tinuação.
Apenas percorri ligeiramente o trabalho do jesuíta, cuja existência
só hoje fiquei conhecendo, mas encontrei algumas novidades e com mais
atenção espero encontrar outras. Infelizmente à coleção do ano passado
falta o número 7.0.
Estamos aqui no inverno, mas o calor não nos deixou . Anteontem
choveu ; ontem , era engrossamento ao Coquelin , a temperatura baixou e
continua.
26 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Sua afilhada recomenda - se : continua satisfeita no colégio, às voltas


com o alemão .
Abraça -o
0 Compadre e velho am.º
САР .
Rio, 4 de julho de 1905.

Barata, que acaba de sair, diz que suas dúvidas são a respeito do
bom estado do manuscrito e de serem originais ou cópias.
Duvida que sejam originais, pois estes consta - lhe estarem na Biblio
teca do Pôrto .
Comprar cópias caras não vale a pena, pois as obras já estão impressas.
Verificado que são originais e o estado é bom , não terá dúvida em
remeter-lhe o dinheiro.

Meu caro Compadre,


Boas saídas e melhores entradas.
Meses atrás, na barca de Petrópolis, Barcelos anunciou -me sua chegada
no próximo vapor. Imagine como exultei ! E pode, ou antes, não pode
imaginar a decepção que me causou a inexatidão da notícia .
Procurei informar-me melhor com o Visconde ; mas em sua nova
sede não é mais acessível como dantes ; há lá um cérbero , inglês de aspecto e
sotaque, que duas vezes tolheu a entrada . Não insisti.
Acabei com a parte de Varnhagen relativa a Mem de Sá. A justifi
cação serviu -me de muito. E com que mágoa vou meter-me agora no
período de 1572 a 1602, sem poder consultar os documentos citados por
Varnhagen e ainda não publicados. Apenas disponho de três documentos
inéditos, mandados ainda pelo Lino de Assunção.
Creio que o primeiro volume está fora em março . Espero que não
será preciso mandá -lo para outra banda, porque estou acreditando como
o Pompéia que o que se manda daqui não chega lá. Quero entregar-lhe
em mão. Estou trabalhando a toda força num esboço histórico e geo
gráfico do Brasil, que deve sair na Estatística Industrial lá para setembro.
Marcaram -me o limite de 120 páginas em 8.vo ; e tenho cinco meses para
fazer tudo. Talvez seja um bem .
CARTAS RAMOS PAZ 27

Sua afilhada está de férias . Gostou do colégio e tem aproveitado ;


está - se preparando para lhe escrever uma carta em alemão .
E adeus ao Compadre e am .
J. C. DE ABREU
Rio, 2 de janeiro de 1906 .

Compadre e amigo,
Preciso com urgência saber quantas edições teve o Peregrino da
„América, quando foi publicada a primeira e quando saiu a última.
Não me espere na próxima semana, pois que Vieira Souto está recla
mando a conclusão do trabalho e eu ficarei doente, se não me livrar de
semelhante amofinação .
Bien à vous,
C. DE ABREU
3/2/907.

Caro Compadre,
Recebi os documentos mais a carta do Pons.
Peço-lhe escreva, dizendo que comece desde logo a cópia, semanal
mente remeta o copiado, juntamente com a nota da despesa. Agora, com
o incêndio do Laemmert, posso esperar os documentos.
Vou passar uns dias em Sobragi , Minas. Na volta creio poder -lhe
entregar um exemplar dos Capítulos de História Colonial.
Bien à vous ,
C. DE ABREU
Petrópolis, 21 de setembro de 1907.

Meu caro Knivet, digo, Compadre: Knivet é o nome de um viajante


inglês, que o Vieira Fazenda está buzinando ao lado.
Escrevi diretamente ao Pons, referindo -me a uma carta sua, que con
firmaria o pedido.
Achou suficiente a minha e já hoje recebi o começo da cópia.
Peço-lhe que corresponda à gentileza, mandando pelo vapor de amanhã
pagar a nota junta.
28 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Já recebeu os Capítulos de História Colonial ?


Entreguei-os ao Barroso ,
Bien à vous,
C. DE ABREU
Rio, 12 de novembro de 1907 .

Caro Compadre,
Escrevo-lhe a correr, de Honório Gurgel, estação da E. F. de Melho
ramentos.

Estou numa fazenda hoje abandonada, pertencente ao amigo Peixoto,


com um índio, estudando-lhe a lingua.
Sábado, 19, irei buscá - lo para jantarmos juntos, como de costume.
Só este motivo me faria arredar pé antes do fim do ano.
Bien à vous,
C. DE ABREU
Boa Esperança, 16 de dezembro de 1908 .

Meu caro compadre.


O número exato de páginas é 693 ( 347 fôlhas e uma ), a 200 a pág. ,
138.600, moeda portuguêsa, se não estou enganado.
Já disse que as despesas com porte e o mais ficam por minha conta.
Mande - a para o Colombo.
Na conta basta escrever :
Papéis sobre Diego Botelho. Cópia paleográfica de um ms, da Ajuda.
Bien à vous,
C. DE ABREU
10 de maio de 1909.
A DOMINGOS JAGUARIBE 1880-1915

Amigo Domingos,
Alegrou -me que a minha crítica lhe tivesse sido agradável . Tinha
consciência de ter sido justo, mas, não podendo ser bastante explícito, ao
mesmo tempo temia que, no modo breve por que fui obrigado a tratá - lo , V.
não visse qualquer cousa que ofendesse aos seus interesses.
A sua carta suscita bastantes questões, sobre que não me acho habili
tado para escrever, discutindo-as. Pergunta-me se não há casos em que
à moralidade a mais pura se une a inteligência a mais bronca ? Há
porém casos elementares. Casos complicados, que exigem o peso dos mo
tivos e em que há complicação e conflitos de direitos, parece-me que não.
Entretanto, há ocasiões em que se não pode dizer de que lado está o bem ,
de que lado está o mal. Na sua penúltima obra, Data of Morality,
publicada em setembro ou outubro, Spencer cita alguns. Acresce que a
alma é um organismo: as diferentes faculdades coexistem na dependência.
Para que a cultura seja completa é preciso que se cultivem todas as fa
culdades ao mesmo tempo .
Pede-me indicações sobre a educação intelectual. Em uma carta que
lhe dirigi talvez no mesmo dia em que V. me escrevia , indiquei-lhe os livros
de M.me Pope Carpentier, muito interessantes e instrutivos. Indicar-lhe-ei
também , por não saber se já conhece, L'Éducation de Bani, o eminente
psicólogo ; L'Instruction Publique, de Michel Bréal, o eminente higienista ,
Histoire des Théories de l'Éducation , por Compayré, que dizem ser muito
bom .
Chamo a sua atenção principalmente para as lições sõbre os objetos.
Há um livro que lhe deve ser muito útil : é uma psicologia do menino
durante os três primeiros anos. Não me ocorre agora o nome do autor,
30 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

que se não me engano é Perez ; mas consta que o livro, como coleção de
dados e observações, é muito curioso.
Uma cousa sõbre que chamarei a sua atenção é o estilo. V. precisa
torná-lo mais claro e mais correto . Em um livro como a Arte de Formar
Homens de Bem o defeito não destaca ; mas, se V. escrever uma obra mais
literária , há de lhe fazer grande mal o prevenir o leitor contra.
Regozija -me muito a aceitação que tem tido o seu livro. Ele o merece .
Ocupe-se da educação intelectual; dê um caráter mais científico à educação
moral; modifique o estilo, que o sucesso , em vez de decrescer, irá gra
dualmente aumentando .
Obrigado pelo que diz dos artigos de História pátria. Infelizmente vão
se alongando de tal modo que não sei mais onde irei parar. A principio
era a minha intenção escrever apenas 4 ; mas agora dar -me -ei por muito
feliz se bastarem 6. Eu que os escrevo contrariado, porque os 6 meses
que tenho escrito na Gazeta ainda não me tornaram nem mais fácil nem
mais aprazível a tarefa !
Recomende -me à família , a Lucas, e disponha de inim .
J. CAPISTRANO
B. N. , 15 de março de 1880 .

Meu caro Domingos,

Recebi hoje um cartão teu , e, para ser franco, não gostei nada : primeiro
porque não tinha ido antes ver-te, segundo porque não me encontraste
em casa .
Não te procurei ainda porque não sabia onde estavas.
Disse-me Tristãozinho que estava em S. Teresa ; mas em que hotel ?
Disse -me depois o Dr. Derby (que está muito teu amigo e que a ti
quase exclusivamente atribui a grandiosa idéia da Comissão Geológico
geográfica ) , que tinhas falado em ir para Petrópolis.
Nosso patricio Dr. Nascimento disse-me que estavas em Riachuelo.
Entre as três versões hesitei tanto como nosso patricio Rodrigues, ou
o burro de Buridan .
Dirás que nada mais fácil do que ir à Câmara certificar-me. É exato ,
mas se för à Câmara uma vez sou capaz de ir todo o ano. Prefiro só ir
lá em último recurso .
Além disto, tenho estado muito ocupado com uns livros, de que bre
veinente te mandarei um exemplar.
CARTAS A DOMINGOS JAGUARIBE 31

Peço-te, pois, meu caro Domingos, que me comuniques onde estás, a


que horas és encontrado para poder dar-te os parabéns pela eleição e o
abraço
do amigo velho muito obrigado
J. ABREU
10 de maio de 1886 .

Dirige a resposta para : D. Luisa, 13.


Depois de escrita a carta, borrou -se o papel . Mando-ta, porém , para
não ter o trabalho de fazer outra. Peço-te que me respondas logo, porque
preciso falar-te sobre negócio urgente.

Amigo Domingos,

Estou quase pronto a partir para S. Paulo.


Infelizmente não sei com certeza se V. está aqui ou lá .
Se receber esta carta , é porque não encontrei - o no hotel , onde vim
procurá -lo e onde a deixo.
Peço-lhe, pois, diga no Alves onde posso vê -lo hoje.
Seu velho
JoÃO
Rio, 23 de novembro de 1898.

Caro Domingos,
Fui hoje ao hotel de S. Teresa, onde pretendia deixar a carta junta
se V. estivesse na cidade e por qualquer motivo eu não o encontrasse.
Lá me disseram que pelo menos desde o dia 10 você não estava
mais lá, o que não sei como combinar com o que me disse Silvio assegu
rando -me anteontem ter estado com V. muito poucos dias antes .
Escrevo - lhe para comunicar que pretendo partir para S. Paulo na
próxima semana : dê-me, pois, seu endereço exato para eu telegrafar.
Vou com a minha filha e Abril .
Meus respeitos a ex.ma família .
Seu
João C
Rio, 23 de novembro de 1898 .
32 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Velho amigo,

É objeto destas linhas saber de sua saúde e da dos seus, e agrade


cer-lhe todas as provas de amizade e bondade que recebemos durante nossa
estadia nessa capital.
Devia ter-lhe escrito antes ; mas encontrei uma situação muito compli
cada, e que ainda não se desatou, relativamente à minha cadeira no Ginásio .
Quiseram fazer de mim professor vitalicio de História e Corografia do
Brasil, professor de História Universal, lecionando não um ano como antes,
porém três.
Protestei perante a congregação do Ginásio, reclamei ao Ministro, e
êste, dando-me e negando razão, vai declarar-me extinto.
Lembra -me de uma carta sua antiga, em que V. estranhava que eu não
tivesse alunos ; pois agora há cousa melhor : não há mais professor de
História do Brasil no Ginásio Nacional . Não se podia acabar o centenário
de modo mais expressivo.
Peço-lhe apresentar meus agradecimientos e cumprimentos à admirável
D. Mariquinha e suas filhas.
Diga a Ekman que lhe escreverei logo que ficar com o espírito mais
desassombrado .
E adeus. Lembre-se que V. me prometeu que nunca viria ao Rio
sem me avisar de sua presença.
Aceite um abraço do velho amigo agradecido
João
[ 1899 ]

Meu caro Domingos,

Sua carta trouxe -me a pouco agradável notícia da partida de D. Clodes


para Juiz de Fora. Assim , só mais tarde terei o prazer, que esperava
próximo, de abraçar e beijar as mãos de minha santa e maternal amiga .
No Rio a sociedade comemorativa do Centenário teve a pouco feliz
idéia de me encarregar de um artigo sobre a nossa história para o volume
que vai ser publicado para o ano . Infelizmente é das tais cargas que
não se podem rejeitar . Já comecei a trabalhar ; quero ver se levo pronto
um têrço ou pelo menos um quinto do total, e para tal fim por aqui ficarei
CARTAS A DOMINGOS JAGUARIBE 38

até o último momento . O que tenho a fazer em S. Paulo falar com


Derby, Leofgren, Sampaio e Ihering para ver se dá-se uma nova edição
absolutamente refundida da Geografia de Wappeeus espero ficará tudo
pronto num só dia.
A abertura do Ginásio está anunciada para 1 de abril ; talvez seja
adiada. Neste instante escrevo ao Mário de Alencar, pedindo -lhe tele
grafe a você no caso de não haver adiamento, e a V. peço me comunique
a resposta logo que lhe chegar às mãos.
Flora é resistente ! Pensava que já tivesse passado o bom sucesso .
Que seja verdadeiramente bom é meu maior desejo.
Os meus vão sem novidade. Abril, desde os memoráveis e incompa
ráveis dias dos Campos-do - Jordão tent continuado a crescer e ainda não
parou. As vezes tenho medo da reação no Rio.
Meus respeitos a m.me, a m.lle, a Herr e Frau Ekman .
E abrace o
velho amigo
João
S. Rita, 19 de março de 1899.

Domingos,

Fiz excelente viagem, chuva constante enquanto estivemos no vapor,


tempo seco, logo que chegamos à estação de S. Rita, donde dista quatro
quilômetros a fazenda de Santa Albertina.
Muito estimo que V. tenha feito sua conferência, encontrando no
público o recolhimento e respeito a que lhe dão direito a probidade de seu
espírito e a sinceridade de suas convicções.
Como tenho dito, é muito limitada minha crença no municipalismo.
Sua influência em nosso passado acho muito restrita ; creio que João Fran
cisco Lisboa, o primeiro a salientá-la , deixou-se seduzir por um paradoxo ;
sua influência no futuro será tão benéfica como V. o acredita, meu velho
amigo ? Duvido muito, à vista do que se passa nos Estados Unidos,
cuja educação política de modo algum se pode comparar à nossa indigência .
Pode ser que estudo mais atento me convença do contrário . Exata
mente agora vou estudar um período por sua essência municipal; a Guerra
dos Mascates. Na volta conversaremos .

6 - 1:
34
CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Apresente meus cumprimentos à ex.ma D. Mariquinhas e Laura.


Meus melhores desejos a Ekmann e sria, que espero já esteja livre.
Do velho am . " obr.º
João
S. Rita , 17 de janeiro de 1899.

Meu Caro Domingos ,


Por nosso bom Ekman tive algumas notícias tuas e dos teus, e pude
reviver alguns dos tão agradáveis momentos passados em S. Paulo. Só
depois deste partido recebi tua cartinha, mas à tarde, quando estava de
volia para casa , ontem.
Vou sair mais cedo da Biblioteca, a ver se posso falar com Parla
greco. Felizmente agora é fácil, porque ele está empregado na Gazeta :
deixa estar que tomarei a conta a entrega do livro de Studart.
Agora venho quase todos os dias para a Biblioteca Nacional, onde
passo quatro a cinco horas trabalhando. Infelizmente pouco adianto,
porque, quando se quer fazer trabalho sério, só aparecem dificuldades .
Acabo de receber um bilhete de Abril, dizendo que já está bom do
sarampão que o acometeu em Friburgo.
Respeitos e saudades a m.me, m.lle Ekman e senhora e sr.a.
Sempre teu velho
João
Rio , 27 de junho de 18991

Meu caro Dominguinhos,


Estas linhas representam apenas um abraço, longo e saudoso abraço,
símbolo de uma amizade que vem de nossos progenitores .
Ainda este ano não me é possível ir levá -lo pessoalmente a essa Pauli
céia encantadora que é meu feitiço .
Meus respeitos a D. Mariquinha, a D. Flora e Ekman e D. Laura.

1. Esta carta foi encontrada em cópia entre os papéis do arquivo da família


Capistrano de Abreu. Não se encontra o original.
CARTAS A DOMINGOS JAGUARIBE 35

Quantos netos ?
Como vai Camarguinho ? Lembro -me dêle sempre com saudade.
Adeus ! Adeus! Talvez até para o ano !
Sempre o velho amigo
JoÃO
Rio, 1 de novembro de 1902.

Caro Dominguinhos,
Sua carta foi dirigida para aqui na ocasião em que estava no Rio.
Por isso involuntàriamente deixei de dar-lhe resposta imediata.
Na livraria Garnier encontrei alguns canudos mandados pela Comissão
Geológica. Faltou -me tempo para abri-los e verificar quem os mandava
Sei agora que o devo a V. Enquanto não o posso fazer diretamente, pe
ço-lhe agradeça em meu nome ao diretor. E a V. muito obrigado pela
lembrança .
Meu trabalho sobre a língua de uns indios do Juruá está chegando ao
fim. Já começou a composição tipográfica, e espero não passe além de
março . Será uma verdadeira carta de alforria. Há quase um ano não
faço outra cousa, e não sai como desejava, porque seria preciso pessoa
mais competente.
Compreendo a fascinação que sobre seu espirito exercem colonização
e imigração, seus velhos amores ainda do tempo de estudante. Mas para
que V. há de entrar nisto agora ? Planos não faltam ; faltam bons imi
grantes, faltam bons chefes de colônia, faltam terras próprias para
culturas de gente branca, falta enfim a noção de que o Brasil não
irá por diante enquanto o café reinar, e não tratarmos de nossa alimen
tação com os próprios recursos. Por isso a Argentina prospera e o Brasil
marca passo .

Melhor que tudo seria V. dedicar -se a um plano que vi umas vezes
em papéis velhos seus, e é o melhor de quantos V. tem concebido. Lem
bra -se ainda do pão dos pobres ? Comece V. só com sua gente, lance bem
a semente, não se apresse, e verá a bela árvore que nasce e pode ver o
arvoredo que há de medrar.
Tenho tido uma vontade de ir a S. Paulo, uma saudade de você e
dos seus !
Talvez em janeiro acompanhe o ministro a Itapura. Falaremos então.
36 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Como estou arrependido de não ter acompanhado Camarguinho há


uns oito anos quando ele ia passar o verão na fazenda ! Agora ...
Lembranças a D. Mariquinhas, a Camarguinho, filhas, genros, netos.
E aí vai o abraço do velho amigo.
JOÃO
Paraíso, 10 de dezembro de 1909 .
Boas saídas e melhores entradas !

Caro Dominguinhos,

Mostrei tua carta a Amarante. Disse -me que ia te escrever ; não sei
se com suas atrapalhações já o terá feito : faço-o agora.
No dia marcado, estive no cais para irmos a bordo, abraçar Camar
guinho. O vapor chegou mais cedo do que pensava , ao chegar já não
ie encontrei e vi a praça tão atravancada de gente – republicanos portu
guêses, como soube depois, à espera de Alexandre Braga – que depois de
algum tempo me retirei .
Sinto muito não abraçar Camarguinho, de quem tanto gosto. Ainda
me lembro da primeira vez que o vi , logo depois de teu casamento . Estava
tão satisfeito ! parecia tão feliz . Confiava em ti e não se enganou . Ainda
me lembro das palavras do Eduardo Prado.
Recebi o número do Estado de S. Paulo : vou lê-lo com toda a atenção
que o assunto merece. Parece que Teodoro Sampaio escreveu também
algo que ignoro. Vejo que vão proceder a escavações.
Muito gostarei que Sampaio, alheio às questões havidas, de que não
tenho conhecimento senão vago, consiga acabar as divergências e reviver
a Revista do Instituto Histórico dai; que já tem prestado não poucos
serviços.
Não sei se já te comuniquei que no incêndio da Imprensa Nacional
queimou-se todo o meu livro. Os textos deviam acabar na página 460.
Na véspera revira até 450.
Salvei um exemplar que com as provas está completo ; há três na
Alemanha até p . 384 ; outro na Espanha, até 272. Eis todo o resultado de
quase três anos de trabalho.
Falei na Bibl . Nac. para ver se seria possivel fototipá-lo : não é, com
os recursos normais do estabelecimento .
DOMINGOS JAGUARIBE
CARTAS A DOMINGOS JAGUARIBE 37

Nosso patricio Dias Martins falou com Pedro de Toledo para mandar
reimprimi-lo na tipografia de Estatística. Toledo concordou que sim ,
quando o Diário Oficial sair de lá, isto é, dentro de um ou dois anos .
Vou pensar em outra cousa .
Espero -te até o fim do mês , como prometeu.
Lembranças a D. Mariquinhas, Camarguinho, todos, todos.
Um abraço do amigo velho
João
Rio, 24 de setembro de 1911 .
Sá não recebeu teu livro ; mora : Humaitá, 306 .

Caro Dominguinhos,
Só ontem me encontrei com Chiquito Sá, secretário de Calogeras,
cujas informações, em resumo, são as seguintes:
A Companhia, depois de organizada, requereu prorrogação de prazo ,
que lhe foi concedida. Depois pediu nova, que Edwiges negou . Igual
procedimento teve Calogeras em dezembro, quando a Companhia pediu
reconsideração do despacho .
Há duas hipóteses agora : rescisão ou novação do contrato . Para
esta não sei se o ministro estará autorizado.
Chiquito prometeu -me nota mais explícita, que incluirei se chegar
a tempo .
Espero que não tenha metido ainda dinheiro neste negócio que não
me parece bom . Por isso foi que lembrei -lhe a conveniência de ouvir
principalmente seu advogado. Sei como V. é um coração levado sempre
por impulsos generosos ; sei que o mundo anda cheio de exploradores.
Se V. quiser vir, será naturalmente mui bem recebido. Telegrafe-me
então. Falaremos primeiro com Chiquito, porque dispõe de mais tempo e
por ele V. será bem orientado ; depois se entenderá com Calogeras mais
ràpidamente.
Falei anteontem com Miguel na conferência do Fazenda 1 no Instituto
Histórico. Ainda não sabe quando ira ; se eu fôr, nem poderei levar Ma
tilde nem ir aos Campos -do -Jordão nesta época .

1. Vieira. Fazenda .
38 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Sá pretende partir para uma fazenda próxima dentro desta semana :


far-lhe-ei companhia durante alguns dias : em meados de março será a
viagem para o Rio Grande do Sul, em cumprimento da promessa feita há
tantos anos no Rio Claro, naqueles bons tempos, de que tantas saudades
guarda.
Cumprimentos a D. Mariquinhas e Clotilde, saudade às meninas.
Um abraço do amigo velho
João
Rio, 14 de fevereiro de 1915 .

Caro Dominguinhos,
Quando fiquei sabendo que V. tinha descido dos Campos levando
Clotilde e as meninas, logo pensei que não tornariam mais para as alturas.
Ficou-se no seu jucundo bosque, tanto mais encantador quanto é obra do .

seu esforço e da sua inteligência. Da noite passada, guardo a melhor


lembrança. Veja se acha uma solução mais completa para o banho.
Da última vez que estivemos juntos, Calógeras me disse que já tinha
quase terminado o regulamento sobre povoamento do solo, colonização, etc.
Talvez saia hoje. Depois de lido, V. verá o que lhe convém fazer.
O Wenceslau , com a hesitação entre carro comum , trem presidencial,
trem de inspeção, estragou a minha ida a S. Paulo . Não sinto muito,
porque V. não estaria na Capital, nem eu poderia ir a Osasco. Escapei
assim de vir menos alegre do que partiria
Sá, com a família, está veraneando na fazenda do Osório de Almeida,
a uma hora e pouco de Belém , na linha auxiliar, aos 600 metros de altitude.
Estão à minha espera ; prometi ir, mas até agora não tem sido possível.
Talvez vá para a semana, depois de voltar de Petrópolis .
Se não aproveitar o ensejo, estou certo de que nunca verei o Rio
Grande. Assim estou decidido.
Eduardo Prado convidou -me para irmos a Santos num vaporzinho que
leva seis dias daqui lá. Não foi possível, mas formei o propósito de um
dia realizar este passeio a sós. Vi com prazer que na Companhia Laje há
uns vapores que correspondem ao programa, gastando nove dias na viagem
ao Rio Grande, que em geral se faz em quatro ou cinco. É o que me
convém : não enjôo, e irei vendo a costa mais de perto e mais devagar.
CARTAS A DOMINGOS JAGUARIBE 39

Creio que a partida será lá para 25 : vou indagar. Estará V. em S.


Vicente ?

Abril casa para o mês.


Matilde foi pedida por um seu parente, filho do José Aprígio, que
acaba de se formar em medicina, e é candidato ao prêmio de viagem à
Europa. Apenas formado , foi chamado ao Ceará pelo estado melindroso
da mãe, que acaba de falecer.
Respeitos a D. Mariquinhas e Clotilde, saudades às filhas, genros,
sobrinhos e netos .
Sempre
João
4 de março de 1915 .

Dominguinhos,
Acabo de ver no Inst . Hist. três volumes com as atas da Câmara de
S. Paulo e S. Amaro da Borda do Campo.
A publicação é do Arquivo Municipal de S. Paulo.
Pode V. me arranjar com urgência ?
Já hoje lhe escrevi longamente.
Saudades do amigo velho
João
Rio , 4 de março de 1915 .

Caro Dominguinhos,
Fiquei muito satisfeito de saber que V. tinha-se separado da tal so
ciedade. Aquilo começara mal, desonestamente ; não podia mudar de
natureza. Julgar -se alguém enfermeiro que lida com pesteados e não
apanha contágio sucede às vezes ; mas é melhor procurar companheiros
sadios e ares mais puros.
Calógeras sondou o governo do Ceará sõbre a emigração de cearenses
para o sul : a resposta foi que não aconselharia tal, para não despovoar
o estado. Com a falta de dinheiro existente não sei como se poderá
40 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

remeter socorros suficientes. O problema é insolúvel : se louver emissão,


vai tudo de água abaixo ; se não houver, vai tudo pelos ares.
Respeitos a D. Mariquinhas.
Um abraço do velho
João
Rio , 2 de junho de 1915.

Concluo hoje, 4. Esperava encontrar -me ontem com Calogeras em


casa de Sá. Pensava que iria jantar, tinha ido almoçar. Entreguei a
carta a Chiquito. Agora, com duas pastas, principalmente estando o Te
souro com todo o expediente atrasado como se acha, será difícil falar-lhe .
Apesar de toda a resistência e força de trabalho que o caracterizam ,
duvido que ele agüente na marcha em que vai .
Incluo a carta do nosso bom Assis .
Vou saber no América Hotel quando o esperam . Creio que demorará,
porque comprou grande quantidade de gado de raça e primeiro tratará de
acomodá -lo .
Saudades .

Caro Dominguinhos,
Remeti com a maior urgência o livro que V. pediu, deixando escre
ver -lhe para depois. Desculpe a demora.
Já três vezes visitei Clotilde e Maria José : duas estive com a viúva
do saudoso Leonel. Está velha, não a reconheci, nem poderia, porque só
a vi poucos dias depois do casamento, dormindo e almoçando em sua casa.
Acabo de ler nos jornais que a filha casou, com um grego, segundo parece
do nome .
A algumas pessoas do Ceará tenho dito que V. tem trezentos e tantos
lotes já demarcados, que cede em plena propriedade aos retirantes que
quiserem ocupá-los. Até aqui nada se podia fazer, porque o governador
se opunha à imigração. Li, porém , que o governo vai facilitar as pas
sagens. Talvez seja própria a ocasião de V. telegrafar a Calógeras, repe
tindo o oferecimento, e pedindo permissão para nomear o patronato
cearense em que pensou e para o qual Bevilacqua e creio que Samico decla
raram - se dispostos a concorrer.
Depois disto conviria que V. desse um pulo aqui para encaminhar
melhor as cousas .
CARTAS A DOMINGOS JAGUARIBE 41

Assis Brasil escreveu a Natal que não era impossível ir a Goiás em


setembro. Deve estar portanto no próximo mês aqui : iremos então aos
Campos -do - Jordão.
Beijo as mãos com muita saudade a D. Mariquinhas.
Os meus estão de saúde e se recomendam .

Um abraço do amigo velho


João
Rio , 22 de junho de 1915 .

Caro Dominguinhos,
Acabo de receber sua cartinha.
Andava com saudades e ia escrever-lhe a pedido de nosso patricio
Medeiros que foi ao Ceará buscar a família .
Ele deseja que lhe sejam reservados três ou quatro lotes em Itanhaém .
Causou -me surprêsa muito pouco agradável saber que V. ainda con
tinua com dores reumáticas. Como a medicina é falha e impotente ! Por
minha parte, este ano tenho sido poupado, exceto logo à chegada de M.
Grosso, mas por um ou dois dias.
Acho que V. deve abrir mão da idéia de capital nos Campos-do
Jordão. No planalto central está com certeza ser assim , dentro da letra
da Constituição ; dentro do espírito não está, porque a constituição exige
um ponto central, de fáceis comunicações para o país inteiro, e este só
pode ser encontrado em M. Grosso e Goiás, na divisora das águas entre
o Amazonas e o Prata .
Mas isto é o menos ; a verdadeira questão é financeira.
V. não pode imaginar a que ponto ficamos reduzidos, porque nunca
freqüentou república de estudantes quebrados e caloteiros.
Com a guerra piorou tuciu, e quem sabe quando acabará isto ? Depois
da guerra a cousa será pior, porque a reconstrução européia será a maior
empresa que jamais se iniciou e de lá não podemos esperar nem dinheiro,
nem capitais.
A Inglaterra , acostumada a ver touros de palanque, e confiar seus
destinos a mercenários pagos com seu ouro inesgotável, está vendo que a
era nova não tem paralelo possível com a revolução francesa , em que
ela trouxe a espada desembainhada durante vinte e cinco anos, em todas
as partes do mundo.
42 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Para nós só poderia haver lucros se ficássemos indiferentes quanto ao


trigo e quanto ao carvão. Quanto ao carvão as cousas vão-se encami
nhando . Disse-me Arrojado que com o sistema de pulverização e injeção
agora aplicado nos Estados Unidos, poderemos arranjar-nos com a prata
da casa . De trigo é que não vejo esperanças.
Tenho muita vontade de voltar aos Campos. Quando V. fôr, me avise,
porque tomarei, podendo, o noturno de luxo e assim subiremos juntos de
Pindamonhangaba .
Vou saber notícias de Assis Brasil. Ele comprou grande quantidade
de gado, e creio que por ter de ocupar-se com isto, ainda não veio. Talvez
não venha, porque é no inverno que gosta de sair da estância.
Não tenho visto ultimamente Clotilde. Sei que Rolinha chegou e ouvi
falar vagamente que poderiam morar em S. Domingos, numa casa sua. А
questão é se o terrível João Nogueira dará licença.
Recebi carta de Aprígio, há dias. Parece que por ora pouco tem
feito. Calógeras anda tão ocupado e afastado que quase não se pode falar
com ele. Desde que entrou para a fazenda, só duas vezes pudemos con
versar : da última achei- o muito abatido.
Beijo as mãos da boa D. Mariquinhas.
Saudades às filhas, genros e netos.

Um abraço do amigo velho


João
Rio, 15 de setembro de 1915 .

Caro Dominguinhos,
Recebi sua carta .
Ainda não vi Rolinha e nos últimos dias não tenho estado com
Clotilde nem outra pessoa dos seus.
Parece que não é das mais felizes a idéia de fazê-la morar nos
Campos. Fica muito longe e sobretudo muito isolada. Por ora reina a
paz naquelas alturas, mas de um dia para outro quem sabe que poderá
suceder ? Conversei ligeiramente com um filho dela, empregado no Te
légrafo, e deixou a mais favorável impressão. Se Clotilde e Maria José
se emancipassem do terrível João Nogueira, poderiam morar todos juntos:
seria ouro sobre azul.
CARTAS A DOMINGOS JAGUARIBE 43

Não sabia que V. tinha comprado tanto gado para os Campos. Sempre
impulsivo ! V. já garantiu folgadamente o futuro de sua família ; para
que correr novos azares ? Sua vida tem sido um trabalho constante .
Por que não descansa agora ?
Tenho pensado que V., já que não pode estar ocioso, poderia publicar
um volume de documentos para a história de S. Paulo. A Bib. Nac.
recebeu o catálogo de uns existentes em Portugal, não só desconhecidos,
como inéditos. Com uns 100 $ mensais durante o tempo que V. quisesse,
poderiam se obter cópias suficientes : eu o ajudaria na escolha do material,
correção de provas, anotações, etc.: poderia ficar terminado o volume lá
para o meio do próximo ano. Se V. visse que agradava a idéia, poderia
publicar mais algum .
Anteontem acompanhei a bordo Martim Francisco que embarcou com
a senhora para a Europa. Conta fixar -se em Montreux e prometeu não
voltar sem trazer o livro sôbre a família, em que há tanto tempo pensa .
Contristou -me a possibilidade de D. Mariquinhas não querer tornar
à serra . Deu - se lá tão bem !
Não tenho notícias do Assis Brasil, mas duvido que ele venha agora
por cá : geralmente prefere o inverno. Para o ano , Guimarães Natal vai
passar as férias em Pedras Altas : pretendo ir, ou se fôr antes, voltar
com ele .
Estou às voltas com meu trabalho sobre a lingua bacairi; não sei
se, depois de vinte anos, ainda serei capaz de dar conta da mão.
Saudades a boa D. Mariquinhas, filhas, genros, netos.
Um abraço do velho amigo
JOÃO
Rio , 24 de setembro de 1915 .

Caro Dominguinhos,
Não tenho à mão a carta do seu amigo de Itapetininga, e não posso
responder com precisão ao que ele deseja.
Diga-lhe que em 1912 publicou-se em Paris :
H. Beuchat, Manuel d'Archéologie Américaine, por onde poderá
orientar -se .
Fomos ontem visitar laiá, mas só encontramos Chiquito e Leonel.
Que há de decidido sobre Campos-do - Jordão ?
44 CORRESPONDÊN DE CAPISTRANO DE ABREU
CIA

Não sei quando Arrojado fará a viagem de inspeção, porque antes


de tudo tem de ocupar-se do discurso que vai pronunciar aí na Escola
de Engenharia, a 19 de novembro.
Lembranças e saudades às filhas, aos genros, à netada.
Beijo as mãos da ótima D. Mariquinhas.
Um abraço do amigo e colega
João
Rio, 13 de outubro de 1915 .

*
Caro Dominguinhos,

O suicídio do Derby não foi para mim menor surpresa que para V.
Últimamente só por acaso nos encontrávamos, em conversas rápidas. Sabia
que andava aborrecido com a repartição e com o ministro porque Arrojado
me dizia. No dia 18 foi a S. Paulo assistir à formatura do Colégio Macken
zie ; no dia 20 veio, apesar de tôdas as instâncias e muito calado, segundo
conta um companheiro de viagem .
Seria resolução súbita, ou idéia longamente amadurecida ? A cir
cunstância do banho, do café, da leitura dos jornais, de já estar de calças ,
gravata e botinas inclina à primeira hipótese.
Não deixou, pelo menos não foi encontrada até agora declaração
alguma. Consta, porém, que a pessoa de sua intimidade vagamente deu a
entender qualquer cousa .
O suicidio foi às 10 horas ; creio que por intervenção de Calmon a
polícia dispensou a autópsia e o transporte para o necrotério. O entêrro
fez-se à tarde ; nem assisti a ele nem vi o cadáver, porque não houve
tempo.
Lembro -me que há alguns anos Eduardo Prado calculava a fortuna
do Derby em 80 contos. Conheço um amigo a quem emprestou 20, que
lhe foram pagos ; com outro , hoje morto , gastou outro tanto . Agora
disseram -me que sacrificara tudo em uma mina dirigida por um irmão
nos Estados Unidos ; a mina deu mau resultado e o irmão suicidou-se há
alguns anos. Também me disseram que tomou sete contos e tanto num
banco para pagar as estampas de uma obra, que o gravador alemão não
quis entregar sem primeiramente receber o dinheiro. () governo pediu à
Câmara um crédito para pagar o adiantamento ; o projeto figurou na
ordem do dia e depois desapareceu ; não sei se foi rejeitado, ou apenas
CARTAS DOMINGOS JAGUARIBE 45

adiado. Isto incomodou - o porque não tinha dinheiro para acudir ao


vencimento .
Para suicídios nunca ha explicação bastante, porque vem o desespero
às vezes em situação menos terrível que outra, para a qual sobrou a
coragem : para mim todo o suicida é sagrado.
Não sei se a Igreja hoje admite sufrágios para os suicidas; antigamente
nem poderiam ser sepultados no sagrado .
Saudades a D. Mariquinhas, filhas, genros e netos .
Sempre
J.
Rio, 3 de novembro de 1915 .

Caro Dominguinhos,
Respondo a sua prezada carta , recebida ontem .
Assis já lhe escreveu a respeito de seu cabeçalho , com o qual não
parece estar muito de acordo.
A 2.a edição do T. Sampaio foi impressa ai ; ai deve morar o editor,
por isso lhe pedi um exemplar ; creio que não o terá na Bahia.
Quinta, 17, voltamos de uma excursão, começada uma semana antes,
que nos levou a Alegrete. Passamos dois dias em S. Gonçalo , antiga
estância de família, hoje ocupada por Paulo, irmão do Assis e muito
simpático. Assisti a um rodeio de mil reses, à domação de dois poldros
brabos e vi como se tonia de cuia e bomba o tal mate chimarrão, não sei
quantas vezes por dia.
De S. Gonçalo, que fica adiante de S. Gabriel, fomos por Cacequi a
Alegrete, depois de passar pela ponte do Santa Maria, que dizem a
maior da América do Sul, de quase dois quilômetros, o comprimento da
Avenida Rio Branco. De carro fomos a Ibiapuitã, cerca de cinqüenta
quilômetros, aonde Assis possui grande extensão de campo -- mais de
iegua e meia que agora trata de situar com gado. Para começar já
estão trezentas cabeças de gado Devon.
Lá moram uns parentes muito distintos, cujo chefe, um calabres, cha
mado Milano, veio para o Brasil sem saber ler e tocando harpa de ouvido.
Depois de aprender a ler no Rio, veio para estas bandas, largou a harpa
para mascatear, tornou - se negociante, casou - se com uma prima do Assis,
e concorreu muito para que à família viesse uma herança, que é a base da
46 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

abastança de tóda ela. A maior parte do terreno que nosso amigo possui
em Ibiapuită vem daí.
O velho Milano tem três filhos, dos quais dois advogados em Alegrete,
outro estabelecido na estância : são rapagões sacudidos, todos casados e
bem estabelecidos. O velho não trabalha mais ; fez partilha em vida e os
filhos entregam -lhe dezesseis contos anualmente que ele gasta como en
tende, isto é com muito critério e fazendo muito bem .
Em parte de nossa excursão acompanhou -nos Amaro, filho de Barto
lomeu , irmão de Assis, hoje falecido, de quem fui muito amigo. Com
êle combinei ir a Pôrtɔ Alegre, em meados de março. Por isso não
demorarei em Santos : tomarei o último vapor de março que för ao Rio
diretamente. Espero que D. Mariquinhas dê-se bem em Petrópolis com o
tratamento . Lembranças a ela e a todos.
Um abraço do velho amigo
JoÃO
P. A., 20 de fevereiro de 1916.

Dominguinhos amigo,
Causou -me verdadeiro prazer a notícia de que o inventário correrá sem
embaraços. D. Mariquinhas foi previdente e foi justa, reconhecendo tudo
o que V. fêz por ela e pelo Camarguinho durante mais de trinta anos.
João foi justo e atilado. É natural que Benvinda reconheça a superioridade
com que vocês agiram e de uma vez se tenha libertado das más ilhargas
que podiam prejudicá-la .
Conversei ligeiramente com Miguel, chamando -lhe a atenção para a
proximidade do vencimento da letra. Prometeu providenciar sem demora.
O negócio do carvão ainda não está de todo liquidado, mas disse Alfredo
Pinto, um dos diretores da Companhia, hão de vencer.
A sr.a do Arrojado pretende ir sábado a S. Paulo, assistir ao casamento
de uma amiga. Ele a acompanhará para dar um pulo ao Rio Claro. Res
pondeu a Martim Francisco ? Nunca me passou pela idéia ; escrevi-lhe
uma carta que deve ter chegado à Europa depois que ele partiu e aqui
conversamos longamente. Parece que afinal ele escreverá o livro : pela
CARTAS A DOMINGOS JAGUARIBE 47

conversa da senhora parece que virão residir aqui. Nada pode haver
melhor.
Até lá ou até cá .
Um abraço do amigo velho
JOÃO
Rio, 23 de junho de 1917.

Dominguinhos amigo ,

Soube ontem que V. partira para os Campos -do - Jordão, levando um


sobrinho doente. Filho da Rolinha ? Naturalmente impaludismo da serra
a baixo.
Miguel parte amanhã para Espírito Santo numa excursão meio cien
tífica meio de recreio . Vai visitar botocudos em companhia do Professor
Dumas, da Sorbonne. Convidou-me ; não me foi possível aceitar. Estará
de volta a 22, para o aniversário da senhora, a 23.
Estou vendo se concluo uns trabalhos para partir para São Paulo.
Como V. está para vir, espero-o para marcar o dia.
Até lá contente-se com o abraço do amigo velho
J. C.
Rio, 11 de outubro de 1917.

Dominguinhos amigo,
Vi nos jornais a tragédia da Vila Jaguaribe. Só mais tarde soube do
incêndio em tua casa.
A vista disto não irei mais a São Vicente.
Partirei para S. Paulo no dia 20 , num trem especial , com Aguiar
Moreira e voltarei com ele.
Meus negócios em poucas horas ficarão arranjados.
Lembranças e um abraço do amigo velho
João
Rio, 17 de junho de 1918.

Dominguinhos amigo,
Dei o recado a Manuel, que desculpou -se com a inultidão de afazeres,
que lhe não dava tempo nem para abrir as cartas.
48 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Miguel prometeu escrever. Terá cumprido a palavra ? Disse- ine que


a viagem fêz -lhe bem e livrou-o de certo nervosismo contraído na admi
nistração da Central.
Frei Vicente não pode mais demorar muito : faltam apenas algumas
páginas do índice .
Estou trabalhando no prólogo da nova edição de Claude de Abbeville,
mas ando tão devagar que é uma lástima.
Até quando ?
Um abraço do velho amigo
JoÃO
Rio , 1 de outubro de 1918 .

Dominguinhos,
Acabo de receber tua carta de bom e velho amigo.
Tu o conheceste bem, mas não o conheceste bastante, nem seria pos
sível se não o visses durante muitos anos, todos os dias.
Enfim, foi feliz : nunca fêz a ninguém mal, fêz bem a muita gente, tor
nou felizes todos os que de perto o cercaram , escolheu companhia condigna e
os dois se adoravam e não deixaram degredados para este vale de lágrimas.
Do que fez por mim , quanto lhe devo não posso falar. Do que fiz
por ele deu -me testemunho numa carta para o Juazeiro, no rio S. Fran
cisco, escrita do leito de enfermo, em que me dizia : V. é o único verda
deiro que tenho neste mundo. O mesmo disse à mulher, que mo repetiu.
Agradeço o convite que me fazes para morar contigo, mas eu vou
para Pedras Altas a 10 de novembro e lá ficarei enquanto o frio der
licença.
A amnizade nunca perde seus direitos e antecipe meus parabéns pelo
próximo aniversário. Muito mais alegre o tivemos há dois anos ; o do ano
passado não foi triste : esperemos melhores tempos.
Lembranças a Flora, Ekmann , a Laura e ſilegível ] .
Abraça-te o velho amigo
João
Terça- feira , 29 de outubro de 1918.
A DIVERSOS – 1880-1927

23 de julho de 1880 .
Dear Sir 1,

A sua bondade é tão grande que me incomoda. Fui anteontem , mas


levado antes pela simpatia que lhe dedico e pela vontade de vê -lo e ouvi
lo do que por negócio. Ia também para falarmos sôbre o plano que na
distribuição de fatos da História do Brasil me parece o mais próprio para
tornar a narrativa una. Ontem não voltei, hoje não irei, nem tão cedo,
porque às 2 horas, ao sair da Biblioteca, tenho aula no Colégio Aquino.
Se soubesse a que hora encontrá - lo em sua residência, iria qualquer
domingo ... O seu portador já acha demasiada a demora ; por isso
faço ponto e assino -me:
Bien à vous,
J. C. ABREU

Cabral pede-lhe que, sabendo -o, diga quais os verdadeiros nomes que
se encobrem na lista inclusa .

Campinas, 10 de janeiro de 1881.


Dear Sir,

Hoje, às 7 horas da manhã, poucos momentos antes de tomar o trem


de Rio Claro para Campinas, me foi entregue com a sua carta de 7
1. Machado de Assis. Estas cartas foram primeiramente publicadas na Revista
da Academia Brasileira de Letras, vol. XXXVII outubro de 1931.
7 - 1.º
50 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

o exemplar do Brás Cubas que teve a bondade de me enviar. Li de


Rio Claro a Campinas, e, preciso dizer- lhe ? a impressão foi deliciosa
e triste também , posso acrescentar. Sei que há uma intenção latente
porém imanente a todos os devaneios, e não sei se conseguirei descobri
la. Em S. Paulo, por diversas vezes, eu e Valentim Magalhães nos
ccupamos com o interessante e esfingico X. Ainda há poucos dias, ele
me escreveu : “ O que é Brás Cubas em última análise ? Romance ? dis
sertação moral ? desfastio humorístico ? " Ainda o sei menos que ele.
A principio me pareceu que tudo se resumia em um verso de Hamlet
de que me não lembro agora bem , mas em que figura The pale cast
of thought. Lendo adiante, encontrei objeções ... et je jette ma langue
aux chiens. Pretendo passar dois dias em Campinas, e aqui lerei o
que me falta, que infelizmente não é tanto quanto desejaria. Livros
como Brás Cubas é que deveriam assumir as proporções de Rocambole
ou Três Mosqueteiros. Só no dia 15 partirei para o Rio. Se antes
quiser me dar quaisquer ordens, enderece a carta para S. Paulo - Rua
do Gasômetro, 17, em casa de Valentim Magalhães.
Adio .
Bien à vous,
J. C. DE ABREU

16 de julho de 1885 .
Aly dear,

Tenho a honra de lhe apresentar o Sr. João Ribeiro Fernandes,


meu amigo e sucessor na Biblioteca Nacional, poeta distinto e não me
nos distinto lingüista. Pondo em comunicação dois espíritos superiores,
sei que entre ambos se estabelecerão as melhores e mais cordiais rela
ções, com o que muito folgarei.
Bien à vous,
J. CAPISTRANO DE ABREU

Porto Novo do Cunha, Fazenda do Paraíso, 27 de dezembro de 1893.

My dear,
Escrevo-lhe esta carta para dar-lhe um incômodo. Preciso , para
um trabalho que me pediram , de um relatório do finado Luis Couty ,
CARTAS A DIVERSOS 51

sobre o xarque. Foi publicação do Ministério da Agricultura, se bem


me lembro . Talvez lhe seja fácil arranjar um exemplar, nem que seja
por empréstimo. Restituí -lo - ei honradamente. Estou aqui haverá uma
semana , na fazenda do Paraíso . Ando a cavalo todos os dias e tomo
muito leite. Os dias são quentes, mas as noites agradáveis. Nos pri
meiros dias ainda ouvia tiros, agora felizmente desacostumei-me, e já
posso ouvir o baque de um caixão sem pensar que se trata do Vovô.
Até breve e muito obrigado.
Bien à vous,
J. C. DE ABREU
1

Lino 1 ,

Encontrei-me ontem com Teixeira de Melo , que comunicou -me ha


vias feito a primeira remessa do livro de Couto, e pediu -me fosse vê -lo.
Fui, e não me arrependo. Passando os olhos pelo indice, encontrei
logo alguma cousa sôbre a capitania de Piancó, assunto que mais que
qualquer outro me tem preocupado, porque é a chave da porta da his
tória do Norte. Nada encontrara até hoje que me servisse, e por isso
foi com impaciência que volvi as laudas, a ver se já vinha alguma cousa .
O pouco que veio foi um raio de luz. O traçado geográfico já o
imaginara eu, e vi-o confirmado ; mas na parte histórica encontrei novi
dades, por um lado, e a confirmação de certas tradições paraibanas, muito
confusas, por outro , que agora vão tomar forma definida.
Não posso ainda formular juízo sobre o livro, porém julgo não
ine enganar esperando muito dêle. Pela data em que foi escrito, pouco
dirá sôbre as guerras holandesas, o que é uma felicidade, porque aquela
já deu o que poderia dar. Em compensação o autor falar-nos- á do fim
do século XVII, de todo o período que antecedeu aos Mascates, que,
em nossos anos, é tão conhecido, agora, como o interior da África, há
cem anos ; acabará com o exclusivismo da colônia do Sacramento, a que
em suma se tem quase circunscrito a história pátria.

1. A correspondência de Capistrano de Abreu a Lino de Assunção ( 1844-1902 )


foi publicada em livro, razão pela qual deixou de ser aqui reproduzida, exceto
esta, não incluída. Cf. Fontes da História do Brasil. Publicadas e prefaciadas por
Luis Silveira. I : Cartas de Capistrano de Abreu a Lino de Assunção. Lisboa, 1946.
52 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Mas o que sobretudo espero do livro é que seja uma crônica. Pri
meiramente, nós as temos em número tão limitado ! Depois, documento
avulso não dá a vida, nem o movimento, quando a crônica não exista.
Peço-te, pois, amigo, que nas tuas investigações especialmente te apli
ques a crônicas e descrições geográfico-históricas. Na vida de D. Duarte
de Ramos Coelho indicam -se algumas, entre as quais uma sõbre os
holandeses na Bahia, de Tácito, que deve ser Fr. Manuel Calado, autor
dy Valeroso Lucideno, muito dedicado à família de Bragança e seu anti
go vassalo antes da exaltação ao trono.
Peço-te também não esqueças o exemplar de Fr. Vicente do Salva
dor, que Varnhagen afirma ter deparado uma vez na Biblioteca da Aju
da e nunca mais revisto . Quem sabe se lá não estarão os capítulos
que nos faltam !
Teixeira de Melo, que foi passar fora a semana, pedir-te-á cópia
de uma carta do padre Andreoni, escrita em latim , existente ai na
Biblioteca Nacional, relativa à morte do padre Vieira, e escrita uns três
ou quatro dias depois de sua morte. É urgente, e bom , que comeces
logo. Diz Eduardo Prado que em Evora há uma tradução em portu
guês, devida a um padre Fonseca , se bem me lembro . Convém que
também venha logo, porque o volume em honra de Anchieta e Vieira
deve estar pronto em julho.
Adeus ! Estimo tanto que continue bem o que começou sob tão
bons auspícios !
Saudades do teu
CAPISTRANO

Rio, 12 de abril de 1879 .


Caixa 590 .

Major João Brígido,


Li com a atenção de que são dignos os dois trabalhos sõbre a
história do Ceará .
Das biografias trataremos em outra ocasião : vou falar agora da
Fortaleza em 1810 .
Gostei muito de ler seu folheto, e lucrei e aprendi bastante. Muita
coisa que a principio não me ferira a atenção foi-me revelada lùcida
CARTAS A DIVERSOS 53

mente ; outras, cuja causa não conseguira descobrir, ficaram agora elu
cidadas.
Há um ponto em que não creio que a razão esteja de seu lado :
é quando afirma que a atual Fortaleza está no mesmo local em que a
plantou Martim Soares e que conquistaram os holandeses. Para mim é
fora de dúvida que a Fortaleza antiga era no rio Ceará .
Há de se lembrar que no século passado houve uma luta entre
Fortaleza e Aquirás e que esta foi declarada a vila mais antiga da
província. Não seria portanto para o Aquirás que mudou -se o antigo
estabelecimento de Martim Soares, talvez conseqüência de lá terem feito
colégio os jesuítas ? Estabelecida aí a vila, algumas dessas começaram
ou continuaram a residir na atual Fortaleza, que tinha a vantagem do
pôrto. Começou então a desenvolver-se, a prosperar ; acendeu-se a riva
lidade entre os dois lugares, deu-se enfim alguma coisa que não deixa
de ter suas semelhanças com a Guerra dos Mascates em Pernambuco.
Outra coisa em que também não me parece que a razão esteja do
seu lado : diz que a gente da Bahia foi ao Ceará pelo Cotinguiba. Onde
encontrou esta afirmação ? Do Cotinguiba ao rio S. Francisco a passagem
não me parece fácil, mesmo hoje, quanto mais naquele tempo. Quanto
ao aproveitamento do riacho da Brígida e do rio do Peixe estamos em
perfeita harmonia de opiniões.
Neste mesmo capítulo diz que a gente de Pernambuco foi por Pe
nedo e Pôrto Calvo . Não creio : pelo Pôrto Calvo e por Penedo talvez
ainda hoje não haja caminho para o Ceará, quanto mais naquele tempo.
Insisto com especialidade neste ponto porque ele interessa a um
trabalho que tenho entre mãos e para o qual pode ajudar-me bastante :
é o das estradas antigas.
Já conheço a estrada de Aracati ao Crato e daí pelo rio São Fran
cisco à Bahia. Conheço também a estrada do Crato para Oeiras. Sei
vagamente da estrada de Sobral ; mas o resto ignoro. Pode dar-me
alguns esclarecimentos ? Meu trabalho deve abarcar todo o Brasil : já
conheço as estradas de Maranhão, Piauí, São Paulo, Goiás, Rio Grande
do Sul, Mato Grosso. Como vê, ainda me falta muito : portanto tudo
quanto souber a este respeito é favor comunicar-me.
Um assunto em que tocou ligeiramente no seu trabalho, e que seria
bom que desenvolvesse alguma coisa, é o das sesmarias.
É possível que não tenha estudos e documentos relativos ao assunto .
Diga-nos, pois, o que souber; mas faça-o com brevidade, porque nestes
três anos Araripe vai dar- nos a segunda edição, muito melhorada e au
54 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

mentada, da História do Ceará e aí sei que tratará com desenvolvimento


do assunto .
Estou tratando da biografia dos fundadores do Ceará : Pedro Coelho,
Francisco Pinto , Figueira e Martim Soares ; logo que tiver feito o con
curso mandar - lhe-ei.
E até outra carta . Com muita simpatia e consideração,
Bien à vous,
J. CAPISTRANO DE ABREU
20 de janeiro de 1883.
( Carta ofertada pelo professor Antenor Nascentes, e
publicada no Anuário do Colégio Pedro II, vol. 9
1935-36, págs. 243/44.]

Meu caro Pompéia,


Agradeço - lhe os parabéns. Já ontem tomei posse do lugar, e ama
nhã vou dar a primeira lição. Versará sobre a guerra holandesa, que
foi onde Berquó, já meado o ano, deixou o assunto .
Recebi, passados alguns dias, se não me engano depois de sua carta ,
o conto que entregaram a Murat. Está na tipografia e deve sair qual
quer dia .
Pelo que vejo a sua viagem a Casa Branca foi magnífica. Tive
lhe inveja, e, quando puder, farei o mesmo. Preciso muito de conhecer
S. Paulo, cuja história a princípio julguei conhecer, ou antes, com
preender, mas que cada vez vai-se tornando mais obscura ao meu espírito.
Singular povo ! É da gente crer que houve uma verdadeira revo
lução, um cataclismo completo entre 1700 e 1750. Vou deixar a Biblio
teca nestes dias, logo que me derem a demissão. Os candidatos são
muitos para o lugar e a minha cadeira é a melhor da Biblioteca, pois
daqui sai-se para ganhar 400 $. Sucedeu isto com Moreira Sampaio ;
sucedeu comigo. Tomara que suceda com os outros.
Se não me engano, já lhe pedi uma vez, mas torno a pedir-lhe : uma
descrição minuciosa, o mais minucioso em seu poder, de S. Paulo. Veja
se não demora muito, porque as coisas que se demora para fazer me
lhores, por via de regra saem o contrário.
Adeus.
CARTAS A DIVERSOS 55

Conhece Bartolomeu de Assis Brasil, irmão do tribuno ?


Pergunta -lhe se recebeu uma carta que escrevi-lhe, e diga que mo
ramos, agora , Rua D. Luísa, 13.
Adeus.
Bien à vous,
J. CAPISTRANO DE ABREU
24 de julho de 1883.

Ao Ex.mo Sr. Conselheiro Dr. Rui Barbosa, cumprimenta e, enviando


o exemplar de Wappaus, pede perdão da demora, indesculpável se não
föra involuntária,
CAPISTRANO DE ABREU
12/12/84.

Rio de Janeiro, 188 [ 9 ?]


Ex.mo Sr. Conselheiro ,

A aula de grego é nas 2.as, 4.as e 6.as, à Rua 7 de Setembro, 72.


Hoje há.
A gramática admitida é a de Burnouf, a lição o alfabeto.
Admirador obr.
J. CAPISTRANO DE ABREU

Ex.mo Sr. Conselheiro ,


Recebi seu bilhete, ontem, a horas em que já não podia procurá -lo .
Por isso não respondi imediatamente. Irei amanhã ao escritório, às 11
horas, se fôr preciso.
Se o que deseja é informações sõbre nossa aula de grego, passo a
dá -las.
Segunda - feira foi a primeira assentada, que não passou de apresen
tação do professor aos discípulos, e dos discípulos entre si.
56 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU
1

Quarta- feira fez-se exercício de leitura, e o barão explicou -nos a


alfabeto, os acentos, os espíritos.
Sexta- feira novo exercício de leitura, e começo de tradução. O
livro é a Ciropedia. Ele disse-nos que copiássemos as quatro primeiras
linhas e foi-nos dando os significados. Incluo o modelo e a primeira
tradução, para, se quiser ir amanhã, saber o ponto em que estamos.
Para amanhã temos : 1.0 : a declinação do artigo ; 2.0 : a tradução
do trecho que incluo ; 3.0 : a cópia, em letras gregas, das quatro linhas
seguintes, até a palavra gegeneménoi. Junto um exemplar da Ciropedia ,
porque não há mais nas livrarias. Se fôr amanhã às 2 1/2, encontrar
nos-á, Macedo Soares, Pompéia e eu, fazendo exercícios, que podem
ser úteis.
Copiei as linhas da Ciropedia em letras latinas por causa da pressa
e para não perder o portador.
O alfabeto manuscrito grego é o mesmo que o alfabeto impresso,
com a equação pessoal da caligrafia individual.
Admirador obr.
J. CAPISTRANO DE ABREU
Domingo, 17 de julho ( 1889 ?]

( Cópia oferecida pela Casa de Rui Barbosa.)

Rio de Janeiro, 8/11/1890.


Nos tempos coloniais escrevia-se quase invariavelmente Brasil e não
Brazil. Para prová -lo não precisamos de nenhuma apuração estatística
de manuscritos ou impressos. Basta recordar :
1.0 Que todas as moedas, a partir de D. Pedro II, em 1700,
traziam invariavelmente a palavra escrita Brasil, prova de que tal era
a ortografia oficial. Brazil aparece em moeda pela primeira vez num
ensaio de 1841 (n.° 16.468 do Catálogo da Exposição de História e
Geografia, da Biblioteca Nacional ) ; pela segunda em outro ensaio de
1863 ( n .° 16.489 daquele Catálogo ), e generalizou - se a partir de 1870,
quando se começou a cunhar níquel.
2.0 Nas diversas línguas da Europa o nome em questão escreve
se com s : Brasilien em alemão ; Brésil em francês ; Brasil em espanhol ;
prova de que tal era a ortografia popular, porque é com os nacionais
que os estrangeiros aprendem a escrever as respectivas línguas.
CARTAS A DIVERSOS 57

O inglês é uma exceção, mas moderna. Purchas, em 1625, escre


via Brasil, e Brasil escrevia, ainda em 1805, Thomas Lindley na tão
curiosa narrativa que nos deixou de sua prisão na Bahia.
Depois da independência, Brasil continuou como forma mais usual ;
mas, na era de 1850, o ilustre historiador Varnhagen afirmou que devia
escrever-se Brazil, porque a palavra se derivava de verzino, nome de
pau-brasil em italiano.
Efetivamente um dos nomes da madeira assim era ; mas havia mui
tos outros .

Wilhelm Heyd, na sua monumental Geschichte des Levante Handels


im Mittelalter, II, pág. 577, dá as seguintes variantes : lignum brasile
( Brazile, brasillum ), brasiliun em latim ; bersi ( bersi ) , barci), verzi, e
finalmente verzino em italiano. Die gebräuchlichsten Benennungen, con
clui êle, blieben brasile und verzbno. Vê-se pois que o argumento do
nosso ilustre historiador não tem grande força. Nem é preciso ser ver
sado em lingüística para ver que — verzino - não se pode transformar
em Brasil. Melhor argumento seria alegar que Brasil era o nome de
uma terra encantada dos Celtas ao Ocidente e que significava, segundo
Beauvois, grande (braaz ) ilha ( i) .
Mas não é uma discussão etimológica que temos em vista e sim
chamar a atenção para a variedade que se nota nos documentos oficiais,
que na mesma página escrevem a palavra de modos diversos. Que isto
não deve continuar é evidente. Que está nas atribuições do Governo
fixar a ortografia oficial mostra - nos um caso análogo, citado por Bryce,
de um dos estados-unidos da América cujo nome, sendo pronunciado di
versamente, os representantes decretaram qual devia ser a pronúncia.
O modo que nos parece mais simples para obter o resultado é orde
nar à Casa da Moeda e ao Diário Oficial que dora em diante empreguem
uma só ortografia, a que parecer mais acertada.
Rio de Janeiro, 8 de novembro de 1890 .
J. CAPISTRANO DE ABREU
JOSÉ ALEXANDRE TEIXEIRA DE MELO 1

1. Copia oferecida pela Casa de Rui Barbosa . A tinta do documento é a mesma


da assinatura de José Alexandre Teixeira de Melo, sendo a mesma a letra. A
assinatura de J. Capistrano de Abreu é em tinta diferente.
58 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Dr.1

Indo ontem a Teresópolis, pela primeira vez, lá encontrei sua carta


de 18, que respondo.
Continuo preparando o manuscrito para o prelo.
Já está pronto o primeiro capítulo sôbre as partes do corpo, e vai bem
adiantado o segundo, que trata de parentescos. Com este começa o ma
terial novo que tenho colhido e consiste sobretudo em frases, descrição de
árvores e animais, e lendas. O Dr. Carlos von den Steinen reuniu todos
os textos numa secção do livro, e talvez éste fosse o melhor meio ; mas
eu prefiro ir distribuindo -os pelo meio do livro, porque quem quiser estudar
a língua vai-se familiarizando logo com ela. Além disso é trabalho que
fica feito de uma vez .
Depois de lhe ter escrito, li um artigo de Steinthal sôbre o modo de
colher linguas selvagens que teria facilitado muito a empresa se eu o
conhecesse antes. Diz ele que quando a acentuação numa lingua segue
uma regra geral, não é necessário pôr o acento em todas as palavras.
Sendo assim, poderia ter-se dispensado a fundição aº ö ü 2 pois no bacairi o
acento é na penúltima, sempre.
Dou - lhe parabéns pela aquisição de Betendorf , de que antes possuíamos
só a segunda edição. E aproveito o ensejo para lembrar-lhe um livro raro ,
e tão esquecido, que ninguém fala dele, o Catecismo do padre Antônio de
Araújo. Impresso em 1619, é o primeiro da língua tupi e tornou - se por
tal maneira raro, que contam-se os exemplares conhecidos : um em Paris,
de que dá notícia Ferdinand Dénis, em sua edição de Yves d'Evreux ; e
2 na Biblioteca Nacional de Lisboa, que um meu amigo viu o mês passado.
A Biblioteca precisa possuí-lo, ou impresso, e creio que seria possível
por permuta com Lisboa, ou em manuscrito, e em Lisboa seria fácil achar
copista.
O livro tem dois grandes valores : foi o primeiro no gênero ; além
disso passou por nova edição em 1680 e tantos pelo padre Bartolomeu de
Leão, devido a estar antiquado em certas frases. Por conseguinte é do
cumento capital para a gramática histórica da lingua tupi, que ainda não
se fêz, porém há de ser feita mais cedo ou mais tarde, quando tivermos
segundo Batista Caetano. A edição de Bartolomeu de Leão creio que
1. Não diz o nome do destinatário, mas parece tratar-se do diretor da Biblio
teca Nacional, que era, então, o Dr. Mendes da Rocha.
2. No manuscrito há mais um acento agudo acima do o elevado e dos tremas.
CARTAS A DIVERSOS 59

temos ou já tivemos. Em todo caso há no Instituto Histórico e na Biblio


teca Fluminense.
Outro livro de tupi que deveríamos tratar de ir procurando é a gra
mática do padre Luís Figueira, 1.a edição, impressa por 1620, de que,
porém , ultimamente ninguém viu ainda um exemplar.
Com Anchieta, que Platzmann reimprimiu, com a primeira edição
de Araújo e Figueira, as reimpressões de Figueira e Bartolomeu de Leão,
com Betendorf e Valente, teríamos para o Brasil a série completa de mo
numentos da lingua tupi, durante dois séculos ; o que hoje é, no Amazo
nas, mostram os trabalhos de Couto de Magalhães, Barbosa Rodrigues e
Simpson.
Pergunta -me o melhor meio de vir-se à Colônia Alpina. Não é fácil :
toma-se a estrada de ferro de Petrópolis até Itaipava, onde se chega a
meio - dia ; ali toma-se cavalo e faz-se uma viagem de 5 horas, por um
caminho que não é dos mais agradáveis. Se acaso quiser vir, me avise
com antecedência, que creio poderei arranjar-lhe cavalo. Previno-o, porém ,
de uma coisa ; carne fresca aqui é fruta . Chegamos a 14 de janeiro, e
até agora só a tivemos quatro vêzes. Em Teresópolis, que daqui dista
272 léguas, só se mata gado duas vezes por semana. Não chega, princi
palmente agora que os hotéis estão cheios, para os fregueses de lá ; nem
agora para os de cá.

Logo que os tipos estiverem fundidos me comunique, para mandar


os originais. Vamos ver se ao menos até a pág. 74 do original fica a
impressão pronta, nestes dois meses. Irineu, como todo selvagem , tem
suas luas ; há dias em que não há meio de se obter trabalho útil, e já estou
ficando aborrecido e enfadado com ele. Ficar-lhe-ia obrigado se me en
viasse pelo Correio as lendas de Barbosa Rodrigues e a gramática quiriri
do padre Mamiani. Talvez que as lendas de Barbosa Rodrigues desper
tem as idéias de Irineu, que agora anda muito vasqueiro.
E adeus.

Bien à vous,
J. C. DE ABREU
Colônia Alpina, 22 de fevereiro de 1893.
60 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Dr. ,

Agradeço -lhe a carta e os livros. O de Barbosa Rodrigues veio


trocado, não era o dicionário, mas o volume das lendas que eu queria.
Daí não resultou grande mal, porque, como as margens do exemplar são
largas, estou escrevendo à margem as palavras bacairis para devolvê-lo à
Biblioteca . Em todo o caso peço - lhe novamente a poranduba amazonense.
Continuo preparando o manuscrito sobre bacairi : o primeiro e o
segundo capítulos já estão prontos, éste com acréscimos novos de Irineu ;
o terceiro, que é um dos mais maçantes, fica-lo-á hoje ou amanhã ; daí
por diante quase que só tenho que passar a limpo o que colhi.
Pretendo ficar por aqui até o fim do mês. Até lá.
Bien à vous,

J. CAPISTRANO DE ABREU
Colônia Alpina, 8 de março de 1893.

Meu caro Doutor,

Obrigado por sua carta e pelo livro de Barbosa Rodrigues. Meu


trabalho com Irineu vai bem , e por outra o livro ainda não produziu efeito
nem se tornou necessário. Não sei mesmo se virá a tornar - se , porque
o gênio e o gênero de contos variam muito nas duas línguas e correspon
dentes nações .
Tenho trabalhado muito útilmente, agora. Espero que só em lendas
e tradições completar-se-ão as 4.000 frases que desde o princípio fixei-me
como limite. Com outros acréscimos, como descrição de animais, plantas
e objetos etnográficos, creio bem que chegarei ao total de 5.000 : é bas
tante. Se eu chegar, como pretendo e é fácil , a organizar o glossário,
posso deixar o bacairi na certeza de não ter sido inútil a seu conhecimento.
Vejo o que me diz sôbre a fundição de tipos, que deverá estar pronta
até o fim do mês. Estará mesmo ? Tomara eu . No dia 1.9 de abril
pretendo descer ; no dia 3 poderíamos começar.
Peço -lhe o obsequio de mandar examinar se existem na Biblioteca
os livros juntos, que me serão úteis e talvez necessários no correr da
CARTAS A DIVERSOS 61

publicação. Caso aí não os haja, pedir - lhe -ia que os mandasse vir com
urgência pelo correio : a casa Laemmert, para estas encomendas, é muito
boa, e se encomendar ao Gustavo que seja expedito, poderemos tê-los em
menos de dois meses .

O tempo não deixa lugar a mais.


No dia 3 de abril poderemos falar mais demoradamente.
Bien à vous,
J. C. DE ABREU
Colônia Alpina, 20 de março de 1893.

Il.mo Sr. Dr. H. von Ihering,

Agradeço a V. S.a a carta e as informações de 23 de agosto. Aca


baram de me convencer que do jaú nada se pode extrair de proveito,
porque é uma denominação genérica, abarcando até a piraíba ou piratinga
( Bagrus reticulatus ), muito comum no Amazonas.
Considero, como V. Steinen, os tupis e caribas troncos diversos ; as
relações gramaticais são muito remotas, as coincidências léxicas raríssimas,
as tradições divergentes. De trinta ou quarenta lendas bacairis que possuo,
não há talvez cinco que se assemelhem às que em lingua- geral colheram
Hartt, Couto de Magalhães e Barbosa Rodrigues. Quando há semelhança,
a lenda amazonense é de ordinário colhida na margem esquerda.
Em todas as tradições, o eixo histórico dos bacairis é o Paranatinga,
subindo umas vezes e descendo outras, inclinando para o Tapajós ou
Xingu, mas em suma tornando sempre ao Paranatinga. De povos dife
rentes foram os caiapós os que mais influíram sôbre eles.
Tenho-me ocupado alguma cousa da distribuição dos tupis, mas até
agora apurei apenas que ela é muito mais difícil do que geralmente se
supõe.
O centro de sua irradiação que julgo mais verossimil é S. Paulo,
entre o Tieté e a Mantiqueira, aproximadamente. Assim se explicam sem
esfôrço as migrações dos carijós ou guaranis e as dos tupiniquins ; o
mesmo não sucede com a dos tamoios ou tupinambás, que, por mais que
62 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

estude os textos, cada vez acho mais obscura. Gurunas, apiacás, mundu
rucus e maués representam outras migrações não menos obscuras e antigas.
Ao N. do Rio Grande do Norte, acompanhando o litoral até o Amazonas,
os tupis só chegaram depois de descoberto o Brasil. No alto S. Francisco,
pelo menos na margem esquerda, creio que não havia tupis, que só apa
reciam nos confins da Bahia, Piauí e Pernambuco. Os ibirajaras, de que
tantas notícias vagas se encontram , pendo a acreditar que eram os caiapós.
A respeito dos guianas posso garantir com toda segurança que eram
tupis. Em S. Paulo julga-se geralmente o contrário, porque acreditam
numas histórias que Frei Gaspar da Madre de Deus andou inventando, e
que não têm o mínimo fundamento . Se V. S.a ler Hans Staden verá
que ele, que esteve em S. Vicente, e depois prisioneiro dos franceses,
digo, dos tupinambás, ou tamoios, não confunde os guianas com outra
nação.
Infelizmente êle cita, e o mesmo fazem Léry e Thevet, uns carajás,
que evidentemente não são os de Goiás, mas cuja procedência não se
explica. Podiam ser os puris ; Cardim informa que os carajás tinham
vindo, corridos do norte, havia pouco tempo ( 1584 ). Os puris, segundo
me informou alguém que estêve entre eles, possuíam grandes rêdes, em que
dormiam quatro e cinco pessoas. Rêdes semelhantes encontraram os ho
landeses entre os índios de Pernambuco .

Creio que a questão dos guianas pode resolver-se em S. Paulo . Du


vido que sejam os savantes de Botucatu, porque um ligeiro vocabulário
dêles, publicado por Borba, insinua antes relações com os guaicurus.
Podem ser os coroados ou caincangues, mas pendo antes a acreditar que
são os guatós de S. Paulo e Paraná, que não sei se terão alguma cousa
de comum com os do rio Paraguai . Os xavantes de S. Paulo nada têm
de comum com os de Goiás, de que possuo vocabulário. Uns genoas, ou
outro nome semelhante, parecem parentes dos charruas, porque tinham o
mesmo costume que estes de cortar os dedos em sinal de luto, e este é
dos costumes muito difíceis de passar de uma tribo para outra.
Desculpe-me V. S.a estas notas atropeladas. Logo que tiver tempo,
enviarei o que tenho colhido sobre os guianas, que é muito pouco, mas
o suficiente para demonstrar que não são tupis.
Não tenho infelizmente objetos que possa remeter ao Museu que
V. S.a tão dignamente dirige. Pedi, porém, ao senador Catunda, que
CARTAS A DIVERSOS 63

breve partirá para nosso Estado, que é o Ceará, que fizesse uma coleção
de conchas de água doce e ele prometeu -me. Não o deixarei esquecer -se.
E sempre às ordens, subscrevo -me com toda consideração.
De V. S.a
adm.or at.° e obr.',
J. CAPISTRANO DE ABREU
Rio, 26 de agosto de 1895.

Urbano ,

Recebi seu convite, agradeço-lhe, mas não o aceito, não posso. No


tempo em que dominava nossa terra a mediocridade nefanda chamada Fl.,
era quase impossível encontrarem - se três pessoas em conversa , sem que
um fôsse polícia secreta.
Ainda hoje parece-me impossível encontrarem -se três, sem haver
um provocador.
Tenho feito tristes experiências.
Deixemos que o ar se purifique, e daqui a dois ou três anos ( quem
sabe se não deveria escrever dois ou três séculos ) vamos nós apurar se
ainda é possível entrever um sociedade melhor.
Bien à toi,
CAP.
7 de setembro de 1895 .

Ao pôr a data, arrependi-me do que tinha escrito. Amo, admiro o


Brasil, e espero nêle. Os maus brasileiros passam , o Brasil fica. Eu
creio que o Brasil é o primeiro país do mundo, o brasileiro ( principalmente
o do Rio ) o melhor homem da América, a Rua do Ouvidor a melhor coisa
do Rio, e nós que não freqüentamo-la, as melhores criaturas da rua.
Criaturas - salvo seja.
E viva l'hilaritá !

1. Parece tratar- se de Urbano Duarte de Oliveira ( 1850-1902 ) .


64 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Jansen
A Revista do Instituto Histórico de 1866 traz na parte primeira um
longo artigo intitulado Descobrimento de Minas Gerais. Saiu anônimo,
mas não há dúvida quanto ao autor : Diogo Leite Pereira de Vas
concelos 2
A Biblioteca Nacional possui uma cópia ; o último capítulo, a que
o autor se refere e que o Instituto não publicou, provavelmente por faltar
a seu códice, já está hoje impresso na Revista do Arquivo Mineiro.
Pág. 62, diz o autor : " observações com que fixei as memórias que
correm manuscritas dos reais direitos que os soberanos têm percebido da
Capitania".
Isto traz -me à lembrança um Manuscrito encadernado, formato entre
12.° e 8.°, pertencente à coleção Carvalho, impresso no Diário Oficial de
1892, creio que em fevereiro, no tempo em que Vicente de Sousa era
o diretor. Não será este o trabalho a que o autor do Descobrimento de
Minas Gerais se refere ? Trata da história do quinto.
As datas combinam , porque Vasconcelos escreveu o Descobrimento em
1807 ( v. pág. 64), e a história do quinto é aproximadamente deste tempo .
V. pode fàcilmente fazer os cotejos necessários e chegar a conclusão
definitiva.
Escrevi-lhe esta carta da fazenda do Paraíso, às margens do Paraíba.
Vem-se aqui pelo Pôrto Novo do Cunha; mas a fazenda pertence ao Rio
de Janeiro , no município do Carmo, se estou bem informado.
Meus respeitos à ex.ma sr.a
Até breve, abraça - o
J. C. DE ABREU
Paraíso , 27 de maio de 1901.

Ex.mo Sr. Senador 3,

Não me foi possível, como tanto desejava, assistir a seu embarque,


do que lhe peço muitas desculpas.

1. Antônio Jansen do Paço.


2. Diogo Ribeiro Pereira de Vasconcelos.
3. Parece tratar-se do Senador Manuel de Melo Cardoso Barata .
CARTAS DIVERSOS 65

Espero que tenha feito boa viagem, encontrando bem disposta a


ex.ma família .
Junto a nota de que falei .
Só tenho pressa da carta de La Ravardière que deve estar em Paris,
e da fôlha 33-40 do exemplar de Yves d'Evreux existente em Chartres, se
êste a contiver.
Receio muito que o tal processo de Dieppe de muita maçada e nada
de resultado.
Pedindo -lhe perdão por tantos incômodos aqui fica sempre o amigo
e adm.or agradecido.
C. DE ABREU
Rio, 12 de junho de 1906 .

Na Biblioteca da cidade de Chartres existe um exemplar da primeira


edição do livro de Yves d'Evreux, narrando sua viagem ao Maranhão.
Copiar as seguintes folhas que faltam ao de Paris, reproduzido em
1864 por Ferdinand Dénis:
F. 9-16 , f . 33-40 , f. 97-104, f . 113-120, f . 185-192, f. 297-304, f .
337-344, f. 365 e seg .
Não ( sei] se o exemplar está completo. Outro que existe em
New York, pertencente ao Sr. Kalbfleisch, contém as seguintes fôlhas :
97-104 , 113-120, 297-304, 337-344 .
O exemplar que existia em Roma desapareceu ; talvez seja este mesmo
de New York, vendido no leilão do Dr. Court.

Ferdinand Dénis, no prólogo à reimpressão de Yves d'Evreux, pág.


XXII, nota, fala de uma carta de La Ravardière a M. de Puysieux,
existente na Bib . Nationale - Fonds Français n .° 228-15 p. 197.
Disseram a um meu amigo, que o procurou, não existir mais tal
documento . É pouco provável; talvez fosse negado por causa da questão
do Oiapoque. Agora não deve ser mais reservado. Conviria mostrar na
Bib. Nat. o trecho de Ferdinand Dénis.
Será possível encontrar o processo a que Martim Soares Moreno
respondeu no almirantado de Dieppe entre 1616 e 1619 ?
Consta apenas que foi condenado à morte, mas não executado, graças
à intervenção do embaixador espanhol.
Asseline, Antiquités et Chroniques de Dieppe, II, 192, refere-se ao caso.

8 - 1.º
66 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

A Biblioteca de Besançon tem manuscrito El Islario General de Alonso


de Santa Cruz, n.° 460 do catálogo, segundo Harrisse.
Desejaria cópia do trecho entre o Orinoco e o Rio da Prata : creio
que serão apenas duas ou três páginas.
Como provavelmente não há bom copista de espanhol naquela cidade,
pois os trechos publicados por Harrisse, John and Sebastian Cabot, p. 409
a 411 , formigam de erros, conviria mais uma fotografia.
Os clichês poderiam ir para a Biblioteca do Pará, que os publicaria
em seus Anais.
Se Artur Viana quisesse, eu poderia precedê-los de ligeira introdução .

C.e [ compadre] ,
E diga que é pontual, infalível! Procurei Domício , e não o encon
trei. Fui às 11 horas. Tinha saído às 9. Amanhã, se fôr mais cedo,
talvez tenha dormido em Petrópolis. Estou com o pressentimento de que
irá embora, sem que eu o veja.
E como vai o Senado ?
E quando desce ?
C.
Rio, 5 de maio de 1911 .

(Morte de Napoleão, 1821).

Amigo Dr. Urbino de Sousa Viana,


Há uns três dias, indo à Bib. Nac., Constâncio Alves entregou -me sua
carta de 5 de corrente com a memória sobre a expedição de Espinhosa.
Obrigado por ambos os favores.
Li seu trabalho com a atenção de que é digno, e acompanhei- o com
o mapa. Infelizmente o de Homem de Melo, que tinha à mão, apresenta
sensíveis lacunas naquela região, e não me orientou de modo cabal. Acha
muito plausível sua tese ; tendi sempre a procurar o ponto extremo da

1. Dr. Leopoldo Bulhões.


CARTAS A DIVERSOS 67

entrada antes para o rio das Velhas que para o rio Grande, mais para o
sul que para o norte.
Permita -me algumas observações sõbre outros pontos.
Por que chamam Espinhosa de egresso ? A palavra tem sentido muito
restrito e aplica -se a quem retirou -se de um convento . Não me consta
que este tenha entrado em alguma ordem. Deve ser êle o mesmo mo
rador de Pôrto Seguro que auxiliou Navarro na tradução das rezas para
a língua -geral: não tenho à mão a carta de Nóbrega ou algum compa
nheiro que a isto se refere, porém prometo enviar - lhe a nota , apenas a en
contre. Não creio que jamais fosse ao Peru. A carta de Navarro não
foi mandada ao Padre Nóbrega, porém aos irmãos de além -mar, como se
evidencia das primeiras linhas.
Para verificá -lo reli mais uma vez a carta , e com maior prazer que
nunca .
Creio que nova leitura lhe daria outras indicações e suscitaria
novos problemas. Por exemplo : qual o rio que navegaram ?
Permite ainda uma observação ?
Acho excesso de notas : umas são dispensáveis, porque melhor fica
riam fundidas no texto , outras caberiam melhor em uma história geral,
que em monografia .
Como vê, li - a com todo o cuidado de que é digna sua contribuição
para a história pátria.
Já que está-se ocupando de roteiros, não esqueça o de Antonil : foi
reproduzido na Rev. do Arq. Min .
Aqui fico sempre às suas ordens e pode dispor francamente dos
mínimos préstimos do
Admirador e amigo obrigado,
C. DE ABREU
Rio, 20 de setembro de 1915.
D. Luísa, 145 (Glória ).

Tasso amigo >

Junto os documentos essenciais sobre os primeiros tempos do


Maranhão .

1. Parece tratar - se de Tasso Fragoso.


68 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Por eles poderás ver o caso das aldeias, que é o que me interessa.
Consulta também o livro de Vaz Amaral [ ? ] .
Bien à toi,
C. A.
30 de junho de 1918.

Sapientíssimo,
Ao chegar encontrei sua carta-bilhete, que me deu muito prazer.
Não vi Kipling nem de longe. Como se interessava por tatu, traduzi
do caxinauá uma história de tatu, esperando saísse a tempo dêle poder
conhecê-la. Se sair algum dia peço - lhe que a traduza e veja meio de
chegar a seu destino : não é longa.
Responder a sua carta não é fácil . A maioria das peças represen
tadas era de origem francesa. O teatro teve certa animação no tempo
de João Caetano, que cultuava o gênero melodramático, e não creio fixasse
no repertório peça nacional.
Uma vez perguntei a José de Alencar porque abandonara o teatro.
Disse-me que por não haver companhia dramática.
Vou ver se lhe arranjo um livro de Carlos Sussekind de Mendonça
sôbre o teatro nacional . Inteligente o autor é : se a obra saiu capaz
( tüchtig, na lingua do avô, não é ? ) Vossa Sapiência o decidirá.
Mandarei o livro que lhe prometi. Leia a carta da autora.
Saudades a todos .
Ergebenst,
JoÃO NINGUÉM
Tugúrio , dia de S. José, 1927.
( Encontrada nos papéis da família ; sem destinatário .)

Carlos amigo ,
Recebi um cartão de Genova e agora a carta de Roma ?. Fábio en
sinou -me o modo de responder - lhe: vou tentá - lo.

1. Carlos Werneck .
2. A carta de Roma referida é de 25/6/1927.
CARTAS A DIVERSOS 69

Pensei que V. fosse primeiro ao Oriente ; acho que fez melhor ficando
na Itália e vendo-a com vagar : multum non multa. De suas impressões eu
tinha certo ressaibo. O Duce é um bicho. Se fôr derrubado logo, não
passará de aventureiro ; se permanecer, pode subir de categoria. Inteligente
e corajoso é : quando se imaginou que mafia e camorra seriam chamadas a
conta ? A Itália tem um ponto de comum com a Alemanha : serem
ambas nações novas, com fôrças para se renovarem .
Uma senhora italiana, muito amiga de Said Ali, resumiu o entusiasmo
do que viu na península dizendo que Mussolini poderia ser assassinado,
mas o assassino nunca será um italiano.
O que diz V. sobre a belicosidade dos cartazes é novidade.
( Incompleta)

Filhinha 1 ,

25 de abril, dia de São Marcos, nome de um tio, irmão de meu pai


e avô de Mota.
Há 52 anos desembarcava aqui, um domingo, dia de cerração. Quão
pouco sabia da vida. Não distava muito de um cego, sôlto nesta cidade
de automóveis.
Ainda hoje, quando penso no passado, não compreendo como não
socobrei desde as primeiras passadas.
Felizmente o pior está passado.
Das colheres de chifre não me esqueci. Mas no Rio Grande do Sul,
donde vieram as primeiras, não estava mais Assis Brasil , obrigado pela
revolução a emigrar para o Uruguai. Pedi a Tomé que as mandasse vir
do Ceará. É possível que, no meio de tantos negócios que o ocupam e
preocupam , éste lhe tenha escapado. Mês passado embarcou para a terra
dos verdes mares o Luís Sombra. Fiz-lhe a encomenda : vou reavivá-la.
A pessoa mais entendida que eu encarreguei da compra das tintas.
As tintas são muito exclusivas. Não se pode misturá -las sem incon
venientes.

Esperava Aprigio para o dia 3, mas Maltide me escreveu que não


poderão partir antes de 6 de maio .

1. Honorina , filha mais velha.


70 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Eu vou indo ... no Ceará (pelo menos na parte em que me criei )


costumam acrescentar : melhor do que mereço [d ] e Deus.
Anteontem um amigo de Santos insistiu comigo que fosse à estação,
como no tempo em que Jaguaribe vivia e que Jaguaribe vivia [ sic ]. Não
me tenta ... perna de pau não é perna de gente.
E adeus, filha,
Ubique filiae memor.
Tugúrio, 25 de abril .

Patrício ,
Dou -me pressa em responder a sua amável carta de ontem, agora
mesmo recebida.
Não tenho à mão a Revista de 1839 ; o escrito referido há de ser
idêntico ao que saiu completo no tomo de 1851 , idêntico portanto à grande
obra de Gabriel Soares de Sousa.
O autor desta , de 1.º de março de 1587 , dedicou-a a D. Cristóvão de
Moura ; naturalmente deixou -lhe o autógrafo, embarcou para o Brasil, a
correr aventuras, concluídas tràgicamente.
A obra de Gabriel Soares só foi impressa no século XIX, mas foi
citada ainda no século XVI por Pero de Mariz. Dela conhecem -se
cópias várias do século XVII e XVII [ I ] . O original é volumoso, as
cópias demandavam bastante tempo.
Se bem me lembro, afirmei provirem de Pero de Mariz as semelhanças
entre Fr. Vicente e Gabriel. Sua opinião adversa é sustentável, embora
pouco pudesse ensinar a frei Vicente, que conheceu os índios desde o
berço e serviu de missionário na Paraíba.
[ Inacabada e não expedida, encontrada entre os papéis da família. ]

Antônio Bezerra amigo 1 ,


Só hoje encontrei na Origem do Ceará, trazido pelo Ildefonso Albano ,
sua carta de julho !

1. Encontrada entre a correspondência de Capistrano a Calógeras.


CARTAS A DIVERSOS 71

O caso explica -se: li o exemplar do Monte ; deixei a segunda leitura,


no meu , para mais tarde, o que só agora vai ser possível.
Com a primeira leitura aprendi muito : o povoamento do Ceará é muito
menos simples do que eu supunha. A ribeira do Jaguaribe teve a maior
parte da população de procedência pernambucana. Os afamados baianos,
não são de todo um mito o da Casa da Torre V. destruiu de uma
vez ; mas parece que só foram baianos para o Cariri depois que a gente deste
procurou a Bahia.
Distingo nos caminhos sertanejos os de penetração e os de vazão : a
estes pertencem os trilhados pelos baianos.
Tenho minhas dúvidas quanto ao Salgado : parecem simultâneos ou
quase o movimento da foz para as cabeceiras e o das cabeceiras para a foz.
V. pode considerar- se feliz, porque salvou ao menos uma parte dos
seus trabalhos : hão de ser lidos, hão de ser apurados e reunidos ao
cabedal comum .
O Ceará é talvez, dentre os estados do Brasil, aquele cuja história é
mais conhecida.
Conheço bem o quinhão que lhe cabe.
Fala V. em doença. Quem se pode dizer de todo são ? É trabalhar
para diante, sem contar com o futuro incerto.
A ASSIS BRASIL E SENHORA 1881-1922

J. Capistrano de Abreu cumprimenta a Assis Brasil, e dá mil para


béns à sua fortuna pelo acaso que, pondo ambos na mesma cidade, tor
nará possíveis relações, que já existem indiretamente, através do bom
Valentim Magalhães.
21 de dezembro .

Assis Brasil,

Encontro agora em Michelet ( Rév. Fr. III, págs. 11 e 12 ) o seguinte


trecho, que pode servir de epígrafe à República Federal, e que por isso
copio :
L'objection principale, celle qu'on faisait et qu'on fait toujours,
c'était : " Il n'est pas encore temps, nous ne sommes pas mûrs encore ,
nos moeurs ne sont pas républicaines ..." Vérité trop vraie ; il est
clair qu'il doit toujours en être ainsi en sortant de la monarchie. La
monarchie n'a garde de former à la république : ses lois, ses institutions
n'ont pas apparemment le but de préparer beaucoup les moeurs au gouver
nement contraire ; d'où il suit qu'il serait toujours trop tôt pour essayer
la république; on resterait embarassé à jamais dans le cercle vicieux : “ La
législation et l'éducation républicaines peuvent seules former les hommes
a la république ; mais la république elle-même est préalablement nécessaire
pour vouloir et décréter ces lois et cette éducation.”
Pour qu'un peuple sorte de ce cercle, il faut que par un acte vigoureux
de sa volonté, par une énergique transformation de sa moralité politique,
il se fasse vraiment digne d'être enfin majeur, digne de sortir d'enfance,
de prendre la robe virile, et que, pour ne pas retomber, pour rester à la
CARTAS A ASSIS BRASIL E SENHORA 73

hauteur de ce moment héroïque, il se donne les lois et l'éducation qui


peuvent seules le perpétuer.
11 de março.

Assis Brasil ,
Já ontem lhe escrevi dando-lhe notícia de sua comissão ; escrevo-lhe,
porém , novamente, para responder a sua carta de 10.
Começo desde logo retirando o oferecimento que fiz de rever as
provas. Venha, venha . Não tenha medo do meio ; não tenha medo de
nada. Há de conservar - se refratário ; há de com a sua presença concorrer
para elevar e purificar.
Vou comunicar a sua vinda provável a Patrocínio. Quer isto dizer
que V. há de fazer uma conferência ; apronte -se, pois, desde logo. Peço -lhe,
porém , um obsequio : escolha o dia 25, que é dia santo e não é domingo.
Nos domingos assisto a umas leituras positivistas a que não posso faltar.
Outras cousas que não posso deixar de lhe pedir. Traga as Chispas,
a coleção dos jornais em que tem colaborado, para a Biblioteca. Traga
os documentos para a Exposição. Apronte-se também para tomar parte
nas conferências de História do Brasil. O Questionário está quase pronto,
e entre as questões algumas existem que V. tratará proficientemente.
Sinto muito, por um lado, que V. venha agora, e não mais tarde, pelo
meio do ano . Poderia então apresentá -lo a minha família e imitar o
procedimento de Valentim para comigo. Enfim , como V. prometeu vir
visitar a Exposição, como espero que tomará parte nas conferências, em
setembro hei de obrigá -lo a me dar tal prazer.
Já não é pouco estarmos juntos todos os dias : trocamos idéias, revi
vemos aquele bom tempo do Rio Claro. Não imagina quanto fiquei gos
tando da pequena cidade. Tenho tido tanta saudade, tanto desejo de tornar !
Espero ansioso por sua poesia sõbre o Turgot. Só V. e Mário
conheço que podem tratar do assunto. Qualquer outro seria necessário que
primeiro estudasse o assunto, e o tempo não deixa.
Procurarei novamente Lombaerts para saber por quanto ele imprimirá
a fôlha sendo o tipo renaissance. É provável que seja mais barato : mais
conveniente, não creio. O elzeyir é um tipo elegante e antique, e não
74 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

deixa de ter graça defender as idéias novas com instrumentos de tempos


socialmente bárbaros.
O pé como vai ? De queda de cavalo e de mordedura de cachorro sei
que não foi a ferida ; por isso não pode ser muito grave. Ainda bem .
Veja se reduz os 10 ou 12 dias aos 9 fora.
Adeus. Lembranças a Pereira da Costa, Caniargo Neves e Mercado.
Bien à vous ,
J. C. DE ABREU
Rio, 12 de março de 1891.

Ontem pedi a um colega meu para pôr 4 cartas no correio : três


para S. Paulo, das quais uma para V. Sucedeu que o colega, por
distração, pôs uma na caixa sem selar. Imagine como estou incomodado.
Se foi a que escrevi ao Dr. Macedo Soares, que nunca vi e que me trata
por Senhoria ...

Assis Brasil ,
Deixe cair a alma aos pés ... quando soube que Leuzinger, que
eu julgava ser o mais caro de todos, é exatamente o mais barato.
Um meu colega, que com ele falou, diz-me que ele fará a impressão
por 35$ incluindo a brochura. À vista disto, nem é bom pensar nos
outros dois, que, inferiores como artistas, só levam - lhe vantagem em serem
mais careiros .
Por que Leuzinger é tão barateiro ? perguntei ao meu colega. Em
que ganha então ? — No papel, respondeu -me: o papel dêle, que aliás é
bom , é comum : se quiser -se papel especial, a cousa não ficará por menos
de 50.
A vista disto, tendo -lhe submetido as propostas das três melhores
tipografias, fico à espera de sua decisão.
Adeus .

Lembranças a Pereira da Costa, Camargo Neves e Mercado.


Bien à vous ,
J. C. DE ABREU
Rio, 15 de março de 1881.
CARTAS A ASSIS BRASIL E SENHORA 75

Meu caro Brasil,


Caso -me; provavelmente já estarei casado quando V. receber esta
carta, por que é 5.a feira, 31 , que se deve realizar o ato.
Circunstâncias especiais obrigaram -me a precipitá-lo, porque, se não
realizássemos esta semana, encontraríamos da parte de meu sogro uma
resistência de que V. não poderia formar a mais ligeira idéia. Entretanto
o grande e gravíssimo momento não me impediria de, mesmo esta semana,
prestar à República tôda a atenção de que é digna e de que sou capaz, se
não houvesse uma circunstância com que não contava .
O tipo renaissance que Leuzinger possui é muito grande relativamente
ao formato do livro ; por isso resolvi suspender a impressão até receber
resposta sua .
Faz questão do renaissance ou do elzevier ? Passemos então para
outra tipografia.
Se não faz, fiquemos mesmo no Leuzinger : ele tem outros tipos,
bons, novos, elegantes. Se quiser ver o tamanho do renaissance de Leu
zinger, peça na Biblioteca da Escola os Anais da Biblioteca Nacional, e
calcule o efeito.
Nem sei o que lhe estou escrevendo.
Bien à vous,
J. C. DE ABREU
Rio, 29 de março de 1881.

Assis Brasil ,

Semana passada escrevi-lhe duas cartas. Uma sei que não lhe chegou
às mãos, porque Raul Pompéia, que a levara, comunicou -me tê-la perdido.
À outra receio que sucedesse o mesmo, pois até hoje não recebi resposta.
O que lhe dizia nas duas cartas é pouco mais ou menos o seguinte.
O tipo de Leuzinger, escolhido para a República Federal, tem todas
as qualidades menos uma : servir para ela. É muito grande, e feita com
êle a impressão não teria o chic e o fini que V. deseja como artista.
À vista disto, resolvi sustar a impressão até receber resposta sua.
Leuzinger tem muito bom e elegante tipo, excetuando os dois que V. exige.
Se faz questão do elsevier, passemos para Lombaerts, que o tem . Se não ,
fiquemos mesmo no Leuzinger, que lhe imprimiria melhor que qualquer
outro , e, principalmente, com mais brevidade e barateza.
Com a carta trazida pelo Lamonier V. mandou-me amostra do papel
que prefere para os números especiais. Não escolhi, porém , daquele,
76 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

porque no Leuzinger há superior. O número de exemplares especiais V.


não fixou precisamente ; por isso contratei com Leuzinger que seriam
50. Importarão talvez em um acréscimo de 80 $ para toda a impressão.
Agora que tratamos de negócios, passemos a outro assunto. Casei-me
a 30 de março, isto é, dois meses antes do que esperava. Ainda não
tinha casa pronta, nem podia demorar o casamento sem que sobreviessem
obstáculos que poderiam ser insuperáveis. Por isso tive de ir para Tijuca,
onde demorarei de 30 a 4 de abril . Eis por que só hoje lhe escrevo.
Desculpe-me e abrace-me. Sou feliz ! a minha antiga e constante
aspiração realizou-se e a realidade apenas comentou e esclareceu o ideal.
Moramos à Rua de Paula Matos, 59, bastante longe da cidade para
não ser distraído por seu burburinho ; bastante perto para poder vaquer à
toutes mes occupations.
É uma casa sua ; digo-lhe em meu nome e no de minha mulher.
Participe em meu nome o meu casamento a Pereira da Costa, Camargo
Neves e Mercado, a quem breve enviarei a participação, por cartão.
Adeus. Responda-me logo, porque estou ansioso por corresponder à
confiança com que me honrou.
Bien à vous,
J. CAPISTRANO DE ABREU
Rio , 6 de abril de 1881.

Pode continuar a dirigir as cartas para a Biblioteca, aonde chegarão


mais depressa .

Assis Brasil ,
A sua carta de 7, hoje recebida, aliviou -me de grande pêso. Já
pensava que, como a de 29, a minha última se tivesse desencaminhado, e
hoje mesmo ia enviar-lhe uma registrada.
Desde que o renaissance dos Anais lhe agrada, vou às duas horas
ao Leuzinger. Esta semana espero remeter-lhe as primeiras provas. A
obra será impressa muito ràpidamente, não só porque tal é o costume
da casa, como porque assegurou -me Leuzinger que agora não tem muito
serviço. Os originais aqui existentes podem estar prontos até o fim do
mês, e os outros seguirão ao mesmo passo.
Quanto a dinheiro, parece-me por ora dispensável enviar mais : o que
tem aqui, e que no mesmo dia entreguei ao homem, é o suficiente para
dois terços da despesa total. O último têrço basta que seja entregue ao
terminar a impressão.
w

SENHORA CAPISTRANO DE ABREU


A
CARTAS ASSIS BRASIL E SENHORA 77

Já vê, portanto, que não há perigo de que, no meio de um noivado


que já passou, esqueça -me de sua incumbência. Ao contrário, há proba
bilidade de que quantas incumbências me forem cometidas sejam melhor
executadas, porque duplicaram os órgãos.
Quando virá Afonso Celso ? Estimo bem que seja ele o incumbido,
porque desejava bem conhecê -lo.
Adeus .

Recomendações aos nossos Pereira da Costa, Camargo Neves, Mercado,


Lamonier e ( posso mandá-las sem conhecê-lo pessoalmente ?) Júlio de
Castilhos.
Se quiser fazer-me um favor de que lhe serei muito grato, fique bom
do pé.
Bien à vous,
J. C. ABREU
Rio , 11 de abril de 1881.

Ia esquecendo o nome da m.me.


Aí vai uma participação manuscrita :
João Capistrano de Abreu e D. Maria Fonseca de Abreu
têm a honra de participar seu casamento
Rua de Paula Matos, 59.
Rio , 30 de março de 1881.

Ao amigo Assis Brasil 1 ,


Escrevo aqui mesmo a resposta à sua de 8, que hoje veio aqui trazer-me
o Afonso Celso .
Fui ontem ao Leuzinger para mandar começar a impressão; daqui
a pouco irei novamente para levar os originais recebidos. A semana em
que estamos, com os dias santos que a interrompem , é péssima para
adiantar o serviço ; mas ele assegurou-me que ainda me mandará provas
nela.

1. Escrita numa participação de casamento :


João Capistrano de Abreu
D. Maria Fonseca de Abreu
têm a honra de participar seu casamento .
Rio de Janeiro, 30 de março de 1881.
Rua de Paula Matos, n.° 59.
78 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Terei presente a sua recomendação para a folha de rosto, quando


fôr tempo isto é, para a outra semana. Primeiro lhe mandarei as
provas não entrelinhadas, para que, se quiser, V. possa fazer modificações
ou acréscimos.
A recomendação relativa ao formato, que exatamente deve ser igual
ao da Liberté, já a fiz ; porém repeti-la-ei com insistência.
Afonso Celso estêve na Biblioteca algumas horas. Conversamos bas
tante, mostrei - lhe algumas das raridades, e depois levei- o à secção de es
tampas, cujo chefe mostrou - lhe as curiosidades. Gostei bem do Afonso :
simples, expansivo, amável, etc.
Adeus. Quer ter um incômodo ? Entregue as participações inclusas
aos respectivos destinatários, e peça -lhes desculpa por não irem competen
temente envelopadas e subscritadas.
Rio , 12 de abril de 1881.

Assis Brasil ,

Como me prometera, hoje, às 2 horas, deu-me Leuzinger as primeiras


provas. Lendo -as ligeiramente, antes como amador do que como revisor,
reconheci que em geral estão limpas. À vista disto não continuei a
revisão, e dora em diante não exigirei mais duas provas de paquet. A
primeira lhe será enviada diretamente pelo impressor, apenas tirada. Para
a segunda, de página, é que reservarei tôda a atenção. Este arranjo, no
caso de V. concordar com ele, tem a grande vantagem de adiantar
grandemente o serviço.
V. já tem revisto e por conseguinte já deve estar a par dos sinais :
entretanto , como pode ser que haja algumas diferenças entre os daqui e
os de lá, vou dar-lhe uma pequena chave, que talvez seja desnecessária .
Sinal de período: [
Para tirar :
IH
Para unir : al
Para separar : ou

Para letra saída :


1

Para letra invertida :


CARTAS A ASSIS BRASIL E SENHORA 79

Agora outro ponto. Pela primeira vez li hoje da República Federal


e, francamente, gostei muito. O prólogo está como uma de suas grandes
poesias, com o mesmo sôpro vasto, inspiração concentrada e soído me
tálico . Quanto ao corpo, existem entre nós divergências que ainda não
posso calcular até onde irão ; mas devo reconhecer que V. argumenta com
lucidez, com elevação e calor, que torna simpáticas as suas idéias e muito,
mesmo muito interessante a leitura.
Tenho que dar- lhe uma notícia : o livro do Araripe sobre a Guerra
dos Farrapos está pronto até o fim do mês. Quero ver se consigo que
V. seja a primeira pessoa de S. Paulo que o leia. Deve ter 250 páginas de
texto, e 500 aproximadamente de documentos e peças justificativas. Os
documentos só sairão mais tarde.
Disse -me ele ontem, no bonde, que sabe que os rio -grandenses não
hão de gostar muito do seu livro ; mas que não se preocupa com isto,
porque, no meio de reclamações interessadas, hão de vir clamores justos
e talvez documentos curiosos, que tragam a luz e a verdade, único fim
que, na qualidade de membro do Instituto, teve ele em vista.
Adiós.
Lembranças a Pereira da Costa, Camargo Neves, Mercado e Castilhos.
Recomendações de minha mulher.
Bien à vous,
J. C. ABREU
Rio , 20 de abril de 1881.
Por circunstância independente de minha vontade não seguiu ontem
esta carta . Junto ainda outras provas que ontem me foram entregues.
Perguntando a Leuzinger quando poderia estar tudo pronto, disse-me
éle que, se não houver afluência de matéria e se V. não demorar as
provas em S. Paulo, talvez em fins de maio ou principio de junho. Ele
insta por uma solução quanto às notas. Adiós.

Assis Brasil,
Não tenho podido lhe escrever , por muito ocupado. V., por seu
lado, não tem enviado provas, talvez à espera de carta minha. Leuzinger
me disse que já lhe enviou até a página 135, na 6.a e no sábado da
semana passada. Hoje deve mandar-lhe mais, não sei até onde.
Estão tiradas as 3 primeiras folhas ; presumo que a 4.a sê- lo - á hoje.
Hoje mesmo revi a 5.a e 6.a. Revi- as conscienciosamente duas vezes ;
80 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

apliquei os princípios que V. segue : entretanto deixei passar alguns nos,


nas, etc. isto até a 3.a ; da 4.a por diante acho q [ ue isso ] não se
reproduzirá.
V. não se zanga comigo ? Embora Alencar tenha dado carta de mau
revisor em uma nota do Sertanejo, penso que fiz o possível para des
menti- lo .

Leuzinger vai a uma folha por dia. A continuar no mesmo passo, e


a não haver demoras em S. Paulo, penso que daqui a 13 dias estará
pronta a impressão. A impressão não a brochura . Esta exigirá ao
menos uns 5 dias .
V. quer brochura comum ou francesa ?
Foi hoje publicado o livro do Araripe. Se ele tiver mandado para
a Gazeta, hoje mesmo lhe enviarei o exemplar que prometi. Se não, irei à
casa dêle, e amanhã mandarei.
Não tenho gostado muito dele, por causa de certos epítetos com que
acompanha a narrativa, e que mostram verdadeira malevolência.
O texto consta de 250 páginas. Os documentos ainda não foram
publicados.
Adiós .
Lembranças, etc.
Bien à vous ,
J. C. ABREU
Rio , 5 de maio de 1881.

Meu caro Assis Brasil,


Em sua carta escrita logo depois de sua chegada a S. Paulo, disse
me V. que ia escrever -me longamente no mesmo, ou no outro dia. A
espera da carta anunciada, não respondi-lhe até agora.
Acabo de chegar da casa do Leuzinger, donde trouxe 10 exemplares
para distribuir pelos jornais. Já entreguei o do Globo ; vou entregar
ao Araripe Júnior o dêle, que servirá ao mesmo tempo para a Gazeta
da Tarde ; o que assim economizei dei ao Teixeira de Melo. Os outros
distribuirei amanhã. Deixei um na vitrine de Faro e Lino para ser
exposto : amanhã sòmente é que será exposto à venda.

1. O papel está mutilado neste trecho.


81
CARTAS A ASSIS BRASIL E SENHORA

No Faro acharam barato o preço de 2 $, que, antes de receber sua


carta, eu tinha marcado. É, de fato ; porém Leuzinger me disse que o
volume sai a 500. Entretanto estou pensando em pô - lo a 2.200 , porque
tem que se dar a comissão de 20 % e é melhor que pague- a o público
do que V. ou o Clube.
Penso que o livro será bem vendido, não só porque foram muito
apreciados os extratos que deu a Gazeta, como porque o preço torna - o
muito acessível. Se esta hipótese realizar -se, resolvi, e peço que aprove
a resolução, levar mais alguns exemplares do Leuzinger. Se suceder,
porém , o contrário, pois tudo é possível neste inverossímil Rio de Janei
ro, é melhor, passado certo tempo, levantar o preço .
Estive ontem conversando sobre a revolução do Rio Grande do Sul
com o Major Fausto de Sousa. Disse-me ele que, na restauração de
Pôrto Alegre, Manuel Marques não passou de instrumento . Quem orga
nizou todo plano e tomou todas as medidas foi o Marechal ou Tenente
General Francisco de Chagas Santos. Disse-me êle que os documentos
comprobatórios desta asserção estão no Arquivo Público, e foram con
sultados e são utilizados em uma biografia do mesmo Chagas que breve
mente será publicada.
Outro fato sobre que tratamos é o do assassinato de Vicente Ferrer.
Diz ele que este não foi simplesmente assassinado, mas esquartejado,
salgado, embarricado e enviado à família. Por falar em Fausto ... ele
deu -me um exemplar da Baía do Rio de Janeiro. Como já possuía o
livro, entreguei o exemplar ao Leuzinger, para lhe ser enviado quando
forem os outros exemplares da História da República Rio - grandense.
Adeus. Minha mulher já vai melhor, porém ainda não se pode
dizer que esteja boa. Os pés continuam inchados e a marcha ainda é
difícil. Honorina vai bem, e está muito viva e alegre, principalmente
agora que passou da cama que a tolhia para uma esteira onde pode
espojar- se à vontade.
Adeus .
Recomendações a Bartolomeu, Pompéia, Alcides, Fabrino.
Bien à vous ,
J. CAPISTRANO
Rio , 19 de setembro de 1882.

9 - 1.•
82 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Meu caro Assis Brasil,


Respondo a sua carta de 24, ontem recebida.
Por uma casualidade encontrei-me com Carlos Jansen, que era muito
amigo de Berlink, e trabalhou com ele no Cruzeiro. Perguntei- lhe pela
casa da viúva, e pela biografia do Duque de Caxias. A casa é na
Rua da Pedreira da Glória ; é, porém , escusado ir lá, porque a viúva de
nada sabe. Há algum tempo, disse -me Jansen, ela mandou-me perguntar
se eu tinha o manuscrito, que não aparecia. Não tinha, nem sei quem
tem ; entretanto suspeito que alguma pessoa do Cruzeiro apossou -se dêle,
para depois fazer figura .
Relativamente a Cunha, nada lhe posso dizer agora. Vou falar com
o Paz, que se deve dar com ele, ou com Bocaiúva. Do que houver de
novo lhe darei noticia.
Deixei apenas 50 volumes da História da República Rio -grandense,
não porque não se possa vender mais, porém porque há muita gente que
não compra obra de mais de um volume, sem que esteja completa.
Há dois dias esteve aqui Romaguera, com quem foi ao Instituto,
apresentá - lo ao Martins. Nada, porém, pôde ele fazer ainda, porque
Martins está fora por motivo de doença, e só depois de voltar é que
poderá ser comunicado o livro.
Vou escrever ao Major Fausto para que ele me diga mais alguma
coisa sobre o papel do Chagas, e sobre o assassinato de Vicente Ferrer.
O que V. diz sobre este último ponto é muito razoável, e é talvez a
verdade ; devo, porém , ' declarar que o Major Fausto deu-me apenas como
coisa corrente na provincia. O que se refere a Chagas é que ele dá
como resultado de estudos e documentos.
Mudamo-nos há cinco dias para a Rua de D. Luisa, n.° 13, onde
está também a família de minha mulher. Esta vai muito melhor, mas
ainda não está de todo boa.
Adeus.

Lembranças aos amigos.


Bien à vous,
J. C. DE ABREU
28 de setembro de 1882.

Está aqui o Coruja, com quem conversei sobre o caso de Vicente


Ferrer. Diz êle que correu em Porto Alegre que foram - lhe cortadas as
83
CARTAS A ASSIS BRASIL E SENHORA

orelhas e que Marques Alfaiate Manuel Marques Pereira Lima


as teve em seu poder.

Meu caro Assis Brasil,

Já mandei por nosso amigo Bulhões Jardim a espingarda que V. en


comendou .
Será a própria ?
Tenho minhas dúvidas, porque não encontrei nela cousa que, de
longe ao menos, pareça com chokebored.
Estava esperando tirar a sorte grande para ir assistir à sua formatura.
Vă esperança : sinto-o, não pelo dinheiro, mas pelo que perco. Ubah
dino do Amaral está com a idéia de publicar anualmente alguns livros
sobre História do Brasil, para servir de veículo a uma propaganda.
V. quer se encarregar de escrever a história da revolução do Rio
Grande, em um volume, como o seu ou o do Alcides Lima ?
Responda depressa, e responda sim.
Responda também se quer escrever a sua viagem para a Gazeta
e se podemos dar a notícia.
Adeus .
Lembranças a Bartolomeu , Pompéia , Alcides, etc.
Bien à vous,
J. C. DE ABREU
19 de novembro de 1882.

Meu caro Assis Brasil,


Peço - lhe mil desculpas da demora na resposta a sua muito amável
carta de dezembro. Impediram -me de dá - la mais cedo uma correção
de provas maçantes, que até o dia 10 tomava-me todo o dia, depois pre
parativos de viagem.
Desde o dia 14 estou aqui na Serra dos Órgãos, a 800 metros do
nível do mar, a 6 horas da estação mais próxima da estrada de ferro ,
a 2 dias dos jornais e do pão fresco.
Aqui vim procurar o sossego moral, que há um ano me faltava, e
trabalhar. Tenho trabalhado efetivamente : estou estudando bacairi com
84 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

um índio de Mato Grosso e já vou bastante adiantado ; estou estudando


guarani, que desta vez espero conseguir furar ; estou, além disso, tradu
zindo para nossa coleção o livro do Dr. Goeldi sôbre as aves do Brasil,
e já vou bem adiantado .
Foi o Dr. Goeldi quem me arranjou casa aqui, onde tenho, de gra
ça, verdura quanto a criada pede, e lenha quanto o indio vai buscar no
mato. O mais tudo compro no depósito, na colônia. Vim com meus
cinco filhos, duas criadas e o índio, o que quer dizer que somos 9 pessoas.
Ora, nossa despesa semanal é de 50 $, uma maravilha de barateza.
Dou - lhe agora informações quanto a nossa coleção, que se intitula
Monografias Brasileiras. Seu intuito é preparar o centenário do desco
brimento do Brasil, o que quer dizer que admite quanto trabalho original
lhe fôr oferecido sôbre o Brasil e não tem número de volumes mar
cado. Temos como certo 10 vols. de Goeldi sôbre a História Natural
do Brasil, que irão dos macacos aos infusórios ; A História do Governo
Provisório, pelo Rui Barbosa, 1 vol .; A Caça e a Pescaria no Sul do
Brasil, 2 vols. pelo Dr. Travassos; Legislação Federal e Estadual, pelo
Macedo Soares ; Geologia e Geografia Física do Brasil, pelo Derby ; Flora
Amazônica, pelo Barbosa Rodrigues ; Ceará, por Antônio Bezerra ; Pará,
por José Veríssimo ; Folclore, pelo Silvio, etc.
Da coleção fará parte uma monografia completa da cidade do Rio
de Janeiro, de que já estão tomadas águas, esgotos, iluminação, bondes,
pelo Alvaro de Oliveira ; indústrias, pelo Getúlio das Neves ; a consti
tuição médica será tratada pelo José Lourenço ou Rocha Faria ; para
os outros volumes ando à procura de colaboradores. Já escrevi para
a Alemanha ao dr. C. von den Steinen, para tratar da etnografia sel
vagem , em que ele é hoje o primeiro especialista. Com certeza se encar
regará de diversos volumes sobre a história militar o Paranhos, que é
quem melhor a conhece.
Já vê que V. não pode deixar de escrever o volume, e ditatorial
mente já o inscrevi entre os colaboradores cujos volumes podemos garan
tir. Num volume de 200 a 300 páginas V. traçará um quadro brilhan
tíssimo e completo daquele notável movimento. Há pontos que não lhe
parecem apurados suficientemente ? Que importa ? Faça como os na
turalistas, diga em nota : este ponto está por liquidar. Fica assim a sua
responsabilidade salva ; mais ainda : chama-se sõbre aquela parte a atenção
dos investigadores futuros. Por todos estes respeitos, está V. condenado
a escrever o livro, e estou certo que há de escrevê-lo. V. poderá mandar
imprimi-lo aí mesmo em Buenos Aires ; logo que o primeiro volume
CARTAS A ASSIS BRASIL E SENHORA 85

estiver pronto, mandar-lhe-ei para servir de modelo . Caso a publicação


seja feita aí, só lhe peço uma cousa : veja se não sai nem uma vez
Brazil. É tão feio éste 2 , е z é inicial de tanta coisa feia !
Não posso ser extenso por hoje. Aqui só há correio de 2 em 2
dias, e ainda preciso de escrever outras cartas para aproveitar a monção.
Meus cumprimentos a ex.ma família.
Bien à vous ,
C.

Colônia Alpina ( S. Rita de Teresópolis ) , 23 de janeiro de 1893.

Meu caro Assis,

Do objeto desta carta já lhe falei quando estivemos juntos no Rio ;


é o seguinte :
Varnhagen, em 1839, viu na biblioteca da Ajuda um exemplar ma
nuscrito da História do Brasil do Frei Vicente do Salvador ; depois
nunca mais o encontrou . Hoje o livro está impresso ( por uma cópia
extraída da Tôrre do Tombo ) em um dos volumes dos Anais da Biblio
teca Nacional que V. fàcilmente poderá ver na daí ou na Academia de
Ciências. Infelizmente, à História faltam alguns capítulos : no livro IV,
os de 25 a 31 ; no V, os de 10 a 17 ; o III mesmo, embora a numeração
esteja seguida, não me parece completo.
Escrevo -lhe, pois, pedindo que examine se neste decurso de mais
de cinqüenta anos reapareceu tão esquivo códice e se nêle estão os capí- :
tulos que faltam . Se isto suceder ( nem quero pensar nisto, pois teria
um ataque de alegria ), ficar-lhe-ia muito obrigado se V. me obtivesse .
cópia, o mais depressa possível.
Espero uma nota do Rio para novamente escrever-lhe sôbre outro ,
manuscrito da Ajuda.
Esta carta sai de Pôrto Novo do Cunha, onde, por não ter alunos
êste ano, vim passar uma temporada com um patrício, amigo de colégio ;
estarei de volta no Rio lá para o fim do mês.
Como vão suas pequenas ? Ainda se lembram de Abril ? Ele está
aqui comigo, feito um verdadeiro caipira, rodando café para criar mús
culo e coberto de carrapatos, e brigado com os sapatos.
Adriano enfiou por uma série de bilontrices, que me obrigou a man
dá -lo para a Escola de Sargentos.
86 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Honorina está uma moça de quase 16 anos ; já terminou os estudos


colegiais, e estou fazendo um esfôrço, para ver se mando - a passar um
ano na Inglaterra, no colégio em que estão as filhas de um amigo.
Matilde V. nunca viu ; tem seis anos e saúde.
Eu sigo de morro abaixo.
Bien à vous,
Cap.
Pôrto Novo, 4 de julho de 1897.

Meu endereço no Rio é caixa 590 ( Alves & Cia., Gonçalves Dias,
46 ) ; continuo a residir Laranjeiras, 2.

Amigo,
Há hoje três meses exatamente embarcava no Itapaci , com mais
vontade de sair do Rio do que de chegar ao Rio Grande. A terra gaúcha
deu -me o troco : devíamos estar aqui a 31 ; só anteontem , 3, pela ma
drugada, defrontamos o gigante de pedra.
Em casa não encontrei novidade. Minha sogra parece bem disposta,
tanto quanto pode está-lo quem já completou os oitenta e oito. Ainda
não falei com o médico, que me consta achou o estado geral muito
satisfatório .

Ontem e hoje, ao acordar, minha primeira impressão foi de conti


nuar em Pedras Altas. Hoje tive uma prova convincente do engano,
sentindo o começo de ataque reumático . Felizmente não estou impedido
de ir, às 10 horas, à missa da filhinha do Rodrigo Otávio, vitimada,
na chácara comprada pelo pai o ano passado , por um tifo quase fulmi
nante, que ia levando também a mãe e a outra irmā. Se amanhã puder
ir ao Engenho Novo visitar a viúva do Veríssimo, esperarei paciente que
o ácido úrico se elimine à vontade.

Mário não quis enjoar e mais ou menos conseguiu seu fim . An


tunes das Môças-Velhas, que nunca vira o mar, parecia ter sempre vivido
a bordo . Todos os cinco companheiros parecem inteligentes; são muito
unidos, pretendem morar juntos. Prometem uns guapos rio -grandenses.
Mário ficou provisòriamente com Alípio. Uma dificuldade que havia
sôbre a matrícula, porque o programa do quinto ano não é exatamente
igual nas escolas do Rio e Pôrto Alegre, já está sanada.
CARTAS A ASSIS BRASIL E SENHORA 87

Esperava encontrar Bulhões já de volta de Goiás, mas só anteontem


partiu . Jantamos juntos em casa do Natal. Sõbre candidaturas presi
denciais informou que S. Paulo apresentará de novo Rodrigues Alves ;
S. Paulo, que mostrou que Rodrigues Alves ainda é um nome, dizia
Glicério, que parece ainda não irá desta vez ; Rui não desiste ; Dantas
persiste ; Nilo, que está precisando bem de tronco e viramundo, julga-se
com direitos superiores a todos.
O caixão de carvão chegou bem. Arrojado está em Petrópolis e
ainda não o vi: talvez o encontre na missa de Vera , daqui a pouco :
logo que souber da minha chegada dará notícias.
Espero que D. Lídia já esteja de todo restabelecida e a infanta
prepare -se dignamente para o papel a desempenhar. A toda a família
só desejo que continue como até agora, sadia, feliz e alegre. A todos
muitas saudades. Minhas saudades das cousas rio -grandenses associam
se às ameixas verdes de Pedras Altas e aos angicos de S. Gonçalo .
Vou para a missa .
Bien à vous,
Cap.
Rio , 5 de abril de 1916.
11

Senhora [ Assis Brasil ),


Sei que tem passado bem e a tenra Lina vai às mil maravilhas : que
seja a chave de ouro é o meu desejo.
Recebi uma cartinha de Joaninha, em inglês : quando vim do Ceará
ontem foi o 41.º aniversário de minha chegada ao Rio escrevia
bem regularniente esta língua, depois de mais de um ano convivido com
Shakespeare e Dickens. A idade levou -me esta e outras prendas. Vou
tentar com algum esforço corresponder à gentileza da Xaràzinha.
Segue hoje pelo correio Les Trois Mousquetaires ; a continuação
irá depois.
Aqui não tem feito calor e tem chovido bastante, mas acho tudo
monótono e aborrecido ; não sei se o mal é externo ou interno ; esperava
outra cousa .
88 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Peço -lhe o obsequio de recomendar-me às demoiselles e masters:


hei de escrever a cada um.
Beija-lhe as mãos, saudoso, o amigo agradecido
C. DE ABREU
Rio, 26 de abril de 1916.

Assis amigo,
i

Recebi sua carta e fiquei satisfeito com as notícias. Arrojado esteve


aqui, mostrei -lhe o caixão de amostra de carvão, ficou de mandar buscá
lo ; provavelmente o fará na próxima semana, quando pretende descer de
Petrópolis.
Está muito animado ; a nova invenção norte-americana resolve a ques
tão pelo lado técnico ; um subdiretor da Central foi aos Estados adquirir
a patente. Se o governo a franquear a todas as companhias ferroviárias,
como ele aconselha, pensa que entraremos em era nova. A riqueza natu
ral é enorme, por aqui carvão existe, da Bahia para o norte, em quase
todos os estados. Se a administração fôr bem encaminhada, pensa em
deixar a estrada para se dedicar à mineração.
Calógeras encontrou por toda parte sinais da simpatia e consideração
em que V. é tido no rio da Prata. Voltou contente com o êxito da
conferência. A comissão brasileira, embora pequena, portou -se galhar
damente : o saber jurídico de Inglês de Sousa foi universalmente reco
nhecido e acatado ; Paula e Silva mostrou em questões aduaneiras conhe
cimentos extraordinários ; Custódio de Magalhães completou bem a tríade.
Bertino Miranda é que leu os jornais argentinos; diz que Calógeras
representou brilhantemente seu papel, e em muitas sessões foi a primeira
figura da conferência.
Diz êle que a comissão brasileira foi tratada com especial carinho.
Reinou sempre a concórdia entre os Congressistas, houve sempre o desejo
de conseguir unidade — trabalhou -se com proveito ; certos pontos, alguns
bem complicados, foram resolvidos : os outros postos a bom caminho.
Madame Calógeras achou a vida muito cara , o duplo da do Rio :
as senhoras portenhas pareceram -lhe esquivas, a separação dos sexos tal
vez excessiva. Gostou mais de Montevidéu que de Buenos Aires : na
capital do Uruguai tinha a impressão de achar -se entre patrícios. A
Câmara vai começar e espera-se sessão agitada : mestre Wenceslau não
economiza pensamento e na ocasião oportuna fica entalado, porque nada
CARTAS A ASSIS BRASIL E SENHORA 89

previu. Não me esqueci de suas encomendas, mas o reumatismo, aliás


pouco doloroso, prendeu -me uns dias em casa .
Vi hoje que afinal o governo paulista decidiu -se a encampar a estra
da de ferro dos Campos-do - Jordão. Ultimamente, assegura Jaguaribe,
a viagem custava 200 $.
Ele está aborrecido pelas demoras na constituição da empresa. Aquie
tei-o dizendo que V. não estava impaciente: no Rio Grande tem muito
que fazer e cousas mais urgentes.
Também os patos-arminho levantaram o acampamento. Voltarão,
estou certo ; quem não fará o mesmo, podendo ?
Os meus estão sem novidades. D. Adélia continua ; o médico nos
assegurou que ela não tem tumor ; neste caso a sua vida pode prolongar
se ainda por muitos anos.
Saudades, muitas saudades a todos.
Bien à vous,
CAP .
Rio, 26 de abril 1916 .

Senhora,
Há muitos anos sentia vontade de fazer uma nova edição da História
do Brasil de Fr. Vicente do Salvador, a respeito do qual escrevi a Assis
apenas chegou a Portugal.
Apareceu no fim do ano uma ocasião favorável. Agarrei-a com
unhas e dentes, impondo apenas uma condição, a do trabalho ficar con
cluído em fevereiro . Não ficou, nem ficará em março, nem mesmo em
abril .
Não houve demora da parte da impressora nem da minha. Apenas
no principio pretendia juntar meia dúzia de páginas e creio que juntarei
cem : páginas muito fatigantes, cheias de datas, cheias de citações, que é
preciso verificar a cada prova, a cada momento, a cada passo.
Estou na página 415 , não escaparei das seiscentas. O editor quer
dar-se ao luxo de só imprimir a primeira fôlha quando a última estiver
acabada, a última. Não me desagrada isto ; ao contrário, vou ter a
satisfação, que sempre invejei a Renan , de referir-me no principio a
páginas do meio e do fim do volume.
Assim, pela força das coisas, estabeleceu-se o dilema : Pedras Altas
ou Frei Vicente ? História do Brasil ou veranico de maio ? Quando
90 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Mário partiu, estavam vitoriosos Pedras Altas e o veranico. Depois re


fleti melhor e resisti à tentação. Lá está o prazer , o gozo, a alegria. O
dever está aqui e aqui é o meu lugar.
O editor está veraneando e antes de 15 de abril não voltará a S.
Paulo nem começará a impressão. Até lá terei feito tudo a que sou
obrigado. A impressão durará umas duas semanas. Irei acompanhá -la
na terra dos Bandeirantes, aonde, uma noite de dezembro - há trinta
e oito anos ! não me inveje, se fôr capaz — conheci certa pessoinha ...
Irei para a Paulicéia, à guisa de Dr. Pedrinho, à espera da minha Lina.
Já estou pensando em outro trabalho ainda para este ano, se as
comunicações se regularizarem com Portugal, e os submarinos não in
tervie : em em meus negócios. Tomarei todas as precauções para acabar
em tempo.
Em conclusão : o veranico fica adiado, não renuncio a ele.
Tanto quanto se pode prever, estarei em Pedras Altas a 21 de dezem
bro lá ficarei até 21 de março do ano dos dois nove. O veranico ficará
para mais tarde, depois do intersticio regulamentar, se lá chegar. Se
não chegar, sairei dêste mundo irado e quase insano , como diz um poeta
que não gosto de citar.
Adeus, Assis ! Adeus, moçame! Adeus, Joaquim, Adeus, lídias !
Com muitas saudades beija -lhe as mãos o amigo velho
C. DE ABREU
Rio, 23 de março de 1918.

Senhora,

Recebi sua amável cartinha quando estava de partida para S. Paulo .


Demorei a resposta para poder mandar -lhe noticias de Francisco ; mas
êle, mais vivo, preferiu levá-las pessoalmente. Desta vez a alegria maior
não foi a da família ; creio que a do senhor Felício excedeu a de todos,
se as complicações permitiram antecipar de outubro para junho a entrada
no paraíso - as complicações do enxoval.
Tive agora ocasião de tratar mais de perto Galeno e Brás. Exce
lentes rapazes. Os amigos novos não compensam os que têm desapare
cdo, quase todos. Jaguaribe estava em São Vicente, os outros ou mu
daram - se para outras partes, ou para o outro mundo . Apesar de tudo
São Paulo é sempre S. Paulo e desde 80 nunca voltei de la descontente.
CARTAS A ASSIS BRASIL E SENHORA 91

Meu trabalho, a nova edição do frei Vicente do Salvador, está


concluído pela parte que me toca. Teve uma vantagem : garantiu a via
gem do Rio Grande. Se não estiver lá no começo de dezembro é por
que haverá cousas extraordinárias no intervalo. Outros compromissos
contraí, mas hão de estar solvidos até fins de novembro.
Cheguei à Paulicéia em 20 de junho e na véspera o termômetro
baixara a 50. Voltei no noturno de 24'e na madrugada de 25 caiu a
geada que tudo assolou . Salvei-me com uma ligeira constipação, que
cedeu logo. Em suma, sua carta só tem boas notícias, salvo no referente
ao pobre Mário, a quem só se pode desejar que a provação não se
prolongue.
Pelo que vi aqui de Cecília, imagino as diferenças que vou encontrar
em Pedras Altas. Lina dando milho ao gado de asas, Joaquim um Hér
cules, Joaquina disse -me Alipio uma sábia, que leva à parede o
Dr. Pedrinho ! Tudo muito bom, muito direito , muito sadio : só uma
nota discordante : as viagens contínuas de Assis ; ou terei de acompanhá
lo em todas as digressões ou de passar a maior parte do tempo sem vê-lo.
Desagradável dilema.
Os meus vão sem novidade.
Minha senhora sogra continua na situação rara de não saber que
está doente : o médico dá-lhe resistência para mais de três anos.
Matilde e Abril continuam dispostos a não mandar degradados para
êste vale de lágrimas.
Adriano está na terceira.
Muitas saudades à prole.
Adeus, Assis !
Beija-lhe as mãos na esperança de breve encontro
o amigo velho
C. DE ABREU
Rio, 11 de junho de 1918.

Senhora,
Anteontem , à hora do jantar, Mário telefonou-me sua amável car
tinha de 25 e grande foi minha surpresa recebendo a resposta do que
deixara em Cacequi. Não julgava o correio rio-grandense capaz de tais
áfricas.
92 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Ontem passamos grande parte do dia em Ibirapuitã e vi o famoso


galpão, bisei o famoso banheiro e conheci o tão interessante Garrido.
Numa pedra está aberta a data 5 de janeiro de 1919 ; num traço, marcada
a posição do sol naquele dia.
À ida combinei com Mário que hoje, sexta -feira, pernoitaria em casa
do Diogo e com Maneco que partiríamos amanhã para Uruguaiana.
Mário esqueceu-se, tem telefonado, mas ainda não apareceu, anda à
procura de condução. Seria tão fácil irmos a cavalo !
Também Maneco tem telefonado mas ainda não o vi . Pouco im
porta. Amanhã tomarei o trem com Assis e sobrinhos, e chegarei a meu
destino sem cicerone.
Da Estância Nova chegamos hoje e encontrei no velho Melano o
mesmo bondoso amigo que conhecia, e muita amabilidade de parte da
senhora . Posso dar-lhe a agradável notícia que está comprada para
Eurípides a estância de Ptolomeu, em condições favoráveis para o fu
turo da família.
Muito obrigado à gentil Cecília pelo trabalho que tomou em procurar
meus papéis. Pretendo na próxima quinta -feira partir de Uruguaiana
diretamente para Bela Vista ; com Ptolomeu visitarei S. Gabriel; sexta
feira ficarei em Bagé. Peço - lhe o obsequio de neste dia mandar ao Dr.
Osório as cartas, só as cartas, que tiverem chegado para mim.
Adeus, nova geração ! Abraça-a 'e beija-lhe as mãos o amigo muito
amigo
C. DE ABREU
Alegre, 28 do capenga de 1919.

Senhora,
Dr. Pedrinho foi buscar-me na estação e a ela me trouxe no sábado.
Já tem boleeiros.
A primeira pessoa encontrada foi Ptolomeu, que me deu notícia
da surpresa do Epitácio. Talvez hoje saibamos mais alguma cousa em
Cacequi. Do prato à bôca, ... diz um provérbio, que devem meditar
os dois candidatos .
Na parada encontrei Leônidas e Amaro. Fui para casa de Leônidas
e lá pernoitei. Não entrava isto em meu programa, porém foi muito
bom , porque fiquei conhecendo - o melhor e fiquei muito bem impres
CARTAS A ASSIS BRASIL E SENHORA 93

sionado. Manifestou o propósito firme de pegar-me uma indigestão e


quase conseguiu -o.
Ontem Paulo foi buscar -me no Recanto. Sempre o mesmo homem
que da primeira entrevista me cativou. Aqui encontrei D. Maricas e
Laura, que espera com paciência o desenlace jacobino. Talvez não vão
desta feita a Pedras Atlas, porque Diogo quer partir para Porto Alegre
a 28 e não irá senão para casa dela, se ela estiver presente.
Não esqueci o baicuru e Paulo mandou uma expedição atrás dele,
que vem carregada de despojos. Diz Laura que a colheita dará para
uma porção de ano . Corta -se uma rodela muito fina, dela faz-se um
chá azul, de aspecto muito simpático. Excelente depurativo do sangue,
será certamente utilizado por toda a família. Sou também pretendente
a uma batata para o Rio.
Pegaram ontem duas mulitas que levo como troféu. Ignoro se
apreciam esta iguaria o Assis e companheiros. Eu vou muito emproado :
para o assado com couro, que pode vir ou não , levo o assado com
casco, que pode fazer-lhe frente.
Adeus, nova geração ! Beija-lhe as mãos e abraça-a o amigo muito
amigo,
C. DE ABREU
S. Gonçalo , 28 do capenga de 1919.
Paulo pede que não esqueça as muitas saudades.
Vai baicuru branco e encarnado, éste em batata e ramos. Este é

preferível.

Senhora ,
Pelos meus cálculos já acabou com a maçada de Pelotas e está de
volta a Pedras Altas.
Ainda não tomei pé na velha casa , não vi todos os amigos e não
escrevi uma linha de bacairi.
Vi Domício muito ligeiramente ; está bem disposto. Bulhões acha - o
triste. É natural : a família ainda não chegou ; a ausência desfalca as
amizades ; nem todos os amigos procuram os aconchegos oficiais.
Rui é esperado esta semana. O Correio da Manhã declarou - o ontem
vencedor e ele vai levantar a questão da incompatibilidade para a qual
conta com o Supremo Tribunal, asseguram . Quem não pode trapaceia,
diz o provérbio. Afinal vai perdendo o interesse para mim. Só pro
94 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

gride no xingamento. Quer fazer concorrência a Gregório de Matos,


velho poeta baiano, contemporâneo do Padre Vieira, e conhecido por
Bôca do Inferno.
Mando hoje Jane Eyre, com o discurso de Joffre e os lidos ontem
na Academia. Já deve ter chegado Petit Pierre, de An. France.
Abraço nosso querido Assis.
Muitas saudades à nova geração.
Adeus, rálgicas 1 !
Abraça - a e beija as mãos da boa amiga o muito amigo,
C. DE ABREU
Rio, 16 de abril de 1919.

Senhora,
Comecei há dias uma longa carta que não acho. Vou resumir-me
nesta .
Depois de vinte e seis meses de ausência apareceu -nos Matilde, que
demorou duas semanas. Não teve ainda filho, nem, penso, há ameaço .
O marido tem encontrado trabalho, ela tem aprendido a economizar e
vivem folgados. Aprígio reclamou agora o prêmio de viagem a que
fêz jus, e, obtido o dinheiro e melhorada a situação geral do mundo,
pretende ir a outras terras melhorar seus conhecimentos. Nos dois
anos Matilde ganhou bastante : o casal deixou-me a impressão de con
tentamento e felicidade.
Minha senhora sogra passa sem novidade: não lê mais, ouve pouco,
reza cantos, joga paciência, recita versos ; pode viver ainda muitos anos,
sem sentir a vida como carga nem dar trabalho a outrem. Cecília recon
cilia-se com a vida : tem 27 anos ! Um cunhado foi nomeado agente do
Lloid em S. Francisco . Pretende ir visitá-lo com outra irmã. A excur

são, levando-a para um lugar aonde Abril nunca estêve, certamente a


restabelecerá.
O Barão não tornei a ver desde a passagem do Jaime e do Ria
chuelo. Não se deu bem à beira-mar e está morando com Frido Curo,
que já não tem pressa de comprar casa.

1. Capistrano de Abreu procura reproduzir a pronúncia estropiada da palavra


lógica conforme dizia a empregada de Assis Brasil, na época em que ele lecionava
aquela disciplina às filhas do seu amigo e correspondente.
CARTAS A ASSIS BRASIL E SENHORA 95

Ptolomeu deixou de jer promovido : o ministro de sua confiança,


para cuja carreira tanto concorreu junto ao Bento , desculpa -se com o
Delfim , o que é falso, e promete sua influência com o Calógeras, o que
é cômico.
Ptolomeu só voltará para o Rio Grande depois da chegada do Caló
geras. Pretendia reformar-se quando promovido a tenente -coronel : agora
só esperará a promoção de major.
Calógeras, no Ministério da Guerra, satisfaz uma das suas grandes
ambições. Muitas vezes tratei de dissuadi-lo disto. Acho - o digno do
cargo ; ele mostrará se é capaz. Em todo caso, como tenho muito me
do de gente armada, tratarei de evitar-lhe o contato.
Ainda não vi Domício depois da derrocada, hem desejo. Escrevi-lhe
uma carta, dizendo que o procedimento de Epitácio não foi de gentleman.
Confiança não se impõe ; mas ele podia muito bem avisar em tempo a
Domício, evitando que a senhora viesse com automóvel, chofer, trezentos
ou quatrocentos volumes para a instalação, etc.
Respondeu m
- e que não sentia a saída, mas a surpresa ; que a senho
ra sentiu mais o caso por causa dele, etc.
Como vejo tudo com muito menos calma, não tenho procurado vê-lo,
ou antes tenho procurado não vê - lo .
Sôbre Epitácio não posso dar-lhe informação. A impressão causada
pelo ministério foi, no todo, favorável. Os políticos estão, naturalmente,
furiosos. Se me encontrar com Pires do Rio, que é muito amigo de
Arrojado, vou desafiá-lo a criar uma agência postal em Pedras Altas.
É possível que as minas de carvão tomem agora incremento e venham
a furo as maravilhas de Jacuí.
D. Faustinha bem, e Maneco idem. Mário acho melhor que quando
ia à granja, visitar D. Lola.
Pedrinho vai começar para a semana a impressão do livro e pode
imaginar como anda contente , antecipando as delícias de assado de couro
de padre.
Só Pedras Altas dá-lhe saudades e o inquieta. Receia muito que
não baste o tempo que Cecília vai passar no Cassiano ; desejava, e muito,
saber do diagnóstico de Galeno, ou de algum médico senhor da ciência,
a respeito de certa pessoa que lhe toca muito de perto. Umas férias
com Francisco em Guarujá, ou, para evitar luxos, em Itanhaém, resol
veriam muitas questões interessantes.
E Frontin ? Não tenho noticias dele.
96 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Um amigo que visitou a senhora trouxe a impressão de leoa fera


e brava .

Anuncia -se greve geral para domingo ; se ele puder, há de vir tam
bém para a rua : coragem não lhe falta. Pela primeira vez fez cousas
que podem ser desmanchadas e a sensação nova deve ser violenta.
Adeus, Assis !
Adeus, rálgicas! Adeus, nova geração !
É verdade que Lina já come com apetite ?
Abraça e beija as mãos da venerada amiga
Seu muito grato
Cap.
Rio, 7 de agosto de 1919.

Senhora,
Há meses não recebo notícias suas, nem do Assis, nem de Pedras
Altas, senão por jornais e telegramas : incluo as últimas, tiradas do
Jornal do Brasil, para ver como ando em dia.
Muito folguei com as notícias de Cecília, com a ida para o Cassiano :
desejo que se prolongue o mais possível. Para a mobília do chalé en
treguei uma rêde que meu patrício major Luis Sombra mandou do
Maranhão . É de linha de carretel e tem sua filosofia . Atenda bem à
largura ; a posição não é procurando os punhos, mas no meio, pro
curando os bordos e as varandas. Antes de aproveitá-la convém dobrá-la
várias vezes e sentar-se em cima para ir estirando devagar e igualmente
e não ficar pensa . Talvez isto seja ensinar o padre-nosso ao vigário :
desculpe; até pouco tempo não conhecia este tipo de rêdes, vou passando
adiante minha ciência enquanto está fresca.
Estive com Calógeras em Minas e lucrei em voltar com uma idéia
menos confusa de Ouro Prêto. Só andei na linha do centro, longe de
Matilde, que só é acessível pelo ramal de S. Paulo. Em maio irei vê-la.
Calógeras pensa numa excursão ao Rio Grande para o começo do ano.
Se a realizar e fôr convidado, aproveitarei a ocasião. De minha viagem
a Mato Grosso nada posso dizer. A pessoa que prometeu pôr os ba
cairis em Cuiabá escreveu em agosto e depois não deu sinal. É capaz
de só dá-lo quando estiver preparando -me para acompanhar Calógeras.
É a tal lei das compensações : da outra vez deixei de ir a Pedras Altas
para ver Corumbá. Passei quase um mês prêso em casa por uma crise
CARTAS A ASSIS BRASIL E SENHORA 97

de reumatismo, antes incômodo que doloroso. Sai ontem pela primeira


vez, mas complicações de outra ordem, sobrevindas sábado, 29, e domingo,
30, puseram -me bambo.
Assim termino aqui, deixando para outra ser mais longo.
Adeus, Assis ! Adeus, nálgicas! Adeus nova geração !
Abraça - a e beija-lhe as mãos o muito amigo
C. DE A.
Rio, 3 de dezembro de 1919.

Senhora,
Fui para São Paulo fugindo do nilismo, esperar Calógeras. Têrça
feira do Carnaval embarquei para cá, enxotado pelas moscas, pelos mos
quitos e pernilongos. Depois da eleição, a política já não me aborrecia.
Agora a comédia é outra. A derrota não será reconhecida. Tere
mos duplicata presidencial ? No tempo do Prudente escapamos dela,
graças ao assassinato do Marechal Bittencourt.
Ontem estive ligeiramente com Madame Calógeras. Soube que a
partida marcada para amanhã não será adiada. Eu estava pouco disposto
a acompanhá -los, porque isto perturbava outros planos. Como, porém , ela
me informou que os companheiros de excursão se têm excusado, irei.
Partiremos, daqui, dois. Em São Paulo provavelmente se reunirão ou
tros . Chegamos a Cruz Alta, excluindo o ministro, a senhora e o aju
dante de ordens, menos de uma dúzia.
Mandei a Quinquim o itinerário. A distribuição do tempo ignoro
ainda. Que irei à granja não tenho dúvida, nem que seja apenas por
algumas horas. Minha verdadeira viagem será no fim do ano.
Antes de partir procurarei ver o Alípio e dêle colher notícias diretas.
Adeus, Assis !
Adeus, nova geração !
Abraço e beijo as mãos da venerada e querida amiga.
Cap.
Rio, 4 de março .
101

10 - 1.º
98 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Senhora ,

Menditeguy, que foi recrutar-me em Pelotas, deixou-me sem papel.


Não pude escrever-lhe como desejava. Eu sou Francisco ! disse -me em
Pôrto Alegre, entrando pelo quarto do hotel . Era mesmo. Folguei de
vê-lo. O cabelo louro avivou -me as lembranças de quase sessenta anos
atrás, quando, no Ateneu Cearense, eram meus colegas José e Fred .
Estivemos diversas vezes juntos, não tantas quantas poderíamos,
porque, ao avizinhar - se a hora da comida, procurava pretexto para
afastar- se. Vai muito bem . Benza - o Deus, como dizem na minha terra ;
e o diabo seja surdo, como acrescentam na Bahia ou alhures.
No Rio Grande obtive dois triunfos .
Pelo menos desde São Borja espalhou -se a fama de que eu era o
pai do ministro. Em minha volta por Santa Maria propuseram ao enge
nheiro da estrada uma aposta de 200 $ .
Outro triunfo. A um discurso do padre Hafkemeyer, saudando -me,
no Instituto Histórico, respondi: Silentium verbis facundius. Tanto bas
tou para os telegramas me condecorarem de orador.
Está aqui Matilde, desde 3.a, 25. Acompanha ao Ceará o marido
que vai ver o pai ; ela poderá ver a avó.
Esperam realizar a viagem redonda em dois meses e meio. Quando
tornarem tratarei de minha excursão .
Não sei como Padre Cícero soube da minha visita e ficou muito
satisfeito .
Éramos bons amigos, por volta de 65 ; depois disto não nos vimos
mais. Nunca mais esqueci- lhe o nome, que só muitos anos depois reboou .
Também ele, quando esteve aqui, disse lembrar - se de mim . Pensava que
demoraria, não me dei pressa em acudir ; quando cheguei, partira.
Hoje chega Epitácio de Petrópolis.
Que haverá ? Se houver qualquer caso , prefiro que corra sangue,
morra gente, etc. Correr diante de ameaças é a pior das soluções.
Adeus, Assis !
Adeus , nova geração !
Abraço e beijo as mãos da venerada e boa amiga.
Cap.
Rio, 29 de abril de 1922.
22/101
CARTAS A ASSIS BRASIL E SENHORA 99

Vi Democratino.
Muito prazer sentirei se puder ser - lhe útil ou agradável a qualquer
respeito.

Senhora,
Da bernarda nada sofri, nada vi ; ouvi apenas os tiros de Copacabana.
Correu tudo tão depressa que descri dos jornais quando declararam
finda a intentona. Pelo imprevisto do desenlace conservou - se fiel a ma
rinha, suponho, talvez sem razão.
Em suma : para Epitácio a tempestade desfez-se do melhor modo ;
não há perigo que se arme outra.
Para Bernardes a realidade persiste imutável . Nunca pensei hou
vesse tanto e tão profundo ódio contra ele, no exército, na marinha,
no civil .
Estendem o ódio a Raul Soares, o defunto lavado, alcunha que
Assis poderá explicar, pois o conhece : eu só o tenho visto pintado.
Os generais têm negado qualquer participação, menos Silvado e talvez
Clodoaldo, apanhado de armas nas mãos.
Ao contrário, a escola militar declarou -se quase unânimemente com
plicada. Com muita dificuldade apuraram -se uns cinqüenta inocentes.
Se não forem homens de caráter altivo, hão de ter a carreira bem atri
bulada : a pecha de covardes e traidores há de acompanhá -los até o último
alento. Diz-se que os professôres preparam -se para reprová-los. Não
se fará representar Pedras Altas nas festas da Independência ?
Vou fugindo delas.
Agosto será o mês dos congressos. Em alguns faremos papel dem
triste : não quero assistir.
Na próxima semana partirei para São Vicente, acedendo a um con
vite de Jaguaribe. De lá, quando o frio fôr menor, irei a Caldas ... se
Assis me der tempo .
Acabo de receber telegrama de Arrojado, noticiando que escreveu a
Assis convidando- o para percorrermos, os três, de automóvel, os sertões
do nordeste. Da resposta do Assis dependem meus movimentos : o que
ele resolver, peço comunique para a Praia de São Vicente, 82. Assim
terei tempo de resolver.
Matilde foi com o marido ver os parentes do Ceará . Deve chegar
hoje à Bahia , de volta. Espero abraçá -la têrça - feira.
100 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Adeus, Assis !
Adeus, nova geração !
Abraço e beijo as mãos da grande e venerada amiga.
Ergebenst,
C. DE ABREU
Rio , 29 de junho de 1922.
101

Senhora,
Sexta- feira passada jantei no América e tanto Pedrinho como Alipio
me asseguraram que Assis não viria agora.
Segunda - feira, 14, desembarquei em Santos. Na casa de Jaguaribe
encontrei sua amável cartinha. Mais tarde, quando o Ceará ia levantar
ferro, soube que Assis estava a bordo. Não pude, portanto, vê-lo.
Vim fazer companhia a Jaguaribe. Foi bem sucedido na operação
mas está muito abatido. A casa, com os aumentos sucessivos, ficou
enorme. Não chegamos para ela.
Aqui ficarei, fugido de congressos e centenários, até meados de se
tembro. O amigo já estará mais forte então. É provável que uma irmā
venha fazer-lhe companhia.
Escrevi a Miguel, ontem : vou telegrafar-lhe amanhã.
Do que houver quanto à viagem do Ceará serei informado. É in
certo se o presidente irá. A ida do Rondon parecia certa. E se a

castelã e o castelão de P. A. forem também , será ouro sôbre azul .


Matilde esteve no Ceará com o marido. Veio queixando-se da água.
Com efeito, tirado um ou outro lugar privilegiado, não se pode dizer
bem do elemento líquido nem quantitativa nem qualitativamente.
Saudades à prole.
Abraço e beijo as mãos da venerada amiga.
Ergebenst,
C. DE A.
São Vicente, 17 de agosto de 1922.
ASSIS BRASIL
CARTAS A ASSIS BRASIL E SENHORA 101

Senhora ,
Estas linhas já irão encontrá-la em Pedras Altas. Está concluída
a jornada luminosa. Não acha alguma semelhança entre ela e a lua de
mel ? Em ambas, todos os dias ele ia aparecendo sob novas faces que
ninguém suspeitaria.
Alguns lugares revistos agora deviam lembrar a Assis os dias em
pregados na propaganda republicana, apenas terminado o curso acadê
mico . Quanta coisa aprendeu depois disto e quantas desaprendeu !
Qual será o resultado legal da campanha, ignoro. Faço justiça ao
bedel verde que, mesmo se ele contasse com o único voto que podia
levar às urnas o chimango, seria incapaz de largar o poder voluntària
mente. Seu voto de qualidade seria o suficiente para o desempate. Isto,
porém, não é o mais importante : o mais importante é saber quantos dos
que votaram no boi prêto não estarão agora arrependidos e envergonhados.
O importante é que, dentro ou fora do palácio, já não é mais
que dantes era .
No tempo de Epitácio provou que era um sujeito medroso, incapaz
de resistir a quem o fitasse de frente. Agora, com o Assis, ficou patente
a nulidade do manipanço. Mesmo se ele tivesse um vislumbre de cons
ciência, de que o julgo incapaz, a gente que ele domina e que o escra
vizou não lhe permitiria de sair do fôsso de sangue e lama.
Adeus, Assis !
Adeus , nova geração !
Abraço e beijo as mãos da venerada e querida amiga.
C. DE A.
Rio, 2 de dezembro de 1922 .
CI
AO BARÃO DO RIO BRANCO 1886-1903

Ex.mo Sr. Conselheiro ,

Espero que V. Ex.a compreenderá e desculpará esta carta. Devo


lhe tantos obsequios por intermédio de Vale Cabral, que não é muito
que lhos venha agradecer diretamente. Houvesse dez brasileiros como
V. Ex.a, em diversos pontos da Europa, que em dez anos a nossa
História mudaria de feição.
Na carta de V. Ex.a, hoje recebida, vi o que diz sõbre o ms. de
Nápoles. Antes de V. Ex.a tão gentil e generosamente prestar -se a ser
nosso correspondente histórico, eu tinha por mais de uma vez procurado
obter informações sobre o encantado livro que para mim tornou-se tanto
mais importante, depois que descobri que André João Antonil era João
Antônio Andreoni. Escrevi, pois, a Guimarães Júnior e um meu amigo
escreveu ao Conde de Araguaia sem resultado. Falei depois com um
napolitano, que escreveu para um seu tio de Nápoles, professor da Uni
versidade, e pessoa muito respeitável, segundo me disse o sobrinho. Ora,
este professor escreveu que na Biblioteca de S. Martino não existia
tal ms., mas que existia na Biblioteca Nacional ; que constava de dois
volumes; que um literato espanhol tratava de obter uma cópia ; que o
Sr. Miola, chefe da Secção de Mss. da dita biblioteca, encarregava - se
de mandar tirar uma cópia sob suas vistas, cuja autenticidade garantiria.
Como combinar estas informações, recebidas em outubro , com as
que recebi hoje ? Dizem -me que a pessoa a quem pedi as informações
não é séria por mim nada sei em um sentido ou em outro mas

como escreveria ele o nome do Sr. Miola, se era tão fácil descobrir o
embuste, caso houvesse ?
CARTAS AO BARÃO DO RIO BRANCO 103

Por outro lado, decifrando a carta de nosso vice-cônsul, pareceu-me


que ele não foi à Biblioteca , mas ao Museu Nacional.
Não será este o fundamento da divergência e contradição entre as
informações ?
Escrevi pelo vapor de 20 do mês passado diretamente ao Sr. Miola,
pedindo -lhe informações, perguntando - lhe o preço da cópia, etc.
Não sei se me responderá ; é bem possível que não, e, pois, vou
fazer a V. Ex.a uma série de pedidos :
1.º : que escreva novamente ao Dr. Costa Mota, dando-lhe como
point de repère o nome do Sr. Miola ;
2.° : que indague o autor dos dois volumes, o tempo em que foram
escritos, o número de páginas, o índice das matérias e o preço da cópia.
Depois desta operação preparatória, ainda tenho outro pedido a
fazer. O ms. de Nápoles, ou o original ou tradução, e a tradução
se, como me disse o meu informante, ele é do século XVII, só pode
ser ou de Gabriel Soares, ou da Cultura e Opulência do Brasil de A. J.
Antonil. Também pode ser cópia da História da Guerra Holandesa de
Fr. J. de S. Teresa.
Feito éste exame preparatório, resultando que o livro é original, vem
o meu pedido.
3.° : que V. Ex.a mande tirar cópia e ma envie, à proporção que
fôr extraída. Indenizarei das despesas ao seu correspondente daqui,
porque me fica mais fácil fazê-lo do que mandar para a Europa um
saque, e a Europa é muito longe, e as comunicações ronceiras.
Agora peço licença a V. Ex.a para fazer um novo pedido, e dar-lhe
uma explicação.
O pedido: foi publicado, há pouco tempo, o Catálogo dos Mss. Es
panhóis do British Museum , organizado por D. Pascual de Gayangos.
Não haverá nêle indicada muita cousa sõbre o Brasil ?
Não temos aqui o livro, e por isso rogo que o verifique.
A explicação: V. Ex.a há de ter estranhado que Cabral e eu tenha
mos tantas vezes pôsto à prova sua inexcedivel bondade.
O motivo é que Saldanha da Gama disse-nos positivamente que não
deixaria por si copiarmos uma linha manuscrita da Biblioteca Nacional,
e que, se o Ministro mandasse informar qualquer requerimento, na sua
informação seria sempre desfavorável. Lutar com ele seria pois ine
vitável e provavelmente inútil. Também demos-lhe uma lição de mestre ;
éle estava muito empenhado em publicar a História do Brasil de Fr.
Vicente do Salvador, escrita em 1627 e até agora inédita , a melhor crônica
104 CORRESPONDENCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

que existe do século XVI; por isso mesmo timbramos em publicá-la,


e Lino de Assunção mandou -nos a cópia de Lisboa, tirada da Torre do
Tombo . Ficamos vitoriosos, é verdade; mas o bibliotecário enfureceu
e até tomou uma satisfação ao Cabral. Quer isto dizer, que cada vez
podemos contar menos com éle ; em outros térmos : cada vez teremos
mais de importunar a V. Ex.a.
A nossa coleção tem ido um pouco demorada ; mas nestes dez dias
Cabral dará a coleção das cartas de Nóbrega — 21 , das quais uma for
necida por V. Ex.a, outra que nunca fóra publicada em português e
2 inéditas.
Em março , Cabral publicará as cartas avulsas, em número de 50
aproximadamente, dois terços das quais inéditas.
O quarto volume constava das cartas de Anchieta, que tomou a si
o Dr. Teixeira de Melo .

O quinto volume publicarei eu com o título de Crônicas Menores


dos Jesuitas, logo que obtiver as duas Histórias de Roma e a do Porto ,
que não pode tardar.
O sexto volume publicaremos Cabral e eu, e será a História do
Brasil de Fr. Vicente do Salvador, que esperamos V. Ex.a há de admi
rar tanto como nós, porque é digno disto.
É este o nosso plano para este resto de ano e para o outro ; mas
espero poder ainda dar outro volume: a coleção cronológica de todos os
documentos relativos ao Brasil durante o reinado de D. Manuel e talvez
de D. João III . Agora, se vier a obra de Andreoni, é bem possível
que lhe dê preferência, porque deve ser muito importante, e com ela
e a Crônica dos Jesuítas no Estado do Maranhão do Padre Betendorf ,
que vai até 1697, modifica -se absolutamente a fisionomia do século
XVII , que é muito mais desconhecido que o anterior.
Quanto ao ms. do Colégio Vaugirard, talvez a seguinte informação
seja suficiente : Backer fala nêle no artigo Lopez ( de Arbizo ou Arvizo ) ,
que não posso agora verificar em que volume está, mas que, se me

não engano, é no IV.


Termino aqui, repetindo que espero que V. Ex.a compreenderá e
desculpará esta carta e dará as suas ordens aí.
Rio , 25 de novembro de 1886 .
De V. Ex.a
admirador muito grato,
CAPISTRANO DE ABREU
CARTAS AO BARÃO DO RIO BRANCO 105

É possível que o Sr. Miola me responda. Neste caso comunicarei


logo a V. Ex.a o conteúdo de sua carta .
[Nota do Barão do Rio Branco. Rec. 22 de dez.'.)

Ex.mo Sr. Conselheiro ,


A carta de V. Ex.a de 21 de dezembro foi dirigida para o Externato,
onde poucas vezes vou , agora que estamos de férias. Por isso e bem
a contragosto demorei tanto esta resposta.
Recebi a nota sõbre os mss. de Roma e agradeço -lhe ainda uma
vez . Não tinha tanto quanto esperava, mas sempre é isto um progresso.
Agora minhas esperanças resumem-se todas nas bibliotecas da Propaganda
Fide e do Vaticano, ambas ainda por explorar.
Do mesmo modo que as histórias das fundações, é de esperar que
apareça a Discriz. del Bras., de Nápoles. O Imperador viu - a quan
do estêve lá, em 1876 , se me não engano. Um ou dois anos mais tar
de, o V. de Bom Retiro leu a respeito informações ministradas pelo
Barão de Javari . Que informações ? O Visconde, a quem Teixeira de
Melo pediu -as, não as soube reproduzir, nem também o Imperador. O
mais interessante, porém , é que o Instituto autorizou as despesas necessárias
para cópia, e tal cópia ou não foi feita ou não aparece. Se, depois disto,
o livro ou não aparecer, ou fôr simples tradução ou menos que isso, é
de desesperar .
Vi com muito prazer que brevemente, isto é, daqui a uns 400 dias,
multiplicados por 24 horas e estas pelos respectivos minutos e segundos,
teremos a História Naval Brasileira. Mas só a História Naval ? E a
História Militar a começar da guerra holandesa ? Há tantos anos que
V. Ex.a a estuda e conhece tão bem, que mais larga demora é uma lesão
pública. Por minha parte nunca até hoje estudei as questões do Sul, à
espera da obra de V. Ex.a ( Entre parênteses : o volume da Correspondên
cia dos Governadores do Rio, que está no Instituto Histórico e que começa
em 1763, não traz a participação oficial do combate ; refere-se apenas a
ela, como já tendo sido mandada. Talvez esteja no Arquivo Público :
investigarei esta semana ou na outra, logo que acabarem os exames ) .
Cabral está com vontade de ir ao Norte, a Pernambuco e à Bahia, na volta.
Como não pôde dar cumprimento a todos os desejos de V. Ex:a, transmi
tiu -me a agradável incumbência, do que lhe fiquei muito agradecido. As
cópias são fáceis quando se trata de impressos ; quanto a mss. é preciso
106 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

distinguir entre a Biblioteca e Arquivo e Instituto. Na Biblioteca, tra


tando-se de qualquer pedido de V. Ex.a, não há, pelo menos até agora não
tem havido, a mínima dúvida. Há poucos dias pedi ao Saldanha autori
zação para o meu amigo Raul Pompéia copiar o retrato de Barreto de
Meneses, que V. Ex.a deseja e que provavelmente irá até o fim do mês,
e o Saldanha acedeu prontamente. O mesmo faz quando se trata de
coisa para mim ; mas é tratar -se dos materiais e achegas e o homem
negar pão e água. Por conseguinte, na Biblioteca a única dificuldade que
existe é, quer dizer, tem sido, saber onde estão os mss. Já pedi ao Cabral
que separasse quantos pudessem interessar a V. Ex.a, antes de sua partida,
que provavelmente será no fim do mês. No Arquivo Público é necessário
para qualquer cópia, requerimento, informação, etc. Por isso é melhor
juntar uma porção de cousas, para pedir a licença por junto.
No Instituto, estabeleceu -se, depois das Achegas, que é necessária li
cença, e agora que o Instituto está de férias, o único meio é fazer extratos
desenvolvidos o possível, que possam provisòriamente servir .
Entreguei ao Cabral a apuração do Mensageiro Argentino até março
de 26. Espero que no vapor de 16 irá o que a mesma folha contém a
respeito dos pontos que V. Ex.a estuda. Farei o mesmo com o Correio e
com o Packet. Depois extratarei dêstes jornais, fiel, porém não tex
tualmente, exceto em partes que V. Ex.a indica, o que houver relativo às
guerras, formando uma espécie de efeméride. Assim espero que o trabalho
de V. Ex.a ficará mais fácil e inuitas dúvidas desde logo solvidas.
Responderei agora a algumas perguntas feitas ao Cabral. Na planta
do Rio de Janeiro de 1808, a Rua de S. José vai até a Direita. A
planta da Razão de Estado não tem importância : dá quase tantas ruas na
Vila Velha como na cidade de S. Sebastião. A fonte a que socorre - se
Varnhagen, quanto ao Rio de Janeiro no século XVII, parece -me que é
a do viajante inglês Fleknoe ; infelizmente não temos tal obra ; há 4 anos
que o Sr. J. R. Dunlop, a pedido meu, começou a copiar no Museu Bri
tânico a parte relativa ao Brasil, porém não ma entregou : a obra não é
comum , e só encontrei- a numa bibliografia inglêsa. Varnhagen tinha um
modo muito esquisito de citar autores : o viajante estrangeiro Gențil, diz
ele algures ; foram precisos muitos anos para se saber e ficarem sabendo
na Biblioteca que tratava -se de Gentil de la Babinais ( não sei se está
escrito certo ) . Entreguei a Cabral um extrato da carta de Maurício de
Nas all; como, porém , V. Ex.a especificou os pontos sõbre que deseja
informação, examiná - la - ei de novo. No Instituto e na Biblioteca existem
dois volumes em que há muitas patentes, especificando-se combates em
CARTAS AO BARÃO DO RIO BRANCO 107

que os agraciados tomaram parte : aí há, pois, muitos elementos cronológicos


e biográficos para a guerra holandesa, a que quase exclusivamente se re
ferem : posso mandar a lista, se V. Ex.a quiser.
Para terminar, dois obsequios : há dois livros impressos em que deve
haver alguma cousa sobre o Brasil – se houvesse muita, eu comprá-los-ia.
São os Diarii de Sanuto (Marino ), publicados em Veneza, em que há
cousas interessantes sobre os tempos do descobrimento : ( uma carta de
1501, de que tenho cópia, já dá a América como um continente; segundo
Harrisse, há particularidades sõbre a viagem de Cabral) ; e os Calendar of
State Papers. Se V. Ex.a tiver ocasião de examiná -los, ficar-lhe-ei obri
gado extremamente : não há absolutamente pressa. E sem tempo e sem
espaço para mais, assino-me
De V. Ex.a
Admirador e obrigado
J. CAPISTRANO DE ABREU
D. Luísa, 10.
8 de fevereiro de 1887 .

Ex.mo Sr. Conselheiro,


Recebi, no dia 18, uma carta do Sr. Alfonso Miola, escrita de Nápoles
em 15 de janeiro. Nela me diz que acabava de receber uma de V. Ex.a
e que iria responder.
Não sei que resposta terá dado a V. Ex.a, ou se foi tão completa
como a minha. Por isso escrevo esta.
O livro foi composto depois de 1658, pois entre os autores citados
figuram Piso e Marcgrav, e antes de 1680, pois não se refere à Colônia
do Sacramento , talvez fósse escrito antes de 1663, pois não se refere à
Crônica de Simão de Vasconcelos .
Pelo índice evidencia-se que nem é tradução nem já foi impresso :
vale, pois, a pena mandar tirar cópia, e é o que peço a V. Ex.a. Estou
convencido que não é de Andreoni, nascido em 1650.
Não é provável que saia mais este ano, porque estou muito ocupado
com Fr. Vicente e com os jesuítas; mas para o ano, com certeza verá
a luz .
Com a maior consideração.
De V. Exa
Admirador obr.
J. CAPISTRANO DE ABREU
108 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Rio, 20 de fevereiro de 1887 .


Depois de escrita esta, esteve aqui Vale Cabral, que me trouxe uma
carta de V. Ex.a, escrita de Liverpool a 27 de janeiro, e mandada por inter
médio de Faro e Nunes. Acrescentarei, pois, algumas linhas em resposta.
Quando pedi a V. Ex.a que mandasse logo copiar o ms. de Nápoles,
se o reconhecesse como original e inédito, foi para andar mais depressa.
O Sr. Miola, porém, não remeteu-lhe o índice e V. Ex.a não pôde decidir-se
logo : agora, entendendo-me diretamente com ele, a maneira será mais
rápida. Por isso, no vapor que leva esta, vai o dinheiro necessário, e o
pedido de autorização ao bibliotecário. Como na primeira parte do ms.
há cousas que podem interessar a V. Ex.a recomendei ao Sr. Miola que lha
enviasse. Assim V. Ex.a não terá de esperar pela publicação, que será
demorada.
Acho que a cópia é muito razoável. Fr. Vicente do Salvador custou
nos 45 $, fracos; porém não é talvez a metade, apenas 777 tiras. Quando
Lino d'Assunção esteve aqui autorizei-o a tomar um copista em Lisboa.
Disse -me ele que se podia pagar a 500 fortes por dia ; até agora, porém ,
não me escreveu, embora pela Gazeta já tenham sido dadas as ordens ne
cessárias para o pagamento .
Aqui no Rio a questão de copista é insolúvel. Só com muito dinheiro
se poderia obter algum ; mas naturalmente seria tão ruim que seria preciso
confrontar linha a linha. Para o que V. Ex.a quer, bastamos o Cabral
e eu . Nem sempre será com a pressa que V. Ex.a deseja, mas fique
certo que há de ir. Vou agora todas as noites à Biblioteca, e não me
custa nada consagrar-lhe parte do tempo que lá passo .
Envio a Armada de D. Nuno Manuel. O texto foi escrito em uma
noite, e as notas lançadas atropeladamente ; hoje, se tivesse de escrevê - lo
de novo, teria de refundir grande parte, embora ainda esteja pelas conclu
sões a que cheguei. Depois daquele meu trabalho, foi publicada em
Innsbruck uma monografia de Wieser que esclareceu diferentes pontos;
dá um texto mais correto da Gazeta Alemã, elucida um trecho que Hum
boldt não soube traduzir, etc. A conclusão de Wieser é pouco mais ou
menos a minha quanto à data da viagem , e muitos argumentos são comuns.
Não liga, porém, a Gazeta a D. Nuno.
Remeto também um exemplar, o último ou penúltimo, de minha tese.
Escrita e impressa no prazo improrrogável de 40 dias, deixei o assunto
quase intacto : no último capítulo, fui obrigado a reduzir a propo
sições o que no meu plano primitivo deveria dar assunto a outros tantos
CARTAS AO BARÃO DO RIO BRANCO 109

capítulos. Enfim tenho esperança que ainda hei de poder completar este
e outros trabalhos, principalmente se em alguma febre de economia que
sobrevier, não começarem os cortes pelas Achegas.
Talvez para o ano, comece a Coleção Cronológica do Século XVI,
que principiará pela viagem de Pinzón e acabará com o último ano do
século . Já tenho muitos materiais para o reinado de D. Manuel, que com
as anotações pode dar um volume regular. O que nos faltam são as
indicações ligeiras que há em coleções volumosas e caras, que a Biblioteca
não possui e que eu não posso comprar. Isto, porém, só com o tempo
se irá arranjando e não tenho pretensão a deixar o trabalho perfeito.
Agora para (não ] terminar esta carta sem um pedido : desde que o
Dr. Costa Mota é tão amável e ainda não sabe falar português, não
poderia ele dar um passeio na Vaticana e na Propaganda Fide ? Simples
passeio de reconhecimento do terreno . Neste último estabelecimento, a
julgar pela história da Missão de Fr. Martim de Nantes, deve haver
verdadeiras preciosidades, por exemplo uma descrição do rio S. Francisco
e dos índios que nêle habitavam , feita pelo capuchinho francês, François
de Lucé.
Sem tempo para mais, assino -me.
De V. Exa
Admirador muito obrigado
J. CAPISTRANO DE ABREU
Rio, 23 de fevereiro de 1887 1 .

Ex.mo Sr. Conselheiro,


Acabo de receber a carta de V. Ex.a de 6 e 10 de março e dou -me
pressa em respondê -la, para ver se esta vai no vapor de Nova Zelândia,
que está anunciado para amanhã.
Antes da saída de Cabral, que partiu no dia 1.° para Pernambuco,
onde ainda está a trabalhar como ele sabe, pouco pude fazer para V. Ex.a,
porque tínhamos muita cousa a liquidar.
Depois tem sido pior.

1. Cópia oferecida pelo Prof. Hélio Viana. Esta carta estava anexa a um
exemplar do Descobrimento do Brasil e seu Desenvolvimento no Século XVI, ofere
cido por Capistrano de Abreu ao Barão do Rio Branco, com a seguinte dedicatória :
“ Ao Ex.mo Sr. Conselheiro Silva Paranhos, a quem tanto deve a história
pátria./ Homenagem de simpatia e admiração./. J. Capistrano de Abreu."
110 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

O ano passado eu e Teixeira de Melo tiramos, às escondidas, cópia


da coleção de cartas dos jesuítas em 1549 a 1568. Devia ser eu o
editor, mas, talvez pela maçada de copiá -las, tomei-lhes tal birra que nem
podia mais vê - las. Passei, pois, a maçada ao Cabral. Este foi embora,
sem as ter imprimido, e Galvão disse que ia desmanchar a composição.
Para evitar tamanho absurdo, tomei a mim rever o texto, verificar datas
e autores, etc. Isto me tem roubado todo tempo. O mais interessante
é que agora, que já não tenho nada com elas, estou simpatizando com elas
novamente.
Em compensação da minha inatividade forçada e forçosa, vou dar a
V. Ex.a uma notícia que julgo lhe será agradável : achei copista, e, o
que é melhor, bom copista ; e agora que o achei , admira -me não tê-lo
descoberto senão há poucos minutos, depois de receber a carta de V. Ex.a.
Vejo - o quase todos os dias, há anos .
Chama - se Simões da Fonseca, se bem me lembro ; é o chefe da revisão
da Gazeta ; moço inteligente, instruído, sério e pé -de-boi. Fui de propó
sito à cidade agora mesmo para ver se ele aceitava a incumbência . Aceita .
Ainda não posso dizer quais as condições, mas fá-lo-ei certamente no
vapor de 6. Ele só pode trabalhar à noite, e 10 vezes por mês, a menos
que não haja urgência . Também 10 noites de trabalho regular e metódico
adiantam muito, e não creio que V. Ex.a precise de mais, senão excepcio
nalmente. A base que tomei e comuniquei-lhe foi a seguinte : 3$ por
noite, das 6 às 9. Êle, segundo me pareceu, preferia talvez ser pago por
tira , porque, disse-ne, como se há de verificar que eu trabalhei tantas
noites ? V. Ex.a me recomenda que ajuste o trabalho por tira ; mas, por
interesse mesmo dele, eu disse - lhe que não convinha. Embora não tenha
a minha letrinha que, escreveu -me uma vez Valentim Magalhães, parece
estar piscando os olhos, ele tem a letra miúda, e de clareza cristalina,
devo acrescentar, porque emenda que ele faz, não há tipógrafo, por mais
bocal, que não a entenda : provavelmente perderia com as tiras, e V. Ex.a
não ganharia.
O que ficou, pois, assentado foi o seguinte: que ele iria amanhã
ao meio -dia à Biblioteca para eu apresentá-lo ao Saldanha, para ele poder
trabalhar na sala especial, e que ali eu lhe mostraria o que tinha a fazer
e ele começaria a trabalhar e continuaria até o dia 6. Depois disto,
atendendo à média de tiras copiadas, ao preço de cópias em Buenos Aires,
à base de 3$ por noite, fecharemos o ajuste para o mês de abril e a parte
de maio necessária para ter a resposta de V. Ex.a. Como disse, no vapor
de 6, irão informações minuciosas. Não preciso dizer que, sempre que
CARTAS AO BARÃO DO RIO BRANCO 111

puder, copiarei por minha parte ; que farei as pesquisas necessárias para
que ele, não tendo de preocupar-se com isto, dê avanço ao que lhe está
incumbido ; que nas repartições que só abrem de dia, tomo a mim as cópias,
exceto quando houver urgência, porque então o nosso Simões as fará, em
condições diversas, naturalmente, porque ele tem um empreguinho no Te
souro , de praticante, se me não engano .
Agora o presidente do Instituto é Joaquim Norberto. Há um dia na
semana em que se reúnem, têrça- feira, se me não engano. Vou verificá-lo
e pedir-lhe a permissão que, espero, não me negará. Em todo caso , farei
o extrato fiel e quase literal do documento, que é permitido sem licença
prévia. V. Ex.a, pois, não terá de esperar até maio.
Ainda não pude verificar onde Varnhagen colheu os esclarecimentos
a respeito do assalto inglês na Bahia. Não figuram na primeira edição.
Provavelmente encontrou os documentos em Simancas, onde deviam estar,
se ele os não tirou , porque hoje cheguei à desoladora convicção de que o
nosso ilustre historiador roubava papéis.
Estimei tanto a notícia da viagem provável de V. Ex.a quanto lastimei
o doloroso motivo que a provoca. É uma cousa terrível éste surto, que
ultimamente tem lavrado e que agora, segundo parece, e receio, vai tomar
maior desenvolvimento com os sugestionistas e hipnóticos.
Como disse no principio, escrevo estas linhas simplesmente para se
guirem no vapor de amanhã. No dia 6, serei mais completo, e mandarei
algumas das cousas que V. Ex.a pede com mais urgência.
Com toda simpatia e consideração,
De V. Ex.a
Adm.ºr e amigo obr.º
J. CAPISTRANO DE ABREU
30 de março de 1887.

Ex.mo Sr. Conselheiro,


Escrevo esta carta às pressas, só para não perder o vapor.
Incluo o capítulo de Fr. Vicente, quanto ao ataque da Bahia pelos
holandeses, quero dizer, inglêses. Julgo que estão aí todas as informações
que deseja, e que Varnhagen extratou.
Mandei registrar o pacote deixado por Cabral e as cópias feitas por
Simões da Fonseca. Não vão mais, porque a Biblioteca Nacional fechou ,
112 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

em conseqüência da Semana Santa, e a Fluminense, porque Martins foi


dar um passeio a Caxambu. No vapor de 16, procurar -se - á adiantar.
Cabral falou com Deiró a respeito da Defesa de Brown .
Disse-lhe que já não se lembrava, havia muito tempo, etc.
Depois Cabral falou com o Conde de Iguaçu , que disse nada saber,
que os papéis estavam com o irmão, que era muito sério, etc. Felizmente
encontrei uma pessoa que se dá com o sócio do Visconde de Barbacena,
e que é bastante inteligente e ilustrado para se interessar por estas questões.
Prometeu -me falar-lhe e influir sobre o assunto, logo que eu lhe der a nota
respectiva, o que farei amanhã.
A Biblioteca não teve ou não teria (pelo menos não consta do catá
logo ) a Gazeta Mercantil. Por isso a cópia do oficio de Brown foi tirada
do Diário Fluminense.
Em uma carta anterior, comuniquei que pedira ao Sr. Miola que
mandasse V. Ex.a o que fosse sendo copiado do ms. Isto foi em fins
de fevereiro . Ainda não há tempo de saber da resposta ; mas até chegar
esta a seu destino, haverá. Por isso, lembro a V. Ex.a um meio delicado
de avivar-lhe a memória : é perguntar-lhe se recebeu a letra de câmbio
que enviei a 24 de fevereiro. Se esta carta ainda puder ser registrada,
remeterei a segunda via da letra, para V. Ex.a fazer-me o obsequio de
mandá-la. Na Descrizione del Brasile há diversos capítulos sõbre a
guerra holandesa, que, escritos por contemporâneos, devem conter mais de
uma particularidade interessante.
Ainda hoje estive lendo o indice mandado pelo Sr. Miola e cada vez
estou mais convencido de que a obra é interessantíssima. É Gabriel Soa
res puro, mas escrito em 1660, pouco mais ou menos ; por conseguinte,
menos corográfico e mais histórico ; é pena que não fosse escrito alguns
anos mais tarde, lá para 1690 , de modo a implicar a questão para mim
mais importante da história pátria o povoamento da zona entre o
S. Francisco e o Parnaíba. Felizmente, espero em breve receber dois mss.
que em parte suprirão esta lacuna : a História Eclesiástica do Brasil de
Gonçalves Soares da Franca, que está em Lisboa, e a Descrição da Bahia,
de Bernardo Vieira Ravasco , irmão do Padre Vieira, que Lino de Assunção,
nosso correspondente em Portugal, espera poder descobrir. A estas obras
acresce a Crônica da Comp. de Jesus no Estado do Maranhão do Padre
João Filipe Betendorf, que chega até 1690 e é um dos depoimentos capitais
do século XVII .
Quando comecei os meus estudos de história pátria, chamou-me espe
cial atenção o século XVI. Ainda hoje gosto muito dêle ; mas agora o
CARTAS AO BARÃO DO RIO BRANCO 113

quem me seduz mais é o século XVII, principalmente depois da guerra ho


landesa . Vejo nêle tantas questões, e sobretudo tanta obscuridade ! Na
obra de Varnhagen , tirado o que diz respeito às guerras espanholas e
holandesas, quase nada há para representar este século. Preencher estas
lacunas é, portanto, meu interesse principal. Para o Estado do Maranhão
o problema não é difícil ; mas para o resto, sem crônicas e apenas com os
documentos oficiais, parece-me tarefa árdua. Felizmente, graças a V.
Ex.a, não terei de haver-me com as questões sulistas, que V. Ex.a conhece
melhor que ninguém . Já em 1864 e 1865 conhecia-as melhor que Varnha
gen ; imagino o que será hoje , e só o que me admira é que seu livro não
esteja publicado, pelo menos desde 1867. Eu nunca estudei este assunto, e
quando soube que V. Ex.a ia afinal presentear-nos com o resultado de
suas investigações, ainda menos pendor senti para eles.
Hoje reconheço que fiz mal : no Rio da Prata , desde os compêndios,
implanta-se o ódio contra o Brasil. Precisamos de ir fazendo o mesmo,
para não se reproduzir o caso da Prússia contra a França aquela
considerando esta como o inimigo hereditário — der Erbfeind, enquanto a
França considerava - a como sua amiga tradicional.
Com toda estima e consideração,
De V. Ex.a
Admirador e am.º obr.
J. CAPISTRANO DE ABREU
9 de abril de 1887.

Ex.mo Sr. Conselheiro ,


Na penúltima carta com que me honrou , comunicou -me V. Ex.a que
pretendia achar -se no Rio em abril ou maio. Não tive mais letras de
V. Ex.a a tal respeito e estou indeciso quanto à minha atitude. Já deve
ter chegado o Senegal e é possível que V. Ex.a me dê um fio condutor.
Neste caso, irá o que houver no vapor de 12, ou esperará aqui por V. Ex.a
Copiei o artigo da Astréia e a relação do Conde da Torre, que, por
engano, o Cat . da Exp. dá no vol . VII da col . de Joaquim Caetano, quando
está no VIII . A relação é simplesmente o nome dos navios com os co
mandantes e as bôcas-de- fogo.
Simões tem continuado as cópias e já tem boa porção : enviá - las -ei
juntas, logo que cessar a minha dúvida.
Recebi, enviadas diretamente de Londres, as duas Histórias do Rio
e da Bahia. Muito interessantes, sobretudo depois da morte de Nóbrega,
11 - 1.º
114 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

até onde chegava a Crônica de Simão e Vasconcelos. O copista exce


lente, letra claríssima e tino interpretativo notável, tanto mais quanto não
creio que ele saiba espanhol. Por isso há algumas palavras que não foram
escritas direito, porque não fazem sentido. Enviarei brevemente lista
para serem confrontadas com o original . Felizmente o trabalho é fácil,
porque o copista teve o cuidado de indicar onde acabava e onde terminava
cada página do original .
Li há dias em um jornal que um editor inglês obteve licença do Papa
de imprimir e efetivamente imprimiu um mapa -mundi de Diogo Machado
( composto em 1502 por Diogo Machado ) que se achava na Biblioteca Vati
O único que conheço dêste tempo foi publicado há alguns anos nos
Côrte-reais de Harrisse e é conhecido pelo nome de Cantino. Possuo-o,
felizmente. Serão os dois a mesma obra ? Ser -me- ia fácil sabê-lo se o
Dr. José Carlos Rodrigues, que trouxe um exemplar para o Imperador,
não estivesse fora, segundo me consta, ou se o Imperador falasse com
qualquer pessoa agora como em outro tempo.
Por isso , incomodo ainda uma vez a V. Ex.a para pedir -lhe: 1.0 que
indague, se fôr possível, se os dois mapas não serão apenas um ; 2.° se
forem diferentes, que me obtenha um exemplar, caso o preço esteja na
minha alcada, isto é , não exceda de 50 $.
Com toda a estima e consideração,
De V. Ex.a
Am . , adm.or, muito obr.
>

J. CAPISTRANO DE ABREU
Rio , 8 de maio de 1887.

Ex.mo Sr. Conselheiro,

Desejo que tenha feito boa viagem, e que no meio de seus livros
esteja tomando suas medidas para dar-nos para o ano a sua tão sequiosa
mente esperada História Naval.
Nossos trabalhos vão com mais ou menos regularidade: Fr. Vicente
estará pronto em parte até o fim do ano, as cartas avulsas dos jesuítas vão
adiantadas, e breve entrarão para o prelo as de Anchieta, ficando assim
esgotado, e felizmente, o ms. da Biblioteca Nacional, que com mais uns
cinco anos ficaria ininteligível.
Incluo esta lista sobre uns autógrafos de Anchieta que há em Anvers,
para mais uma vez V. Ex.a, com a sua incansável bondade, auxiliar-nos.
CARTAS AO BARÃO DO RIO BRANCO 115

O que desejo com urgência é o Buletin da Sociedade, que aqui não tenho
podido arranjar e um fac - simile da assinatura, para ir na capa do volume,
como foi no de Nóbrega. O sermão não tem urgência.
Ainda tenho outro obsequio a pedir-lhe. Não há escritor do século
XVI que mais aprecie do que Fernão Cardim. Quero dar, ainda este ano
se fôr possível, uma edição completa de todos os seus escritos. Falta-me,
porém, um, que é um parecer ou carta que ele escreveu a 1 de janeiro de
1618, e que se acha originàriamente na Academia de História de Madrid.
Como não tenho meio de correspondência para Madrid, peço -lhe o obsequio.
A propósito de Cardim , tenho ainda novo favor a pedir. Quando ele
foi aprisionado para a Inglaterra, em 1601 ou 1603 (não posso verificar
agora, mas está no prólogo dos Índios do Brasil), encontrou - se com um
jesuíta, que prestou-lhe auxilios. Depois, daí a um ano ou dois, fugiu com
umas princesas, que depois entraram para um convento em Lisboa. Não
será possível saber o nome destas princesas ? Já dei a V. Ex.a aqui mesmo
as indicações, mas mandá-las-ei noutro vapor. Este ponto me interessa,
porque desejo completar a biografia do amável escritor.
Li suas correspondências no Jornal, que estão espléndidas.
Com a maior simpatia e consideração,
Am . adm.or e cr . obr.º
J. CAPISTRANO DE ABREU
8 de agosto de 1887.
Já recebi a cópia do ms. do Pôrto, História da Fundação do Colégio
de Pernambuco . Não é menos interessante que as duas cópias que V. Ex.a
nos obteve de Roma , porém o copista é terrível.
Recebi já 100 páginas do ms. de Nápoles, que, segundo Miola, é do
Padre Giacinto Lorejice. Tem cousas interessantes ; mas não posso ainda
emitir opinião fundada a respeito dêle.

Ex.mo Amigo Sr. Conselheiro ,


Acabo de receber sua prezada carta terminada a 2 de novembro, e
vou responder no que posso já, deixando para outra ocasião completar a
resposta .
Agradeço -lhe a cópia do velho Cardim, interessante sempre, e o
trabalho que tem tomado para obter as de Anchieta. As que aqui temos,
1. O Barão do R. Branco escreveu por cima da palavra cópia : Recebi a
cópia do Cardim.
116 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

já estão tôdas compostas, mas ainda não se publicou uma linha e só poderão
ser impressas para o ano.
Estou tirando cópia de três novidades que devem interessar muito aos
seus estudos : as instruções dadas ao Conde da Tôrre, as que ele ou seu
sucessor deu a Camarão , quando mandou - o a Pernambuco , e as de D.
Manuel Lôbo. Julgo que todos estes documentos lhe são desconhecidos;
o que havia antes de relativo a D. Manuel Lobo era simplesmente o regi
mento do governo do Rio de Janeiro ( No ms. de Nápoles há algumas
informações biográficas sõbre Antônio Teles (da] Silva : era devotissimo,
o que explica sua animosidade contra os herejes holandeses ). Nosso amigo
Vale Cabral na Bahia encontrou preciosidades extraordinárias na Tesou
raria da Fazenda, que Belisário mandou entregar-lhe. A doença não lhe
permitiu examinar tudo, e apenas trouxe 17 volumes, mas neles há cousas
muito importantes. Há dois volumes relativos a Tomé de Sousa, D.
Duarte e Mem de Sá ; uma coleção de regimentos, onde vem a doação a
Barbalho da Capitania de S. Catarina , a doação de outra Capitania ao
Visconde de Asseca no Rio da Prata, umas instruções dadas a Roque da
Costa Barreto, de quem apenas se conhecia o regimento ; um volume da
administração de Diogo Luís de Oliveira e outros de seus sucessores ime
diatos, etc. Ele pretende voltar à Bahia para o mês e naturalmente trará
muito mais. Logo que ele voltar e a coleção estiver mais completa, ſarei
o indice de alguns volumes que digam respeito à guerra holandesa e re
metê - la - ei.
Sõbre Cardim sei que foi aprisionado em fim de setembro de 1601
(Franco, Imag. da Virt. em Évora, I , 725 ) ; que o corsário que o aprisionou
foi Francis Cooke, de Darmouth , provavelmente ( Purchas, Pilgrimages,
IV, p. 1289 ) ; que fugiu em 1602 para Calais, levando quinque illustris
simas puellas, quarum duae erant e Reginae familia. ( Franco, Sinopse,
p. 179 ) . Quem ajudou a fuga foi o Padre Michael Roger, e sobre este
deve haver alguma informação em uma História dos Jesuítas na Inglaterra,
publicada há poucos anos , tendo por autor Folville ? , se me não engano.
Se lhe fôr possível , peço-lhe, pois, que procure éste nome.
Dos folhetos de que manda lista, tenho agora um ou dois, julgo eu.
Tinha mais em uma coleção que comprei do Ottoni, de 30 e tantos volu
mies ; mas dei-a a um amigo, Bulhões Jardim , de Goiás, por causa dos
opúsculos relativos a finanças, que é o que ele especialmente estuda.
Fr. Vicente do Salvador vai ainda muito atrasado, por causa das

1. O Barão do R. Branco escreveu sobre esta palavra : Foley.


CARTAS AO BARÃO DO RIO BRANCO 117

Cartas dos Jesuítas, cuja impressão terminou a 28 de setembro. Agora,


para serem publicadas, falta apenas que Cabral faça as notas. Em todo
caso , quero ver se dou um fascículo de Fr. Vicente este ano ainda,
compreendendo os dois primeiros livros e parte do terceiro. Com os
documentos que Cabral trouxe e com outros que há no Instituto Histórico
há tanta matéria para nota que já estou ficando enjoado.
Penso que o parecer de Cardim é antes de 608 b era muito usado
por v, do mesmo modo que r por 1 : temos pois a data VI8. Acresce que
neste ano Cardim ainda era ou acabava de ser provincial, ao passo que
em 1618 era reitor do Colégio da Bahia. É mais provável que o consul
tassem no primeiro caráter que no último.
Sõbre a obra de Seidler, julgo que Araújo não terá dúvida ; por
isso pode mandar para ser examinada mesmo por ele, que agora está um
guaranista de força. Eu tinha falado com ele há poucos dias para
publicarmos para o ano a viagem de von den Steinen ao Xingu ; mas
prefiro a publicação da obra histórica, sobretudo se não fôr muito grande.
Agora mesmo está terminando a publicação do livro de Herbert Smith, de
que terei o prazer de lhe oferecer um exemplar no primeiro vapor, talvez
no mesmo que leva êste.

Por ora é o que me ocorre escrever.


Sempre muito grato,
Admirador e am . obr.
J. CAPISTRANO DE ABREU
Rio, 25 de novembro de 1887.

Cabral envia - lhe muitos cumprimentos. Copiando uma inscrição junto


a Cachoeira na Bahia, apanhou uma intermitente que o maltratou muito.
Depois de chegado aqui no princípio do mês, ainda teve dois acessos.
Agora já cessaram e pode considerar- se bom . Ele pretende ir passar o
mês de férias na Bahia e mais o de fevereiro, para terminar a cópia das
inscrições e trazer da Tesouraria os volumes mais importantes que en
Para fazer um cálculo das riquezas que trouxe, basta que diga
contrar .

que do governo de Tomé de Sousa há mais de 1400 recibos com

os quais pode-se escrever a história íntima daquele período de modo quase


completo.
118 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Ex.mo Amigo Sr. Conselheiro,


Quis à força publicar no dia 20 o primeiro fascículo de Frei Vicente,
compreendendo os dois primeiros livros da História do Brasil. Fi-lo,
mas foi preciso deixar tudo de parte, e só agora posso responder mais
demoradamente as suas amáveis cartas. Vou fazê-lo, segundo me acudi
rem à memória os diversos tópicos, porque não tenho tempo para con
sultá- los .
Fui ontem com Simões à casa dos senhores Sousa & Irmãos, e dêles
recebi 48 $ , sendo 39 $ das cópias feitas antes da partida de V. Ex.a, e
9$ de Sena Pereira. A cópia dêste vai adiantada, e deve estar pronta nos
primeiros dias de janeiro.
Já falei com Martins para a cópia do plano de batalha; mas o Instituto
deve estar fechado até 6 do futuro, só depois poderei satisfazer as suas
ordens.
Muito obrigado pelo fac- simile de Anchieta, de que não tinha espe
rança, porque em geral ele escrevia apenas Joseph . Já está se gravando;
provavelmente as Cartas serão publicadas até abril. Muito obrigado tam
bém pela carta ; o Schetz 1 a quem foi dirigida é nada mais e nada menos
que o Esquertes das nossas crônicas. Os erros da transcrição no Boletim
da Sociedade de Anvers não têm importância para mim . De março a setem
bro passei a ler cartas manuscritas de jesuítas, por letra do século XVI e
estou familiarizado não só com a leitura como com os erros prováveis .
Com um pouco de trabalho reconstituo o original , e assim não me passa
cousa grave. O tal sermão da conversão de S. Paulo, para o qual o
Sr. Bagnet reclama seis meses a um ano, provavelmente eu o copiaria em
três ou quatro dias.
Como V. Ex.a verá pelo fascículo de Frei Vicente que remeto ( vai
também o livro de Herbert Smith ), é este o quinto número dos Materiais
e Achegas. O terceiro serão as Cartas de Anchieta . Quanto ao quarto,
tenho hesitado muito, ora querendo que fosse Fernão Cardim, ora as
Crônicas de Roma. Agora, porém, resolvi que será o volume sobre o
descobrimento do Brasil e sua exploração ( 1500/1511 ). Nêle pretendo
incluir : Carta de Caminha, de Mestre João, de D. Manuel aos reis de Es
panha, de Vespucci, viagem de Gonneville, Zeitung des Presills Landte ( que
Humboldt foi o primeiro a anunciar, mas que só foi interpretada em 81
por Wieser ) , primeira viagem de Solis, as viagens de Pinzón e Diego de
Lepe, Carta de Fróis, etc., reprodução de Barros, Gaspar Correia, Pedro
1. O Barão escreveu sõbre esta palavra : G. Schetz .
CARTAS AO BARÃO DO RIO BRANCO 119

Mártir, etc. Há muitas questões bibliográficas sobre as quais tive de con


sultar a V. Ex.a, porque Harrisse, na sua Bibliotheca Americana Vetustis
sima, nem sempre me parece claro.
O que, porém, desejo agora é que V. Ex.a me obtenha uma cópia
completa da 7.a e 8.a questões do processo de Colombo ( viagens de Pin
zón e Diego de Lepe ) . Navarrete dá em extrato o que há de importante
( III , 547/555 ) ; porém Fernández Duro, na memória que em 1883 publi
cou sõbre Colón y Pinzón, nas Memórias da Ac. de Hist. de Madrid
aponta diversos erros e omissões. Se fôsse possível obter cópia nova,
seria grande cousa . O ms. original está no Arquivo das Índias, que não
sei se é em Sevilha ou em Simancas. Houve dois interrogatórios : a 7.a
pergunta de Navarrete é também a sétima do segundo, mas a 6.a do pri
meiro ; a 7.a do primeiro é a oitava do segundo e de Navarrete. Estas
cópias só podem ser feitas por paleógrafos, o que quer dizer que hão de
ser bastante caras ; portanto, peço que me comunique a importância para
eu satisfazê-la aos senhores Sousa & Irmão.
Já copiei a interessante Instrução a D. Manuel Lobo, mas ainda não
conferi com o original. Comecei a do Dr. Fernando Mascarenhas, mas
é um pouco longa, umas 40 páginas, e só mais tarde poderei remetê-la .
Para terminar, algumas palavras sõbre Dermeval.
Mota Maia contou -lhe que V. Ex.a tinha - lhe dito : Cuidado com este
moço, porque ele há de lhe ser desleal. Dermeval acreditou nisto e, o que
é pior para ele, ainda acredita, apesar de todos os meus protestos e
demonstrações.
Posso apenas acrescentar que para ele a questão não está terminada.
Está à espera de não sei que carta ou aviso da Europa para reabri- la e
continuá-la com documentos novos, entre os quais posso lhe citar sem
indiscrição uma carta do Valdetaro, a quem Peters disse do Imperador:
Il n'est pas agité, il est fou.
Um dia destes almocei com ele, deixou-me até transparecer que é
bem possível faça nova viagem à Europa. Isto só depende dele : é dizer,
e Araújo imediatamente dará as ordens.
Estou convencido que o Imperador não pode nem deve mais reinar
no Brasil. Na melhor hipótese -- a de ele estar com a memória e a inteli
gência intactas - éle há de ouvir todos os dias alusões e grosserias, e por
fim há de descobri-las onde não as há. Imagine Moreira de Azevedo
lendo uma memória no Instituto e declarando modestamente que tem
lacunas : ou o Instituto ri-se, ou o Imperador cora.
120 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Mas é este um dos negócios em que o melhor é falar menos, como


dizia Martinho Campos. Estou convencido que o terceiro reinado será
uma desgraça e esta opinião vejo-a cada dia espalhar - se e consolidar-se ;
mas não pode deixar de ser assim . Acho que a História o que há de
dizer do Imperador é que ele não soube fazer o bem e não quis fazer o
mal . Coitado !
Muito boas festas e melhores entradas de ano.
Bien à vous,
J. C. ABREU
Rio, 23 de dezembro de 1887.

Ex.mo Sr. Conselheiro,


O Veiga da Câmara, a quem pedi informação sôbre um documento
que V. Ex.a deseja, disse -me que hoje é aniversário de V. Ex.a. Escre
vo-lhe, pois, para apresentar -lhe meus parabéns muito cordiais, e pedir-lhe
desculpa de meu prolongado silêncio.
Agradeço muito as informações que me enviou sôbre Fernão Cardim ,
e que esclarecem-lhe um dos capítulos mais obscuros. Talvez no Calendar
of State Papers haja mais alguma coisa.
Tenho lido a obra do Seidler, mas ainda não a entreguei a Araújo,
porque ele está em Petrópolis, e com as vindas diárias não é provável
que o possa examinar detidamente . Em principio, ele está disposto à
impressão. O autor dá notícias de fatos interessantes, e alguns capítulos
são até bonitos, como, por exemplo, o que se refere à morte da primeira
Imperatriz. Acho -o, porém , muito áspero, muito malévolo e odiento contra
os brasileiros em geral e Pedro I em particular. Lembra algumas das
páginas mais acerbas de Drummond e quiça do Timandro. No fim anuncia
que pretende publicar a sua viagem pela Espanha e França, na qual con
tinuava as suas narrativas do Brasil. Terá realizado ? É o que ainda
não sei.
Parece que em uma de minhas cartas escrevi que Araújo é um bom
guaranista, quando queria escrever que é germanista. De tupi não creio
que ele saiba palavra. Entretanto já submeti a inscrição a João Ribeiro,,
que entende alguma cousa e me disse que a tradução está fiel , embora não
literal ; ele fêz outra ao pé da letra, que remeterei na primeira ocasião.
Vou entender-me também com Macedo Soares c outros que passam por
entendedores.
CARTAS AO BARÃO DO RIO BRANCO 121

Os papéis do Angelis estão distribuídos por diferentes caixas, e


Cabral ainda não pôde separar todos os que V. Ex.a deseja. Na próxima
segunda- feira prometeu-me separar tudo, e então começarei os ex atos e
as cópias. O assunto é verdadeiramente interessante e eu não sabia que
houvesse tantos documentos a tal respeito. Entretanto contrista-me que
V. Ex.a vá se ocupar com eles, porque é mais uma demora para sua
História Militar. Tínhamos a esperança de ver este ano o primeiro vo
lume na publicidade, mas agora estou certo que não teremos esta dita.
Por que V. Ex.a não se resolve a fazer uma edição preparatória em nossa
coleção ? Ficaria o público desde logo senhor dos principais resultados ;
depois, o que fôr apurando a mais, publique mais tarde, em edição defi
nitiva e com os mapas, retratos e planos. Agora os documentos são pu
blicados na Imprensa Nacional, sem passar pelo Diário. Se V. Ex.a quiser
que as provas sejam mandadas para Liverpool, sê-lo-ão ; se não Cabral e eu
revê -las-emos com o máximo cuidado. É com muita razão que Daudet
denuncia no último volume o desejo excessivo de perfeição.
A Biblioteca Nacional , que possui Fr. Vicente do Salvador desde
1881, sem querer publicá -lo, resolveu -se agora a fazê-lo, depois de nosso
primeiro fasciculo, que enviei a V. Ex.a em dezembro. A edição será feita
com a ortografia da cópia e sem notas ; não é, pois, duplicata. Vou ver
se Saldanha junta à obra de Fr. Vicente a parte inédita do Valeroso
Lucideno, que a Biblioteca também possui.
Vou ter afinal ocasião de satisfazer um desejo de V. Ex.a. Para
o fim do ano, o Instituto Histórico pretende celebrar o seu jubileu, e
Franklin Távora, primeiro secretário , quer que a iestividade seja brilhante.
Aproveitando o momento psicológico, pedi e o Instituto concedeu licença
para publicar os Documentos Holandeses, colhidos por Joaquim Caetano .
Segundo uma sugestão sua, quis publicar mesmo em francês ; mas a
publicação só pode começar em junho, e aproveitando éste intervalo, o
Dr. Matoso Maia, professor de História do Brasil do Internato, está fa
zendo a tradução. À medida que as fôlhas saírem , irei mandando-as.
A meu pedido, o Dr. Fortunato Duarte está também traduzindo a
História de Barlaeus. Embora grande parte ou quase toda sua impor
tância desapareça com a publicação da correspondência de Maurício de
Nassau, que lhe serviu de base e em alguns pontos é literalmente trans
crita, a obra pelo estilo é muito recomendável e terá por isso mais leitores
do que a preciosa, porém séria, correspondência de Nassau. A propósito,
a Biblioteca Nacional já está de posse do espléndido Barlaeus de José
de Vasconcelos .
122 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Junto hoje cópia do regimento de D. Manuel Lobo, de que já falei


em carta anterior. Como verá, a cópia está feita há muitos meses ; não lha
mandei logo, porque receava que já a conhecesse, e das cousas que mais
me incomodam é arrombar portas abertas ; quando soube que o documento
lhe era desconhecido, quis mandá-lo conjuntamente com o regimento do
Conde da Torre. Este, porém, é bastante longo e não tive tempo de
copiá-lo ainda. Já agora é melhor incluí-lo na coleção holandesa. O re
gimento de D. Manuel Lobo é um dos documentos que maior prazer me
têm causado no estudo de nossa História, porque mostrou -me que o
Regente estava de boa fé, cousa de que eu duvidava. A cópia infelizmente
não é boa ; seria conveniente ver se em Lisboa existe outra mais digna de
fé . Eu copiei o que encontrei.
Para terminar, comunico -lhe que estou traduzindo ou antes imprimindo
uma geografiazinha do Brasil publicada há uns três anos e em Leipzig. É
um resumo de Wappoeus, e creio que poderá com vantagens ser introduzida
em nossos colégios .
Paro aqui, dando ao ilustre amigo mais uma vez os parabéns por este
ano e pelos que estão em perspectiva, e pedindo-lhe desculpa de meu
silêncio .
Bien à vous,
CAP . DE ABREU
Rio, 20 de abril de 1888 .

Rio de Janeiro, 13 de maio de 1888.

Ex.mo Sr. Conselheiro ,


O dia de hoje não é dos mais próprios para escrever cartas, mas
vai esta a apresentar-lhe congratulações pela libertação, que, a esta hora,
1/2 depois do meio -dia, ainda não está realizada, mas não pode tardar
mais que momentos. A obra iniciada por seu glorioso pai toca ao têrmo.
Mil parabéns .
Em um dos vapores passados, remeti-lhe o Regimento de D. Manuel
Lôbo. Com as pressas não o registrei ; espero, porém , que não corresse
perigo aquéle documento só interessante para nossa história. Já comecei
com Cabral a cópia de um dos documentos que deseja : a relação da vitória
de 6 de abril de 1641 contra os portuguêses. É bastante longo, escrito em
letra do tempo , e a cópia não pode ser feita muito depressa. Encarre
CARTAS AO BARÃO DO RIO BRANCO 123

gamo-nos dela, porque Simões não tem prática da letra.Nos dias de


Pedro II, que são os pares, escrevo eu, nos outros Cabral. Depois
conferimos com o original. Espero, pois, que nenhum erro escape, ao
menos de importância. Pode estar pronto até o fim do mês. Na ocasião
de remeter o documento, irão as respostas que V. Ex.a deseja. Das outras
duas cópias, iria provavelmente logo outra, porque não tem mais de 3
páginas. Em um dos volumes das Lettres Édifiantes há também a história
de uma bandeira paulista, dirigida por Frias, se me não engano ; tenho a
nota no meu exemplar do Varnhagen, que está em casa . Enviarei depois,
se fôr preciso.
A propósito de bandeira, chamarei a atenção de V. Ex.a para uma
carta de Anchieta, da qual se deduz ( deduzi eu pelo menos ) , que o costume
de bandeira é indio. Esta carta está na Revista do Instituto e refere-se
a um ataque do Piratininga em 1650. Outra circunstância interessante e
de que espero mandar a prova, é que a bandeira que os paulistas levavam
não era de Portugal. Se bem me lembro, li isto em uma carta dos jesuítas
espanhóis, relativa aos fatos contra os quais foram reclamar Montoya e
Días Taño. Pertence à Coleção Angelis. As bandeiras, ao menos em
certa data, realizavam -se na estação do pinhão : talvez dai viesse depois o
nome de monção, que se encontra nos principios do século XVIII ; no fim
do século e no Maranhão, bandeirante significava conhecedor da língua
geral. O modo por que se organizavam as bandeiras no século XVI
( meados ) , pode-se estudar no IV vol . de Purchas, não só na parte rela
tiva às aventuras de Knivet, que o Instituto publicou incompleta, como
no apêndice ao Treatise of Brazil, que atribuo a Fernão Cardim .
Estou a escrever porção de cousas que V. Ex.a conhece melhor que
eu : é para poder acabar esta depois de declarada absoluta a escravidão.
Dizem -me agora que já foi votada . Parabéns ainda uma vez .
Bien à vous,
J. C. DE ABREU

21 de maio de 1888.
Ex.mo Sr. Barão do Rio Branco ,
Permita-me que reitere hoje os parabéns que lhe enviei no dia 13,
por ocasião da lei libertadora. O nome oficial de seu grande pai vai ser
dignamente ressuscitado. Muitos parabéns meus e de Cabral .
124 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Tenho a honra de apresentar-lhe meu amigo Sr. Domício da Gama,


cujo nome já tem firmado brilhantes contos na Gaseta. Recomendo - o com
instância , certo de que há de apreciá -lo condignamente.
As suas cópias estão -se fazendo tão regularmente quanto possível no
meio da inundação de festas .
Embora já lhe deva ser conhecido, chamo a atenção para um jornal
da viagem de Duguay -Trouin e expedição contra o Rio de Janeiro, publi
cado nos últimos números do ano passado e nos primeiros deste ano da
Révue Coloniale et Maritime.
Bien à vous,

J. CAPISTRANO DE ABREU

Ex.mo Amigo Sr. Barão,


Escrevia-lhe hoje ao meio -dia , apresentando -lhe Domício da Gama,
um escritor de grande talento. Ele e Raul Pompéia são as duas vocações
literárias mais vigorosas e mais brilhantes que conheço atualmente : ambos
do Rio, Domício de Saquarema, e Pompéia de Angra dos Reis. Escrevo
lhe agora para responder alguns tópicos de sua carta de 15 de abril, rece
bida à tarde .

Eduardo Prado escreveu -me dizendo que procurasse Torres & Cia.
Fui lá, porém eles não tinham ainda recebido a ordem. Irei novamente
nestes dois dias, depois da chegada do vapor do Pacífico . Quanto a Co
lombo, não sei se fui bastante claro na carta em que me referi ao processo.
Quero apenas os quesitos relativos a l'icente Pinzón, a Diego de Lepe e
Mendoza, que são os únicos interessantes para a nossa história . Desejaria
também , entre parênteses, notícias de um ms. relativo ao Brasil , escrito
cerca de 1580 por João Batista Gessi. É citado por Jimenes de la Espada,
em um número da Sociedade de Geografia , publicado poucos anos há. O
que desejo é saber o título dos capítulos, o número das páginas e o para
deiro. Há alguns anos, um filho de Sousa Reis , que era adido em Madrid,
mandou perguntar a Portela se tal ms. era conhecido aqui. Informei a
Portela que não, mas ignoro para que serviu tal informação. Julgo que
para nada .

Dou-lhe muitos parabéns pela descoberta relativa a Norton, que deve


ser capital . E como V. Ex.a está com tão boa estrela, veja se obtém
por intermédio de Ferdinand Dénis noticias de umas notas dominicais de
CARTAS AO BARÃO DO RIO BRANCO 125

Tollenare 1 ( Pôrto Seguro, Hist. pág. 1136, n.° 3 ) , francês que assistiu à
revolução de 1817 em Pernambuco.
Já pedi a meu sogro para ver se separa os papéis da contadoria.
Apenas esteja feita a separação, irei tomar as notas, porque o processo
é mais sumário .
A cópia de Sena Pereira já entreguei a Garnier 2, que deve tê-la
mandado com os livros que V. Ex.a encomendou . Na mesma ocasião re
meti uns folhetos que me pareceram úteis a seus estudos e que já devem
ter chegado a Liverpool. A parte de Sena Pereira publicada no Brasil
é muito resumida. Segundo se lê naquela fôlha, a publicação em avulso
fôra antes até a pág. 128 ; mas nem a Bibl. Nacional nem a Fluminense
nada contêm a tal respeito, além das 3 primeiras folhas ou 4.
Na Bibl. Fluminense tive ultimamente ocasião de examinar uma co
leção importantíssima, relativa a Furtado de Mendonça em S. Catarina, a
Böhn e Finck, etc. Uma porção de volumes manuscritos, que pertenceram
à livraria de Castelo Melhor. Julgo eu que, depois de estudadas aquelas
fontes, nada mais restava a elucidar em um período de mais de 20 anos,
até o fim do vice-reinado de D. Luís de Vasconcelos.
Fico à espera das notas de Eduardo Prado sôbre Schetz. Não
sei se já disse a V. Ex.a que é o Esquertes de nossos cronistas, que com
Adôrno foi dos primeiros senhores de engenho em S. Vicente. As cartas
de Anchieta estão entregues a Teixeira de Melo, e deviam sair até o fim
do ano ; provavelmente não sairão, porque antes de tudo desejo pôr fora
os documentos colhidos por Joaquim Caetano, cuja impresão deve começar
em junho. Em julho ou agosto hão de estar prontas as Cartas Avulsas
dos Jesuítas, já impressas, mas não publicadas ainda, à espera das notas
de Cabral.
A narrativa da batalha de 6 de abril de 1641 está sendo copiada
regularmente, mas devagar. Enquanto não estivermos mais familiarizados
com a letra, é necessário mais de uma hora para copiar uma página ; a
narrativa, segundo calculamos, não dará menos de umas 50, na cópia.
Por ocasião de mandá -la, irão as respostas às perguntas formuladas por
V. Ex.a. As outras cópias, mais curtas, irão gradativamente.
Falei-lhe em uma das últimas cartas a respeito da bandeira de Frias
( Pôrto Seguro, pág. 792 ) . As Lettres Édifiantes dão algumas cousas a

1. O Barão do R. Branco escreveu novamente : Tollenare.


2. Anotado pelo Barão : Recebi a cópia de S. P.a.
126 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

tal respeito, no vol. XII. Não tomei nota da página, talvez porque há
mais de uma edição. E fico aqui por agora 1 .
Bien à vous,
CAP . DE ABREU

Não sei se V. Ex.a recebeu Fr. Vicente do Salvador 2, H. Santi },


que remeti em dezembro ou janeiro, e o Regimento de D. Manuel Lôbo 4,
que deitei o mês passado no correio.
Até hoje, 13 de junho, não chegou a ordem de Eduardo Prado. Fui
duas vezes a Torres ; depois escrevi-lhe, incluindo a carta de Eduardo.
Devolveu -ma, mandando verbalmente a resposta de que nada recebera.
Se possível, prefiro que a ordem venha por intermédio dos seus corres
pondentes.
Agora estive com o Comendador Militão, para chamar-lhe a atenção
para um tópico do discurso de Coelho Rodrigues, relativo ao túmulo do
Visconde de Rio Branco, publicado no Diário Oficial de ontem .
Disse-lhe que achava útil uma retificação. Não sei se ele terá pen
sado do mesmo modo.

13 de junho de 1888.

Ex.mo Amigo Sr. Barão,


Antes de tudo devo dizer-lhe que tenho - lhe escrito algumas cartas
que me parece não lhe chegaram às mãos.
Tenho feito pouco do que tem me recomendado, por uma circunstân
cia tristíssima: desde abril ou maio do ano passado nosso amigo Vale
Cabral começou a dar sinais de desarranjo cerebral . Hoje, apesar de ter
estado mais de dois meses no Eiras, julgo que se pode considerá -lo
definitivamente perdido, irremediàvelmente idiota. Não lê, não escreve,
não quer ir mais à Biblioteca, de sorte que muito provavelmente será
demitido por abandono do emprego, atrás do qual já anda esfaimado o
Moreira Pinto ; esta cousa tão simples, ir receber o dinheiro no Tesouro,
não faz senão com dificuldade. Imagine uma campainha elétrica, cujas
comunicações estão interrompidas, e que não dá som, por mais que se
calque o botão : terá uma idéia do estado a que se acha reduzido o meu

1. O Barão escreveu : Fernandez Camber.


2, 3, 4. O Barão escreveu sôbre cada um dos nomes : Recebi,
CARTAS AO BARÃO DO RIO BRANCO 127

excelente companheiro de trabalhos e velho amigo de tantos anos. Não


o tendo mais para auxiliar-me, tenho tido que lutar com as maiores
dificuldades .
Recebi sua última carta no dia 15 de novembro ! Vinha do Campo
de Santana impressionado, como pode imaginar, depois de ter visto uma
revolução. E que revolução ! Só há uma palavra que reproduz o que
eu vi : empilhamento. Levantou -se uma brigada, chegaram os batalhões
um a um, sem coesão, sem atração, sem resolução e foram-se encostando
um a um, como peixe na salga. Quando não havia mais batalhão ausente
ou duvidoso, proclamou -se a República, sem que ninguém reagisse, sem
que ninguém protestasse.
No ponto em que as cousas estavam, era a única solução razoável.
Antes uma Deodorada do que uma Saldanhada. Todo o Brasil aderiu ;
apenas em Pernambuco José Mariano levantou um grito separatista que
não ecoou . Digam o que quiserem, a República hoje é a pátria unida ; a
restauração seria a secessão.
A impressão geral que hoje existe a respeito do governo parece -me a
da indiferença. A Constituinte, pela qual tanto se brada na Europa, dei
xa-nos aqui perfeitamente frios. Tem-se confiança que Deodoro chegará
pelo menos até novembro, e Deodoro, segundo se diz, declarou que não
dará demissão a ministro algum . A cabeça dos ministros pertence-me, e
a minha pertence ao povo, são palavras que lhe atribuem. Esta segurança
relativa, esta certeza que não havia crises ministeriais por estes meses
tem tido bom efeito, e será um bem para o futuro. Poderá, porém , o
generalíssimo conseguir que o ministério chegue inteiro à Constituinte ?
Duvido muito : Rui Barbosa parece -me que só está de acórdo com Ben
jamin Constant. Demétrio e ele não se podem ver ; dizem que Campos
Sales também está zangado com o decreto sobre bancos de emissões, em
que se segou em seara que lhe pertencia ; Quintino parece que também está
descontente. E dizem que Rui está descontente com Quintino, porque a
viagem de Riachuelo não há de custar menos de 1.000 contos, com as festas
que se têm de dar em Montevidéu e Buenos Aires e agora parece que
também no Paraguai. Na sua última carta, fez -me duas recomendações:
uma sõbre o livro dos óbitos da Sé em 1710, outra sõbre a cópia da
devassa da tomada do Rio. Graças à intervenção de Monsenhor Brito,
já consegui que me mostrassem um livro de óbitos, mas pouco tem rela
tivo a 1710 começa em 1702 e vai seguidamente até 1709, com algumas
espécies de 1710 até março. A continuação ainda não se encontrou . De
pois de amanhã, segunda- feira, prosseguirei nas buscas.
128 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

A cópia da Biblioteca está encarregada a Simões, mas ainda nada se


pôde fazer por causa da aposentadoria forçada do bibliotecário Saldanha da
Gama, nomeação de B. Sampaio, farras, etc. Não lhe dê, porém , cuidado
que a cópia irá com brevidade.
Há tempos mandei para o Carranza um documento cuja cópia me
recomendou . Não sei lhe ele comunicou - lho ( sic ) .
Recebi e lhe agradeço muito os três retratos que me mandou de
Francisco Barreto, Pedro Jaques de Magalhães e Salvador Correia de
Sá. Como os descobriu ? Quando Varnhagen fazia qualquer descoberta
destas, escrevia ao Instituto, dizendo -lhe como a fizera. Bom exemplo
para ser imitado.
Encontrei um folheto do Barão do Rio da Prata que talvez não
possua, e que tem algumas cousas interessantes para a biografia : é uma
resposta ao Manuel da Costa, mais tarde Marquês de Queluz, se não
me engano . Mandá -lo - ei na primeira ocasião.
E aqui fico , meu caro Sr. Barão, como sempre a seu dispor, dese
jando apenas uma de duas cousas : ou que apareça pelo Rio em um
dêstes passeios infelizmente tão rápidos e tão raros, ou que afinal resolva-se
a publicar a sua História da Marinha e a sua História Militar. Por que
não dá uma edição preparatória ? Deixe para mais tarde o definitivo ;
não é justo que quem tem feito tantas descobertas e achado tantas novi
dades, continue com elas trancadas.
Ia terminar esta sem lhe dar os parabéns pela sua História do Brasil.
É espléndida, e quanto aprendi nela ! Veio -me a idéia de traduzi-la, acres
centando - lhe alguns capítulos e notas. Como lhe comuniquei, já estou
traduzindo o artigo do Brasil para o Garnier, e parte já está impressa.
O tempo não deixa mais espaço do que para repetir-lhe que continuo
o mesmo amigo admirador e grato .
Bien à vous,
J. C. DE ABREU
Rio , 25 de janeiro de 1890 .

Rui Barbosa mandou chamar Dermeval ara incumbi- lo de uma


comissão à Europa. Ficou tudo assentado, e Dermeval devia partir no
dia 28. Agora, porém , desmanchou - se tudo, porque é, segundo me
consta, a explicação de Rui - a Gazeta está em oposição.
Há de lhe parecer extraordinário que em um só dia se tomasse o
milhão de ações exigido pelo Banco dos Estados Unidos do Brasil. Dis
se-me Araújo que foi tudo fantasmagoria. Só Mayrink ficou com 600
CARTAS AO BARÃO DO RIO BRANCO 129

mil o que quer dizer que mais de metade não encontrou saídas.
Consta que pessoa que não possui nada tomou 2 mil contos.
Não sei se pelo fato de Rui ser essencialmente um homem de
livros, o certo é que não inspira a maior confiança a sua gestão fi
nanceira .
Felizmente não entendo destas cousas.

Ex.mo Amigo e Sr. Barão,


Escrevo-lhe esta carta às pressas, e só para não perder o vapor que
partirá amanhã cedo. Em outra ocasião serei mais extenso.
Agradeço - lhe muito as notas que promete para a edição brasileira do
artigo Brésil e fico à espera. Creio que o trabalho não estará pronto antes
do fim de maio e até este tempo não é transtorno nenhum esperar.
Já está quase tôda impressa a parte relativa à geografia ; na próxima
semana, entrará para o prelo a parte histórica. Tanto em uma como em
outra fiz algumas notas e acréscimos, de modo que julgo darão as duas
partes cerca de 300 páginas, se não mais, formato Charpentier. Na parte
histórica, pretendo juntar largos excertos de sua História no livro do
Santana Nery e desenvolver um pouco mais o que diz respeito ao povoa
mento ; é possível mesmo que acrescente uns três capítulos. A esta parte
juntarei os dois apêndices e o posfácio do Levasseur.
Como ficaria muito grosso o livro em un volume, provavelmente di
vidi-lo-ei em dois. O segundo compreenderá tudo que se refere ao Brasil
político e ao Brasil econômico. Para substituir alguns capítulos da política,
que ficam inutilizados, tenho planos de escrever a proclamação da Repú
blica, de modo que não faça double emploi com a de Levasseur. Uma
noite das passadas, em que não tive sono, rabisquei umas oito páginas ;
pretendo que sejam umas vinte.
Com todas as cousas que têm havido, doença do Cabral, acréscimo
de uma galeria ao edifício, os mss. da Biblioteca ficaram em desordem .
Agora estão organizados , e Simões vai começar a cópia . No morro da
Conceição não encontrei nada ; continuarei a procurar .
Achei um meio de obter cópias da Europa, de modo a satisfazer as
minhas curiosidades com as finanças. Francisco Alves, editor, mandará
tirar cópias por sua conta, que me irá passando à medida que chegarem .
Depois, prometeu -me Bittencourt Sampaio que faria aquisição delas para
a Biblioteca e pelo preço que custassem . Assim, com a despesa de pouco

12 1.0
130 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

mais de um conto por ano, em breve poderão ficar completas muitas


coleções provenientes de Melo Morais e Carvalho e acrescentarem - se
outras ; lucraremos todos.
Dou-lhe uma grande notícia ( para mim ) : estou resolvido a escrever
a História do Brasil, não a que sonhei há muitos anos 110 Ceará, depois
de ter lido Buckle, e no entusiasmo daquela leitura que fêz época em
minha vida uma História modesta, a grandes traços e largas malhas,
até 1807. Escrevo-a porque posso reunir muita cousa que está esparsa,
e espero encadear melhor certos fatos, e chamar a atenção para certos
aspectos até agora menosprezados. Parece -me que poderei dizer algumas
coisas novas e pelo menos quebrar os quadros de ferro de Varnhagen que,
introduzidos por Macedo no Colégio de Pedro II, ainda hoje são a base de
nosso ensino. As bandeiras, as minas, as estradas, a criação de gado pode
dizer-se que ainda são desconhecidas, como, aliás, quase todo o século
XVII, tirando - se as guerras espanholas e holandesas.
Estou passando seis horas por dia na Biblioteca, mergulhado em
mss ., espanando as poeiras do Conselho Ultramarino. Estou em puro
Pernambuco. Quer notícias de Caetano de Melo e Castro ? Do régulo
Jorge Cavalcante de Albuquerque ? De quanto ganhava o escrivão de
Olinda ? Nestes três meses é só pedir : tenho 4.000 páginas de Pernam
buco a la pear ( expressão cearense intraduzível, por que, por isso mesmo,
sou doido ) , já tendo achado muitas cousas : 4.000 páginas de mss., se
entende. Se se passar tudo como desejo, no dia 1.9 de dezembro partirei
para S. Rita de Passa - Quatro, no Mogi-Guaçu, e lá em S. Paulo (gosto
tanto de S. Paulo, que acredito ter nascido lá ; quando vi os campos de
Mogi-das-Cruzes e do Ipiranga, pareceu-me que ce muito me eram fami
liares) pretendo escrever em quatro meses de férias o infernal livro de
que tantas vezes tenho desesperado. Se assim fizé-lo irei mandando os
capítulos à medida que os fôr escrevendo, para que faça as correções e
indique os acréscimos que julgar convenientes. O que me penaliza é não
poder aproveitar seus trabalhos sobre a História Militar. Por que não
os publica aqui ? Por que não os dá em nossa coleção, como propus a
tempo ? Deixe a edição perfeita para alguns anos mais tarde. O que
tem apurado já é tanto que podemos esperar o refino mais uns dez anos.
Seu nome e sua pessoa vêm -me muitas vezes à memória, e sempre com
um travo de tristeza. Quando me lembro que pode dar-se o caso de
seus trabalhos não serem publicados, fico fora de mim , e meu desejo
era
ser ditador para desligá-lo de tudo e de todos, dar-lhe tudo que
CARTAS AO BARÃO DO RIO BRANCO 131

precisasse, mas com um prazo, o mais curto possível, para escrever a sua
História Naval e a sua História Militar.
Aproveito o papel que resta para lhe pedir um grande favor de
importância capital. Peço-lhe que consiga do Barão de Arinos informação
minuciosa do que há no Vaticano, na Propaganda Fide sõbre o Brasil
antes de 1807. Leio no último número da Révue Historique que se formou
em Roma um ofício internacional de cópias e pesquisas bibliográficas nas
bibliotecas de Roma e do reino, para o uso dos estudos históricos, literários
e científicos. O secretário deste ofício é o Sr. ftalo Palmarini. Como a
êste se há de dirigir o Alves para os trabalhos que lá forem necessários,
desejaria saber se oferece as garantias necessárias. Espero com ansiedade
a resposta do Arinos, porque decidirá se devo ou não adiar minha empresa.
E como o papel não leva a mais, permita-me que pare aqui o amigo agra
decido e admirador fervoroso .
Bien à vous,
J. C. ABREU
Rio , 17 de abril de 1890 .

Ex.mo Sr. Barão,

Caro Mestre e Amigo,


Escrevo -lhe esta carta às pressas , só para não perder o vapor . Pus
no correio há 2 dias a lista dos mortos de Duclerc . A cópia de Simões
tem estado atrasada por causa dos trabalhos do Tesouro e da Gazeta .
Brevemente lhe enviarei a história da Conquista do ( ilegível ] . Infeliz
mente o ms. está incompleto ; talvez porque Melo Morais o transcreveu
em um de seus livros. Hei de verificar isto.
Encontrei no Instituto um documento bastante extenso relativo à
guerra holandesa : o roteiro da armada das Ilhas, que reuniu-se à do
Conde da Tôrre. Vou lê-lo ; mandar-lhe -ei o que encontrar de interes
sante, pois me parece que não vale a pena copiar. O roteiro ocupa -se
apenas da viagem entre as Ilhas e a Bahia : nada contém , ao que me
pareceu, sôbre os quatro combates.
Nos seus estudos tem encontrado alguma cousa sõbre João Pereira
Caldas ", Governador do Piauí e Maranhão e depois comissário da demar
cação do Norte ? No terceiro vol. do Patriota vem com o título de Roteiro
1. Anotado pelo Barão, à margem : João Per.a Caldas.
132 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

do Maranhão a Goiás um trabalho que é talvez o que de mais profundo


e filosófico se escreveu nos tempos coloniais a respeito de certos aspectos
da nossa sociedade. Suspeito que Caldas é o autor ; mas para demonstrá - lo
precisaria de ter alguns elementos para a sua biografia ! , elementos de
que não disponho.
As encomendas para meu sogro pode considerá -las desesperadas.
Reformado compulsóriamente, não quer mais saber de nada que se refira
à marinha. Quase não há dia em que não rasgue um livro da especialidade.
Nosso pobre Cabral, depois de um período de hibernação, ficou fu
rioso : a família foi obrigada a recolhê-lo ao hospício. Creio que o seu
estado é desesperado.
Fiz talvez mal em comunicar-lhe que já lhe atribuíram a autoria de
Frederico de S. Constou-me o boato pelo Bittencourt Sampaio, o que quer
dizer que circulava na roda de Aristides Lôbo. O próprio Bittencourt
não acreditava, e depois parece que a balela caiu por si, pois não a ouvi
mais repetida.
A propósito da tradução do Brasil .
Está claro que nunca alteraria o texto, de modo a dar a outrem
responsabilidade que não lhe competia. Tenho feito acréscimos, uns no
texto, outros em nota, mas os do texto desentrelinhados, de modo que
qualquer pessoa conhecerá fàcilmente a diversidade de procedência, que
aliás seria explicada no prólogo. As modificações de texto até agora
feitas consistiam no capítulo de antropologia, onde, não havendo desenho,
tornou -se preciso dar outro jeito à frase. Em alguns lugares, irrefleti
damente corrigi provincia em estado 2.
Na parte política, em que vou entrar, parece -me que devo reservar
para o apêndice o texto, e pôr, sob minha responsabilidade e nome, o
estado atual de nosso país. Sei como é este povo ; se fizesse de outro
modo , imediatamente ficava o trabalho inutilizado .
Sem tempo para mais,
Bien à vous,
CAP.
15 de julho de 1890.

1. Anotado pelo Barão, à margem : Biog.a.


2. O Barão escreveu em cima das ralavras provincia e estado as abreviaturas :
prov.a e est.º.
DOMICIO DA GAMA E BARÃO DO RIO BRANCO
1
CARTAS AO BARÃO DO RIO BRANCO 133

Mestre e Amigo,
Tenho lido suas Efemérides no Jornal do Brasil e apreciado devida
mente . Pela primeira vez aparece neste gênero trabalho sério e fun
dado nas fontes. Abreu e Lima, Perdigão Malheiro não tinham idéia
clara de crítica histórica. Menos ainda José de Vasconcelos. Teixeira
de Melo fez em grande parte simples compilação ; quando Cabral e eu
quisemos ajudá-lo, já era tarde.
Não sei se suas Efemérides serão publicadas em volume; seria uma
pena se não o fôssem. Há tanta novidade nelas ! Hoje encontrei uma
que não me parece correta. Mem de Sá chegou à Bahia em 1558 — já
nosso Cabral o tinha provado. No volume de Cartas Avulsas dos Jesuitas,,
que ainda não está publicado, mas de que já lhe mandei um exemplar há
dois anos, há uma carta do Padre Antônio Blasques que, graças à cópia
que nos mandou dos dois volumes dos Diversi Avisi, foi pela primeira vez
interpretada direito. Aí se vê que Mem de Sá chegou à Bahia (na )
oitava dos Inocentes, isto é, 4 de janeiro de 1558. De um volume ms.
(cópia feita no princípio dêste século ) , trazido da Bahia pelo Cabral da
Bahia ( sic ) consta a posse de Mem de Sá a 3 de janeiro do mesmo ano.
Esta parte precisa, pois, de ser retificada.
Tenho procurado, mas debalde, quem ficou no governo da Bahia
entre a morte de Mem de Sá e a vinda de Luís de Brito . Seria Muniz
Barreto, alcaide -mor da Bahia ?
Na Coleção Martins veio porção de coisas relativas à Colônia do
Sacramento e capitanias do Sul . Estou tratando de fazer uma nota, para
ver o que convém copiar.
No último volume ou penúlitmo do Inocêncio, vem mencionado o livro
de um Padre Benci, jesuíta que residiu na Bahia, do qual possui a
Biblioteca Nacional diversos sermões livro que trata da escravidão.
Foi impresso em Roma, em 1998, se não me engano. Mandar-lhe-ei depois
notas mais precisas, porque hoje a Biblioteca deve estar fechada . Peço-lhe
que veja se será possível arranjar-me algum volume por lá .
Estou tratando de publicar um volume sõbre os índios, contendo em
1.° lugar os artigos do Dr. Paulo Ehrenreich, que traduzi para o Jornal
do Comércio, e algumas notas e documentos pouco conhecidos. Tomei
a liberdade de lhe enviar umas amostras de fumo legítimo de Goiás.
134 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Mandei pelo correio . Será este o melhor meio ? Tenho promessa de


mais, e posso fazer nova remessa.
E por hoje pára aqui o admirador am . obr.
J. C. DE ABREU
5 de agosto de 1891.

Mestre e amigo,
Encontro hoje na Gazeta a seguinte notícia :
( Em impresso)
“ Um missionário protestante de raça negra ou mestiça residiu por
muito tempo entre os ipurinas ou congiti que habitam os afluentes do alto
Purus nas fronteiras do Peru e da Bolívia .
Acha -se neste momento em Inglaterra, onde os materiais coligidos
durante a sua residência nessas afastadas regiões estão sendo cuidadosa
mente estudados .
A lingua dos ipurinas parece ser, segundo as observações de Steinen
e Ehrenreich , a mais importante, ou a mais falada , do grupo de linguas
maipures ou nuaruaques .
O missionário protestante em questão pôde reunir um copioso voca
bulário dessa língua, ainda pouco conhecida.
Breve relataremos os resultados dos trabalhos de investigação que se
estão fazendo. "
Ficar -lhe- ei muito obrigado se me puser a par do que houver, envian
do-me o que fôr publicado.
O livro do von den Steinen sobre os bacairis já está no prelo, na Casa
Leuzinger: a edição brasileira será um novo livro. O material que tenho
colhido é abundantíssimo. No original alemão há 4 lendas apenas, eu
dou agora mais de 30 ; Steinen dispõe de menos de 1.000 frases ; eu creio
ter mais de 6.000 e ainda continuo .
Desejo que faça boa viagem para os Estados Unidos, donde estou
certo trará triunfante nossa causa.
Bien à vous,
J. C. DE ABREU
10 de maio de 1893.

O que me enviar pode remeter para a Livraria Alves, Gonçalves Dias,


48 , caixa 590.
CARTAS AO BARÃO DO RIO BRANCO 135

Ex.mo Sr. Barão,

Mestre e amigo ,
Seus triunfos são da pátria e portanto meus. Se, em sua missão,
algum dia lembrou -se de mim, há de ter sentido que estava a seu lado,
quando pugnava por nossos direitos, que depois da vitória dava-lhe uin
abraço apetrado, que agora repito. O objeto desta carta é, como sempre,
incomodá - lo .
Em dezembro pretendo partir para o Amazonas, a estudar duas
línguas de índios : os apiacás no Tocantins, os crixanás no rio Negro.
Os apiacás são o extremo N. E. dos bacairis, cujo extremo S. O.
fica no Paranatinga, cabeceira do Tapajós. Há dois anos mora comigo
um bacairi, cuja língua tenho cuidadosamente estudado. Hoje possuo uma
coleção de textos originais como nenhuma língua do Brasil apresenta. Se
fosse a uma aldeia, no primeiro dia entenderia quase tudo, e creio que,
finda a primeira semana, falaria com desembaraço .
Os crixanás pertencem à mesma família lingüística, que é a caribe,
de que são o extremo S. O. ao norte do Amazonas. Graças a nosso
Eduardo Prado, já possuo o Gênesis e o Evangelho de S. Mateus, na
língua escauoio, falada na Guiana, e, segundo parece, quase idêntica ao
crixaná. Não menos de quatro vêzes encomendei este livro, sem resul
tado. Se não fosse Eduardo ...
Espero até o fim do ano ficar sabendo bastante escauoio, para não
perder tempo na aprendizagem do crixaná.
Mas fiquei ambicioso e pretensioso com o que obtive dos bacairis, e
quero ver se dos crixanás não obtenho só vocabulário frases, mas
tradições históricas e lendas , de modo a fechar ao N. do Amazonas o
círculo que agora, se puder estudar os apiacás, ficará fechado ao sul.
Por isso, e porque tenho certeza de que, mandando-os vir por nossos
livreiros, não poderei obtê-los, peço - lhe o obsequio de me enviar pelo
correio e com a maior brevidade possível :
W. H. Bret Mission Work among the Indian Tribes in the Forests of
Guiana, Londres, Society for Promoting Christian Knowledge ( s. d. ) .
W. H. Bret Indian Tribes of Guiana.
W. H. Bret – Legends and Myths of the Aboriginal Indians of British
Guiana .
Im. Thurm - livro sobre os índios da Guiana, cujo título não conheço .
O preço destes livros satisfarei aqui aos seus correspondentes, que
julgo serem ainda os srs. Sousa & Irmão .
136 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Desejava também saber novas de uns missionários que estiveram no


Purus, donde levaram muitas lendas e, segundo creio, uma tradução de
trechos da Bíblia. Embora meu objeto urgente seja o estudo de línguas
caribes, se tiver ocasião meter -me-ei também pelo grupo maipure, que
agora não me interessa, e é certamente menos belo e lapidar do que o
bacairi, o cumanogota, o charrua e outros.
Desculpe -me ainda uma vez as maçadas que lhe estou dando e dispo
nha do amigo inútil e sincero admirador.
J. C. DE ABREU
Rio, 22 de junho de 1895.

Ex.mo Sr. Barão,

Mestre e amigo ,
Acabo de receber um dos volumes, sobre a Guiana Inglêsa, que teve
a bondade de enviar-me. Os outros, comunica -me seu correspondente,
estão esgotados, mas vão ser reimpressos. Muito obrigado.
Passei uma noite inteira lendo sua memória sôbre os limites com
a Argentina, e, francamente, excedeu minha expectativa. É pena que,
como me disse Domício, a pressa obrigasse -o a omitir muita cousa já escrita.
Falei com Rodrigo Otávio para ser enviado um exemplar ao Dr. Sophus
Ruge, em Dresde, que é a primeira autoridade sobre questões de História
geográfica e Geografia histórica. Rodrigo neste mesmo instante assegu
ra -me que o Ministro do Exterior o fará.
Será um meio de estabelecer relações com Sophus Ruge, cuja obra
sôbre a época dos descobrimentos geográficos, já traduzida em italiano,
tomo a liberdade de recomendar-lhe muito especialmente.
Consente que termine esta carta pedindo -lhe mais um obsequio ? 0
Sr. Max Fleiuss, moço estudioso e inteligente, deseja fazer parte da
comissão de limites com a França, de que o meu ilustre mestre e amigo
será o chefe. Há por aqui toda a boa vontade em atendê-lo : uma palavra
sua será o suficiente para fazer pender a balança a favor dele. Creio
que já outros amigos lhe terão escrito a favor dêle. Faço - o por minha
vez, certo de que não me arrependerei.
CARTAS AO BARÃO DO RIO BRANCO 137

Breve espero remeter-lhe um trabalho meu sobre os bacairis, de que


já tive ocasião de falar -lhe.
Com toda estima e consideração
Admirador e am.º obr.º
J. CAPISTRANO DE ABREU
11 de outubro de 1895 .

Ex.mo Sr. Barão ,

No Brasil embarcou para a Europa meu amigo João Pandiá Calógeras.


V. Ex.a com certeza conheceu o avô, o tio e provavelmente o pai. É um
engenheiro de minas, dos bons tempos de Gorceix, espírito de vasta
cultura, e um belo caráter. Já foi deputado por Minas Gerais, donde é a
senhora, sobrinha de Bernardo Guimarães. Nas sessões secretas em que
se discutiu o tratado de arbitragem com a França tomou parte saliente.
Calógeras irá a Berlim, onde procurará V. Ex.a. Peço-lhe aco
Iha - o com a distinção de que é digno.
Cumprimentando a V. Ex.a, subscrevo-me
patrício am .° e adm.or
J. CAPISTRANO DE ABREU
Rio , 6 de março de 1901.

Ex.mo Sr. Barão ,

Tinha destinado o dia de hoje para ir a Petrópolis apresentar-lhe meus


cumprimentos, mas li ontem que V. Ex.a devia descer para tratar de ne
gócios urgentes .
Fica, pois, adiada a minha viagem para melhor ocasião, que procurarei
apressar o mais possível.
Resido no Campo de Santana, 25 , próximo ao Corpo de Bombeiros,
e aqui como em qualquer parte continuo
De V. Ex.a
Admirador e am.º obr.º
J. CAPISTRANO DE ABREU
Rio, 27 de dezembro de 1902.
138 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Ex.mo Sr. Barão,


Li o artigo do Jornal de hoje e com sua licença farei os seguintes
reparos :
Foi um erro assinar Nemo; pode prestar -se à troça desta gente sem
espírito, de nível intelectual muito inferior ao de 20 anos.
Era dispensável a resposta sobre a assinatura . Em primeiro lugar
porque elogiou muito o artigo ; em segundo lugar porque traz à baila
conversas de bondes .
[ borrão ) que se refere Lemos é o da [ borrão] pátria grande; êles
querem pátrias pequenas ; não dizem pátria, mas as pátrias brasileiras .
Com toda a consideração,
patrício am . obr.
J. CAPISTRANO DE ABREU
Rio, 11 de janeiro de 1903.
A GUILHERME STUDART 1892-1922

Meu caro Guilherme,


Todas as vezes que tenho recebido cartas suas, tenho começado e até
concluído a resposta. Mas nunca as mandei para o correio ; será esta a
primeira, mas não será a última, fique certo. Dora em diante serei
pontual.
Agradeço-lhe as notícias que me remeteu e vou transmitir ao Jornal.
Mande-me outras ; há muito que não se exploram arquivos portuguêses ;
todas as novidades que descobrir serão aqui bem -vindas. Interessou -me
muito quanto me diz sôbre a primeira viagem portuguêsa ao Brasil. Mas
serão autênticas as figuras ? É o que só os paleógrafos daí poderão
dizer ; Gabriel Pereira principalmente, que dizem notabilidade no gênero.
O trecho do Esmeraldo que me cita já o conhecia há alguns anos :
publicou-o Andrade Corvo em uma nota à edição do Diário de D. João
de Castro. A respeito deste texto, combinado com outros documentos,
comecei uma pequena memória, que nunca concluí, por preguiça.
O livro de ( ilegível] é conhecido aqui . A Biblioteca Nacional possui
um exemplar, comprado na Livraria Castel Melhor. O Barão do Rio
Branco possui outro , que julgo o original . Pouco instrutivo é, porque
o autor não encontrou muitos documentos originais, ou não os soube
aproveitar.
Aprovo e aplaudo a idéia da publicação dos documentos relativos
ao Ceará . Se ali houvesse espírito público, seria fácil levar ao cabo a
empresa patriótica. Nem se precisaria de auxílio dos magros cofres pro
vinciais ; há lá homens de bastante fortuna para isso. Mas...
Não sei quanto tempo V. demorará em Lisboa, onde gostaria muito
que V. se encarregasse de me ver umas certas cousas.
140 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

1.9 : Havia na Biblioteca Nacional de Lisboa, em 1848, um livro


intitulado : Copia de unas Cartas Enviadas del Brasil por el Padre
Nóbrega... Trasladadas del portugués en castellano. Recebidas en el
año de MDLI. Diz Varnhagen que a marcação era B - 10-30.
Desejo uma descrição bibliográfica rigorosa do livro , e um indice,
dizendo onde começam e onde acabam as cartas, porque preciso apurar
uns certos pontos de bibliografia que ainda não me parecem seguros.
2.° : Desejo uma cópia do Catecismo na Língua Brasílica ... Agora
novamente concertado, ordenado e acrescentado pelo padre Antônio de
Araújo, Lisboa, 1618. Diz Inocêncio, VIII, pág. 80, que o exemplar
existente na Biblioteca Nacional está entre os livros reservados ( Vol.
X. pág. 257 ) , tem o n.º 5 e é solfado no formato de 4.°.
Preciso muito de uma cópia feita com o maior cuidado, em livro
encadernado, de formato pouco maior que esta folha de papel, escrito de
um só lado. Peço - lhe que contrate o mais barato que puder, porque,
como sabe, não é por abundância de meios que me distinguem os
contemporâneos.
Aqui só existe, e não na Biblioteca Nacional, um exemplar no Instituto
Histórico, muito estragado, e outro, pouco menos, na Biblioteca Flumi
nense – mas apenas da segunda edição, feita pelo padre B. de Leão.
Da primeira edição só se conhece um exemplar em Lisboa e outro em
Paris.

Depois de obtida a cópia, quero ver se por qualquer meio obterei


a impressão.
3.° : Para terminar, vou - lhe fazer ainda um pedido. Na Torre do
Tombo existe um exemplar da História do Brasil de Fr. Vicente do
Salvador, mas incompleto. Veja se em suas investigações encontra um
códice completo deste livro, que é verdadeiramente a base da nossa his
tória de 1580 a 627.
E não tenho tempo para mais.
Bien à vous,
J. CAPISTRANO DE ABREU
19 de outubro de 1892.
Ladeira da Glória, 2.
CARTAS A GUILHERME STUDART 141

Meu caro Guilherme,


Depois de estar aqui na Serra dos Órgãos, recebi uma carta sua.
Tenho certeza de havê-la respondido e subscritado. Tê- la - ia mandado
pôr no correio ? É do que não estou certo. Em todo caso nunca mais
vi tal carta .
Em minha resposta dizia eu que parecia-me que V. me escrevera antes
sem que me chegassem as mãos suas letras.
Por um bilhetinho do Teixeira de Melo, chegado aqui há uns dois
dias, calculo que carta e papéis, cuja existência eu supusera existissem
( sic) efetivamente e por intermédio dêle tenham vindo. Diz-me Teixeira
de Melo que os entregou na Gazeta . Ainda estarão lá ? Quem sabe ?
Em todo caso mandei reclamá-los com urgência.
Aqui na serra tenho estudado regularmente bacairi. O material novo
que tenho colhido é considerável : ao passo que a edição alemã contém
900 e tantas frases, a edição brasileira conterá talvez umas 4.000 ou mais,
e todas novas.
Depois de ter colhido a descrição de plantas, animais e objetos etno
gráficos, passei às lendas de plantas e animais, de que tenho umas 20 a 30 .
Vieram depois traduções etnográficas em que há muitas novidades, as
lendas etnográficas e depois as crenças. Quanto respeita a éste ponto é
absolutamente novo.
Só me falta agora que o índio me descreva as danças que, entre
êles, como em geral entre os povos selvagens, representam o culto, a
propiciação dos seres sobrenaturais. Consegui-lo -ei acaso ?
As vezes tenho esperança, outras desespéro. Representam elas o
sancta sanctorum , e é muito natural que Irineu hesite muito e muito, antes
de deixar penetrar lá um intruso.
A lingua dos bacairis leva -me à dos tupis. Como V. sabe, a segunda
gramática que do tupi se publicou deve-se a Luís Figueira, o compa
nheiro de Francisco Pinto, dolorosamente associado à história do nosso
Ceará .
Da obra de Figueira publicaram -se diversas edições, nestes 15 anos, tal
vez não menos de 3, das quais uma no Rio ; são todas reimpressões da
segunda edição, publicada em 1680, pouco mais ou menos. Que fim ,
porém , levou a primeira edição ? Até aqui não é conhecida, segundo
parece. Inocêncio não a descreve, nem ninguém mais. Ora, é esse
documento capital para a gramática histórica da lingua tupi, a que
talvez ainda um dia me atire. Peço-lhe, pois, que aplique todo o seu
faro e toda a sua pertinacia de bibliófilo a esta questão, e veja se me
142 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

descobre um exemplar de tal obra. Preciso dela, e se a Biblioteca Nacio


nal não pagar a cópia, fá-lo-ei eu , embora me custe sacrifício.
Da carta de Teixeira de Melo, vi que Lino de Assunção obteve últi
mamente algumas informações novas sõbre Frei Vicente do Salvador.
Sou muito amigo do Lino e da amizade já me tem dado ele mais de
uma prova : mas às vezes Lino é descuidado e preguiçoso. Por isso lhe
peço que indague dêle quais são as novidades e mas comunique.
No correr de suas investigações V. encontrará certamente, pelos fins
do século XVII, o nome do jesuíta João Antônio Andreoni. É esta uma
das figuras mais notáveis, mais inteligentes e curiosas do jesuitismo entre
nós. Publicou, sob pseudônimo, um livro que é uma das raras joias
da nossa literatura histórica, e deixou diversos trabalhos manuscritos,
entre eles um, De Rebus Brasiliae, ignoro se escrito em latim, se em
português. Se fôr, como suponho, uma corografia histórica, já pelo
autor, já pela data em que foi escrita, deve ser de capital importância.
Peço -lhe que me comunique o que encontrar sobre Andreoni, cuja bio
grafia ainda pretendo escrever.
Como vai seu livro sôbre o Ceará ? Que diz de novo oms, do
Borges da Fonseca ? Escreva-me longamente. Até o fim do mês pre
tendo descer para o Rio de Janeiro e dali sereị correspondente assíduo.
Recomende -me à ex.ma família .
Bien à vous,
J. CAPISTRANO
Teresópolis, 8 de março de 1893 .

Meu caro Guilherme,

Recebi há dias um exemplar de suas Notas e ontem uma carta sua,


carimbada de 30 de junho, e aqui chegada a 12.
Estimo muito que já esteja de volta a nossa boa terra, e disposto a
consagrar-se cada vez mais à sua história e geografia. Já hoje é o Ceará,
dos estados do Norte, o que melhor tem estudado sua história ; razão de
mais para afirmar e consolidar a sua supremacia.
Agradeço-lhe muito a remessa de suas preciosas Notas, cuja lei
tura já comecei leitura fatalmente lenta, porque muitas ocupações me
distraem , e além disso de tão perto me interessa o assunto que não posso
passar por ele de corrida.
CARTAS A GUILHERME STUDART 143

Sôbre o primeiro capítulo, único que assimilei dos outros ape


nas fiz um reconhecimento geral até pág. 334 peço -lhe licença para
fazer algumas observações.
Não vejo motivo para a referência constante e pouco benévola às
pessoas que antes trataram do assunto das minas do Cariri . Fizeram
no fundadas em documentos incompletos ou truncados. V. teve a felici
dade de conhecer os autos completos. Não acha suficiente esta felicidade ?
Há uma página em que V. compara as versões de João Brígido,
Theberge e Pompeu, em que sem dúvida V. mostra seu tino crítico, mas
quer que lhe diga ? era dispensável e está deslocado. Aquele processo
em que se pesam e medem as mínimas minudências tem sua razão de
ser, e eu mesmo tenho empregado em casos especiais: é o Strauss, por
exemplo, a propósito dos Evangelhos; será o único legítimo quando hou
ver somente cronistas contraditórios, de cujo choque é preciso tirar luz .
No seu caso , porém, é excessivo e serve somente para tornar a narrativa
difícil e a leitura penosa. Imagine que tem deixado a sua atitude mili
tante e a narrativa tornar-se-ia mais simples. Começaria pela pág. 18,
indicava logo o papel de Alves de Matos, Quaresma, etc., para depois
passar ao de Aboim , Correia de Sá , Jerônimo Paz . Tinhamos assim
um prólogo em 1712 outro ato como o que se fêz no Ceará antes de
em Pernambuco se tomarem providências outro no encontro das duas
forças e finalmente o desenlace.
Como lhe disse, tenho apenas feito um reconhecimento geral, mas
tenho descoberto muita novidade e ainda espero descobrir mais. Nos
documentos que V. publica por sem dúvida o Ceará ocupa o primeiro
lugar ; mas muita cousa ali existe que interessa e esclarece a nossa his
tória geral.
Terá V. razão no apreço que dá ao Fr ... ? não tenho o livro à
mão, não me acode o nome agora. Duvido : creio que o Fr. Loreto,
pernambucano, escreveu muita cousa . de oitiva, e contra ele será pouca
toda a cautela . Assim transcreve V. um trecho sobre João D'Uy, que
me interessou muito, e fêz-me pensar. Vi então que se tratava de Janduí,
indio célebre na guerra holandesa , inimigo dos portuguêses, cariri, e não
potiguar, a quem se refere Barléu mais de uma vez, a cuja aldeia fêz
Roulox Baro uma viagem , de que aqui na Biblioteca possuímos uma
tradução francesa impressa em 1650 e tantos. Compare V. estes fatos
com o que diz o frade !
Interessou -me muito o que me diz sobre Antonil, um amigo velho.
Lembra - se que no Ateneu , entre outros livros de aula , tivemos o Iris
144 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Clássico, de Castilho ? Há ali um capítulo que por mais de uma vez li


aí nas calçadas altas, sempre com uma impressão esquisita, assinado An
tonil. Vindo para o Rio, um dia, na Biblioteca, perguntei a Vale Cabral
se a casa possuía-o e levei- o para ler com mais vagar. A leitura agra
dou-me bastante e perguntei ao meu bom Vale Cabral quem era êste tal
Antonil. Respondeu -me então Cabral que não se sabia, e enviou-me
para Inocêncio, Rivera, Varnhagen, etc. A cousa é assim ? – disse a
Cabral pois hei de descobrir o autor . Reli então pausadamente , sabo
rosamente , deliciando -me, a Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas
e Minas.
Resultado : o autor era jesuíta, como se prova pela referência ao en
genho de Sergipe do Conde, que pertencia à Ordem ; pelo fim a que se
consagrava , a canonização de Anchieta ; pela discussão sôbre quintos de
minas, que denunciam teólogo consumado.
Depois de convencer -me que o autor era jesuíta, chamou-me a aten
ção uma parte da dedicatória ou prólogo, em que o autor, depois de ter
escrito, na primeira página, André João Antonil, assina-se entretanto Anô
nimo Toscano. Anônimo Toscano, traduzi, significa aqui jesuíta toscano.
Comecei então a procurar jesuítas italianos entre poucas informações
que temos dos fins do século XVII e princípios do século XVIII . Apa
receu-me logo o nome de Andreoni , a quem Vieira refere-se com elogios
em uma das suas cartas, que era reitor do colégio da Bahia quando mor
reu Vieira, e teve a honra de ser um dos que carregaram -lhe o cadáver,
que escreveu sôbre a morte de Vieira uma carta de que existe cópia
em Lisboa, e que deve ser muito importante sei por ora só que é
extensa .
Desde então convenci -me que Andreoni e Antonil eram uma e a

mesma pessoa . Mas acredita V. ? Passei meses, talvez anos, sem fazer
tal verificação. Uma vez estava eu na Biblioteca, lendo não sei o quê,
quando lembrei -me da verificação a fazer. Levantei-me, fui ao Cabral,
que estava escrevendo na mesa de que agora lhe dirijo esta carta e disse
lhe : V. vai ficar furioso . - Por quê ? Porque afinal vou descobrir
quem é o nosso Antonil. Neste caso vou ficar é alegre.
Da mesa do Cabral fui à estante em que estava a Bibliothèque des
Écrivains de la Compagnie de Jésus de Backer, abri o vol . VII , que
contém o índice geral , e remeteu m
- e para o vol. VI, p. 14 .
Abri-o, e, apenas li as primeiras linhas, corri para a mesa do Cabral
Cabral! Cabral! achei! E, se é capaz , imagine o prazer com que
lemos :
CARTAS А GUILHERME STUDART 145

Ubertas et opulentia Brasiliensis per assiduam mercium , aurique com


mutationem aliarumque rerum notitiae ad confectionem sachari, et beti,
vulgo Tabaco culturam , methodus nitide effodiendi aurum , argentique
fodinas indagandi annui reditus et proventus Lusitaniae Coronae ex Ame
ricano statu provenientes. Opus V. P. Josephi de Anchieta publicae
venerationis studiosis nuncupatum , editum suppresso nomine Authoris
Lusitanice. Lisboa , Deslandes, 1711, in 4.°. Quia tamen liber plus in
commodi quam utilitatis Lusitano Statui allaturus videbatur jussu sere
nissimi Regis suppressus est. ( Lopez de Arbizu ) .

Não preciso dizer que foi um dia de delírio. Jantamos juntos, toma
mos cerveja juntos , conversamos até meia-noite e separamo -nos à contre
cocur. Que bom tempo aquele, em que a descoberta de um anônimo
bastava para coroar de rosas um dia.
Vimos logo que, de João Antônio Andreoni , era anagrama ou cousa
que o valha André João Antonil ; mas uma cousa nos causava espécie :
que significava o L final ? Foi ainda no Backer que achamos a resposta :
Andreoni era de Luca, na Toscana ; L significa luquensis.
Cabral queria que eu escrevesse um artigo sôbre o assunto, mas eu
nunca o fiz. Em 86 , porém , publicando um inédito de Anchieta, escrevo
no prólogo, pág. XII , escrevi [ sic ] para fixar data : André João
Antonil, ou , para dizer o verdadeiro nome, João Antônio Andreoni, por
que Antonil era pseudônimo. Comuniquei, entretanto , desde logo a des
coberta às pessoas a quem poderia interessar, principalmente a um amigo
meu que possuía a primeira edição raríssima! e que ele está com
prometido a me deixar por testamento . Depois tive a felicidade de con
correr para que a Biblioteca obtivesse um exemplar, também . Há, pois,
aqui no Rio , 2 exemplares da primeira edição. A segunda, feita aqui em
1837, não é comum , mas encontra -se uma vez por outra ; ainda há dois
anos comprei um exemplar para dar de presente a Eduardo Prado.
Para aproveitar o que sobra do papel, dir-lhe-ei que até hoje Teixeira
de Melo não recebeu a cópia que por intermédio seu e V. pelo dêle man
dou Lino de Assunção. Estará irremediavelmente perdida ?
Soube hoje que aqui na Biblioteca receberam um catálogo de seus
manuscritos ; infelizmente só amanhã poderei vê-lo, porque o empregado
que tem a seu cargo esta secção só vem à noite. Depois de vê-lo, talvez
The possa enviar alguns documentos que V. não conhece e que possuímos.
Não se esqueça de mandar-mo.
13 1. "
146 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Quando me escrever , dirija antes para Gonçalves Dias, 46 , caixa


do correio 590 , Livraria Clássica.
Meus cumprimentos à ex.ma família.
Bien à vous,
J. C. DE ABREU
18 de junho de 1893.

Meu caro Guilherme,

Li outro dia com muito interesse e proveito o seu trabalho sôbre a


história do Ceará.
Agora parece-me que só falta a primeira parte do século XVIII e
a primeira do nosso século para V. acabar o seu périplo.
O Ceará é incontestàvelmente o estado do Norte cuja história está
mais investigada. Como seria bom se houvesse para Pernambuco um
Guilherme Studart ! Como não há, o resultado é o que se vê em todas
as Histórias : os fatos sucedidos entre a retirada dos holandeses e a
Guerra dos Mascates cabem numa página ; em cutra página cabe o que
se sabe entre a Guerra dos Mascates e a Revolução de 17.
Soube outro dia com grande prazer que V. pretende vir ao Rio no
próximo ano. Oxalá ! E quer me fazer um favor ? Traga sua coleção
para examinarmo-la aqui na Biblioteca Nacional. Há documentos no seu
catálogo que eu desejaria tanto ler. Num livro da Biblioteca do Marquês
do Pombal, que V. descobriu, e talvez seja o de Loreto Couto, há tanto
talvez a aprender.
V. pede as minhas monografias. Geralmente só tenho escrito em
jornais e não só não guardo os artigos como nem sei o número em que
saíram . Da minha tese não tenho um só exemplar ; da monografia sobre
D. Manuel talvez descubra algum , um dia em que me dispuser a afrontar
a desordem da folhetada.
Continuo o meu trabalho sobre os bacairis. Agora já estou mais
orientado. Recebi ontem uns catecismos na língua cumanogota, que faz
parte do mesmo grupo, que é o dos caraibas. Logo que me familiarizar
um pouco com a construção da frase, o que julgo exigirá pelo menos
um mês e meio a dois meses, investirei de uma feita contra o bicho.
Mesmo porque já tenho gasto muito tempo com esta lingua, e o tupi e
o cariri me reclamam .
CARTAS A GUILHERME STUDART 147

Estava com vontade de ir passar as férias em Minas ; mas o diabo


dêste cólera, que em suma não é cólera, vai me transtornar o capítulo .
Por ora aqui ainda está fresco, como em geral é em dezembro ; mas
o terrível fevereiro, o medonho março batem às portas e garanto -lhe que
para mim não será nenhum prazer se tiver de aturá-los.
Adeus. Até abril, não é ? V. aqui tem trabalho para alguns meses,
e asseguro -lhe que não perderá o tempo.
Meus cumprimentos à ex.ma família .
Boas saídas e melhores entradas .
Bien à vous,
C.
Rio, 29 de dezembro de 1894.

Meu caro Guilherme,


Desde princípio de dezembro estou em S. Paulo, onde vim espairecer
um pouco. Segui pela Mogiana até Uberabinha, passei três dias em
Uberaba, quatro em Ribeirão Preto, cinco no Brejão, com Eduardo
Prado, um e meio em Santa Silvéria, com Leão Veloso. Jaguaribe le
vou -me aos Campos-do - Jordão, onde demorei nove dias ; depois de ama
nhã irei de passagem a Piracicaba .
Estou -me despedindo desta encantadora terra paulista, que tanto amo
e visito agora pela quinta vez. Provavelmente será esta a última.
Li outro dia na Gazeta que V. transcreveu na Revista do Instituto
meu artigo sôbre seu livro . Por que não me avisou ? Teria feito cor
reções e acrescências, de modo a sair menos imperfeito.
Escrevo-lhe esta carta para lhe dar dois incômodos : 1.9 : V. tem
cópia da carta de Manuel de Sousa d'Eça, existente no Museu Britânico,
de que Varnhagen faz menção às páginas 444 e 491 ? Já tive, mas per
deu-se no mesmo momento em que a recebi. Se tiver, peço-lhe o obsé
quio de me mandar, porque preciso com grande urgência. 2.0 : Sobre
a conquista do Maranhão V. consultou documentos inéditos, alguns não
aproveitados até hoje. Peço-lhe portanto que leia com todo cuidado a
página 448 de Varnhagen e mande as correções que está pedindo, e
não sei se no Rio há elementos para fazer.
Ainda não sei ao certo quando tornarei para o Rio. Se o Ginásio
se abrir no começo de abril, partirei dentro de dez dias ; se não, minha
demora será maior.
148 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

(
Estou aqui em Santa Rita, na fazenda de um parente de meus
filhos, desde 14 de janeiro. Antes passara mês e meio na Capital, que
só agora fiquei conhecendo, porque das outras vezes passei sempre de
' corrida .
Como vai você ? Como vão seus filhinhos ? Beije os pobres òrfão
zinhos. E adeus.
Abrace o amigo velho,
CAPISTRANO
S. Rita de Passa - Quatro, 20 de março de 1899.
Meu endereço no Rio continua Laranjeiras, 2. ou Livraria Alves,
Ouvidor, 136 .

Caro Guilherme,

Há muito tempo que desejo lhe escrever ; mas vou adiando , ou


deixo a carta depois de escrita sem mandar pelo correio, e só a encontro
meses depois, quando já não tem atualidade.
Como tem passado ? Como estão seus filhinhos ? e seus trabalhos ?
Recebi em tempo seus livros sobre Ceará-província e Ceará -república ;
não pude, porém , senão folheá -los. Aguardo uma estiada, para consa
grar -lhes a atenção que reclamam .
Tenho ordem do ministro da Fazenda para continuar a coleção de
documentos sobre a História do Brasil, que há anos comecei com Vale
Cabral. Venho pedir -lhe o seu auxilio.
Não poderá V. agora começar a publicação metódica dos documentos
relativos ao nosso torrão ? Creio que uns três ou quatro volumes che
gariam para o principal, e V., que pretende celebrar o centenário em
1903, poderia antes ter terminado a divulgação de seu arquivo.
Vou -lhe dizer o modo por que me parece que a empresa se poderia
realizar. Há documentos que não pedem mais que o transunto ; por exem
plo, nomeações, etc. Há outros que devem publicar -se integralmente,
exemplo: todas as cartas mandadas para o reino, por mais insignificantes
que sejam .
Os documentos desta ordem V. até hoje tem publicado com a falta
de ortografia e pontuação no original, deixando a cada um interpretá -los
como entender. O sistema que eu e Cabral introduzimos é diferente por
CARTAS A GUILHERME STCDART 149

muitos motivos : primeiramente nosso trabalho, embora feito com o maior


rigor a que podemos atingir, é de vulgarização ; em segundo lugar, ater-se
à ortografia arcaica é conjurar contra si todos os compositores e revi
sores ; em terceiro lugar, o editor preocupado com a grafia não tem
tempo de atender a questões mais sérias ; em quarto lugar, é preciso
que quem edita qualquer papel assuma a responsabilidade da interpretação,
Nestas condições, creio que V. poderia dar anualmente um volume
de quatrocentas a quinhentas páginas, que, no formato e na letra das
Informações de Anchieta e de Nóbrega, conteriam muita matéria .
A realizar-se éste plano, pedir- lhe -ia a maior catolicidade; aproveitar
todos os documentos conhecidos, queros de seu arquivo, queros que
já foram publicados por João Brigido, Araripe, Perdigão, etc.: nada de
exclusivismo. Nos de seu arquivo, conviria indicar a procedência, que
infelizmente V. calou no seu catálogo.
A edição do governo é pequena, 300 exemplares: dêstes creio que
a Imprensa Nacional lhe daria 50. Creio também que o Acioli ou Pedro
Borges não se negarão a fazer a despesa do papel para que a edição
seja maior e se possa distribuir um exemplar pelas câmaras do Estado.
O primeiro trabalho que desejaria publicar é uma memória ainda
inédita de Taques sobre o descobrimento das minas: resolvi, porém , dar
preferência aos Diálogos das Grandezas do Brasil, porque, embora reim
pressos na Revista do Instituto Arqueológico, são totalmente desconhe
cidos. Espero começar nestes dias ; o trabalho do Taques virá depois.
Para o meio do ano virá o seu , se V. quiser auxiliar -me como espero.
Outro dia, folheando seu catálogo, vi notícia de dois documentos
sõbre João Velho do Vale ; como é personagem que muito de perto me
interessa , peço-lhe me diga o que contêm . Também desejo saber que
livro roto [ ? ] é um da Torre do Tombo, de que V. fala.
Ia chegando ao fim da carta, sem lhe falar da cousa principal . A
livraria Laemmert me encarregou de publicar uma nova edição de Var
nhagen. Já comecei a impressão e espero dar o primeiro volume até
maio : ao todo hão de ser três. Ficar-lhe-ia muito obrigado se V. quisesse
me mandar as notas e retificações que tem sobre ele, e que, não preciso
dizer, sairão com o seu nome. Também desejaria cópia de umas ins
truções para a conquista do Maranhão, que V. cita algures, bem assim
a variante da carta do jesuíta que acompanhou Jerônimo de Albuquerque
ou Alexandre de Moura, que V. me disse ser muito diferente do que
150 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

dá José de Morais. O primeiro volume compreende o período anterior


à guerra holandesa; terá umas 600 páginas.
Quem julga V. que seja o autor do Diálogo das Grandezas do Brasil ?
Cada vez me convenço mais de que não é, não pode ser Bento Teixeira.
Escrevi hoje ao Lino pedindo umas informações que talvez me auxiliem
na solução deste problema.
Quando nos veremos ?
V. andou com idéias de vir ao Rio, e então podia fazê-lo. Agora
há de ser mais difícil .

Abrace e receba as saudades do amigo velho,


J. C.
Rio, 5 de fevereiro de 1900.

Paraíso, 18 de agosto de 1901.


Amigo velho,
... Estava lendo um livro de economia política, quando comecei a dis
trair-me e a não prestar mais atenção ao que dizia o grande Schmoller.
Fechei o livro, e, não sei como, veio-me a idéia de escrever estas notas
que lhe remeto. Em tempo escrevi-lhe uma ou duas cartas, de que não
tive resposta. Em uma pedi me mandasse as notas que tivesse sobre
Varnhagen , de que estou preparando uma edição para o Laemmert –
está aí uma cousa que acima esqueci. Repito o pedido : suas notas sairão
com seu nome: as de que agora preciso referem-se aos capítulos ante
riores à guerra holandesa : já tenho impresso até o descobrimento do
Brasil: 128 págs.
Escrevi outra carta, pedindo me mandasse uma coleção de documen
tos importantes sobre o Ceará, mas transcritos com a ortografia moderna,
é anotados, que eu me encarregava da publicação. Reitero o pedido.
É muito longo um trabalho de João Pereira Caldas, advogando a
união do Ceará ao Piauí ? Se não fôr, mande -me cópia. Creio que
Çaldas é o autor de importante livro anônimo; talvez este memorial
Qu.rousa que valha me ajude na identificação.
ti O Paraíso donde lhe escrevo é fazenda do Virgilio Brígido. O
Paraiba banha o pé do morro donde lhe escrevo ; do outro lado do rio
passa a estrada de ferro Central ; o Pôrto Novo do Cunha fica a cinco
CARTAS A GUILHERME STUDART 151

quilômetros e é o povoado mais próximo. Na casa , que é enorme, esta


mos sós, o sogro do Virgilio e eu : trata-se, pois, de verdadeiro retiro espi
ritual. Por aqui pretendo ficar até setembro, a ver se dou conta do
século XVI, de que, em 1897, aqui mesmo, escrevi a história, até os
donatários. Para chegar à conquista do Maranhão, com que encerro
a primeira época, preciso de sessenta a oitenta páginas manuscritas. Fa
las- ei ? Dicant...
Meu endereço no Rio é a Casa Colombo, Ouvidor, 76 , para onde
querendo poderá sempre escrever ao amigo velho,
J. C. A.

[ Nota biobibliográfica junta à carta anterior)


Culuminjuba, freguesia de Maranguape. Primeiras letras começadas
em escola particular na Ladeira Grande, continuadas no Colégio dos Edu
candos, sob a direção do Padre Antônio Nogueira de Braveza, concluídas
no Ateneu Cearense, onde foi começado o estudo secundário .
Em 1860, partida para Pernambuco, onde foram prestados alguns
exames.

Em meados de 1871, volta para o Ceará, e permanência aí até 1875.


Dêste tempo : artigos no Maranguapense, na Constituição, talvez na Fra
ternidade. Abril de 1875, partida para o Rio de Janeiro artigos no
Globo .
Julho de 1879, nomeação de oficial da Biblioteca Nacional, colabora
ção no catálogo da exposição de História. Colaboração na Gaseta de
Notícias, durante alguns anos seguidos.
1883, nomeação por concurso, como também na Biblioteca Nacional,
para lente de Corografia e História do Brasil do I. C. D. Pedro 2.0. ;
Tem escrito na Semana, na Revista Brasileira , no Jornal do Comércio .
Traduziu : Do Rio de Janeiro a Cuiabá , do manuscrito inglês, até
hoje inédito, de Herbert Smith, especialmente escrito para a Gazeta de
Notícias. Os Mamiferos, As Aves do Brasil, do manuscrito alemão de
Gældi. As outras traduções, atribuídas no Dicionário de Sacramento
Blake, não lhe pertencem . Traduziu também dois trabalhos de Sophus
Ruge sõbre Cristóvão Colombo e Vasco da Gama, um impresso em sepa
rado, outro ( sôbre Vasco da Gama ?) impresso em folhinha de Laemmert,
talvez de 98. Dirigiu a publicação da Geografia do Brasil de Wappous,
traduziu a de Sellin, editou as Informações e Fragmentos Históricos de
José de Anchieta, os dois primeiros livros da História do Brasil de
152 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Fr. Vicente do Salvador ; tem pronta a edição dos Diálogos das Grandezas
do Brasil, que sairá nestes dois meses ; Os índios do Brasil, de Fernão
Cardim ( 1881 ? ). Publicou a Armada de D. Nuno Mamel, ( 1880 ? ) ;
O Descobrimento do Brasil e seu Desenvolvimento no Século XVI, tesë
de concurso, de que há duas folhas de rosto diferentes, uma coin

nome dos concorrentes no começo e as teses no fim , outra sem nada disto,
oferecida aos amigos da Biblioteca Nacional; a edição tôda foi de 300
exemplares. O Descobrimento do Brasil pelos Portuguêses, 1900 ; A Pro
pósito da Colônia do Sacramento, tiragem à parte, de cem exemplares.
No Livro do Centenário foi encarregado de tratar do descobrimento
do Brasil, povoamento do solo, organização política e administrativa, evo
lução social. Escreveu a primeira parte ; mas não está disposto a escrever
o resto, porque não lhe pagaram . Teni uma coleção de textos na lingua
bacairi , e um vocabulario caxinauá, muito deficiente, que não vale a
pena citar .
Não quis fazer parte da Academia Brasileira, e é avesso a qualquer
sociedade, por já achar demais a humana. Por exceção única pertence
ao Instituto, do qual pretende demitir -se em tempo , se não morrer reperz
tinamente. Escreveu prólogos aos livros de Rocha Lima, ao dos Índios
do Brasil de Fernão Cardim, ao de Joffily sobre a Paraiba. O de
Cardim saiu anônimo.
Trabalha numa História do Brasil, de que o livro sobre o descobri
mento dos portugueses Rio , 1900 contém as primeiras páginas;
se, como é possível, a obra chegar ao fim , não passará de 400 a 500.
Dela foram publicados sob o título Revistas Históricas, no Jornal do Co
mércio de 1899, os capítulos relativos ao povoamento do sertão ( 2 ou
3 artigos ).

Meu caro Guilherme,

Encontrei esta carta escrita há um niês e junto lha remeto .


Pode aproveitar dela o que lhe convier para o Dicionário de Ced
renses, mas não a transcreva integralmente, porque não a fiz para este
fim . De repente vieram-me saudades suas e comecei a escrever-lhe
intimamente, como se estivéssemos entre quatre yeux, e não houvesse
gente à escuta.
Repito o pedido das notas para Varnhagen.
CARTAS A GUILHERME STUDART 153

No fim do volume desejaria dar dois documentos que estão em seu


poder : as instruções dadas ( por Gaspar de Sousa ? a Jerônimo de Albu
querque ? ) sobre a expedição do Maranhão ; a variante da carta do
jesuíta que acompanhou Alexandre de Moura, já publicada na Crônica
de José de Morais, por Cândido Mendes.
Continuo no Paraíso ; mas , o mais tardar em começo de novem
bro, tornarei para o Rio . Em qualquer hipótese meu endereço é a Casa
Colombo, Ouvidor, 76 .
Adeus. Receba e retribua o abraço saudoso

do patricio e amigo velho,


J. C. DE ABREU
Paraiso , 21 de setembro de 1901.

Meu Guilherme,

Com alguma demora chegou-me às mãos seu cartão de pêsames pela


morte de meu sogro. Muito obrigado.
Aproveito a ocasião para agradecer também as linhas que ine con
sagrou na Revista da Academia Cearense. O ano passado, pouco mais
ou menos por este tempo, remeti- lhe copiosas informações sobre minha
pouco interessante vida. Seria capaz de jurar que as remeti registradas
pelo correio de Pôrto Novo do Cunha. Como se extraviaram Nada
se perdeu com isso, porque meu fim principal foi conseguido : não
ficarem por minha conta umas traduções idiotas, a ela levadas pelo pouco
consciencioso Sacramento Blake.
Tempos antes, estando no oeste de S. Paulo, escrevi- lhe também
uma carta. Ficou sem resposta. Isto obriga a repetir o conteúdo.
Estou encarregado de nova edição revista de Varnhagen .
O primeiro dos três volumes devia ter saído à luz, mesmo o segundo
e até o terceiro. Do atraso a culpa, em parte, mas só em parte, foi
minha ; agora, porém, o editor quer pressa, e creio que antes do fim do
ano a parte que alcança até a conquista do Maranhão aos franceses
será publicada.
Há alguns anos fazia-lhe o pedido que agora repito : mande quaisquer
retificações e notas, que serão publicadas com seu nome. Estou apenas
nos donatários.
154 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Tenho notícia vaga de que V. recebeu alguns documentos interes


santes sobre Francisco Pinto e Luís Figueira. Quando pretende publicá
los ? Chegarão a tempo de poder ainda aproveitá-los na edição de Var
nhagen ?
Como consta de um documento publicado por V., Martim Soares
Moreno não caiu em poder dos franceses, quando, por mandado de
Jerônimo de Albuquerque, foi examinar as fortalezas do Maranhão.
Descobri em um livro francês a data do cativeiro . Creio que depois
da conquista Alexandre de Moura e outros partiram diretamente para
Europa. Moreno quis tornar a sua capitania e desta vez foi ainda mais
infeliz que da outra. Talvez escreva um artigo sobre Moreno antes da
guerra holandesa. Como me assegurou Eduardo Prado, há muitas noti
cias sõbre ele no processo do jesuíta Manuel de Morais. Uma descoberta
bem interessante acaba 0. Derby de me comunicar por carta : uns mapas
geográficos publicados em Munique cerca de 1859 vai êle demonstrar
que, se não procedem do próprio punho de Vespucci, foram por ele ins
pirados, e esclarecem muito a segunda e terceira viagem do navegador
florentino.
Tenho a sair do prelo os Diálogos das Grandezas do Brasil. Não
são, não podem ser de Bento Teixeira Pinto, nem do Bento Teixeira
da Prosopopéia. Inclino-me a atribuí-lo a Ambrósio Fernandes Bran
dão, de que falam a crônica da guerra da Paraíba e documentos holan
deses publicados por José Higino.
Moro agora, e pretendo morar ao menos até o fim do ano : Campo
de Santana, 25 – Praça da República, creio eu, como se chama.
Aqui, e em tôda parte, continua sempre o velho amigo de século
passado, seu
Cap.
Rio, 5 de junho de 1902.

Amigo Guilherme,
Sua carta de fins de maio, que estou respondendo de cor, cru
zou- se com outra minha, da mesma data aproximadamente. Pelas dúvi
das, foi registrada.
Tardei em responder para dar resposta cabal.
CARTAS A GUILHERME STUDART 155

O mapa de Pero Coelho estava incorporado ao exemplar da Razão


de Estado, emprestado ao Rio Branco pelo Instituto Histórico e ainda
não devolvido.
Com o Barão ser-lhe-á fácil obter uma cópia ou fotografia. Devo
porém dizer - lhe que o mapa não é de Pero Coelho, como Cândido Mendes
afirmou e acreditei tôlamente. Os outros mapas do volume, como uma
vez verifiquei com Vale Cabral, são posteriores à invasão holandesa de
Pernambuco. O do Ceará não pode ser anterior, pois finge representar
todo o Estado, idéia que não podia acudir a Pero Coelho, mesmo realizada
a hipótese gratuita de entender de cartografia : Pero Coelho, exceto na
Ibiapaba, não se afastou do litoral.
Como pretende celebrar o centenário do Ceará , e quando ?
Evidentemente estou às suas ordens para tudo quanto mandar. Nun
ca me ocupei, porém, especialmente, com a história do nosso torrão, e
creio que de meu rochedo não sairá mel.
A crônica de Betendorf está ainda inédita. O Instituto Histórico
possui um exemplar de boa letra, mas que não faz sentido, copiado sob
a direção de João Francisco Lisboa, a julgar por certas emendas de letra
semelhante à déle, e absolutamente diversa da de Gonçalves Dias, que
primeiro exerceu a comissão de mandar copiar em Portugal documentos
relativos ao Brasil. Disse-me uma vez o velho Melo Morais que come
çara a impressão, mas arrepiara caminho por não ser inteligível o texto.
Imagine V. o estado dêste na cópia do Instituto Histórico quando
Melo Morais, o menos exigente dos homens a respeito de tais cousas,
chegou a cair em si ! Se V. tiver coragem procure na Corografia uma
nota muito escondida em que ele diz pouco mais ou menos isto.
Que quer que lhe diga sõbre a questão Colombo - Toscaneli ? Con
servo as antigas posições. Não é impossível, para empregar uma expres
são freqüente de Machado de Assis, que Colombo falsificasse a carta de
Toscaneli dirigida a ele ; é, mesmo provável que Toscaneli não conser
vasse tanto tempo a carta dirigida a Fernão ou Estêvão Martins, nem
se desse ao trabalho de traçar novamente para um desconhecido o mapa
epocal, em que pela primeira vez alguém tentou, ao lado do sólido,
representar a área do Oceano . Gaebler teria assim razão, dizendo que
Colombo roubou documentos oficiais e por isso fugiu para Espanha e
impetrou por isso salvo -conduto. Mas a questão do piloto ignoto é con
156 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

traproducente. Se o piloto veio à América realmente, não podia ter visto


as cousas a cuja procura Colombo se aventurou e de cuja existência e
realidade se conservou convicto até a hora extrema. Se V. fôr amante
destes jogos de espírito poderá fàcilmente reduzir a questão a um dilema
de que não enxergo saída.
Acabo de receber uma nota sua sôbre Fr. Vicente, Custódio de
Faria. Obrigado. Mando -lhe em troca a nota sobre Martim Soares de
que já falei noutra .
Moro agora Campo de Santana, 25. Aqui, como alhures e nenhu
res, fica sempre o velho amigo,
J. CAPISTRANO
( Junho ( ? ) , 1902]

Caro Guilherme,

Acabo de receber sua carta de 25 de junho, e respondo já.


Fio -me na memória para tratar de Martim Soares.
Se ele fosse preso quando Jerônimo de Albuquerque mandou - o ao
Maranhão, acha que ele e Sebastião Marinho não tratariam do caso
nas cartas que escreveram de Lisboa ? Entretanto, se estou bem lem
brado, não o fizeram. Quando , há anos atrás, li a patente de Martim
Soares, de que a Biblioteca Nacional possui cópia, tive logo a impressão
de que o fato não passara na ocasião indicada, e isto notei em meu exem
plar de Varnhagen . Em minha opinião mais confirmou -me o seguinte
trecho publicado por Eugène Guénin , Ango et ses pilotes, págs. 24/25,
Paris, 1901 :
“ Le 6 décembre 1616", dit Asseline, “ un capitaine du Havre de
Grâce, appelé Fleury, amena à Dieppe une prise qu'il avoit faite sur les
Espagnols, et M. le Gouverneur ne voulans pas que ces étrangers, tant
hommes que femmes, missent le pied à terre dans cette ville, il les fit
passer jusqu'au batardeau et ensuite détenir prisonniers dans le jardin
de Monsieur. Quant au capitaine il fit étroittement emprisonner le nom
mé Suarez, qui se disoit sergeant maure à Marignan, lequel y avoit assisté
les Espagnols dans le combat qu'ils y eurent contre les François. Ce qui
fut exécuté en vertu de la main - levée que ce capitaine obtint de M. l'ami
ral et de la sentence donnée sur icelle en l'amirauté de Dieppe jusqu'à
ce que le Roy en eût autrement ordonné. Les autres furent ensuite
CARTAS A GUILHERME STU'DART 157

evoyés à Dunkerqde, à la reserve de quatre, que Fleury retint avec


Suarez, d'autant plus soigneusement qu'ils avoient, à ce qu'il disoit, mas
sacré en cette rencontre, quelques-uns de ses parents. Au reste, le sieur
Policien a estimé que cette prise fut amenée à Dieppe l'an 1620 plutôt
qu'en la présente année 1616, si bien que, selon sa supposition, il fau
drait rapporter ce trait d'histoire à cette année. ( 1 )
1. Asseline, Ouvrage cité ( Antiquités et Chroniques de Dieppe) vol. II , pág. 192.”

Os grifos são meus. Que Sargeant maure é sargento -mor vi logo


que li : ao mesmo resultado chegou um crítico francês, Gallois, se bem
me lembro. E Suares não será nosso Martim ? Pelo menos éste é meu
pressentimento. E não será 1616 o ano da prisão ?
Não vejo motivo para suas dúvidas quanto a Pero Coelho. A fonte
única é Fr. Vicente do Salvador. Desde que não dispõe de outro
documento, o que Varnhagen e outros dizem dispensa consideração.
Em seu caso, na falta do documento preciso, escolheria para data
do centenário o dia 15 de agôsto. Neste mês Pero Coelho já pisava com
certeza solo cearense, e a festa da Assunção ligaria a primeira à segunda
expedição de Martim Soares.
Como, tratando -se de Pero Coelho, qualquer informação tem valor,
você veja no Orbe Seráfico de Jaboatão um dos chamados relatórios
que diz alguma cousa sobre ele, por 1597.
Pelo mesmo motivo, leia em Yves d'Evreux a ligeira notícia sobre
a chegada de Martim Soares ao Maranhão, e o estabelecimento de um forte
que disto resultou .
Este informe de Yves e o de Asseline, mais outro de Francisco
Cunha de Carvalho, quando foi tomar conta do governo, são as únicas
novidades que teria a dizer se escrevesse meu projetado artigo sobre
Martim Soares. O mais constaria apenas de um estudo mais ... intensivo
dos documentos por V. publicados, da impressão pessoal deixada por ele
em Fr. Vicente e em Fr. Manuel do Salvador.
Ontem , relendo uma carta do padre Inácio de Tolosa, provincial que
sucedeu a Anchieta , escrita da Bahia a 7 de setembro de 1575 , encontrei
algo relativo a nosso Francisco Pinto. Por acaso tenho duas cópias desta
parte, ambas por letra do nosso amigo Lino de Assunção. Envio - lhe
uma . Creio que será fácil obter cópia do processo do padre Manuel de

Morais. Está com os outros processos da Inquisição, ou na Biblioteca


Nacional , ou na Törre do Tombo . Dele foi extraida não há muito
158 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

tempo copia para Eduardo Prado : hão de achá -lo fàcilmente. É mesmo
possível que Inocêncio o indique. E V. deixou sem resposta meu pedido
de concorrer com as notas que puder para a nova edição de Varnhagen !
Repito-o e insisto. Suas notas sairão em seu nome. Estou às voltas
com os donatários. O que V. tiver antes disto sairá no fim do volume,
com as notas de Rio Branco, que espero obter ; as outras sairão embaixo
da página, junto com as minhas.
Outro dia estive examinando na Biblioteca Nacional uma caixa
quase toda ocupada com documentos relativos a Manuel do Nascimento
de Castro e Silva, seguramente mais de cem . Só de Alencar, na presi
dência de 1836/1837, há umas trinta cartas. Infelizmente eduquei meu
espírito, desinteressei-me de história contemporânea. Agora é tarde :
Inês é morta .

Gostaria muito que V. publicasse num dos próximos números da


Revista do Instituto um documento de José Pereira Caldas sobre a con
veniência de unir Ceará ao Piauí, documento mencionado em seu catá
logo. Poderia servir para ver se é êle, como suponho, o autor do Itine
rário do Maranhão a Goiás pela Capitania do Piauí , impresso num dos
últimos números da Revista Trimestral e no meu entender uma das
cousas mais profundas que se escreveu sobre o Brasil colonial.
Talvez no próximo correio possa lhe remeter a tradução de um
livro alemão, que fiz. Aproveitando éste resto de papel darei a lista
de minhas traduções até agora.
:
Herbert H. Smith — Do Rio de Janeiro a Cuiabá, trad. do ms. inglês,
que nunca foi publicado ;
Wappoeus - A Terra e o Homem , trad . do alemão ;
Selin Geografia Geral do Brasil, trad. do alemão ;
Geldi Os Mamíferos do Brasil, trad. do ms. alemão, inédito ;
Goeldi As Aves do Brasil, trad . do ms. alemão, inédito ;
Kirchhoff O Homem e a Terra, trad. do alemão - é o livro que
lhe mandarei no primeiro paquete ;
Biennacki - A Moderna Arte de Curar, trad. do alemão , no prelo ; talvez
esteja pronta nestes dois meses ;
Köhler - Introdução à Ciência do Direito, trad. do alemão ; vai entrar
para o prelo.
CARTAS A GUILHERME STUDART 159

Os três últimos volumes e outros que seguirão fazem parte da


Biblioteca do Século XX que tomei a minha conta e de que é editor
a Casa Laemmert.
Mais nada senão saudades e abraços do amigo velho,
CAP.
Rio, 19 de julho de 1902. *

Caro Guilherme,
Recebi há alguns dias, com umas páginas do futuro número da
Revista, algumas linhas suas, dizendo que estava devendo respostas a
cartas suas.
Deve ser engano. Ou então o correio é o culpado.
Juntamente com esta vai para o correio um pacote, contendo três
exemplares do livro de Kirchhoff, que acabo de traduzir.
Peço - lhe o obsequio de mandar ao Tomé Mota e ao Tomás Pom
peu os exemplares que lhes são destinados.
Sempre o velho amigo,
Cap.
Rio , 7 de agosto de 1902 .

Meu caro Guilherme ,


Aí vai um artigo publicado no Jornal do Comércio, de 31 de agosto.
Corrigi as faltas mais graves ; se quiserem reproduzi -lo aí, seria melhor que
fizessem por este exemplar.
Não tenho ultimamente recebido cartas suas.
Com certeza chegaram-lhe às mãos um trecho de Inácio de Tolosa
sôbre Francisco Pinto, provavelmente a mais antiga referência a ele
feita, e três exemplares do O Homem e a Terra de Kirchhoff, pois foram
registrados.
Adeus. Saudades do amigo velho,
CAP.
Rio, 5 de setembro de 1902 .
160 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Meu caro Guilherme,


Recebi e muito agradeço seus trabalhos sobre Martim Soares Moreno
e Francisco Pinto e Luís Figueira. Não preciso dizer-lhe que imediata
mente os li. São tais como V. e só você poderia escrevê-los.
A carta de Luis Figueira é um dos escritos jesuíticos mais interes
santes que tenho lido. Os documentos relativos a Martim são tão abun
dantes que, de alguma sorte, representam um como prêmio derivado da
natureza das cousas, devido e concedido ao grande trabalhador que V. é.
Vou escrever alguma cousa sõbre os dois folhetos e lhe mandarei
o, ou os artigos.
Receba um abraço congratulativo, e outro saudoso do
velho amigo,
J. CAPISTRANO
Rio , 4 de setembro de 1903.
Tr. do Senador Vergueiro, 1 .

Meu caro Guilherme,

Um dos vapôres passados escrevi-lhe agradecendo seus livros sõbre o


centenário do Ceará .
Remeto as provas do artigo escrito sõbre um , e que deve sair para a
semana na Notícia. Mais tarde mandarei o número do Jornal. Vou
agora escrever outro sôbre os jesuítas.
Na coleção de documentos trazidos pelo Rio Branco e de sua missão
a Berna, existe uma longa exposição de Alexandre de Moura, que estende
nossos conhecimentos sobre Martim Soares.
Um anexo traz um abaixo -assinado dêle, pedindo a Francisco Cal
deira que fique no Maranhão e se considere colateral de Jerônimo de
Albuquerque; outro coniém um depoimento prestado em janeiro de 1616 ,
declarando ter de idade trinta anos pouco mais ou menos ; outro encerra as
instruções dadas por Alexandre de Moura , quando mandou - o a Cumat em
companhia de Frei ... não me lembra o nome.
Estes documentos existem no arquivo do Conselho Ultramarino, re
querimentos, maço de ordem n.° 3 .
Na coleção de documentos vindos de Espanha existe uma exposição
de Manuel de Sousa de Sá sobre a conquista do Maranhão , em que expõe
nimas vinte linhas o assalto dos franceses ao Forte das Tartarugas . Sôbre
CARTAS A GUILHERME STUDART 161

este assalto há ainda o depoimento de alguns franceses prisioneiros em


Guaxenduba, quc Jerônimo de Albuquerque submeteu a interrogatório ,
servindo de intérprete Diogo de Campos.
A empresa do Maranhão precisa ser escrita de novo. Se Alexandre
de Moura demorasse um pouco mais, ficaria tudo perdido, porque o quartel
de Jerônimo de Albuquerque tinha-se queimado, Francisco Caldeira estava
brigado, etc.
Adeus. Abrace o sempre amigo ,
Cap.
Rio , 19 de setembro de 1903.

Meu caro Guilherme,


Só ontem recebi sua carta de 1 de outubro, acompanhada de folhetos
do Tricentenário .
Ontem mesmo encontrei seu irmão em casa do Sá ; vou ver se encontro
copista para os documentos que deseja, como ele me pediu .
Achei interessante o equívoco em que cai, confundindo você com
Varnhagen, na segunda ida de Martim Soares ao Maranhão ; vou agora
ver como a cousa sucedeu : no segundo artigo da Noticia, que ainda não
suiu, nem mesmo escrevi, farei a retificação.
Examinei o ponto da Relação a que V. se refere e continuo a pensar
que Martim Soares retirou -se do Ceará antes do descalabro de Pero
Coelho. Da primeira vez passou três anos, isto é, de 1603 a 1605, da
segunda passou novamente três anos entre a fundação da fortaleza e a
ida ao Maranhão.
Em Sevilha existe uma carta de Martim Soares logo que chegou a
S. Domingos da primeira vez, datada de dezembro, se bem me lembro :
vou ver se obtenho cópia por intermédio do Domício da Gama.
Fiz uma descoberta de que V. já teve um pressentimento : a carta
do Pe ... , companheiro de Alexandre de Moura, publicada no livro de
José de Morais, é apócrifa : Alexandre de Moura não levou força do
Ceará, o forte não se chamou de S. Iago como ele diz, as cousas passaram
com os franceses de modo diverso do que ele conta, etc. Como haviam
de aborrecer a Cândido Mendes estas brechas abertas no seu livro de
predileção.

14 - 1.0
162 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Senti muito que V. tivesse mandado tão preciosos documentos para


Bertino Miranda. Pelas informações vagas que dêle tenho, há muitos
anos que anda com a tal encantada História, mas talvez não tenha escrito
uma página. Vamos ver o que faz com o Berredo.
Hoje está aqui um homem conhecedor da história do Pará, o Senador
Manuel Barata, que há uns três ou quatro anos não sai dos arquivos e biblio
tecas ; receio muito que também ele nunca escreva nada, tanto os apuros
a que se entrega.

Dou-lhe a agradável notícia que espero pôr para fora até o fim
do ano o 1.º volume de Varnhagen. Tem -me dado um trabalhão ; ele é
muito mais descuidado e inexato do que pensava a princípio : basta ver a
cambulhada que fêz de Francisco Caldeira e Alexandre de Moura. Tôda
a expedição do Maranhão precisa ser escrita de novo : eu tinha pensado em
lhe pedir uns documentos inéditos que V. possuía sobre ela, mas agora
é tarde .
Pretendo acompanhar cada volume do Varnhagen ( serão três, o 1.º
acaba na conquista do Maranhão ) de uma introdução de cem páginas,
fazendo a síntese do período correspondente. Se levar isto ao cabo , fica
pronto o livro a que reduzi minhas ambições da História do Brasil, um
volume de formato de um romance francês .

Juntamente com esta carta mando para o correio dois números do


Jornal do Comércio em que sai uma notícia minha sobre o processo de
Bolès, sob o título Revistas Históricas. Se, como desejo, fôr no fim do
ano a S. Paulo, terei ocasião de estudar o processo de Manuel de Morais
na Biblioteca de Eduardo Prado. Depois de amanhã, 6.a, vou a Petrópo
lis passar uns dias com Assis Brasil ; na volta ihe mandarei o abaixo -assi
nado de Martim Soares e outros ; talvez possa ir no paquête de 5 de
novembro .
E abrace o velho amigo,
Cap .
Rio, 28 de outubro de 1903.

José Sombra me disse que mandara-lhe a Noticia ; por isso me des


cuidei de fazê-lo. Hoje seria difícil arranjar algum número.
CARTAS A GUILHERME STUDART 163

Meu caro Guilherme,

Junto a cópia do abaixo- assinado em que figura Martim Soares.


Quando fôr outra vez à Secretaria do Exterior, copiarei o depoimento
de Martim Soares, que serve só para nos dar a idade, 30 anos pouco
mais ou menos, e também as instruções para a capitania do Ceará . No
processo de Manuel de Morais há depoimentos de Camarão . Só tinha
quarenta e tantos anos, como me afirmou Eduardo Prado ? Quem sabe
se não irei lê-lo no Ceará ? Tenho uma esperança muito tênue de poder
ir lá, para o ano. Depende ainda de muitas cousas, entre as quais deixar
pronto o primeiro volume de Varnhagen.
E V., que tanto me poderia ajudar, até hoje só me mandou uma nota !
Por que não reduz a notícia o que se pode apurar das instruções a Jerônimo
de Albuquerque ? Ainda chegará a tempo.
Acabo de receber o Livro do Centenário, que muito e muito lhe
agradeço. Agora posso escrever o estudo sobre a carta do Figueira,
embora haja muitas questões que não consegui resolver.
Quero ver se precedo cada volume do Varnhagen de uma longa
introdução : assim farei sem grande dificuldade a história do Brasil a que
reduzi as minhas ambições. Estou metido em economia política até os
olhos, e agora encontrei o livro de um professor da Politécnica de Zürich,
que, junto ao Bücher, hoje traduzido em francês e que muito lhe recomendo,
me tem ajudado bastante.
Adeus. Saudades do amigo velho,
Cap.

Caro Guilherme,

Não podendo fazer o artigo que desejava sobre o mais antigo do


cumento do Ceará, resolvi ontem fazer o artigo que podia. Reli sua intro
dução ao Figueira, de que gostei, e depois a introdução ao Moreno, de
que gostei muito mais, e onde muito mais aprendi que com a primeira
leitura . Pus ao lado, digo, à margem , uma porção de interrogações : de
outra vez irão, para V. ter o obsequio de esclarecê-las. Uma não posso
porém adiar. Diz V. que publicou umas notas a um trabalho de Severim
de Faria. Aonde ? Desejo muito conhecê-las ; peço-lhe mas remeta .
164 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Recebi um volume do Instituto, que vou ler. O Livro do Centenário


vi outro dia em Petrópolis na mesa do R. Branco ; depois José me em
prestou o exemplar déle. Não me teria V. remetido ? ou teria sido
extraviado ? Só hoje reparei que eram duas publicações diferentes.
Recebi também umas folhas sõltas, que só hoje vi , e partem de 70 e
tantos. São os documentos sobre o Maranhão que eu tanto desejava ver.
Mande o resto ! mande o princípio !
Folheando, ontem , José de Morais, vi mais uma vez a certidão
Alexandre de Moura aos jesuítas. É também suspeita ! Alexandre de
Moura, em seu relatório, diz o dia em que partiu de Pernambuco e o
em que chegou ao Maranhão : nem fala do Ceará. Regefeiro 1 dá o dia
da chegada e da partida do Ceará, e apenas diz que neste tempo fez-se o
pagamento dos soldados. Se V. quiser o trecho relativo ao Ceará posso
remeter - lho.
Pelos documentos trazidos no arquivo Rio Branco, Diogo de Campos
foi bem recebido na Europa. Alguns dias depois chegou Manuel de Sousa
de Sá e a opinião mudou : um conselheiro falou até em mandar -se cas
tigá-lo . Logo que V. me mandar os documentos, farei um ou dois estudos
Revistas Históricas — sôbre a expedição do Maranhão.
E, a propósito : recebeu a relativa a Bolès ?
Adeus Muitas saudades do amigo velho,

CAP.

Rio, 28 de novembro de 1903.

Entreguei os originais à Notícia : quando tiver provas, irão.


Abro a carta para acrescentar um pedido.
Como poderei ver os papéis sõbre sesmarias concedidas em Paraíba
e no Rio Grande do Norte ? São tão pouco conhecidos os últimos anos
do século do descobrimento e os primeiros do século seguinte, que devem
ser de consulta proveitosa. Agora mesmo acabo de examinar 1400 e
tantos assentamentos de Tomé de Sousa e Cardoso de Barros, onde encon
trei mais de uma novidade para 1549/1553.

1. Manuel Gonçalves, o Regeſeiro de Leça , autor do Roteiro , publicado nos


Anais da Biblioteca Nacional, vols. 26, 1905, 243-252.
CARTAS A GUILHERME STUDART 165

Publique portanto os autos de Alexandre de Moura, etc. V. não tem


a carta dêste em que anuncia a partida de Francisco Pinto e Luís Figueira ?
Há cópia no Instituto Histórico .

Meu caro Guilherme,

Junto aqui esta lembrança. Uma pessoa a quem desejaria servir


pede com muita instância um exemplar da medalha cunhada para a come
moração do Centenário do Ceará .
Cap.

( 1903?]

Meu caro Guilherme,


Muito obrigado pelos dois presentes magníficos com que me brindaste :
o inédito de Severim de Faria, o 1.º volume de Documentos para a His
tória do Brasil, e principalmente do Ceará.
És realmente incansável, e feliz a hora em que, tendo de escolher
um futuro, decidiste votar todo o teu esforço à
Terra de Santa Cruz pouco sabida.
Teu primeiro esforço não encontrou acolhimento merecido, e isto
deu-te uma certa atitude, como direi ? defensiva, ou antes, agressiva.
Agora és um mestre reconhecido e acatado ; podemos portanto conversar
calmamente sõbre o assunto.
Por que não dás a procedência dos documentos que publicas ?
Félix Ferreira, sujeito aliás pouco fidedigno, contou -me que indo
um dia visitar Melo Morais, encontrou-o queimando uns papéis : Estou
queimando estes documentos, explicou -lhe o alagoano historiador ( ? ) ,
porque mais tarde, quando quiserem estudar História do Brasil hão de
recorrer às minhas obras. Tu não és Melo Morais .
Varnhagen, pelo menos na Torre do Tombo, levou para casa alguns
documentos e se esqueceu de restituí-los : não podia depois indicar a
procedência. Tu não és Varnhagen .
Por que motivo, portanto, te insurges contra uma obrigação a que
se sujeitam todos os historiadores, principalmente desde que, com os
166 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

estudos arquivais, com a criação da crítica histórica, com a crítica das


fontes, criada por Leopoldo von Ranke, na Alemanha, foi renovada a
fisionomia da História ?
Estás no caso de Maomé: a montanha não pode ir para ti, devias
e deves chegar-te para a montanha.
Imagina que tivesses começado a dar as indicações no catálogo de
tua coleção : que bem não terias feito às letras brasileiras! que serviço não
terias prestado às bibliotecas e aos arquivos de Portugal! como a Coleção
Studart, em vez de concentrar- se nas mãos únicas do dono, que aliás é
um pródigo, ficaria sendo uma coleção nacional!
O que não fizeste com teu catálogo podes fazer agora na Coleção
de Documentos. Se me dás licenca, vou expor o modo mais simples.
Dá um suplemento ao primeiro volume : para ele mandarei cópia da carta
de Alexandre de Moura, comunicando a partida de Francisco Pinto e
Luis Figueira, existente no Instituto Histórico ; cópia de uma carta de
Gaspar de Sousa sôbre Ceará e Maranhão, existente na Biblioteca, bem
como o roteiro do Regefeiro ; publicarás a nota das sesmarias do Rio Grande
do Norte, que pode dar assunto a tanta investigação útil e esclarecer
talvez tantos pontos importantes - a descrição da batalha de Guaxenduba,
feita pelo próprio Jerônimo de Albuquerque ! a parte de Alexandre de
Moura, que Sombra deve ter copiado.
Ajunta um indice mais claro, tendo bem em evidência, no meio da
linha o ano, e rigorosamente cronológico ; e, no fim de cada ítem do
catálogo, junta-lhe, meu velho amigo, a indicação rigorosa do arquivo
ou biblioteca, e como todos os amantes das cousas pátrias também
Eris mihi magnus Apollo.
E lembra-te que és filho de inglês junta a tudo isto dois indices,
os mais simples e os mais fáceis de fazer, ao mesmo tempo de conve
niência intuitiva : um indice onomástico, um indice geográfico : apenas o
nome e um algarismo indicando a página.
Com tudo isto farás um trabalho como ainda não se fêz , nem sabem
fazer no Brasil , como se faz sempre em Inglaterra e nos Estados Unidos.
As 100 ou 150 páginas que acrescerão ao primeiro volume terão a
conveniência de torná-lo mais elegante, porque acho - o muito fino.
Hei de escrever alguma cousa sõbre tuas últimas publicações, apenas
fique livre de uma incumbência urgente: o diretor da Biblioteca Nacional
pediu -me uma introdução para o livro de Loreto Couto e, para tanto,
CARTAS A GUILHERME STUDART 167

deu-me apenas dez dias ! Consultei a obra em ms., mas ainda não acabei
a leitura do impresso, que dá mais de 500 páginas! Imagina que par de
botas vai sair ! Já te falei no senador Manuel Barata, que tanto se inte
ressa pela história do Pará. Pede-te o livro de Severim de Faria e o
Catálogo, que não estão aqui à venda. Queria até passar-te um telegrama,
e não descansou enquanto não lhe emprestei meus exemplares.
Faço ponto, esperando que esta carta, escrita no desassombro da
amizade, seja lida com os mesmos sentimentos, e que expunjas de tua
coleção o único senão que se lhe pode notar.
E abraça o amigo velho, sempre amigo,
CAP.
Rio , 20 de abril de 1904.

No dia 25 de abril vi o Rio pela primeira vez, em 1875. Como o


tempo corre !

Meu caro Guilherme,


Chegando ontem de uma rápida excursão a S. Paulo encontrei tua
preciosa carta .
Alegrou -me saber que tornaste do Velho Mundo, forte e restabelecido.
É conservares agora o readquirido, porque o Ceará precisa de teus esforços
até fazeres uma escola que não deixe apagar o fogo sagrado.
Muito agradeço a nota que me enviaste, e já entregue à Biblioteca
para ser conservada. O que se encontra sõbre o paulista Nunes é impor
tante e me serviu para tratar de um paulista que estêve no Peru em
1538, segundo afirma.
Já tinha recebido um exemplar do livro de Severim, mas vou

relê-lo no novo exemplar. Encontrei ali muita novidade. Há um equi


voco a corrigir : no ano de 1615 os holandeses estiveram no Rio de Janeiro,
não em Pernambuco o que aliás se vê do contexto, se confirma com
a narrativa de Fr. Vicente do Salvador e da carta de Constantino de
Meneslau, datada de 1615 e não 1625 , como saiu no Sousa Viterbo e na
Revista do Instituto .
Os documentos que desejas, ou estão impressos, ou vão sê-lo nos
Anais da Biblioteca Nacional, e no próximo vapor receberás as folhas
correspondentes. O volume contém um documento importante relativo à
arribada de Martim Soares a S. Domingos ; existia em Sevilha, donde
168 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Domício da Gama, a meu pedido, mandou tirar uma cópia para a Biblioteca
Nacional. Se existirem em Roma as páginas de Yves d'Evreux que man
dei pedir a Bruno Chaves, teremos completo o histórico deste primeiro
episódio de nosso fundador.
Domício mandou também examinar a correspondência do Duque
Monteleon em Simancas, para ver se há qualquer referência à prisão e à
soltura em França .
Na Biblioteca do Eduardo Prado, que pude visitar ràpidamente,
existe um depoimento de Martim Soares dando-se com a idade de cin
qüenta e um anos ; mandar-te- ei cópia.
Há também outro de Camarão de que se infere que nasceu em
1601. Acertou portanto Pereira da Costa ; eu já tinha aliás publicado o
fato, em qualquer artigo de imprensa.
É pena que Eduardo não tenha escrito a história de Manuel de
Morais. A personagem, relativamente insignificante, evoluiu num quadro
incomparável. O processo tem bastantes notícias sobre um dos meus pre
diletos, o autor do Valeroso Lucideno.
Minha edição de Varnhagen está praticamente anotada até Mem de
Sá : espero dar o primeiro volume até fim do ano, ou janeiro. Qualquer
dêstes dias enviarei os capítulos relativos aos três primeiros governadores.
Estou ansioso por chegar ao terreno sólido em que começam tuas inves
tigações e teus documentos. O primeiro volume tive de fazê-lo exclusiva
mente eu : para o segundo conto com o Barata, e tenho um exemplar do Rio
Branco muito anotado, da História Geral e da História das Lutas. Conto
muito contigo !
Poderias mandar com urgência cópia da carta de Jerônimo de Albu
querque contando a luta com os franceses ? Poderia entrar no volume
dos Anais com o auto da arribada de M. Soares a S. Domingos, o rela
tório de Alexandre de Moura e os 25 docs, concomitantes, o depoimento
dos franceses prisioneiros, a relação de Manuel de Sousa, as sessões do
Conselho de Portugal e Estado sobre as tréguas de Albuquerque e Moreno :
é preciso pressa, porque o volume deve sair em dezembro. No outro
vapor irá a cópia da carta de Alexandre de Albuquerque. Vê se publicas
a lista das terras concedidas no Rio Grande do Norte .
Com muitas saudades do velho amigo,
CAP .
12 de novembro de 1904.
CARTAS A GUILHERME STUDART 169

Meu caro Guilherme,

Junto cópia da carta de Alexandre de Moura, que dá notícia da


partida de Francisco Pinto e Luis Figueira para a missão do Maranhão.
Segue cópia também da carta de D. Diogo de Menezes relativa a Martim
Soares.
Nas folhas dos Anais da Biblioteca encontrarás o auto sobre a pri
meira arribada de Martim às Antilhas. Nêle encontrarás duas cartas de
D. Diogo de Meneses a Gaspar de Sousa. A primeira, se a interpreto bem ,
permite fixar a chegada do fundador a nossa terra em 20 de janeiro
de 1612.

Da magistral exposição de Alexandre de Moura verás como andava


desconhecida a expulsão dos franceses do Maranhão, decisiva para a nossa
história do Brasil, pois desde então os intrusos não procuraram mais se
estabelecer ao sul do Amazonas .
O volume dos Anais conterá mais outras cousas sobre o Maranhão.
A matéria ficará assim muito adiantada.
Creio que no suplemento ao 1.º volume de tua coleção poderás
publicar a carta de Alexandre de Moura, as duas de D. Diogo ao rei e a
Martim Soares, a de Gaspar de Sousa a éste, a deste a Dom Diogo de
Sandoval, creio mesmo que a de Sandoval para o reino.
Estou agora à procura de qualquer documento do duque de Monteléon
sôbre a prisão de Martim Soares.
Pretendia fazer esta carta longa, mas o padre Galanti, que acaba de
chegar de Friburgo, tomou -me o tempo, e o Instituto vai fechar.
Para o suplemento conviria a descrição da costa do Rio Grande ao
Maranhão, impressa no livro de Mariz de Carneiro, mas quase desconhe
cida, porque o livro é raríssimo" .
Adeus. Boas entradas, melhores saídas. Com um abraço do amigo
velho ,
Cap .

Rio, 12 de dezembro de 1904.

1. Antônio de Mariz Carneiro, Regimento de Pilotos e Roteiro da Navegação


e Conquistas do Brasil, Angola, S. Tomé, Cabo Verde, Maranhão, etc., s. 1. impressão
( Lisboa ), 1655.
170 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Meu caro Guilherme,


Por um dos vapores passados mandei-te, registados, três números do
Kosmos com o princípio da minha história do Brasil. Está-se compondo
o quarto capítulo sôbre os donatários e podes bem imaginar a minha
alegria, vendo -me livre de tão rebarbativo assunto .
Estes capítulos e os que seguirão deviam servir de prólogo à edição
do Varnhagen : quando disse ao livreiro que cada prólogo ficaria com mais
de cem páginas, revelou entusiasmo bastante moderado. À vista disto,
optei pela publicação mensal, que terá a vantagem de tuas observações,
notas e correções, que te peço agora, e não dispenso.
Pretendo no sétimo artigo chegar a Tomé de Sousa.
Ficará assim para cada um a média de sete anos : é escala muito
grande; depois do sétimo reduzir o petipe.
Dentre os numerosos documentos que possuis, dois há cuja publicação
tenho-te pedido.
É um a nota das sesmarias do Rio Grande do Norte desde a conquista
até 1612 : preciso tanto dele, para a revisão do Varnhagen ! Anda ! um
bom movimento ! ainda posso esperar um mês.
O outro não tem urgência, mas gostaria de lê-lo : é o parecer de
João Pereira Caldas sobre a conveniência de reunir o Piauí ao Ceará.
Com a morte do Gustavo, julguei que ficaria parada a edição do
Varnhagen , mas o novo sócio da casa Laemmert agora tem até pressa de
botar o primeiro volume para fora . Ando às voltas com Mem de Sá.
O volume da Biblioteca Nacional sobre a costa leste -oeste está a
sair. Leste -oeste foi o título que aconselhei ao bibliotecário, mas ele tem
dúvidas. Verás que riqueza ! Vou pois escrever um ou mais artigos para
o Jornal do Comércio, dizendo que aquele periodo da história pátria foi
renovado graças às pesquisas de dois barões: um é o do Rio Branco ; se és
capaz, adivinha o outro !
Amanhã pretendo sair em excursão às margens do Paraíba, contra o
qual vou perdendo minhas velhas antipatias. Mover-me -ei entre Volta
Redonda, no ramal de S. Paulo , e Pôrto Novo do Cunha, passagem
obrigada para a fazenda de nosso amigo Virgilio. Antes, em Santana, às
margens do Piraí, passarei uma semana com Sá.
Este ano não fiz nada do que pretendia. Era meu sonho passar as
férias às margens do Paranapanema, com um enteado do Domingos Ja
guaribe, mas a morte do Gustavo Massow , com as complicações superve
CARTAS A GUILHERME STUDART 171

nientes ao Varnhagen, me privaram deste prazer, que talvez nunca venha


a gozar.
Adeus. Podes me escrever sempre para a Casa Colombo, para o
Garnier ou Laemmert ou Briguiet.
Estou morando na rua do Almirante Tamandaré, n. 2, Catete.
E aqui fica sempre o amigo velho,
Cap.
Rio, 12 de abril de 1905.

Caro Guilherme,

Boas saídas, melhores entradas.


Respondo sem demora a tua carta de 15 de dezembro, que acabo de
receber. João Fera não fui quem traduziu ; laudo arbitral nunca escrevi;
não tenho corografia do Brasil.
Minhas traduções :

1.9 : Herbert Smith, Do Rio de Janeiro a Cuiabá, traduzido do ms.


original inglês, e editado pela Gazeta, em 84, creio ; ainda inédito na língua
original ;
2.0 : Selin, Geografia Geral do Brasil, editada pelo Alves, talvez
em 1889 ;
3.º : Sophus Ruge, Cristóvão Colombo, editado pelo Laemmert, talvez
em 92 ;
4.9 : Goeldi, Os Mamíferos, 1 vol. ; Aves, 2 vols., traduzidos do ori
ginal alemão ainda ms. e publicados pelo Alves ; inéditos ainda em alemão ;
5.° : Kirchhof , O Homem e a Terra, 19 .. ;
6.° : Biennacki, A Moderna Arte de Curar, editados ambos pelo
Laemmert, 19 ...
Os Diálogos das Grandesas estão praticamente terminados; faltam
apenas ligeiras notas .
A História do Varnhagen deve ter 3 volumes.

O primeiro, que deve alcançar até o ano de 1624, já está impresso


até a morte de Mem de Sá, seção XX ; faltam , pois, 6, que são incompa
ràvelmente mais fáceis, porque em grande parte a documentação é mais
copiosa. Creio estará publicado em março .
172 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Causa-me grande mágoa dispor apenas de três documentos inéditos


ou desconhecidos a Varnhagen para todo o período que vai de 1572 a
1603. Isto trouxe uma demora em que tens tua culpa. Há quantos anos
te peço que publiques ou me mandes para eu publicar os documentos
sôbre as sesmarias do Rio Grande do Norte ?
E meu compadre Paz , que está em Lisboa , a quem pedi que concen
trasse entre 1570 e 1600 as cópias que pedira e tantas promessas me fêz,
e vai para quatro ou cinco meses não dá sinal de vida !
Os documentos inéditos e desconhecidos a Varnhagen foram todos
três mandados pelo Lino de Assunção.
Trabalhos originais meus são :

A Armada de D. Nuno Manuel, 1880, tip. da Gazeta ;


O Descobrimento do Brasil e seu Desenvolvimento no Século XVI,
tese de concurso , tip . Leuzinger, 1883, creio ;
O Descobrimento do Brasil pelos Portuguêses, Laemmert, 1900 ;
O Descobrimento do Brasil, no Livro do Centenário, em 1900 ;
A Propósito da Colônia do Sacramento , 1900, tip Leuzinger.
Nada disto tenho em casa .

Em 1884 , creio, editei com o Vale Cabral o primeiro volume da


Geografia de Wappaus.
Tenho manuscrita uma coleção de textos bacairis, lingua falada nas
cabeceiras do Paranatinga, em Mato Grosso ; já publiquei sobre o assunto
um ou dois artigos na Revista Brasileira.
Estou escrevendo a todo o galope um esboço histórico e geográfico
do Brasil para o livro de estatística industrial, que, sob a direção do Dr.
Vieira Souto, deve ser publicado em setembro : marcaram m - e o limite de
120 páginas em oitavo.
Basta de informações. Se és meu amigo, peço -te poupes os epítetos.
Se soubesses como os achamos ridículos aqui e como os aproveitarão para
dar -me um trote ...
Que me dizes de um italiano, que no governo de Diogo Botelho
andou em guerras com os índios do Norte, foi mandado ao Maranhão,
donde os ventos levaram - no às Índias Ocidentais e daí à Europa ? O
GUILHERME STUDART
CARTAS A GUILHERME STUDART 173

italiano existe e o documento é autêntico ; falaremos disso quando a


pressa fôr menor.
Sempre teu,
CAP.
Rio, 2 de janeiro de 1906 .

Caro Guilherme,

Há muito tempo não te escrevo, devo-te resposta a uma porção de


cartas, e, como não as tenho agora à mão, desculpa-me as lacunas.
Li e te agradeço a minha biografia, que ainda não vi no Almanaque.
Enganaste-te dizendo que foi Amaro quem me extinguiu : foi Epitácio .
Não é também exato que jamais tirasse retrato : apenas não guardo um só.
No Brejão, Eduardo Prado fotografou-me mais de uma vez ; em Santa
Cruz das Palmeiras fez o mesmo Godofredo Leão Veloso , Assis Brasil
aqui em Santa Teresa e Rio Branco em Petrópolis, em grupo. Não guardo
um só, porque não os acho parecidos.
Também achei graça em dizeres que meus artigos são disputados por
bom preço.

Em suma, está passada a cachoeira e graças a ti tão fiquei encharcado ;


mais uma vez agradecido.
Recebi o curioso documento sobre a guerra holandesa a achei- lhe
muita graça. Citá-lo-ei em tempo ; talvez até escreva um artigo sobre ele.
Conversei muitas vezes com o velho Codeceira sobre aquela guerra .
Devo -lhe, em primeiro lugar, considerar como autoridade superior a todos,
para a época de que se ocupa, o Valeroso Lucideno. Dizia -me o amigo
que até hoje não se demonstrara uma só mentira de Fr. Manuel do
Salvador .
Devo -lhe também uma apreciação justa do caráter de João Fernandes
Vieira. Antes da restauração seu papel é equívoco, e Fr. Manuel, única
fonte sobre o assunto, dá menos do que poderia. Nos dez anos de luta
pode ter manchas, mas o conjunto é admirável. Depois da guerra é reles.
Alencar, que se deixou levar por Varnhagen, aqui mais tendencioso, injusto
e obtuso do que nunca , dizia-me que tinha nojo do testamento. Também
não gosto ; é verdade que os ideais variaram tanto do século 17.º para o
século 20.9.
174 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Outro dia ri bastante, em conversa com o Manuel Barata, que tratava


ligeiramente do Antônio Lemos. Foi oficial de fazenda na armada, depois
da guerra do Paraguai; um dia alguém afirmou que estivera na guerra ;
ultimamente já houve quem o chamasse herói da guerra e lobo-do-mar.
Ri-me porque com João Fernandes Vieira sucedeu cousa semelhante.
Não achei nada de interessante no trabalho do Nina Rodrigues
sobre Palmares ; em geral não posso tolerá-lo depois que profanou o
crânio do Conselheiro, felizmente desagravado pelo incêndio, e afirmou
que nosso patrício queria passar por novo Messias.
Se ele tivesse critério, escreveria de novo o artigo, apenas soube a
pressurosa novidade que em Alagoas havia e ainda há um rio chamado
Paraíba. Varnhagen está parado, à espera que passe adiante o Almanaque.
Meu amigo Paz voltou de Portugal sem trazer um só documento novo.
Últimamente recebeu carta do copista, dizendo que continuava a executar
suas ordens ; nada mandou, porém ; nem ao menos disse o que estava
copiando.
Sobre a conquista da Paraíba conheço de novo uma breve crônica
espanhola em versos, que narra os feitos de Valdez : com a informação de
Sarmiento fica agora bem definido éste sujeito . A crônica foi publicada
pelo Duro em um volume das Disquisiciones Nauticas 1 .
Esperança tenho de obter os trechos da História dos Reis de Portugal,
de Duarte de Albuquerque Coelho, relativos ao Brasil. Chega até D.
Henrique ; está na Coleção Pombalina ; Lampreia prometeu a Bulhões
mandar copiar o que nos interessasse.
Tomás Lopes, secretário da nossa legação em Madrid , está também se
ocupando com investigações históricas, a meu pedido. Já me mandou algu
mas indicações. Dei-lhe umas para ver se te causamos uma surpresa
agradável.
E as sesmarias do Rio Grande do Norte ? E a memória de João
Pereira Caldas sobre a conveniência de unir Ceará e Piauí ? Esta publi
cação me serviria para esclarecer um mistério bibliográfico.
A Biblioteca Nacional tem no prelo uma série de documentos sobre
Mem de Sá. Pretende o Diretor fazer dentro de dois [ ?] uma exposição
de literatura brasileira.

1. C. Fernández Duro, Disquisiciones Nauticas, Madrid, 1876-1881 , 6 vols.


CARTAS A GUILHERME STUDART 173

italiano existe e o documento é autêntico ; falaremos disso quando a


pressa fôr menor.
Sempre teu,
CAP.

Rio , 2 de janeiro de 1906 .

Caro Guilherme,

Há muito tempo não te escrevo , devo-te resposta a uma porção de


cartas, e, como não as tenho agora à mão, desculpa -me as lacunas.
Li e te agradeço a minha biografia, que ainda não vi no Almanaque.
Enganaste-te dizendo que foi Amaro quem me extinguiu : foi Epitácio.
Não é também exato que jamais tirasse retrato : apenas não guardo um só.
No Brejão, Eduardo Prado fotografou-me mais de uma vez ; em Santa
Cruz das Palmeiras fez o mesmo Godofredo Leão Veloso, Assis Brasil
aqui em Santa Teresa e Rio Branco em Petrópolis, em grupo. Não guardo
um só, porque não os acho parecidos.
Também achei graça em dizeres que meus artigos são disputados por
bom preço .

Em suma, está passada a cachoeira e graças a ti tão fiquei encharcado ;


mais uma vez agradecido.
Recebi o curioso documento sobre a guerra holandesa a achei-lhe
muita graça. Citá-lo-ei em tempo ; talvez até escreva um artigo sõbre ele.
Conversei muitas vezes com o velho Codeceira sôbre aquela guerra.
Devo -lhe, em primeiro lugar, considerar como autoridade superior a todos,
para a época de que se ocupa, o Valeroso Lucideno. Dizia -me o amigo
que até hoje não se demonstrara uma só mentira de Fr. Manuel do
Salvador.
Devo - lhe também uma apreciação justa do caráter de João Fernandes
Vieira. Antes da restauração seu papel é equívoco, e Fr. Manuel , única
fonte sobre o assunto , dá menos do que poderia. Nos dez anos de luta
pode ter manchas, mas o conjunto é admirável. Depois da guerra é reles.
Alencar, que se deixou levar por Varnhagen, aqui mais tendencioso, injusto
e obtuso do que nunca , dizia-me que tinha nojo do testamento. Também
não gosto ; é verdade que os ideais variaram tanto do século 17.º para o
século 20.0
176 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Estou às voltas com o trabalho para o livro do Vieira Souto, ainda


não impresso, por minha culpa. Já escrevi a guerra holandesa ; hoje
pretendo liquidar os bandeirantes. Calculo cento e cinqüenta a duzentas
páginas para o período colonial . As lacunas são muitas, mas isto é minha
menor preocupação. Levantados os andaimes, saberei melhorar o tujupar.
Espero em dois a três meses escrever a história contemporânea.
Recebi o último número da Revista, sempre interessante.
Por que puseste Marquês de Bastos e não Duarte de Albuquerque,
como ele próprio escreve, na fôlha de rosto, antes dos títulos, e se trata
no
correr do livro ? Ao ler o índice pensei fôsse outra pessoa.
Recebi uma carta do Professor Branner, vice- presidente da Stanford
University na Califórnia, dizendo-me que em maio pretende ir ao Ceará
em exploração geológica.
Há de te procurar e hás de gostar muito dele.
Neste tempo já aqui estará de volta o nosso Francisco Sá, e espero
todas as facilidades oficiais serão postas a sua disposição em nossa terra.
Apenas acabar o trabalho do Vieira Souto, terei de me ocupar com outro,
relativo à abertura dos portos do Brasil. Será a última empreitada de
minha vida. Penso às vezes em escrever uma monografia sobre o Conde
de Sabugosa, para satisfazer o desejo de um amigo falecido Vale
Cabral; mas o tempo passa , a vida corre, e cada vez gosto menos de
escrever e tenho tanta cousa ainda que ler, antes de partir para as regiões
donde ninguém volta ...
Adeus ! Adeus ! Saudades e abraços do
CAP.
Rio, 13 de novembro de 1906 .

Caro Guilherme ,

Indo hoje à Casa Colombo entregaram -me tua Resenha. Muito obri
gado. Já a li .
Causou -me grande prazer, mais de um prazer ; o primeiro, o maior,
já sabes : é estares bom dos olhos e poderes continuar na tua faina incan
sável. Causou -me também prazer a abundância de material, digo, de no
tícias que vais semeando com uma prodigalidade de nababo.
E se te disser também que me causou inveja ? O mapa de Jerônimo
Paz resolveria para mim algumas questões obscuras.
CARTAS A GUILHERME STUDART 177

Teu número 55 deve conter um engano. Se Guillobel nasceu em 43


não podia levantar planta do Mucuripe em 54. Seria o pai ? Como devo
jantar com Gabaglia depois de amanhã, pedir - lhe-ei, a ele que leciona na
Escola de Marinha, verifique o ponto. Creio que o velho Gabaglia, casado
com a irmã do José Júlio, fez também alguma planta do pôrto do Ceará.
Passei ésses últimos dias ocupado com teus Documentos, tua História
Portuguêsa de Severim de Faria e o volume dos Anais da Biblioteca rela
tivo ao Ceará e Maranhão. Quer isto dizer que estou escrevendo a parte
relativa ao Maranhão do trabalho encomendado pelo Vieira Souto . O
capítulo , simplíssimo à primeira vista, complica -se para quem tem de
reduzi-lo a cinco ou seis páginas. E ainda tenho de tratar das minas ...
de tudo, enfim . E cada vez tenho menos idéia e menos gosto. Sou
verdadeiramente um galé. Sinto necessidade de passar uma semana fora
do Rio, na Gávea, em Petrópolis, com o Moura Brasil, e não posso .
Por maior esforço, creio que ainda esta semana não terminarei. E depois
ainda a revisão de provas ! Creio que a parte colonial, única de que me
ocupo agora, deitará duzentas páginas. Na história contemporânea não
penso agora , para não virar maluco.

Prometeste dar um suplemento ou outro volume de Documentos.


Para quando será isto ? Podes te gabar que ninguém ainda fêz tanto
como tu para esclarecer aquele período ignorado de 1600 a 1630. Nas
anotações de Varnhagen tenho de citar-te a cada passo. É pena teres ca
lado a procedência : como responder ao desalmado que puser em dúvida a
autenticidade dos documentos ?
Hoje esteve aqui e conversou longamente o Derby. Diz que se tivesse
de ir ao Ceará , começaria pelo Apodi, pois suspeita a geologia da região
estar contida naquelas serras .
Calmon parece disposto a aproveitá -lo ; ninguém mais aproveitável :
está no Brasil há uns 30 anos conheço - o desde 81 - e não se concentra
na especialidade, conquanto não seja um espírito enciclopédico e genial
como seu mestre e amigo Hartt.
Saudades ! Saudades !
CAP .
Rio, 28 de novembro de 1906 .

15 - 1.•
178 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Caro Guilherme,
Desejo-te boas saídas, melhores entradas, ótimo ano. Volte intacta a
visão e possas continuar indefesso teu labor são os meus votos.
Acabo de pingar o último ponto do meu esboço. Custou ! Deu tre
zentas páginas o periodo anterior a D. João 6.0. Se me perguntares se
estou satisfeito com o que fiz, dir-te-ei francamente : não ! Imaginava
outra cousa e não pude realizá-la, parte por culpa minha, parte por
culpa das circunstâncias. Acreditei muito na extensão da vida e na
brevidade da arte, e fui punido. Quando, ainda no Ceará, concebi- a, a
obra tinha outras dimensões. Cada ano levou consigo um lance ou um
andar. A continuar mais tempo, ficaria reduzida a uma cabana de pes
cador. Mesmo agora acho - lhe uns ares de tapera.
Agora tenho de passar ao século XIX. Conheço - o pouco e mal.
Creio não entrará mais no livro de Vieira Souto, porque não pode esperar,
já esperou demais. Isto aliás me é indiferente : o importante é escrever a
cousa .

Propus ao José Carlos Rodrigues reeditar o livro no fim do ano


para distribuí-lo aos assinantes do Jornal do Comércio. Aceitou-o com a
maior espontaneidade e disse que já tivera idéia semelhante . Com as
tuas correções e de outros competentes, muito poucos, por desgraça,
podiam ser feitas emendas e aproveitadas sugestões.
Agora vou começar a correção de provas e só tenho para ajudar-me
o amigo Said Ali ; Calógeras, que tão útil me seria, anda pelas európicas
terras abundantes.
E as sesmarias do Rio Grande do Norte ? E a memória de João
Pereira Caldas sobre a conveniência de reunir Ceará e Piauí ?
Vai com esta carta o número do Jornal de ontem , que traz um artigo
de José Carlos Rodrigues sobre a nova edição do Varnhagen.
Vou já agora tratar da continuação e da monografia sobre o comércio .
Como vês, trabalho não falta ; sinto, porém , minguada a capacidade
para trabalhar, e escrever torna-se cada vez mais difícil e mais penoso.
Adeus ! Adeus !
Saudades do velho amigo,
CAP .
Rio , 7 de janeiro de 1907 .
CARTAS A GUILHERME STUDART 179

Guilherme,

Se o tempo estiver bom , espere -ne amanhã às 9 horas para irmos


à Tijuca .
Vou agora convidar o Sá.
Bien à toi ,
Cap .
Rio, sábado, 27 de junho de 1907.

Comecei a receber a cópia da correspondência do Diogo Botelho.


Interessante, porém menos do que esperava.
Uma carta régia refere - se ao processo a que está respondendo João
Soromenho perante um tribunal da Côrte. Na remessa que agora mesmo
acaba de chegar existe o auto da junta em que se decidiu a jornada do
Maranhão. Bastante curioso é o regimento dado a P. Coelho de Sousa.
Faltam ainda umas setenta páginas; pode ser que venha mais alguna
cousa sôbre nosso Ceará . Em tal caso escreverei alguma cousa .
Lembras -te da promessa sobre o Rio Grande ?
Boas saídas de ano velho ! Melhor ano novo !
Bien à toi ,
CAP .
Rio, 11 de novembro de 1907.

Caro Guilherme,

Boas saídas, inelhores entradas.


Recebeste meu cartão ?
Recebi tua carta . Espero que metade de teus incômodos provenham
da imaginação, e, com menos excesso de trabalho, poderás fazer bem a
nossa terra ainda por muitos anos.
Rejubilo com a notícia da próxima publicação do segundo volume de
Documentos.
Como te dizia, nos Documentos de Diogo Botelho vem alguma cousa
sobre Pero Coelho, como esperava. Estou à espera do resto da cópia para
mandar-te o que diz respeito ao Ceará.
180 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Parto na próxima semana para a Tijuca, onde vou tratar da 2.a


edição de meus Capítulos.
Domingo estive com o Renato ; o outro estava dormindo e preferi não
incomodá - lo .
Ludolf e família fazem-se lembrados.
Bien à toi,
CAP .
Rio, 31 de dezembro de 1907.

Tens razão, caro Guilherme, devia ter -te escrito mais vezes e há mais
tempo .
Um dos motivos do meu silêncio chega a ser ridículo ; não tinha
papel em casa ; na semana passada muni-me deste gênero, que provou não
ser de primeira necessidade.
Outro motivo : a justificação de Diogo Botelho ainda não está completa
e queria mandar-te o extrato da parte relativa ao Ceará . Por ora não é
muito : a ata de junta em que se decidiu a expedição, o regimento dado
a Pero Coelho, uma sentença sõbre indios do Jaguaribe, uma alusão a
Soromenho, de que já te dei notícia.
A justificação consta de duas partes : na primeira trata dos serviços
prestados em Pernambuco durante a assistência de pouco mais de um ano,
a segunda da assistência mais prolongada na Bahia. Em suma ficou
aquém de minha expectativa.
Outro motivo ainda do meu silêncio : esperava que me mandasses o
encantado documento sobre Rio Grande do Norte e suas sesmarias, como
prometeste. Quando Manuel Cícero andou pela Europa contratou com
Eduardo de Castro e Almeida o catálogo dos documentos relativos ao
Brasil existentes na Biblioteca Nacional de Lisboa. Devem ser remetidos
seis mil verbetes, cada ano , e calcula-se que o trabalho levará dez .
Já chegaram os primeiros três mil, que tratam da Bahia . Há muita
cousa importante, por exemplo, uma descrição dos sertões da Bahia e
Pernambuco, feita em 1698, antes da revolução produzida pelas minas. Já
mandei pedir cópia. Espero aprender muito nele, embora nunca tenha
encontrado até hoje um documento que me satisfaça por completo.
Folguei muito com a Ánua de Luís da Fonseca e espero que a publiques
sein grande demora .
CARTAS A GUILHERME STUDART 181

Vou passar pela Biblioteca e ver se te posso mandar algumas informa


ções.
Recebi os inéditos de Vieira e tos agradeço. O volume da Academia
ainda não. E quando publicas o suplemento ou segundo volume da co
leção dos documentos ?
Resido agora à rua D. Luisa , 67, ou , pela estúpida numeração moder
na, 193.
Pretendo ir ao Norte até o fim do ano. Creio que não passarei de
Pernambuco .
Este ano tem sido perdido para meus estudos de história pátria.
Havia muito estava afastado de certas leituras mais amenas e agora
estou tomando um rega -bofe.
Para o ano pretendo preparar segunda edição mais completa de meus
Capítulos de História Colonial.
Respeitos à ex.ma.
Abraços e muitas saudades do velho anugo,
CAP.
Rio, 25 de setembro de 1908 .
D. Luisa , 67 antigo.

Caro Guilherme,

Recebi as folhas da Revista com a carta do padre Luís da Fonseca.


Li ou antes reli- a com avidez, pois era minha conhecida. Se te reportares
a meu malfadado Varnhagen vê-la -ás citada e aproveitada a propósito de
Antônio Salema. Citei uma edição francesa contemporânea. Agora que
há dois textos aproveitáveis será a ocasião de transportá -la a português.
Fá -lo - ia eu se tivesse tempo. Quem sabe se José não se prestaria à ma
çada ? Interrogá -lo -ei na primeira oportunidade.
Recebi ultimamente o documento sôbre Rio Grande do Norte e muito
grato fico à gentileza de mo remeteres com antecedência. Comecei a
estudá -lo, mas só o posso fazer sèriamente no Rio, com o auxílio de
mapas. Reparaste na referência a Camarão ? que outro não pode ser
senão Poti. Tem agora Pereira da Costa novos elementos.
Partindo em janeiro para a Bahia deixei muito recomendado a um
de meus filhos que copiasse os documentos relativos a Pero Coelho, in
sertos em autos de Diogo Botelho.
182 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Estava ligeiramente doente, quando embarquei; doente vim encon


trá -lo ; não pode assim fazer a cópia.
Tratei, pois, de entregar a papelada à Biblioteca Nacional, para que a
pagasse ; minhas finanças não permitiam este luxo. Agora que já foi paga,
dei todas as indicações a José e ao tio : é provável que já te hajam
escrito a tal respeito. Como sabes, resolvi estudar a língua do Vicente.
Pertence ao grupo dos panos, que começa no Ucaiáli ou Iulaga e vai pelo
interior até as cachoeiras do Madeira. Martius publicou os glossários
acessíveis ; Paul de la Grassérie isolou o grupo com este material mínimo e,
cousa rara naquele tipo, que, sobretudo, entende escrever, acertou ; K. von
den Steinen publicou uin glossário espanhol encontrado no mato por um
viajante ou antes colecionador alemão, glossário copioso e bem feito.
Com Vicente percorri tal glossário, obra de algum missionário anônimo
do Ucaiáli ; percorri- o detidamente, não uma, porém muitas vezes, sempre
de pena na mão e papel ao lado. A semelhança entre os dois idiomas é
estupenda. Às vezes tenho dúvida se se trata de dialetos diversos, se da
mesma lingua ; as ligeiras divergências desapareceriam se fossem reduzidas
à mesma ortografia. Às vezes uma emprega radicais desconhecidos à
outra ; às vezes a significação diverge; mas, regra geral, a semelhança é
completa. Se me contentasse com a parte léxica, estaria terminada minha
tarefa ; amanhã remeterei as últimas letras, e tenho mais vocábulos que o
correspondente alemão. Pretendo, porém , fazer a gramática e ainda estou
muito atrasado. Vicente não pode ensiná -la. Preciso deduzi-la dos tex
tos colhidos ; são poucos e não sei se poderei colher mais. Tuxunim , em
quem tanto confiava, disse que já se esqueceu de todo.
Com este episódio lingüístico desviei-me inteiramente da história
pátria ; não continuei a narrativa, como pretendia, nem mesmo comecei a
revisão e redistribuição do já feito. As vezes lastimo, às vezes dou por
bem empregado o tempo. Se todos os anos tivesse um indio para me
ocupar, daria de mão às labutações históricas.
Punge-me sempre e sempre a dúvida : o brasileiro é povo em formação
ou em dissolução ? Vale a pena ocupar-se de um povo dissoluto ? Vale
a pena para um Tácito ou Juvenal, mas estou afastado tanto destas
naturezas !

Tenho passado todo este tempo na fazenda do Virgilio , com um


cunhado administrador, Vicente e uma cozinheira . Pôrto Novo dista
CARTAS A GUILHERME STUDART 183

cinco quilômetros; os jornais chegam às 4 horas da tarde; o Paraíba corre


a uns cem metros.

Escreve-me para o Rio.


Bien à toi.
CAP .
Paraíso, 19 de setembro de 1909.

Guilherme amigo,
Cheguei a 16 de novembro. Contava com as cópias pedidas a João
Lúcio, com tanto maior certeza quanto me dizia estarem quase concluídas.
Até agora nada chegou : extravio do correio ? implicâncias da censura ?
efeitos de lista negra ou de qualquer outra côr ?
Referiam - se todas a Garcia e Fernão Dias Pais, e à Guerra dos
Emboabas. Para ganhar tempo mergulhei na Revista do Arquivo Mineiro.
Conheci José Pedro ; assistimos à inauguração de um trecho da Leopoldina,
encontramo - nos e conversamos largamente em Ouro Preto, da única vez
em que fui à defunta Vila- Rica. Sua perda foi irreparável. Augusto de
Lima lhe era intelectualmente superior, mas não tinha o fogo sagrado ou
deixou - o apagar depressa. Em setembro jurava -me em Belo Horizonte
que de bom grado trocaria a cadeira de deputado pela volta a seu antigo
cargo. Forsan ... Junto um documento relativo a Morais Navarro,
que talvez não conheças e deve ser posterior a todos os que vais publicar
( É do tempo do Veiga : hoje a Revista está suspensa ).
Dos três paulistas que andaram por aí era o de menos valor. Quando
alcançaremos notícias precisas de Matias Cardoso ? Quando sairemos do
vago a respeito do Doutor Jorge Velho ? Li a Revista do Rio Grande do
Norte. Lira só pode ter mais umas consultas do Conselho Ultramarino,
copiadas para ele na Biblioteca Nacional, quando geria a pasta do Interior.
As consultas vêm desacompanhadas de documentos : só adquirirão verda
deiro valor com os que tens no prelo.
Pedi cópia a João Lúcio dos documentos relativos ao almoxarifado
de Pernambuco, guardados na Coleção Pombalina. Não os vejo citados
em tuas obras, prova evidente de sua pouca valia : em todo caso, pelo
menos servirão para o que Derby chamava a geologia da lama, que às
vezes guarda surpresas.
184 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

O que dizes sõbre a biblioteca de Eduardo lembra -me as palavras do


Luís Delfino sobre os Alves de Carvalho daqui, a quem serviu com a
maior dedicação, sem nada herdar por testamento : nunca souberam ser
econômicos, nunca souberam ser generosos.
Deixei em São Paulo a proposta para a compra de um manuscrito,
que espero oferecer para tua coleção ; paguei- o antecipadamente, sem
arrebentar as finanças. Trata -se de uma inspeção feita às missões do
S. Francisco, em 1760, pelo teu protegido Jerônimo Mendes Paz. A
escrita é atrapalhada e apenas percorri ligeiramente as páginas. Aceitarão
a proposta ? Sabes alguma cousa sobre a aldeia de Aricobé ? Nada en
contrei ainda ; é verdade que ainda não procurei com afinco. Da Bahia só
me ocuparei depois de deixar Minas.
Pensas em ir fazer companhia a Manuel Barata ... e por que não
antes eu ? O direito de antiguidade me pertence.
Tratemos da hipótese friamente.
Precisas de fazer teu testamento em vida : entre os encargos que
assumiste, alguns possuem substitutos previstos, legais: com tua desapa
rição, o maquinismo continuará, não tão bem , é claro, mas sem parar .
Por que não antecipas, motu proprio, o que a natureza há de impor ? Teus
longos anos de trabalho dão -te direito ao descanso .
Feito o testamento em vida, resta aquilo em que ninguém poderá
substituir -te : a história de nossa terra. Reservando tuas forças, ganharás
anos, e deixarás realizada a maior parte de tuas aspirações. Esta é a lin
guagem da amizade e do bom senso : duvido que a escutes : só conheço
duas abdicações voluntárias : a de Sila e a de Carlos V. Como todo o

mundo receia a capitis diminutio !


E adeus, e muitas saudades, do velho,
CAP.
Rio, 5 de dezembro de 1916.

Caro Guilherme,

Recebi a folha já impressa e as provas paginadas do artigo sôbre


Navarro, novo capítulo que acrescentas à história do Ceará. Encontrei
nelas muitas novidades : vejo que ainda tens mais cousas relativas às capi
tanias vizinhas.
CARTAS A GUILHERME STUDART 185

Criter folheei de novo o volume de Consultas Ultramarinas rela


tivas a Pernambuco. Fico triste sempre que o faço. Lisboa apenas
mandou copiar as consultas, deixando de parte as peças que as instruíram.
Faria assim para andar mais depressa, e porque a história política e a
história administrativa chamavam - lhe as preferências ? ou já estariam per
didas no seu tempo ? Inclino-me a esta hipótese, porque, se existissem ,
tê-lo-ia observado e mandado copiar.
Minhas cópias ainda não chegaram, porque os copistas andam em
férias. Agora não tenho pressa de recebê - las ; muito maior é meu receio
que algum submarino mude-lhes o endereço.
Li parte de João Lúcio sobre Pombal, e capítulos salteados da
História de Carlos III, por F. Rosseau : agora volto decididamente para
a Revista do Arquivo Mineiro.
Boas saídas, melhores entradas.
Bien à toi,
Cap.
Rio, 19 de dezembro de 1916.

Guilherme amigo ,

Nos Souvenirs de Hyde de Neuville vi que prestara serviços a Por


tugal contra os revolucionários de Pernambuco, quando representava a
França junto ao governo dos Estados Unidos. Pedi a A. Rangel que
visse o que constava no Quai d'Orsay. Seu artigo é apenas a satisfação
a meu pedido. Nem ao menos leu os Souvenirs do famoso conspirador
realista durante a revolução, dedicado amigo de Chateaubriand, salvador
de D. João VI quando D. Miguel pretendia depô-lo, ou prendê -lo ou
talvez matá - lo .

Tens razão em dizer que aqui não levam em conta os trabalhos


estaduais. Pensas que isto é proposital ? Como conhecê-los ? Como
obtê-los ? Só por acaso soube de uns artigos publicados em Belém por
Genu de tal. Serão genuínos os documentos que alega ? Se forem, sua
importância é capital. O autor parece prometer publicá-los sob o título
Feliz Lusitânia . Se o fizer, felix Historia.
Briguiet trata agora em Paris da nova edição do Atlas do Homem
de Melo . Na corrente deve ir um Atlas Histórico de que está encarre
186 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

gado este teu velho amigo, que chamou para ajudá-lo o Rod. Garcia, do
Instituto Historico daqui, o Gentil Moura, de S. Paulo.
Comecei meus estudos por Minas Gerais ; Gentil já deve ter con
cluído o de S. Paulo em 1720 ; Garcia está trabalhando na antiga Capi
tania de Pernambuco, de Carinhanha e Parnaíba.
Sabes melhor que ninguém como a cousa é difícil, como sai im
perfeita, como o segundo que vier pode melhorá-la consideravelmente,
( com ] metade do trabalho. Pouco importa.
Não poderás reunir em volume o que consta sôbre os índios do
Ceará, para o Congresso dos Americanistas, em junho ?
O Instituto daqui pôs-se de fora : não é motivo para fazeres o
mesmo.

E muitas, muitas saudades ! Como seria bom que não julgasses


Rio terra somenos, e viesses descansar aqui de vez em quando !
Bien à toi,
CAP.
Rio, 20 de fevereiro de 1920.

Guilherme amigo,

Pouco depois de ter escrito minha última carta, recebi o 4.º volu
me dos Documentos. Não o esperava ; o correio, ultimamente, tem feito
tudo comigo !
Agradeço -te mais esta prova de bondade e espero o 5.0 volume
antes das festas do ano próximo, a que pretendo não estar presente.
Estão sendo paginadas as provas do Inquisição. Não darão menos
de 300 páginas, sem a introdução, que será breve, e o índice alfabético,
no qual incorporarei as notas.
Os processos seriam um livro popular se não fosse a obscenidade de
ce : tos depoimentos, que bradam por latim , latim, mais latim.
Novidades históricas tenho encontrado algumas : o nome do avó e
da avó, a idade do pai de frei Vicente ; o nome do pai e mãe de Fernão
Ca dim, fatos relativos aos Ávilas, aos Adornos, etc.
Mais uma prova tive de que o caso de Bolès não passou como Simão
de Vasconcelos narrou ; declara Luís da Grã que ele tinha sido mandado
para a Índia, exatamente como se afirma na Informação que publiquei.
CARTAS A GUILHERME STUDART 187

Acho referências às lutas entre o governador e o bispo, primeiro


narradas por Fr. Vicente, e o processo de Pero de Campos Tourinho ,
tramado por um filho ! Que dirá nosso Varnhagen , sabendo disto, e
cotejando- o com o que escreveu na História Geral?
Fins de outubro pretendo ir por ai fora delongando, até Pedras Altas.
Saudades ! Saudades !
Bien à toi,
CAP.
Rio, 99.0 da Independência, 1920.

Guilherme amigo,
Estou em grande falta contigo. Recebi as folhas do teu quarto
volume e não agradeci. Nem as li ainda.
Consegui que viessem de Mato Grosso, por solicitação do Calogeras
e intervenção do Rondon , dois indios bacairis para completar um traba
1ho começado em 92.

Devem partir depois de amanhã. Um precisava bem de uns afagos


de cajueiro brabo ; outro prestou bons serviços. A presença dos bacairis
é a explicação do meu silêncio.
Partirão depois de amanhã, 16. Passarei a ultimar as provas da
Inquisição, que já conheces, já compostas. Falta a revisão final.
Livre desta maçada, tratarei das cartas de Anchieta, que vão ser
impressas em S. Paulo. Terás alguma desconhecida ? Seria gentileza
mandares. Com as cartas de Anchieta reimprimirei também a Arte da
Lingua -Geral.
Os manuscritos bacairis irei entregando na Biblioteca, que vai editá
los. O livro será menor que o dos caxinauás e muito mais importante.
A impressão será demoradíssima, não por culpa minha, porque os ori
ginais estão mais ou menos prontos, mas por causa dos tipógrafos, que
são apenas dois, e malandrissimos.

Esqueceste um pedido que fiz repetidas vezes : não vale a pena


lembrar.

Em fins de outubro sairei para S. Paulo ; em meados de novembro


estarei em Pedras Altas ; só pretendo tornar em fevereiro ou março , o
188 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

mais tarde possível. O Rio está ficando um segundo Ceará, cemitério,


terra dos mortos .
Bien à toi,
CAP.

Rio, véspera da Assunção, 1921.

Guilherme amigo,
Sei que fazes anos agora em janeiro. O dia escapou -me. Pouco
importa. Aí vai o abraço, dado com a mesma cordialidade de 1863,
quando nos conhecemos no saudoso Ateneu.
Espero, para a semana, ficar livre das Confissões da Bahia, que
já conheces. Mandar - te - ei um exemplar completo da obra sa va
sans dire e uma separata do prólogo.
Espero na outra semana partir para São Vicente, onde ficarei um
mês, tomando uns banhos, com Jaguaribe, banhos pitorescos, mais de
areia que de água do mar.
Chamamo - los banhos de perus .
Até ...
Bien à toi,
Cap.
Rio , véspera do Fico, um século depois.
A JOSÉ VERÍSSIMO 1893-1914

Colônia Alpina, 25 de janeiro de 1893 1 .


Dear Sir ,

Peço-lhe o obsequio de ver se me atiça por lá essas provas. Estou


aqui desde o dia 14, e até hoje não recebi uma linha, uma linha. Tenho
escrito ao Alves por mais de uma vez, mas até agora ainda não recebi
resposta. Estou aqui convenientemente instalado. . De dia o sol é quente,
mas calor, ou não há, ou pouco dura . As noites são frescas, as ma
drugadas positivamente frias . Tenho trabalhado regularmente nas Aves
do Goeldi e no Bacairi de von den Steinen ; do guarani não me tenho
descuidado ; espero desta vez conseguir romper. Escrever-lhe-ei pròxima
mente a propósito da licença, que quero ver se não peço.
Adeus.
Bien à vous,
J. CAPISTRANO DE ABREU

Colônia Alpina, 26 de janeiro de 1893.


Dear Sir,

Escrevi-lhe ontem , mas torno a fazê - lo , para , pela sua intervenção,


obter o seguinte: 1.0 : as folhas 3 e 4 do trabalho do Dr. Goeldi, que
já devem estar impressas; 2.° : provas da fôlha 4.a que o paginador me

1. Esta correspondência foi primeiramente publicada na Revista da Academia


Brasileira de Letras, vol . XXXVII , outubro e novembro de 1931
190 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

entregou nas vésperas de minha partida, mas não encontro aqui ; 3.° :
provas do capítulo sobre os ungulados, publicado no Jornal do Comércio,
de que ainda não vi nem as primeiras provas, e que deveria entrar nas
que recebi hoje, logo depois da pág . 96. Conseguidas as coisas, peço -lhe
que as remeta ao Alves . Se forem postas aí no correio sábado, poderei
recebê -las na 2.a feira. Desculpe as maçadas.
Bien à vous,
J. C. DE ABREU

S. Rita de Teresópolis, 20 de fevereiro de 1893.


Dear Sir,

Escrevo -lhe uma carta ofic al e esta particular, cuja resposta lhe
peço com urgência. Tenho-me dado bem aqui na serra, e preciso para
minha saúde e para meus estudos ficar até fins de março . Poderia pedir
uma licença, porque a última e única que requeri foi em 1884 ; mas
estou encontrando duas dificuldades, cada qual mais ridícula : a primeira
é falta de médico, que me passe atestado ; a segunda, falta de estam
pilha para fazer requerimento. Pergunto -lhe, pois, se com a carta ofi
cial que junto, pode considerar minhas faltas como justificadas, e chamar
um substituto por uns 20 dias, que bem poderia ser o Sílvio, que precisa
bastante ? Faltam tão poucos dias para se abrir as aulas que lhe peço
me responda para meu governo.
Bien à vous,
J. C. DE ABREU

Colônia Alpina, 28 de fevereiro de 1893 .


Dear Sir,

Obrigado por sua resposta e pela estampilha. Depois de lhe haver


escrito, foi-me dado ir a Teresópolis, que daqui dista 2 1/2 léguas. Lá
encontrei estampilha e médico. A estas horas o requerimento, que enviei
por intermédio do Pompéia, já deverá estar despachado. Caso haja
adiamento na abertura das aulas, peço -lhe que só considere minha licença
em vigor depois da abertura . Se esta for a 15 de março , não precisarei
da licença, porque descerei a 20. Participo -lhe que tenho adiantado muito
os estudos de bacairi . Já tenho umas 20 histórias de animais, conheço
CARTAS A JOSÉ VERÍSSIMO 191

uns 20 seres fantásticos de que von den Steinen nem teve notícia e
tenho a história de Keri e Kame, que é como que a Gênesis deles , muito
desenvolvida, quase completa. Creio que ficará esta sendo a tribo se
não melhor estudada, pelo menos a melhor documentada do Brasil. Há
muita novidade de alcance geral. Nosso amigo Dr. Goeldi terminou
desde janeiro o volume sõbre as aves, que ficou com 450 páginas in folio .
Está -se preparando agora para passar aos reptis e anfíbios. Todas as
noites sai de lampião, com o primo, atrás das pererecas, que se têm visto
zonzas . Na próxima semana, segundo carta que tive do bibliotecário, po
derá entrar para o prelo o livro sôbre os bacairis .
E até a volta .
Bien à vous,
J. C. DE ABREU

Há aqui um suíço, engenheiro da Colônia, que outro dia veio me


trazer as Сenas da Vida Amazônica recomendando-me a leitura. O diabo
é que este estropia seu nome de tal modo que dir-se-ia o de alguma
senhora russa , chamada Vera .

Rio, 26 de dezembro de 1902.


Veríssimo,
Querendo agora dar num 3.° volume da Biblioteca do Século XX ,
trabalho de Köhler, verifiquei que tenho apenas os primeiros artigos da
Gazeta. Faltam os que tratam dos direitos pessoais e direitos reais. Tê
los - á você ? Se tiver, é favor deixá-los no Laemmert, no Briguiet ou no
Colombo. Os americanos ainda não deram sinal de vida. Brandão 1
acha, porém , que V. podia ser nomeado desde já, e ainda insiste nos
18. Il est orfèvre: quer que o ordenado de fiscal sirva de base para
o dêle. Vou falar com Bulhões. Meus respeitos à ex.ma família . Boas
saídas e melhores entradas .
CAPISTRANO

1. Dr. Pires Brandão.


192 CORRESPONDENCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Rio, 24 de outubro de 1908.


Meu caro Verissimo,
Augusto Loup, meu primo e amigo, pediu -me recomendasse-o a sua
benevolência. Faça -o, si et in tantum . Por conseguinte, sua recomen
dação é desnecessária, responderá você. De perfeito acórdo. Peço -lhe
deixe no Werneck, bem embrulhado, o exemplar de meus Capítulos devol
vido pelo Ferrero !. Penso que minha viagem ao Norte se realizará no
próximo mês. Antes, porém , lá irei tomar as ordens.
Respeitos à ex.ma família.
Bien à vous,
C. DE ABREU

Rio, 29 de outubro de 1908.


Meu caro Verissimo,
Em um bonde do Largo dos Leões, de uma só assentada, li seu
artigo sobre Machado de Assis. Gostei muito ; tratando de certas fei
ções do morto, V. me pareceu particularmente feliz ; em outras V. repre
senta o lado convexo, talvez eu preferisse o lado côncavo. Quando
Machado conheceu Maneco Almeida, era tipógrafo da Imprensa Nacional,
mau tipógrafo, disse-me um seu companheiro, que ainda encontrei ; Mane
co administrava o estabelecimento. Será fácil determinar a data aproxi
mada do fato, pois as Efemérides de Teixeira de Melo se ocupam do
naufrágio em que pereceu . A entrada para o Diário do Rio pode -se
também apurar : coincidiu com a de Saldanha Marinho. Nossa aula de
alemão , de 1883-84, teve por professor Carlos Jansen, por alunos Fer
reira de Araújo, que depois tomou - o para explicador e ficou sabendo
muito bem a língua, Orville Derby, K. Vi..., Vale Cabral, Silva Araújo,
Pompéia. Eu e Derby somos os únicos sobreviventes, creio. Meu pen
samento seria melhor traduzido, dizendo que foi quem mais aprendeu e
melhor ficou , etc. Sobre o brasileirismo de Machado de Assis conviria
estudar as Americanas, volume de poesias publicado na era de 70, se bem
me lembro. Uma causa exterior de sua originalidade foi o conhecimento
do inglês, que devia ter adquirido môço, pois nas Crisálidas já o patenteia,
se bem me lembro . Creio que José Feliciano influiu mais sõbre ele que
Manuel de Melo, afinal de contas um viveur. Uma feição a lembrar :
1. Guilherme Ferrero.
CARTAS A JOSÉ VERÍSSIMO 193

embirrava com o telégrafo submarino. Antes lia-se atentamente os jor


nais e como entre um e outro vapor mediavam dias, meditava - se sõbre
os sucessos e procurava -se adivinhar o porvir.
Bien à vous,
C. DE ABREU

17 de abril de 1909.

Recebi o T ... [ ? ] , muito obrigado. Temos esperado sempre por


V .; eu com pouca fé, porque quem tem inimigos não dorme. Lembrou
me concorrer para o Congresso dos Americanistas, aproveitando o artigo
sobre bacairis, publicado na Revista Brasileira. Pode -me arranjar, se não
um exemplar avulso , pelo menos o volume, para eu mandar datilografar ?
Estarei no Rio 2.a ou 3.a ; no princípio do mês, vou de uma vez.
Saudades .
C. DE ABREU

Pôrto Novo ou Carmo, 17 de junho ( 1909 ).


Meu caro Verissimo,

Paraíso, donde lhe escrevo, fazenda do Virgilio Brígido, pertence


ao Rio, mas a estação mais próxima fica em território mineiro, à esquer
da do Paraíba, chama-se Pôrto Novo do Cunha. Vim passar alguns dias
e tenho lucrado muito, talvez porque, tendo vindo aqui pela primeira
vez, haverá 15 anos, sinto agora este pêso de menos. Um proveito já
colhi : do tremendo livro do Gama Barros sobre a administração pública
em Portugal até o século XV, que nunca me atrevi a investir aí nessa
mui heróica e leal, já lapeei o 1.º volume, e o 2.º vai a bom caminho.
Tirei algumas notas que podem servir para a 2.a edição, se lá chegarem
os Capítulos. Mas o fim desta carta é chamar-lhe a atenção para a pas
sagem do Altamira, que ai vem de passagem no Avon. Você conhece
os três volumes da História, se não o quarto que já deve estar publicado.
Escreva alguma cousa e agite a Academia. Como vai seu artigo sôbre
D. João VI ? Desde que V. me declarou suspeito, pus de parte el - rei
Cabrão e seu poeta. Estou às voltas com a Historia de la Guerra del
Brasil, mais prêto do que consciencioso estudo de um militar argentino.
Estudo - o com cuidado, e espero escrever um novo apítulo, sem grande
16 -- 1.º
194 CORRESPONDENCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

dificuldade, logo que chegar ao Rio. Aqui há tempo para tudo, até
para filosofar, e penso como a morte do Bittencourt esclareceu uma situa
ção e a do Pena só veio complicar outra. Lendo os jornais de ontem
tive bem nítida a visão de uma tripeça : Nilo, Rui, B [arbosa ] Lima! Na
Enciclopédia Espanhola, em publicação, de que o Moura, na Rua da
Quitanda, é agente, V. deve encontrar dados biográficos sobre Altamira.
Acabo de sair do banho, por isso a letra vai tremida. Respeitos à ex.me
família.
Bien à vous,
C. DE ABREU

Paraiso, 20 de junho de 1909.


Meu caro Veríssimo,

Quando lhe escrevi, não conhecia ainda os novos ministros.. Rui


tem razão : há traumatismos morais e siderações. Felizmente estava a
mais de 200 quilômetros dos acontecimentos e pude enfurecer-me à von
tade. Sá e Bulhões só podem prestar um serviço : arranjar já e já
uma mordaça, nem que seja a rodilha de algum carregador da City, e
meter pela goela do crocodilo abaixo. De vez em quando sinto lufadas
da boca do lobo : convidar para ministro Epitácio e Guanabara ; instalar
o Ministério da Agricultura e convidar Antônio Prado para ministro. O
pachola não compreendeu que só tem companheiros porque Rio Branco
amparou - o ; se não, seria deposto pelo olfato público. E quando houver
alguma vaga no Supremo Tribunal ? Naturalmente, Palma. Você deve
saber que Procópio é obra de Rui, principalmente . Pinheiro apenas acei
tou-os e não creio que venha a brigar, porque Pinheiro só quer dominar
no Senado ; para si nada ambiciona e em geral pouco se importa com
politicagem . Neste ponto é o oposto de Glicério, de Rui. Sinto -me
acanhado em voltar para o Rio e vou ficando. O holandês pagará o mal
que não fez. Já conheço uma parte da gramática, mais complicada que
a inglêsa, porém muito menos que a alemã. O vocabulário, exceto um
fundo especial, acosta-se a uma das duas linguas alternativamente : se
todos três empregassem a mesma ortografia, aprender holandês seria um
brinquedo. Trouxe um livro sôbre as companhias das Índias orientais e
ocidentais , recebido em vésperas de minha partida e que vi algures reco
mendado como uma boa síntese. Só depois de tê-lo lido conceder-me-ei
habeas-corpus, a menos que não mande buscar em casa outro sobre uma
CARTAS A JOSÉ VERÍSSIMO 195

casa comercial holandesa, que negociou em Lisboa até fins do século XVI .
Pelo indice vi que contém muita cousa sôbre o Brasil . O livro do
Gama Barros, que já está pràticamente lido, deu -me alguma cousa para
o segundo capítulo, em que posso ser mais preciso. Lendo - o, suscitaram
se idéias que serão aproveitadas no terceiro, creio que com vantagem ,
porque não trouxe um exemplar do meu trabalho ; pelo menos a expo
sição será mais lógica e a transição da Africa para o Brasil mais gra
dual. Se colher do livro holandês, terei feito até as guerras flamengas.
Desde que V. se mostrou tão disposto a ser incomodado, lá vai obra. Ve
ja se Tasso Fragoso obtém na Biblioteca do Exército uma história do
Uruguai, creio de Bola ou Bala. Se fôr possível vir para cá, entregue
no Briguiet para me mandar com outras cousas. No Briguiet devo ter
encomendas chegadas depois do dia 10. Se houver um livro sobre frases
vernáculas do inglês, peço-lhe que mande dois exemplares para a Rua
D. Luísa . Se houver, outro, alemão, 8.º grande, sõbre absolutismo, Luis
XIV, etc. , ele que remeta. Os discursos de Rui e Barbosa ( Lima ) lem
braram-me que nos últimos cantos da Eneida fala-se de um rei, Turno
ou Mesêncio, que amarrava pessoas vivas a cadáveres. Veja se encontra
isto no Odorico Mendes e se tiver ocasião mande-o ao Nuno de Andrade
ou ao Laje , caso tenha aplicação. Se estava com a cabeça regulando,
o que escrevi sõbre Altamira foi que veio no Avon e V. agite a Acade
mia para que o mande saudar a bordo e não seja tido por passageiro de
3.a classe. Sõbre o D. João VI, minha impressão condensa-se em uma
palavra : é um livro inferior ; achou meios de escrever cem páginas sem
a abertura dos portos, o mais importante de todos os atos do reinado, ser
mencionada. E como conta a revolução de 17 ! Nabuco, Aranha e Al
fredo de Carvalho têm razão : é um usurpador e estragador de assuntos.
Mas não faz mal : o livro será elogiado, vendido ; lido, duvido ; o autor
avultará e veremos o que já o indiscreto Xavier de Carvalho anunciou
em uma correspondência de Paris : será o sucessor de Rio Branco. Te
remos assim Nilo II . Com os diabos ! Ainda uma vez Nilo . Nem
mais uma palavra. Respeitos a ex.ma família .
Bien à vous,
C. DE ABREU

1. João Laje, jornalista português, então diretor de o País.


196 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Paraíso, 18 de setembro de 1909.

Até agora ainda não recebi o livro do Lúcio de Azevedo, prometido


para sábado passado. Estará encalhado na alfândega ? Hoje espero ter
ininar o vocabuláriol com três mil palavras.
C. DE ABREU

Paraiso , 1 de outubro de 1909 .


Meu caro Veríssimo,
Incluo uma carta para o João Lúcio de Azevedo, cujo endereço igno
ro. Leia-a ; se achar inconveniente, suprima-a. Encontrei dois números
do Times, que teve a bondade de enviar. Vou lê-los. O candidato a
seu lugar penso que era Temistocles de Almeida, deputado não eleito ou
não reconhecido por Campos. Nilo nada opôs quando soube que V. opta
ra pelos vencimentos da fiscalização ?. Disse então a Bulhões : ele teria
uma decepção, porque a companhia pediria para passar ao regime comum
da fiscalização, o que não poderia ser negado, e então ele não teria mais
o conto de réis por mês. Pretendo estar no Rio lá para o dia 13.
Cumprimentos e saudades à ex.ma família .
Bien à vous,
C. DE ABREU

Paraiso, 28 de outubro de 1909.


Recebi seu cartão e o número do Times. Muito obrigado. Continuo
na minha faina, felizmente bastante adiantado. Agora, o maior trabalho
é passar os textos a limpo e fazer a tradução. Quero ver se só meto mãos
a esta quando estiver habilitado a traduzir tudo em menos de uma semana.
Dê uma batida em sua biblioteca amazônica e veja o que encontra sôbre
caamauás, jarumauás, catoquinas, indios do Juruá, em suma. O volume
do Museu Paulista referente à exploração do rio trará alguma coisa ? Não
tenho pressa : apenas quero saber onde hei de bater. Pretendo passar no
Rio de 22 a 29 .
Saudades.
Bien à vous,
C. DE ABREU

1. Vocabulário dos caxinauás.


2. José Veríssimo era fiscal de companhias de seguro.
JOSÉ VERÍSSIMO
CARTAS A JOSÉ VERÍSSIMO 197

Paraíso , 20 de novembro de 1909.


Meu caro Veríssimo,
Recebi seu cartão e sua carta . Se não me engano, a casa do Drago
fica entre Rocha e Riachuelo , e o bonde passa na porta. Lá irei ter.
Realmente minha demora no Paraiso tem saído maior do que previa. A
culpa é do indio, ou antes dos índios, porque agora tenho dois. A
atmosfera aqui é - lhes congenial, e a flor, se não desabrocha, não murcha
como lá. Mas estou em preparativos de viagem . Em janeiro, o mais
tardar, estarei à Rua D. Luísa. Tenho organizado o vocabulário com
mais de três mil palavras. Todos os dias acrescento novas ; pode ser
que não me afaste muito das quatro mil . Colhi muito menos textos do
que esperava : descrições de festas, lendas, alguns mitos. Como V. sabe.
o indio fala naturalmente só por orações simples , que, aliás, podem ter
muitas palavras e coordenadas. Creio ter umas duas mil orações. A
maior dificuldade gramatical contém-se no verbo. O verbo pano é fácil
quanto ao tema : em suma o verbo transitivo apresenta duas formas :
numa o sujeito pratica a ação para si , noutra pratica para outro : assim
tirar um objeto para si ; tirar um objeto para mim , para ti , etc.: a caracte
rística dos primeiros é t, da segunda é .ru . Há diferenças para os intran
sitivos e verdadeiros reflexivos ? Ainda não as percebi, e só agora posso
concentrar minha atenção sobre o particular. Ainda não vejo com cla
reza o papel de certos auxiliares, que umas vezes equivalem ao do
inglês, e outras fazem quase do verbo substantivo. Para tudo isto dis
ponho de um mês, pois em janeiro espero começar a impressão. Muito
me auxiliou no trabalho um vocabulário sipibo encontrado no mato por
um viajante alemão, e que Carlos von den Steinen publicou em 1904.
Tanto o caxinauá como o sipibo pertencem ao grupo do pano, primeiro
isolado pelo estouvado Paul de la Grasserie, que desta vez acertou. As
semelhanças entre o sipibo e o caxinauá são muito grandes, e tanto
mais notáveis quanto o vocabulário sipibo foi apanhado há mais de um
século e no Ucaiáli, ao passo que os meus índios são do Taranacá. Fiz
um reconhecimento geral do livro de Morgan , verdadeiramente notável .
Creio que o seu principal defeito é não ter sido revisto pelo autor, ao
menos no princípio, onde há erros de impressão intoleráveis. Pouco
antes dêle Edward Meyer, que no corrente semestre vai lecionar em Har
vard, publicou o primeiro volume da História da Antiguidade, em nova
edição. É curioso como o sábio de campo e o sábio de gabinete chegam
a conclusões opostas: um considera primeiro centro de civilização o Egito,
outro a Mesopotâmia ou , como Meyer chama, parece -me que muito bem ,
198 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Senaar, termo empregado na Biblia . Minhas tendências foram sempre


a favor desta última hipótese, que Meyer combate fortemente e com
valiosos argumentos. Estou ansioso de ver algum artigo, em que pessoa
de competência se ocupe do assunto. Ainda não vi um só artigo sobre
qualquer das duas obras. Também da outra banda há conjurações de
silêncio, desta vez bem pouco razoáveis, pois trata - se de dois homens
cuja voz não pode mais ser abafada. Tanto Meyer como Morgan votam
pela origem asiática dos indo - germânicos. Muito folguei sabendo que
João Lúcio me escreveu , e estou com curiosidade de lê-lo. Pretendo
depois de amanhã dormir em Petrópolis : têrça- feira aí estarei. Se não
os encontrarmos logo, deixe a carta no Briguiet.
Respeitos à ex.ma família .
Bien à vous ,
C. DE ABREU
1
1
Paraíso , 23 de dezembro de 1909 . 1
Meu caro Veríssimo,
Na quarta- feira em que eu devia jantar com você, recebi o chamado
de uma pessoa a quem não podia faltar ; fiquei assim preso até 6 horas.
Mas passei telegrama. No outro dia já tinha dito que não podia ir.
Tenho visto alguns ecos da Escola Normal 1 nos apedidos. Felizmente
V. não é medroso ; creio até que gosta de brigar. O pior é não poder
fazer outra cousa . Vou -lhe mandar a mandioca apenas V. me diga
para que estação será mais conveniente despachá -la. E mande também a
receita do tucupi, para se experimentar aqui, e deixar ao menos éste
Duvido muito
sinal de minha passagem , se gostarem . Duvido muito que Sá possa almo
çar enquanto estiver no ministério . Não lhe chega tempo para nada.
A senhora não cessa de queixar-se do atropelo de que toda a casa está
sofrendo. Meu trabalho já está no prelo, pode estar pronto em fevereiro.
Não estou contente ; meti-me em camisas de onze varas. Estou revendo
provas. Creio que os dois indios já esgotaram o capital ostensivo : quan
to ao esotérico já perdi as esperanças. Um dêles fêz aqui uma desco
berta curiosa : existe caucho numa mata próxina. Quem o diria ?
Pretendo estar por aí no dia 4, mas minha passagem será meteórica.
Quero acabar com a prebenda do caxinauá : cada dia passado ai é dupla

1. J. Veríssimo era então diretor da Escola Normal.


CARTAS A JOSÉ VERÍSSIMO 199

mente perdido, porque não adianto, perdido porque, quando volto, em vez
de achar os indios melhor dispostos, tenho, ao contrário, de novamente
fazer vapor para a máquina pôr-se novamente em movimento.
Respeitos à senhora e senhoritas.
Bien à vous,
C. DE A.

Rio, 19 de outubro de 1912.


Meu caro Veríssimo,

Recebi e agradeço a nota sobre trocano. Despertou -me a atenção


a notícia de sua existência entre os curinas, tribo misteriosa do baixo
Juruá, que nada tem [ com] os culinos de Martius, passo afirmar-lhe, que
são panos. Comunico-lhe que mandei hoje dia de S. Pedro de Al
cântara, não é ? – os originais últimos dos textos caxinauás. Não vão
todos apanhados, porque era preciso parar. Em um capítulo com o título
pouco convidativo de Remendos e Sobejos dá - los- ei só em português ; os
remendos serão as erratas, que felizmente não têm gravidade, nem são
muitas ; trabalho de uma semana no máximo. Falta agora a revisão do
vocabulário e a espavorante gramática, ainda intacta, que tem de pro
custar-se em trinta e duas páginas. Espero a alforria em dezembro,
depois de três anos e meio. Você terá guardado meus Dois Depoimentos !
Desejo publicá-los à parte; perdeu - se meu exemplar.
Respeitos à ex.ma família, a quem, quando estiver fôrro , irei visitar.
Bie VOUS,
C. DE ABREU

Rio, 21 de janeiro. Luís XVI, 1914 .


Meu caro Verissimo,

Demorei um pouco o agradecimento a seu gentil artigo de domingo,


porque pretendia relê-lo antes. Não o acho, porém ; ficará para o pri
meiro encontro qualquer observação que surja. Sei que agradou bas
tante : Mário escreveu-me dizendo que gostara ; outras pessoas comuni
caram impressão semelhante. Eis-me, pois, livre de bárbaros, à volta
com civilizados. E que civilizados ! Godóis, Maria Luisa, Bonaparte ...
Farei o possível para escrever até o fim do mês o primeiro capítulo:
200 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

inotivos da transmigração, abertura dos portos, conquista de Caiena,


tratado de comércio com a Inglaterra, convenções sobre o tráfico de afri
canos . Este último ponto só agora estou estudando e reconhecendo -lhe
o alcance. Pensei primeiro em meter no mesmo capítulo o começo das
questões do Prata, mas ficaria desconexo ; será o terceiro ; o segundo
tratará da administração interna ; o último das revoluções pernambucana
e portuguesa, volta da corte para Portugal. Com 50 páginas espero
liquidar o período . Que sairá de tudo, não sei ainda : em parte será
trabalho de primeira mão , em parte compilação. Quando pensei em con
sagrar -me à História do Brasil , resultado de uma leitura febricitante de
Taine, Buckle e da viagem de Agassis, feita ainda no Ceará, não me
lembro se pretendia abarcar toda a história. Mais tarde reconheci que
era necessário incluir a época contemporânea, mas a minha curiosidade
dispersou-me a atenção por toda parte e agora posso dizer como Monte
Alverne : é tarde ! é muito tarde ! Estou com planos de ir passar um
mês em Caldas. Antes estou tratando de passar alguns exemplares ao
governo. A Biblioteca Nacional adquiriu alguns pelo saldo das permutas ;
da Secretaria do Exterior talvez obtenha hoje resposta , não sei se favo
rável ou não ; do Edwiges 1 ainda não me aproximei. Esperar que o
público adquira a obra é ingenuidade de que não sou capaz. A muito
custo Briguiet ficou com vinte exemplares, por encontro de contas, e
dando-lhe o abatimento de 40 % . Lucro não ambiciono; quero apenas
restituir o dinheiro que Brandão adiantou para o pagamento.
Respeitos à ex.ma família .
Bien à vous,
C. DE ABREU

1. Edwiges de Queirós, então ministro de Agricultura, uma de cujas secções é o


Serviço de Proteção aos Índios.
A MÁRIO DE ALENCAR 1896-1925

Mário,

Sua carta mostra -me que terminou de todo o período da preocupação,


começando o da ocupação. Que não desanime, que não fique a meio
caminho o Dicionário Analógico da nossa língua, eis o que desejo e espero.
( Que esquisita ortografia foi V. descobrir para Brasil ! Fora com ela. )
Recebi a notícia do suicidio de Pompéia no dia 27, sêcamente, em
carta que de S. Paulo me escreveu Derby. Desde aquele dia não posso
pensar em outra cousa . A princípio foi sobretudo a morte déle, tão puro ,
tão grande e tão ingênuo, que sobretudo me incomodou. Agora o que
me obsidia é a família, principalmente a mãe, uma senhora veneranda,
que em pouco mais de dez anos perdeu o marido, uma filha e uma netinha .
A pesar meu, revolto-me contra Pompéia, e não me parece que a morte
seja expiação bastante daquele egoísmo trágico.
Não creio que os tais artigos sejam explicação do suicídio, muito
menos a neurose, que V. descobriu em muitos outros, mas que por minha
parte contesto. Acho naquele suicídio uma série de contradições incon
ciliáveis, e meu juízo oscila doidamente, ora concluindo que o ato foi
longamente premeditado, ora que foi um acidente momentâneo, que um
incidente fortuito podia desviar ou adiar.
O modo por que ele suicidou-se prova claramente que ele já pensava
nesta solução, e, agora que recordo tantos anos de convivência, admira-me
que ele não o tivesse executado antes, ou melhor, tenho certeza de mais
de uma vez ter estado com ele, quando seu suicidio estava por poucas
hi as .
Era uma organização extraordinàriamente rica e complexa, tão sin
cera e ao mesmo tempo tão fugidia, como que uma série de almas en
202 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

capsuladas umas nas outras, e sempre crescendo por intussusce.pção e


multiplicando-se em novas almas.
Veja como ele suicidou-se, com um tiro no coração, isto é, pondo -se
ao abrigo do ridículo de escapar, respeitando o rosto, que em suma é para
a sociedade o indivíduo, respeitando o pudor de virgem, porque, feita a
verificação pela autoridade, e vestido o cadáver, ninguém mais veria por
onde se escapou a vida. E ainda o seu último grito, pedindo que acudissem
à irmã !
Tenho pensado em escrever umas notas sõbre ele e até já comecei .
Mas talvez não as conclua, porque pode alguém me perguntar com que
direito falo dêle se, antes de se despedir da existência, Pompéia quis
deixar bem claro que não passava de um equivoco a amizade que tanto
tempo nos reuniu ? Por outro lado, tenho lido tanto despropósito, tanta
insensatez, tanta falsidade e tanta mentira, que não posso ter em mira, e
mostrá-lo como o conheci , como ele existia para inim, como voltava sempre,
como teria voltado, se de parte a parte não tivesse intervindo o orgulho.
Se concluir as tais notas, que devem dar umas doze páginas, de que
já 6 estão escritas, enviar-lhas- ei que V. dar a notícia que por tal ocasião
lhe indicar.

Aqui tenho passado bem . Estou na casa ca madrinha de Henrique,


que é prima-irmã de minha mulher, e faz anos comigo. A 5 quilômetros
fica a vila de S. Rita de Passa - Quatro, onde só estive de passagem , no
dia em que cheguei de S. Paulo. Passeio de manhã e de tarde, a cavalo,
banho -me num tanque em que se pode nadar, tomo leite e leio muito e
estudo um pouco. Não é provável que daqui saia antes do fim do mês,
exceto para pequenos passeios. Em fevereiro partirei para a capital, e de
la provavelmente passar [ ei] uns 15 dias nos Campos-do-Jordão, com
Jaguaribe.
Adriano está quase bom , e anda muito a cavalo. Quer ficar um ano
aqui, num colégio de S. Rita . Abril ainda tem medo de montar. Man
dam - lhe ambos lembranças.
Recomendações à sr.a, a D. Georgiana, Leo, etc.
Bien à vous,
A.

S. Rita de Passa-Quatro ( S. Paulo ) .


3 de janeiro de 1896 .
CARTAS A MÁRIO DE ALENCAR 203

Mário,

Cheguei aqui com uma bronquite de que já estou bom , e com um


reumatismo que ainda não me deixou de todo. Por isso ainda não pude
começar a trabalhar. Tenho estado lendo cousas diversas, um livro de
Wundt sõbre psicologia, necessário para se entender sua grande obra
relativa à psicologia dos povos, de que já tenho dois volumes ; um livro
de Breysig sôbre a história da civilização dos tempos modernos, em que
espero aprender alguma cousa aplicável à história do Brasil ; uma história
universal de Helmott , que começa pela S. América e vai seguindo a ordem
geográfica até, no quarto volume, chegar à Europa, e acabar no último
volume, 8.°, com o Oceano Atlântico : tenho aqui só o 1.º e o 7.º, que
termina a Idade Média. Tenho lido também Carlyle. E a propósito :
V., que diàriamente consagra certo tempo à lingua inglêsa, por que não
ole ? A British possui as Reminiscences, editadas por Froude. Pro
cure-as e embrenhe-se nelas. As primeiras páginas apresentam certas di
ficuldades ; mas à medida que V. fôr por diante, irá tomando maior inte
rêsse, pode ficar fascinado até. Grande escritor, não há dúvida ; do homem
não posso gostar : era egoísta, seco, e ingrato.
Desde três dias espero Correio da Manhã, mas até agora não chegou.
Reclame- o com toda urgência, porque estou ansioso por ver o que se tem
dado de novo a propósito das quatro ou cinco campanhas, em que o te
mivel Edmundo se tem metido.
Conhece o Oscar Varady ? Peça-lhe o recibo para o Colégio Anchieta
do Livro do Centenário, receba os dois volumes já publicados, entregue -os
ao Vóssio para mandar para Friburgo ao reitor, Padre Domenico de Meis.
Creio que o correio não os aceitará por causa do peso, provavelmente
maior de um quilo ; será, pois, necesssário recorrer ao comissário. Preciso
do recibo, para ajustar minhas contas com o Colégio, em que estou atrasado,
e estes 200 $ me ajudarão bastante.
Se não se der com o Varady, me avise, porque escreverei então ao
Ramiz, já que assim é preciso.
Até agora ainda não recebi os jornais alemães. Disse V. à viúva que
os dirigisse para aqui ? Como o correio de hoje ainda não chegou até
agora, 374 , é possível que hoje tenham „vindo ; em todo caso , se tiver
tempo , passe pela Rua do Hospicio, e avise.
Diga no Briguiet que, à medida que forem chegando minhas encomen
das, vá -as remetendo. Pretendo ir ao Rio, de passagem , no dia 27 de
204 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

setembro, para com o Bulhões passar o dia 28, aniversário dêle e de D.


Carlos.
Respeitos à ex.ma família.
Saudades,
Cap.
Paraíso ( por P. N. ) — 11 de agosto de 1901.

Mário,

Recebi sua cartinha, com os competentes recibos, de que só precisava


um , o do Correio da Manhã.
Até agora não veio um só número . O recibo parece um conto -do
vigário : não diz quando começa e quando termina o semestre ; não indica
o lugar para onde a fôlha deve ser dirigida ; nada.
Como lhe disse em outra, apenas cheguei, adoeci do reumatismo.
Não precisei pròpriamente de ir para a cama ; com maior ou menor difi
culdade, sempre consegui mover -me ; mas perturbou -me e atrapalhou -me
bastante. O médico receitou -me iodureto, salicilato e outras cositas más.
Ainda não estou de todo bom , mas o pior já passou e creio nestes dois
ou três dias poderei usar e abusar de meus pobres pés.
Hoje vou ler pela vez " os Diálogos das Grandesas do Brasil para
sôbre eles fazer a segunda e última parte da introdução. Já na Gávea
estava acabado, e creio que não seria difícil achar entre os papéis para
aqui trazidos o artigo completo ou quase . Prefiro, porém, começar de
novo , mesmo porque quero encarar o assunto sob novo ponto de vista.
Hoje meu principal objeto será aplicar o método de Taine, descobrir a
sensação original do autor. Em outro tempo sabia descobrir isto, como
Tristãozinho poderia testemunhá - lo ; não sei se eu já terei esquecido.
Apenas acabe o artigo sobre os Diálogos, entrarei a estudar a história
do século XVI .
Terá V. as Informações de Anchieta, e o Frei Vicente, 1.° e 2 ° livros,
ambos da edição da Imprensa Nacional, editados por mim ? Se tiver, man
de-os, que esqueci -os, e estão -me fazendo falta e são necessários para o que
haja de escrever.
Estou lendo Economia Política de Schmoller, que é um livro monu
mental. Quando me lembro que por certas críticas fideindignas, como
hoje reconheço, passei tantos anos sem fazer conhecimento com um espí
CARTAS A MÁRIO DE ALENCAR 205

rito tão superior e luminoso, com cuja privança podia ter adiantado anos,
fico triste. Fraco consólo é saber que se Abril tiver gosto por estudos
congêneres, não será condenado à aprendizagem de cabra-cega, de que não
me foi dado escapar .
Já começou a ler as Reminiscences de Carlyle, editadas por Froude ?
Não perca tempo ; inclua-as na sua hora de inglês, e o proveito será
duplo lingüístico, porque é um escritor de certa linhagem , e psicológico,
pedagógico, ou o que melhor nome tenha e V. achará.
Meus respeitos à ex.ma família.
Tem visto Brandão ? Nestes dias vou escrever-lhe.
Sempre,
CAP .
Paraíso, 17 de agosto de 1901.

Mário,

Escrevi-lhe uma cartinha, mas ainda não recebi resposta. É o que


aliás tem sucedido a quase todas as que tenho dirigido para o Rio. Um
dia eu próprio deitei no correio umas seis; até agora só se explicaram
Coelho Neto, de Campinas, e Augusto de Lima, de Ouro Preto.
Já me deixou de todo o reumatismo e agora posso trabalhar à vontade.
Limitei as horas de História Geral e Economia Política, e estou todo na
História do Brasil. Continuo as anotações de Varnhagen ; ainda não
comecei a escrever por minha conta . Tinha encalhada a conclusão dos
Diálogos das Grandezas do Brasil, à espera de uma resposta de Brandão,
que só hoje chegou, e preciso primeiro de enterrar este cadáver.
Creio que em outra carta lhe perguntei se conhece Oscar Varady,
para reclamar dêle o Livro do Centenário com o competente recibo em nome
do Colégio Anchieta. Se não conhece, procurarei outra pessoa.
Junto 5$ para V. me comprar o que der na loteria de 500 contos,
que corre no dia 5. Cismei que esta cédula pode ter mascote.
Quando V. receber dinheiro, veja se no Crashley já chegou um
livro sobre a história da China, creio que de Parker. Se chegou, pague- o
e me mande. Caso não tenha chegado, indague se chegou o de Munro,
Growth of Russia. Se também este não tiver chegado, pague então
The Nation e Literature e remeta. Não sei se está claro que a tudo
206 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

prefiro a história da China, anunciada por 8s., que espero ele não
cobrará a 2 $.
Já pegou em Carlyle ? Estes dias não o tenho lido ; mas a primeira
folga será para ele.
Saiu do
Que sucedeu a José Veríssimo ? Saiu Jornal ? O ano passado,
do Jornal?
quando Eduardo Prado chegou da Europa, Rodrigues disse : estão os srs.
Nabuco e Aranha em Londres a se entusiasmar pelos artigos de José Ve
ríssimo e a dizer dēles maravilhas com o Oliveira Lima. Ele não vale o
que eu pago .
Nunca contei isto ao Veríssimo, porque quanto mais velho fico, tanto
mais difícil acho saber onde a intriga parte com a amizade.
Recomende-me à sr.*, D. Georgina, Leo pai, mãe e filhos.
Sempre
Cap.
Paraíso , 28 de agosto de 1901.

Junto uma nota da distribuição do dinheiro para o mês.

Meu caro Mário,


Fui outro dia ao correio registrar uma carta para V., com 5$ para
um bilheie de loteria.
O registro estava fechado, não quis esperar para outro dia, e mandei
o dinheiro em carta comum . Trata -se de jogo, pensei, vou começar o jogo
desde já . Recebeu ? Pagou multa ?
Para o caso de não tê-lo recebido, junto uma nota sobre a distribuição
do dinheiro deste mês.
V. deve recebê -lo no dia 6 ; peço-lhe veja se neste mesmo dia me
remete o soldo ; o dinheiro que tinha vai ficar reduzido a quase nada,
com um telegrama que vou passar à família do Eduardo Prado.
Não posso lhe dizer como me contristou esta morte ; desde que a
recebi ontem , ainda não pude um só momento dela desprender meu pen
samento ; não há quatro dias ainda, escrevi-lhe uma carta que ele não
recebeu, porque foi endereçada para o Brejão ; da última vez que estivemos
juntos, ficou assentado que la iria passar alguns dias com ele.
CARTAS A MÁRIO DE ALENCAR 207

Meus respeitos à sr.a e D. Georgiana ; saudades ao Leo, Monsieur,


Madame e filhos, festinhas aos pequenos.
Sempre seu
C.
1.° de setembro de 1901.

Recebi sábado sua cartinha de 4, com o bilhete, e muito agradeço.


Talvez esteja no Pôrto Novo o dinheiro ; ontein , porém , não fui lá,
porque o cavalo em que costumo andar está pisado e não agüenta sela ;
hoje ainda não tivemos portador.
Em minha última carta, que não sei se V. recebeu , eu lhe dizia que
indagasse se Vossio ainda estava na Casa Colombo . Tinha um pressenti
mento que se realizou : não está. O irmão, Leopoldo, que prometeu chegar
hoje, há de contar a história, que já adivinho.
Se V. não deu o dinheiro a ele, então tome a si novo incômodo : ir
à casa de pensão de Adriano, pagar dois meses, e ver quanto resta para
pôr tudo em dia. Apesar de ele estar empregado, de ter roupa lavada e
comida em casa da avó, não se pode entregar o aluguel a ele, porque duas
os três vezes já deu cabo. Não seria mau que o proprietário o despedisse,
para ver se ele é capaz de tomar algum juízo. ( Quanto ele ! )
O caso de Veríssimo entristeceu -me muito, e continua a entristecer -me.
Coitado ! Para que se meteu a ter brio com Prudente e Amaro ? Acho
que o Rodrigues foi cruel e desumano. O caso não seria para tanto,
melhor seria ver nêle os apertos de um pai de família que não ganha
bastante para sustentá-la ; e não passa de pretexto.
Estive terminando o segundo artigo sôbre os Diálogos das Grandezas
do Brasil.Trabalho deu-me não pouco, mas ainda não está a meu gosto.
Também agora não estou mais para esperar : vai assim mesmo para o
Jornal.
Recebi anteontem do Crashley o livro de Munro, as Nations e Litera
ture. Provavelmente sua carta, que deve chegar hoje, me explicará isto.
Do livro de Munro li ontem alguns capítulos, é interessante ; mas sinto
a falta de alguns capítulos essenciais.
Não sei que lhe disseram na B. N. sõbre Fr. Vicente e Anchieta.
Aqui não recebi nada de lá, senão duas cópias mandadas pelo Carvalho a
meu pedido, e, no mesmo dia de sua carta, umas informações transmitidas
pelo bibliotecário . Fazem -me bem falta !
208 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Se Bulhões estiver aí a 28, lá irei assistir ao aniversário, para tornar


seni demora ; se não, ficarei até meados de outubro.
Adeus. Saudades e lembranças aos seus.
1.
Paraíso, 9 de setembro de 1901.

Mário,
Fui ontem a Porto Novo, e num bilhete -postal respondi brevemente
a sua carta. Hoje posso ser mais prolixo.
Sinto muito seus incômodos físicos. Se você fosse um rapaz extra
vagante, o remédio simplíssimo consistiria em deixar-se de excessos ; infe
lizmente V. é um rapaz de juízo, e o remédio é o de Schweger, que tantos
anos vitoriosamente defendeu Bismarck contra a tesoura da Parca : fora
com o ramerrão ! É mais difícil .
V. dividiu o dia em certas talhadas : uma talhada para inglês, outra
para latim , outra para grego, sem falar na secretaria unspeakable. Tudo
isto está errado. Seu organismo, amigo, protesta e insurge -se, e é ele que
tem razão. Spencer, que tinha diante de si um mundo a criar, ficou
reduzido a trabalhar menos de dez horas por semana ; sujeitou -se à con
tingência, realizou uma obra que, digam o que disserem, é uma grande
obra, e ainda está vivo com 81 anos, com capacidade de trabalho talvez
maior agora do que na força da idade.
Por que não há de V. fazer como Spencer ? Considerar as talhadas
como função sua e não V. como função das talhadas ? Seus filhos seriam
uma boa ocupação: a secretaria seria outra, desde que V. não a conside
rasse como um açougue, porque V. trabalharia com prazer , isto é, com
acréscimo de vitalidade. Do meio de vida a gente só deve lastimar- se
quando está resolvido a jogá -lo fora imediatamente e procurar outro .
Lastimar -se e continuar pode ser uma forma mais ou menos embuçada de
cobardia , mas é sempre cobardia . Queixamo-nos da vida; entretanto ,
Spinosa passou a sua a polir vidros, e entretanto , da modesta oficina do
judeu luso-holandês saíram idéias que ainda correm mundo , e correrão
sempre , sujeitas embora aos caprichos e às limitações do gênero homo,
sempre obrigado a expor um lado hoje, amanhã outro, do peixe de que
se sustenta, expor um lado hoje, outro amanhã do peixe de que se alimenta
ao fogo da crítica na grelha da História.
Creio que há asneira nisto, mas passemos adiante.
CARTAS A MÁRIO DE ALENCAR 209

Não acho feliz a sua idéia do formato 32.º. Com o nosso papel , o
nosso tipo, a nossa brochagem sairia um monstrengo. E qual a razão da
preferência ? Poder -se andar com o livro no bolso : Não atenua os erros
contra a estética, não o tornaria de aspecto menos rebarbativo . É um
sonho de poeta conseguir vendas de dez mil exemplares. Creio que
Laemmert conquista este algarismo para suas folhinhas. Aliás para os
seus silabários ; as agências portuguêsas dêle se aproximam ; mas tudo
isto são fatos solteiros e extraordinários; que não podem servir de regra,
é evidente ; que não se dariam no seu caso, fàcilmente se demonstra, porque
V. não dispunha de toda uma organização comercial espalhada pelo Brasil
inteiro, e sem esta condição prévia, ficaria tolhido desde os primeiros
passos ; mesmo com ela, é duvidoso o resultado final, com a crise moral
e econômica vigente nos últimos vinte anos. Seus cunhados foram ca
balmente corretos, viram o negócio mais clara e nitidamente que V. Foi
muito bom que V. não recorresse ao Brandão ; é uma criatura encantadora,
mas de uma volubilidade que ninguém imagina. Uma vez, conversando
sôbre Henrique Chaves, eu disse que gostava muito dele, há muitos anos.
Eu também , disse Brandão, é uma criatura que não tem defeito. Pas
sados tempos, disse-me êle : é como V. diz mesmo, Chaves não tem defeito.
Destas inversões, que estranhava muito a principio, quando o conhecia
menos, lembro -me uma enfiada de casos. Se V. falasse sõbre o assunto,
primeiro o [ sic ] que ele se transportasse ao estado de espírito em que
com toda a efusão e sinceridade lhe fez o oferecimento, V. estaria arrepen
dido de ter - lhe falado .

O papel está pedindo mais tinta, e passo a assunto extremamente


delicado .

V. precisa de deixar seu pai de lado ; o que ele podia dar-lhe de bom
já deu ; maior convivência do que V. tem tido com o espírito dêle, agora
só pode lhe fazer mal; paralisaria seu desenvolvimento, condenaria V. ao
triste papel de epígono. Seu pai deu -lhe um exemplo bem claro . O velho
Alencar em política representou um papel que nunca será devidamente
apreciado, porque seu pai, que podia fazê -lo , não teve tempo para tanto .
Apesar de tudo, seu pai, quando começou a carreira política, procurou
abrir caminho por outro rumo .
E seu pai deixou -lhe um aviso. Nas horas de pensamento louco, en
[ que ] as idéias atiram-se às cabriolas pelo vácuo, tenho cismado que seu
pai previu um filho como V., sacrificando ao amor filial energias que
depois lhe faltarão para a evolução própria, e quis deixar - lhe um conselho,
17 -- 1.•
210 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

uma norma de vida, contidos na Encarnação. Medite-o, acenda e dispare


o gás, deixe o passado, volte-se para o presente.
Quase quinze anos V. tem sacrificado a seu pai: tome agora dez
anos para si ; depois, com a experiência e o saber adquiridos neste prazo,
torne a seu antigo culto , porque o perigo do epigonato estará acabado , e
poderá cumprir o seu dever com uma superioridade que V. tem - se conde
nado a não adquirir, se persistir na atmosfera de herói do Encarnação.
Não é isto idéia de momento, há muito penso assim , mais de uma vez
lhe tenho dado a entender, desde que se oferece hoje ocasião, expondo -lhe
logo de uma vez sem refolhos todo o meu pensamento .
Ainda aqui reduz-se minha opinião a repetir : fora com o ramerrão !
É difícil ; mas é possível dar uma direção nova à vida, como gato que se
vira no ar e cai sobre os pés : em nosso tempo, Goethe fêz isto , depois da
viagem da Itália ; Comte fêz isto depois de conhecer Clotilde ; anterior
mente Dante tivera a idéia da Vita Nuova; precedentes não faltam ; falta
é quem se inspire nêles e aumente o número . Eu infelizmente não o
consegui, e já dei de mão a tais ambições. Estão chamando para almoçar
e o portador vai sair. Até outra.
CAP.
14 de setembro de 1901.

Recebi o registrado com o dinheiro . Obrigado.


Recebera antes as revistas e Munro . Eu tinha dito : uma cousa ou
outra, mas não fêz mal que viesse uma cousa e outra . ( Veja se Briguiet
tem algo para mim ! que mande !).
O recibo do Centenário mande para cá, ou antes guarde-o ai até
que eu vá, lá para fim do mês.
Se ainda não pagou casa do Adriano, pague só dois meses ; deixe
o resto para Vóssio, que saberá encontrá-lo. Indague quanto Adriano
está devendo .
Desde que está doente, siga o conselho de Schweringen.
Nada de ramerrão faça o contrário de tudo quanto tem feito até
agora só conserve as horas de comidas.
Vou sem novidade e estou trabalhando com pôsto.
Saudades,
Cap.
P. Novo, 19 de setembro de 1901.
CARTAS A MÁRIO DE ALENCAR 211

Meu caro Mário,

Ao chegar de Juazeiro, recebi uma carta sua, que me causou tanto


prazer como tristeza.
Com efeito sua doença dura já demais.
Não seria o caso de morrer ao grande meio e separar -se por algum
tempo da família ?
Por que ao menos V. não se submete ao tratamento que tão bom
resultado deu com D. Emília ?
Minha viagem foi muito agradável. Não desci Paulo Afonso, como
pretendia, por mais de um motivo : mas não sinto, porque do Rio será
fácil fazê-lo .

Infelizmente Abril tem continuado doente, o que, entre outras conse


qüências, teve a de me deixar aqui sem o ordenado.
Com o que resta , posso voltar, mas creio que chegarei ao Rio depenado.
Pretendo embarcar a 16, no S. Salvador.
Saudades a todos os seus .

Um abraço saudoso do amigo velho,


CAP .

Bahia, 13 de fevereiro de 1909 .

Caro Mário,

Recebi sua carta e já escrevi a Calógeras.


Por que não se dirigiu diretamente ? Para ele, para Sá, para Bulhões
um pedido seu vale tanto como o meu. Talvez mais, porque terão menos
coragem de negá - lo .
Por que não fala também a Seabra ?
Seu telegrama de parabéns pela entrada do Bulhões pareceria irônico,
se V. visse como fiquei aborrecido ao ler a notícia nos jornais. Ainda
agora não estou bem conformado , conquanto o fato esteja consumado.
Entrego -me agora ao estudo do holandês e espero ir ao fim, isto é,
ficar conhecendo a gramática e dispondo de um vocabulário que me
dispense de ir cada momento ao dicionário.
212 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

No dia 5 pretendo estar no Rio, mas depois de pequena demora


voltarei para continuar meus estudos.
Saudades e lembranças a todos.
Bien à vous,
ABREU
Paraiso, 23 de junho de 1909.

Muito obrigado pela lembrança.


Estou aflito que passe o mês de março para podermos conversar mais
longamente.
Continuo com os meus trabalhos. Vão adiantados.
Saudades .
с
Paraíso, 28 de outubro de 1909.

Meu caro Mário,

Felizmente não terminou o ano sem me trazer uma alegria : a de


sua nomeação para bibliotecário da Câmara. V. merece muito mais ;
porém o importante é ver satisfeito um desejo que nutria desde muito.
Continuo aqui na minha labuta . A maior parte dos textos já está
composta e traduzida; comecei a revisão das provas do vocabulário e
cheguei ao fim de N ; falta apenas um têrço ; só na gramática ainda não
peguei, porque será breve ; espero pelo menos, e preciso, ter todo o mate
rial apurado para começar. Se fosse possível contar com o trabalho
constante dos dois caxinauás, poderia ficar liberto em menos de um mês.
Digo liberto de caso pensado ; procurei levianamente uma escravidão pesada,
e esperdicei um tempo precioso, porque, com toda a franqueza o declaro,
não estava preparado para tanto e a cousa não sairá como desejo.
Quando vai para a Tijuca ?
Espero no próximo ano estar presente lá, em certo dia de janeiro,
que não esqueço .
Boas saídas e melhores entradas de ano desejo -lhe e a todos os seus.
Bien à vous,
C.
Paraiso, 28 de dezembro de 1909.
En conformera raro enton Lewe mo Panna , o que ane

pinanada pelosa um rou dono dias depor , alle disse :


cahona do
bampista ; eccotha entre Rio Branchen -
do isto é til, que factono ). Penne megan-se..
Contemporanean anto , Jon Pandora quem Panna trattore
anyu com a marri ahistancias desde menina por causa
ho pau , dim a Penna rque Minas de modo algum queria
banqusta jussivel ! diren expannende. Por
dejantanga mineira men nome, conouste .
contarnos on man candidato ,
todo o lebondo dei si forum contamos

No arman anda campistas pensara in Rio Branca


en de Hermes min
minguem an den harc . bomo tumphon ?

No Tankre informaus prenies ; was penso que decones an


de da adheres ‫ هر‬de Rome Valvo , politics repente cogit , que
data veg in ficando bagagem . A conancas do Tean
fo una cantada de mestre . anna ananchisara anda

purgatonus spp.go ; ara prease oponam , the


agolpe mesma instantaneidade .

FAC -SIMILE DE TRECHOS DE CARTA DE CAPISTRAVO


CARTAS A MÁRIO DE ALENCAR 213

Meu caro Mário,

Dia de meus anos passei em Petrópolis; apenas fez-me companhia e


almoçou comigo Inhô, filho de um velho e querido amigo, Amarante, hoje
finado ; segunda- feira parti para Pôrto Novo ; só na volta achei aberto
e perdido entre outros papéis seu telegrama, que até me sobressaltou .
Ponderei a Adriano : Mário diz -se esquecido com que direito ? Tínhamos
pontos de provável encontro freqüente ; êle evita-os agora ; que posso fazer ?
E quem pode ir encasacado às festas do Rio Branco, não pode chegar
sem casaca até aqui ?
No dia 3 ou 4 recebi sua amigável carta que li comovido ; mas não
foi possível escrever-lhe logo, por falta de tranquilidade de espírito.
A 30 uma carta de Honorina, datada de véspera, comunicou-me a
resolução de entrar já para o convento. Só a 2 pude ter com ela uma
conversação íntima e perfeitamente inútil . Mesmo se pudesse, nunca me
oporia a que seguisse sua vocação ; pedi-lhe apenas que adiasse a separação,
enquanto a avó estivesse viva. Sexta - feira levei-a à estação de Friburgo
onde queria descansar alguns dias. De lá recebi ontem uma carta, fazen
do-me o pedido extremo de ir amanhã assistir à sua entrada no convento
de Santa Teresa .

Nesta crise, não quis ser só pai, tenho querido ser psicólogo ; em
nossa longa conversação sondei-lhe bem a alma, depois meditei bem sobre
tudo, deixando de parte o sentimento e convenci-me de que sua resolução
é a mais acertada. Grande consolo, não é ? para quem perde um ente
caro saber a causa mortis.

Considero -me uma ave qualquer que desde quase vinte anos outra
cousa não faz senão perder penas; as novas não substituem as antigas, e o
vôo faz -se cada vez mais rasteiro, e lá um dia virá, sobre todos desejado,
em que cesse a faculdade de voar.
Eis o meu caso, querido Mário.
Não sou pessimista, não sou otimista, sou um conformista, quem
sabe ? um satisfeito, mas hoje gosto tanto de não ser obstrusivo ! Se não
fôsse Matilde, creio que não moraria no Rio, e iria travar alhures rela
ções banais, que são as mais seguras, pois substituem -se.
214 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Agradeço-lhe ainda uma vez sua boa carta, em que V. do próprio


fundo importou -me tanta cousa que não mereço.
Meus respeitos à família.
E um abraço do amigo velho,
C.

Rio, 9 de janeiro de 1910.


Tenho assistido a toda a campanha movida contra o Sá. Há mais
de dez anos vivemos em contato muito intimo e sou considerado quase
pessoa da família.
Sei que um respingo de lama não quebra osso ; mas que prazer pode
causar-me ver por perfidia alheia emporcalhado o rosto de um amigo ?
Nem um só momento de hesitação tive.
Continuo atrelado a meu trabalho sobre a língua dos caxinauás.
Tomei-o por distração, mas já vai se prolongando por demais como diver
timento . Agora não pretendo sair tão cedo.
Não sei como D. Adélia tolerará o golpe. Abril diz que ela su
cumbirá ; Honorina não tem este receio. Ela ainda não sabe de nada, nem
Matilde; apenas disse ao chegar e por alto a Adriano e a Abril a resolução
da irmã .
Só depois dela ter realmente entrado, comunicarei a todos.
Se por acaso Adriano aparecer lá hoje, peço-lhe nada antecipe, nem
mesmo a ninguém de casa , se lhe não pesar muito a discrição.

Meu caro Mário ,

Se de fato lhe passou o andaço político, posso recapitular o passado


como o filtra meu temperamento, e o apuro das informações recolhidas.
Pena teve a habilidade durante algum tempo de marombar entre Pei
xoto e Pinheiro, talvez enquanto viveu o filho, de cuja morte não se
consolou. Tinha a intenção vaga de apresentar Campista à presidência ;
Peixoto atiçou-a, como meio de dominar exclusivamente o presidente ; sua
posição na Câmara dava-lhe fôrça singular.
Em abril do ano passado ( a cronologia é o melhor dos guias ) , Sá,
voltando de Diamantina, conversou largamente com V. Braz, de quem
ouviu o seguinte : "Depois de minha eleição, Pena declarou -me que
föra oposto a ela, não por qualquer motivo pessoal, mas porque Minas
CARTAS A MÁRIO DE ALENCAR 215

inteira mostrava - se entusiástica da política de João Pinheiro, e parecia - lhe


que o mais próprio a continuá-la seria Carvalho de Brito. Depois abordou
a candidatura do Campista ; apresentei-lhe minhas objeções ; mas ele reba
teu-as, e por fim arrancou meu assentimento. Continuo firme".
No mesmo tempo disse-me Sá que lavrava grande oposição em Minas
contra o candidato do presidente : estavam à frente Carvalho de Brito e
Bias, „ Não sei se já fôra publicada a entrevista dêste no País. Urbano
de Gouveia foi a Belo Horizonte e conseguiu que não ficasse fechada a
questão do reconhecimento do poder dos candidatos goianos, por parte da
representação m.a ( mineira ) .
Calógeras, ao chegar de Minas, me disse : acho fraca a posição do
Peixoto na deputação mineira : conta apenas uns quatro amigos : eu sou
um deles . Como, perguntei , vocês sacrificam uma força do valor do
Peixoto ? Ninguém o quer sacrificar, respondeu : quer-se apenas que
éle contente-se em ser leader, não queira ditadura.
O Correio da Manhã publicara que no reconhecimento dos poderes a
pedra de toque seria a adesão à candidatura Campista. “ Nas eleições de
Goiás” – declarou Calógeras a Peixoto – “ em hipótese nenhuma aban
donarei Bulhões e hei de fazer por ele quanto puder". V. estava no
teatro dos acontecimentos e, melhor que eu, sabe as ocorrências. No
Senado o papel de Calógeras foi representado pelo Pinheiro, com grande
mágoa minha .
Pena, colega de Bulhões nos parlamentos da monarquia, amigo parti
cular de longos anos, interveio indiscretamente. A um representante de
Minas gritou : quem vota no Bulhões contra mim, falta -me ao respeito.
A Artur Lemos mandou chamar e cabalou-lhe o voto ; quando o senador
paraense mostrou telegrama de Antônio Lemos e João Coelho, mandando
que prestigiassem nosso amigo Bulhões, desconversou .
Pena sofreu sucessivamente quatro golpes : a morte do filho, a atitude
desenganada do Bias, a resistência à depuração dos bulhonistas, e, oh !
surpresa ! a deposição, digo a revolução de Goiás, a renúncia do vice
governador. Hermenegildo pediu -lhe que não mandasse fôrça para Goiás :
“ mando um batalhão, mando dois, mando o exército inteiro ! e não o
faço por sua causa e de seus amigos : faço-o porque o presidente da
república sente-se abocanhado.” Dizem que a alegria de Pinheiro, ao
saber do movimento goiano, não conheceu limites. “ Pena fecha a questão
de Goiás, eu também fecho : Ele tem dezessete votos, eu tenho vinte e
oito ” . Em conferência que então teve com o Pena, e que me foi narrada
216 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

pelo Sá, um ou dois dias depois, ele disse : abra mão do Campista ; escolha
entre Rio Branco e Rui 1 ( tudo isto é til, que falta no u ) . Pena ne
gou-se. Contemporâneamente, João Penido, a quem Pena tratara sempre
com a maior distinção desde menino, por causa do pai, disse a Pena que
Minas de modo algum queria Campista. “ É possível !" disse, espantado.
"Pois reúna a deputação mineira em meu nome, consulie-os com toda
a liberdade ; se forem contrários ao meu candidato, eu sou mineiro antes
de tudo, Joãozinho.” Por qualquer circunstância tal reunião não se deu .
Estou repetindo história contada pelo Gabaglia.
Aparece agora Hermes. Fui muito amigo, desde a monarquia, do
sogro dêle . Com ele nunca falei, nem mesmo o conheço. Se vi-lo de
perto , creio, o reconhecerei, porque tenho visto muitos retratos. Não sinto
por ele simpatia. A candidatura Hermes foi levantada pela oposição no
Amazonas, no Ceará e na Bahia, talvez em outros Estados : basta percorrer
os telegramas do Jornal do Comércio, para verificá-lo, antes de maio.
Não queria ser candidato antes da viagem à Europa, tão pouco
depois: creio mesmo que isto disse claramente em um banquete. Entre
tanto seus amigos não desanimaram . Soube por Calógeras que se tinha
conseguido uma concessão : na festa de seu aniversário, se o orador
não aludisse à sua candidatura, ele não faria declaração de que não era
candidato. Creio que as cousas passaram assim ; o orador indiscreto não
se meteu em especificações.
Duas ou três tardes depois, sai da Bib. Nac. onde trabalhara, descia a
rua 7 de Set ., quando, quase em frente à Tr. do Ouvidor, encontrei Gui
marães Passos. Sabes da novidade ? - Não. – Hermes pediu demis
são de ministro da guerra. — Por quê ? – 0 ... aqui uma palavrada...
do Pena quis que ele fizesse uma declaração por escrito de que não é
candidato à presidência. Hermes atirou -lhe com a pasta.
Não atirou tal ; a cena entre os dois não devia ter sido violenta, aliás
Pena não insistiria para que ele voltasse, nem ele podia ter voltado.
Afirmar o contrário é estigmatizar Pena como covarde e Hermes como
caradura. Quem lucra com esta mentira e com os xingamentos ?
O movimento anticampista lavrava forte nas montanhas altivas. O
congresso mineiro ia-se reunir, e seu primeiro ato seriam duas moções

1 , No manuscrito, Capistrano enfeitava, acima e abaixo, as letras do nome de


Rui, multiplicando o sinal til. V. trechos fac-similados, pág. 212 A.
CARTAS A MÁRIO DE ALENCAR 217

votadas nas duas Câmaras de que a candidatura campista não consultava


os interesses mineiros.
A cena entre Pena e Hermes trouxe desfecho inesperado. Pena
abandonou Campista, abriu as questões de reconhecimento, deu a peça
por terminada. Consta que há uma sua carta muito íntima, reconhecendo
quanto andara errado em tudo. “ No meu erro” – diz generosamente,
mas inexatamente “ não influiu pessoa alguma de minha família" . Pei
xoto, Lopes, outros quiseram ainda requentar a candidatura. Contam
que Pena preparava-se para encabeçar uma reação sem exemplo. Estimo
bem que tais boatos sejam falsos, porque a condenação da História será
mais misericórdia. Em suma dirá a História : homem de brio, morreu
de traumatismo moral, apanhado em questões de reconhecimento de pode
res e imposição de candidatura, cousas para que nem a lei nem a moral lhe
reconheciam competência ; em compensação, exposição, administração, fi
nanças sôbre as quais fôra eleito para mandar não lhe causaram trauma
tismo algum e correram descabeladamente à matroca !
Nos arraiais anticampistas pensava -se em Rio Branco, em Rui !; de
Hermes ninguém se lembrara. Como triunfou ? Não tenho informações
precisas ; mas penso que decorreu tudo da adesão de Rosa e Silva,
político esperto e ágil, que desta vez ia ficando na bagagem . A con
venção do terror foi uma cartada de mestre. Pena anarquizara tudo com
sua precipitação sofrega ; era preciso aparar - lhe o golpe com a mesma
instantaneidade.
Convenção do terror é um bonito nome, e tem seu fundo de verdade,
nos arraiais contrários. Com verdadeira mágoa me lembro da satisfação,
do quase entusiasmo com que V. falava da revolução que rebentaria em
Bahia e S. Paulo, se Hermes fôr eleito legalmente, como será .
Em seu soçõbro, primeiro disse Hermes que só aceitaria a candidatura
se Rio Branco e Rui? concordassem, e éste, atento em tudo, até no dinheiro,
mais à quantidade do que a qualidade, articulou contra Hermes ter invocado
sua arbitragem , e não a ter acatado. Por que não mostrou a carta
de Hermes, pedindo a arbitragem ? E havia mais arbitragem a invocar
depois de sua carta a Azeredo e Glicério ? Agora se percebe o jogo : ele
esperava que, à vista dela, Hermes recuasse e por isso coroou - o de tantas
flores que agora lastima. E como o civilismo tornou-o incivil , a êle sempre

1. Ver a nota da pág. 216.


2. Idem .
218 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

de trato fino ! É capaz de acabar doido. Se já não está ; o pedaço em


que elogia o pai para se engrandecer, creio bem que se poderia capitular
em onanismo por tabela. Também será a única invenção daquela inteli
gência essencialmente receptiva, lassata sed non satiata .
Dizem que a candidatura do Hermes é militar e a do Rui é civil.
Não sei como : Rui disse ao correspondente do Times que conta com a
Marinha inteira e metade do Exército : 1 2 não é maior que 12 ?
Dizem que Hermes não está preparado, porque não é ilustrado. De
que serve a ilustração, se, como no caso do Rui, apenas faculta a poligamia
ou poliandria das idéias ? Creio bem que se tivesse o nariz carregado de
um a outro extremo de lentes e óculos combinados, eu poderia enxergar ;
mas deve-se lastimar quem vê com os próprios olhos e dispensa artifício ?
Rui é um suntuoso banheiro de mármore, de água encanada, com duas
torneiras, uma de água quente, outra de água fria, à vontade do freguês.
De muito boa vontade troco-o pela cachoeira tosca da Gávea, e não
peço compensação.
Sobre a questão de preparados ou não, juntarei uma opinião de
Cleveland, que foi um dos grandes presidentes dos Estados Unidos, se a
encontrar.
W. Brás, éste é Judas, é de Karioth ! Prometeu a Urbano que
seria livre o reconhecimento de poderes de Goiás ; entretanto telegrafou a
Peixoto fechando a questão contra Urbano, ao mesmo tempo que escrevia
aos amigos, abrindo a questão, como prometera . Será verdade isto ? Dizia
Calógeras que as cartas de W. eram explícitas e podiam ser vistas por
quem quisesse: os telegramas nunca foram mostrados a ninguém . V. me
dira : Peixoto não mente. Respondo -lhe: Calógeras não mente. Teve
a fraqueza de ceder ao Pena, e esposar a candidatura campista. A acusa
ção é grave e verdadeira, mas perseverou no erro até o fim , até a desis
tência final do candidato ; os outros marcharam adiante.
A força de Peixoto vinha - lhe de ser o representante do pensamento
de João Pinheiro, a principio, do W. Brás, depois. Queriam, porém ,
inverter os papéis, e fazer do representado representante de quem se dizia
seu representante. E porque, conhecendo a situação mineira, se refusou a
este papel, é Judas de Karioth !
Tenho boas, embora muito espaçadas, relações com Carlos Peixoto.
Fiz -lhe um pedido apenas : da primeira vez não poderia me servir, da
segunda poderia e não o fèz ; não me queixo, nem mesmo me lembro disto.
Inquiria sempre se ele teria crescido ou subido. Respondo sem hesitações:
CARTAS A MÁRIO DE ALENCAR 219

subiu, não cresceu. Esposou a candidatura de Campista, contra a própria


convicção, no intuito de monopolizar o Pena e dar um tombo no detestável
Pinheiro, por desgraça mais fino que ele.
Dirigiu os reconhecimentos de poderes de modo a provocar os trauma
tismos morais do Pena .

Depois da queda, em vez de continuar à frente da patrulha e con


vertê-la em força de combate, recolheu à tenda como Aquiles e deixou
que para seu lugar caminhasse Irineu Machado. E, no vigor da idade
e do talento, aparece melancólico, pessimista, vendo por toda a parte
traidores !
Quanto a Campista dois fatos o retratam .
Foi almoçar na república dos Viuvinhas e arrotou : minha eleição é
certa ; os Estados vão aderindo ; os que faltam , hão de vir, nem que seja
a chicote .
Disse a Bulhões : esta caixa é, não pode deixar de ser, da amortização.
Como, porém , tempos depois o Pais chamasse a atenção para o fato da
Casa de Conversão continuar no prédio destinado à Caixa de Amortização
e construído com os recursos por esta fornecidos, mandou arrancar o título
e substituí-lo por Conversão. Hoje há de considerar uma afronta do
Bulhões ter restituído o edifício a seu primitivo destino.
Que carta longa ! dirá V., se tiver a paciência de chegar até aqui .
Bem longa mesmo ! A culpa é da insônia. Preferi, a ler, conversar um
pouco .
Não pense, porém , que sou entusiasta do Hermes e dêle espero
grandes cousas . Não receio o fantasma militarista ; acho que chamá- lo
de mal preparado é pouco para provar sua incompetência ; que chamar
W. Brás de traidor é simples vontade de dizer cousas desagradáveis,
amassar barro que nem servirá para fazer panelas, em vez de pensar que
o mundo é largo, é grande, não está todo ocupado, e há espaços enormes
para obras ou para obreiros. E basta.
Saudades a todos.
Bien à vous,
C. A.
12 ou 13 ? 1/2 da madrugada de janeiro de 1910.
( Foi enviada junto à carta de 28 de janeiro. )
220 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Meu caro Mário,


Outro dia recebi sua carta e comecei uma resposta que, com o favor
da insônia, ocupou doze páginas de papel maior que este. Achei melhor
não mandá-la . V. declara-se curado do andaço político ; ela tratava só
de política .
Li ontem a notícia, para mim bem pouco satisfatória, de que V. se
incumbira de reunir em seis volumes as relíquias de Machado de Assis.
Pobre vítima !
Dada mesmo a hipótese de que Machado de Assis já deixou o ma
terial reunido e V. não terá, portanto, o trabalho de pesquisas, a empresa
não mereceria minha aprovação, se V. me consultasse antes de ombreá-la.
E por dois motivos, ambos graves, no meu entender. O primeiro
é que a papelada de Machado de Assis, salvo uma ou outra escapada humo
rística, é muito mediocre. Compará -la à de Eça de Queirós , exuberante,
excessivo, irregular, denota falta de noção das cousas : por que antes não
compara um óvo com um espeto ?
O segundo motivo é que, com sua neurastenia , o tempo deve ser-lhe
muito precioso. V. não pode dispor dêle com liberalidade, tem de sujeitar
se ao regime de Spencer, que às vezes não podia escrever mais de cinco
linhas por dia. Por que esbanjar com outros o que V. não tem bastante
para si ? Deixar os mortos enterrar os mortos, reza o Evangelho.
Dir -me- á V. que ninguém mais esbanjador que eu. Concordo ; mas
variam muito nossos ideais. O meu seria um cul de sac, beco sem saída ;
sem netos, já que tive a infelicidade de ter filhos, sem nome, um perfeito
zero na cadeia dos seres. A este ideal não atingi desde o princípio,
meus atos vão às vezes contra ele, mas há quantos séculos já não
escreveu o poeta : video meliora, etc. ?
Partindo dai, cheguei à conclusão de que foi um erro de sua vida
a entrada para a Academia. Teve de bom a força moral que lhe comu
nicou seu discurso ; creio mesmo que seu grau de acadêmico teria con
corrido para a sua promoção a bibliotecário.
Mas os inconvenientes ...
Só aquela ortografia ...
Não imagina o meu espanto quando, depois de muito soletrar,
percebi que otimo de sua carta quer dizer optimo. Bem se vê que o
esperanto em sua chatice chocou o óvo de que saltou a ortografia aca
dêmica. E uma moção, aquela moção, ó Mário !
CARTAS A MÁRIO DE ALENCAR 221

Lembrou -me a tristeza do Belisário ao ver às 4 horas da tarde,


sentado à mesa, em confabulação com a Luísa Leonardo, um nosso amigo
muito querido, no Pascoal.
Basta ...
Li com mágoa a notícia da morte do Nabuco. Nunca estreitamos
relações, e até cheguei a votar- lhe antipatia durante algum tempo. Seu
turning point foi a não reeleição, e o biênio passado em Londres como
correspondente do Jornal do Comércio. Desde então o enfant gâté virou
homem e a virilidade foi-se fortificando.
Lembra -me bem uma longa conversa que tivemos, logo depois de
proclamada a república, e o prazer que sentiu, quando lhe contei como
Eduardo Prado, com quem eu estava em Brejão, ficou contente ao saber
de sua nomeação para Londres. Acho errada sua política e do Rio
Branco : pôr o Brasil relativamente aos Estados Unidos na posição de
Port. para Inglaterra. Quem será o sucessor ? Lembrou -me Epitácio.
Creio que não estarei aí a 30, mas farei o possível para dar um
pulo à Tijuca em fevereiro .
Bien à vous,
C.
Paraíso , 20 de janeiro de 1910.
Pretendo estar no Rio 3.a feira, 1 , e demorar uma semana.

Mário,

Fiquei muito satisfeito com a promoção de Augusto. Se para isto


concorreu S. Procópio, leve-se isto à conta do capadócio.
Não pense que Rio Branco se desgostasse com a sua infeliz moção.
Melhor que nós conhece a crônica pouco gloriosa do sujeito, mas está
desarmado. Outro dia, com alguns companheiros, Natal, Severino, Bu
lhões, conversamos longamente com o chanceler. Está desarmado ; certa
dedicatória conciliou - o de vez.
Isto me lembra uma observação lida no Temps, que muito me im
pressionou : na Inglaterra é condição imprescindível para atingir à cul
minância política ter mudado de partido. Creio que para cair nas graças
do Rio Branco é preciso primeiramente atacá-lo. Não o está provando
ainda agora o caso do Leão Veloso ? Bela nomeação a do Leão Velo
so Neto !
222 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Serve esta carta de veículo ao abraço que lhe não posso dar pes
soalmente .
Tenho pensado em ir amanhã para Petrópolis em vez de segunda
feira. Opõe-se a isto uma porção de dificuldades, algumas até vulga
res ; mas o caso é que não poderei ir ; se não fosse certo embaraço, só
partiria daqui a 17 para o aniversário de Honorina.
Meu trabalho pouco adianta ; quase todos os textos estão ou devem
estar compostos, mas a revisão pouco avança , porque as novas provas
saem tão erradas como as primeiras ; quanto à tradução , à medida que
meus estudos caminham , procuro torná-la mais exata e mais rigorosa ,
e modifico-a constantemente. Ao mesmo tempo que a impressão caminha,
vou colhendo novos textos. O capítulo 1.9, Fraseologia, do Vicente, está
completo ; bem como o 2.º, Vária, de Tuxunim . Para o terceiro , em que
colaboraram os dois, Etnográfica , tenho a esperança de obter mais alguma
cousa : lendas creio que tenho umas quinze, e pode ser que neste inter
valo apareçam ainda outras ; não há três dias, Tuxunim contou -me uma
das mais interessantes. O último capítulo, Metafísica, é que sairá muito
pobre ; diz Tuxunim que Vicente não conta certas cousas com medo
das almas de lá . Ainda há crentes ...
E agora V. pode ficar certo que outra língua não me pegará ; só se
fôr o bacairi, para não ficar de todo perdido o material que recolhi .
Na próxima semana aí estarei , e minha demora será de uns dez dias.
Desejo-lhe feliz êxito com a estada em Cambuquira ; não vá, porém ,
sem consultar médico ; as águas têm muita força e cumpre não facilitar.
Reli a carta que lhe escrevi há uns dias ; achei-a desconexa, mas,
como ainda hoje representa minhas idéias, junto-a. Rasgue-a depois
de lida .
Saudades a todos .
Bien à vous ,
C.
Paraíso , 28 de janeiro de 1910.

Meu caro Mário,


Parabéns pelo quilo conquistado em três semanas. Preferiria que
os quilos fossem três, e isto, creio, em grande parte esteve em suas mãos.
Por que não deixou as reservas mentais em Botafogo ? Quem vai
para outro lugar não confia só no ambiente, colabora também com ele,
CARTAS A MÁRIO DE ALENCAR 223

mudando de vida. O aperto dos cômodos, as dificuldades de trabalho


mental devem ser acolhidos como benefício. Se não, para que sair do
Marquês de Olinda ? Lá mesmo V. podia embevecer- se na sua macacoa
e desvanecer-se de ser neurastenico.
V. podia ter ajudado a melhora, se , abstraindo de si, vivesse só para
a meninada. Não há passeios, diz V. Que quer dizer isto ? Não há
pontos pitorescos ? Haveria sempre lugares para levar a rapaziada, e
ensiná - la a ver, ouvir, cheirar, gostar e apalpar.
Continuo arrastando minha grilheta, entre acessos de esperança e de
desânimo.
Não estou satisfeito com a pronúncia figurada, porque há um i ver
dadeiramente galatéico. Há também um dos th ingleses ; no meio das
palavras, percebo - o e poderia figurá -lo é o th de think, que os fone
tistas grafam por e mas não haverá inicial ? E confundo muitas vezes
C port e por x. A rigor não há um só som do caxinauá igual aos
nosSOS .

Na tradução vou melhor. Não se trata apenas de entender que


está escrito, mas de interpretá-lo gramaticalmente. A distinção entre ati
vos e reflexivos me tem ajudado bastante, mas em suma a gramática é
particular, e mesmo se conhecesse outras línguas sul-americanas, daí tira
ria poucos ensinamentos.
Continuo porque já estou muito adiantado para recuar. Além disto,
já tendo pago minha dúvida ao solo com a divulgação do Wappoeus, ao
elemento ocidental com o que pude perceber de sua história, o mesmo
faço ao elemento indígena.
Como terão corrido as eleições ? Virgilio lá foi anteontem , para
votar no Hermes. O trem chega pouco depois do meio-dia e só para
as duas ou três horas teremos aqui jornais. O resultado não me inte
ressa muito. Qualquer que seja o presidente eleito, não endireitará o
Brasil, nem o perderá. Se ao menos pudesse dar um pouco de vergonha
ao povo e aos políticos ! Se ele próprio tiver vergonha !
Como se engana V., considerando-se livre da politicagem ! Rui insulta
seus adversários em todos os tons, declara em Juiz de Fora desalmados
aos que não votaram nêle, chama o governo mineiro de desonesto, e
V. se indigna porque Augusto de Lima apara o golpe, estigmatizando-o
como aventureiro !
Juscelino Barbosa, com todas as responsabilidades do cargo, declara
que tem os balanços terminados até novembro, que dentro em pouco
224 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

apresentá -los-á, até o fim do ano, que não houve esbanjamentos nem
despesas ilegais, e V. considera-o cínico, porque as murmurações de aldeia
dizem o contrário, fixam os contos e talvez os vinténs por que se rea
lizou a grande mercancia !
No dia 6, aniversário do Werneck, estarei no Rio ; espero ficar lá
definitivamente depois da Semana Santa. Mesmo porque Calógeras pre
cisa de mim , para ajudá-lo na revisão das provas de um trabalho em que
está empenhado.
Saudades e saudações a todos.
C.
Paraíso, 2 de março de 1910.

Meu caro Mário ,


Ao receber sua última carta , comecei a resposta , mas chegando à
quarta página, interrompi na sua frase, datei , pus as duas no mesmo
envelope. Daqui a um ano, se ainda fôr vivo, abrirei.
O movimento eleitoral para mim já perdeu o interesse.
Pensei sempre que, se em todo o Brasil , Rui tivesse apenas o voto
dêle, reclamaria a anulação de tudo para que o voto único prevalecesse.
Não me enganei.
Que sucederá agora ? Levante em S. Paulo e Bahia ? Um Silvino
que alicie outros sargentos, se aposse de uma fortaleza e intime suas
ordens? Um Marcelino que desta vez leva o bote mais seguro ?
Qualquer destas soluções um só momento não desejei nem auxiliei,
nem por pensamentos, nem por palavras, nem por obras.
Até breve. Saudades a todos.
Bien à l'ous,
C.
Paraíso, 18 de março de 1910.

Meu caro Mário ,


Não me lembro de ter recebido carta sua, depois de uma escrita
nas águas, a que respondi longamente. Há equivoco ou houve extravio.
Não comparo a separação de Honorina à morte. Disse apenas que
compreendo as causas de seu ato, mas que isto me consola tanto como
CARTAS A MÁRIO DE ALENCAR 225

saber a doença a que a mãe sucumbiu . As causas ocupam o segundo


plano : o primeiro cabe aos efeitos.
Acho, porém, o caso dela pior que a morte : a morte é fatal; chega
a hora inadiável; em resoluções como a de agora há sempre a crença ,
certamente errônea, de que o desenlace podia ser outro, e é isto que dói.
Só agora vejo como a queria. Passo os dias sem sair, pensando
nela, joguete dos sentimentos mais contraditórios, desde e indignação até
as lágrimas. Só com os filhos, à hora do jantar, converso sobre ela .
O receio de que qualquer estranho se possa referir ao assunto dá -me
arrepios. O isolamento não me pesa, alivia -me. A dor geral transfor
mou-se ; sinto um frio intimo que vai da espinha aos olhos mas os acessos
vão-se espaçando e duram menos.
Já me sucedeu isto uma vez, quando Abril saiu -me inesperadamente
de casa para vir morar com a avó. E a impressão foi ainda mais pun
gente, porque tratava - se de um companheiro de longos anos, e eu sem
pre tinha a esperança de que voltasse. Todas as noites, ao abrir o portão,
espiava se o gás estava aberto, sinal de que tinha voltado. Ser -me -ia
fácil ir a casa da avó e exigir que ela o fizesse voltar ; felizmente nunca
o fiz. Não queria corpo, queria alma.
Honorina deu um passo irrevogável já é um consolo. A clausura
não é tão absoluta como V. supõe. Matilde já foi vê-la ; anieontem a
avó recebeu uma carta de doze páginas, toda transbordante de felicidades.
Para mim , porém , isto não serve . Não irei vê-la ; as cartas suas só
Tesponderei se precisarem de resposta ; correspondência não quero ter.
Não pretendo repetir o herói da Encarnação .
A avó soube a notícia por mim , depois do fato consumado. O choque
foi terrível ; durante três dias não fez outra cousa senão chorar. Agora
não dá mostras externas de sofrimento . Penso que a insensibilidade e a
injustiça da neta despertaram -lhe todas as energias de mulher honesta e
justa ; a limpidez da sua consciência a ampara.
Mas basta de Honorina. Peço-lhe que nunca mais se refira a éstę
assunto, se eu em primeiro lugar não o abordar.
Meu trabalho indigena vai lentamente, mas sem parar ; espero lá
para o fim do mês chegar à pág. 309 ; espero terminar, ou quase, para
março .
Pretendo voltar à História do Brasil , mas sem gosto, como um boi
que vai para o açougue. No prólogo do Fausto há um verso que sem
18 1.•
226 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

pre me comove : como Goethe, eu também não terei o livro lido por
aqueles que mais quisera.
E além disto a questão terebrante : o povo brasileiro é um povo
novo ou um povo decrépito ? E os fatos idealizados pelo tempo valem
mais que os passados atualmente ?
Sôbre política nada lhe direi. Parece-me, porém , que V. generaliza
por demais, e exagera sem discernimento.
As atrocidades da Ilha das Cobras são infandas ; mas que nome
merece a impassibilidade do público, depois de conhecê -las ? A imprensa,
que ou
ou se cala pudicamente, ou explora com todo o despejo aquelas
misérias ? Fique certo que o Hermes ( ou Palerma) não abre era nova .
Continuo a preferi-lo ao Rui. Sá teve uma felicidade única. Um tele
grama veio da Europa, dirigido a Laffond ; Vanewen surripiou -o, deci
frou - o como muito bem quis ; Seabra, na sua imbecilidade, considerou - o
argumento irrespondível; por isso apresentou-o, e por isso vão defron
tando mais um fantasma impalpável, porém uma entidade concreta . Sá
pôde sair vitorioso. Como há de estar arrependido Seabra de sua imbe
cilidade criminosa !
Se tivesse tempo e espaço , contava -lhe o papel de Miguel Lisboa nesta
emergência. V. veria que nem tudo está perdido.
Se V. continuar na Tijuca, dia de seus anos, lá irei.
Saudades ! Saudades.
C.
Rio, 18 de janeiro de 1911 .

Mário,
Acabo de receber sua carta .
Já ontem escrevi a Antenor, perguntando se ele e Oliveira poderiam
facilitar-me a condução no dia 30. Se a resposta fór afirmativa, irei
no bonde em que eles têm de vir para baixo.
Desejo também levar Matilde.
Mendonça, que examinou - a, vai para dois meses, achou-a muito mais
depauperada, deu - lhe umas pastilhas para despertar o apetite, e recomendou
exercícios e banhos de mar .
Estes não começaram porque Abril teve escrúpulos em levá-la ao
High Life . Disse -me, porém, Werneck que as famílias de Botafogo fre
CARTAS A MÁRIO DE ALENCAR 227

qüentam o ponto sem escrúpulo. Abril receia, agora, as grosserias dos


ociosos que pela manhã se reúnem para atirar chufas às banhistas. Não
sei que resolverá.
Quanto ao exercício, vai-se fazendo o possível.
A dificuldade consistia na hora, sempre incerta, do jantar, mas
D. Adélia começou a tomar banho antes do almoço e as cousas vão-se
ajeitando ; pouco depois das 6, ela pode sair, e já deu uns cinco passeios,
dois dos quais com Abril.
Também tenho dado umas lições, breves, traduções de uns livrinhos
elementares de Paul Bert sôbre História Natural, um resumo de História
Geral de Lavisse, que melhor serviria para Ivo, e Geografia do Brasil.
Começamos no Amazonas e já chegamos ao Piauí.
Quero ver se aos poucos desperto -lhe a curiosidade intelectual ador
mecida : ela não lê nem jornais.

Ontem recebi provas até a pág. 259 : espero na próxima semana dar
o resto das histórias - ao todo umas cinqüenta, algumas repetidas. As
repetições não têm por fim engrossar o volume : quando não contêm
variantes, tanto mais curiosas, porque os dois rapazes são primos e filhos
da mesma aldeia, apresentam fatos lingüísticos novos.
Depois virão notícias, algumas preciosas, cenas da vida real, etc.:
umas cinqüenta páginas. Para concluir, tenho de me ocupar do voca
bulário, cuja primeira redação já está passada a máquina ; preciso, porém ,
de revê-lo cuidadosamente e de inserir palavras novas, apanhadas nos
textos : sem estes não a colheria, porque, dando o têrmo brasileiro, éles
respondem , e sinceramente, que não conhecem o equivalente. Calculo que
darei mais de três mil palavras . Veremos.
Para sobremesa reservo a gramática : apenas a conheço empirica
mente ; depois do vocabulário, atirar-me-ei a ela com toda a energia : se
tiver acabado tudo em junho, posso dizer que durante dois anos não
fiz outra cousa. Represento bem o caso do amigo que foi deixar outro
a bordo, lá descuidou-se e teve de ir para onde não queria, sem roupa,
e o que pior é, sem dinheiro.

Vem -me a idéia um dito de João Brígido sobre seu parente Meton .
228 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Meton , aliás bom cirurgião, ao menos para o Ceará de trinta anos


atrás, operou uns mamilos e o paciente morreu. João Brígido comentou :
Quem mandou Meton meter -se a oculista ?
Respeitos à mãe e à senhora.
Bien à vous,
C.
Rio, 27 de janeiro de 1911 .
Para que se ocupar com indios ?
É uma dissipação sem utilidade. Não sei bem o que V. pretende
procurar, mas asseguro-lhe desde já que sairá desiludido. Gonçalves Dias
não conhecia tupi: só sabe uma lingua quem a fala ou traduz. Não ima
gino até onde leva o diletantismo com todos os seus desvarios etimoló
gicos. Creio que neste assunto ninguém levará as lampas ao João Mendes
de S. Paulo . Para ele Casa Branca, nome de cidade conhecida, é
puro tupi.

Mário ,
Acabo de ler que vai -se abrir a inscrição do concurso de segunda en
trância para os empregados do Tesouro .
Já escrevi a Adriano que se inscrevesse e preparasse deveras.
vença-o e consiga que Mário dê- lhe algumas explicações.
Recebi ontem uma carta do Sombra, dizendo que nos trará novo
indio. Em tal caso irei buscá - lo e demorarei mais tempo aqui, de modo
a acabar o trabalho.
Também estou estudando as guerras platinas, para ver se de uma
feita arranco éste bicho do pé.
Pretendo partir sábado, 1 de agosto, digo, 31 de julho, e aí estar
segunda-feira , 2 de agosto . No Ceará dizem que o dia é aziago.
Lembranças e saudades a todos.
Bien à vous,
C.
Paraíso , 20 de junho ( 1911 ? ] .
CARTAS A MÁRIO DE ALENCAR 229

Meu caro Mário,

Desejo-lhe e à consorte e à prole feliz ano de 1912, apesar de


bissexto .

Seu conto deixei que D. Adélia lesse primeiro : já acabou , vou começar.
Vou começar também para a semana a reimpressão de meu livro
sobre os caxinauás : as matrizes encomendadas para as linotipos já
chegaram .
Comecei no Jornal do Natal um resunio do livro : o segundo artigo
já revisto e composto esperei que saísse domingo, segunda, ou hoje, têrça :
não sei quando virá. O terceiro está quase acabado ; o último, o mais
difícil, vai bem encaminhado e posso confiar -me à mera ação da gravi
dade para chegar ao fim .
Ficar-lhe-ia muito obrigado se V. me arranjasse um dos últimos
números da Quaterly Review , no E. S. Lib. Quando sobe ? Espero ir
jantar antes com V.
Veja como anda minha cabeça. O número da Q. R. é o que traz
um artigo de Salomon Reinach sôbre mitologia.
Bien à vous,
C.
2 de janeiro de 1912.

Meu caro Mário,

Vá por este meio o abraço que não lhe posso levar pessoalmente,
como o ano passado.
Que seja muito feliz, veja satisfeitas suas aspirações é o meu grande,
verdadeiro desejo.

Comecei a reimpressão dos textos caxinauás, e o trabalho, feito no


Leuzinger, vai satisfatòriamente. Talvez termine em abril .
Bulhões recomendou a Abril, para o concurso de segunda entrância
em que vai entrar, o projeto de contabilidade, apresentado pelo Dídimo.
Dizem que há muitos na Câmara. V. poderá arranjar um exemplar ?
230 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Se vier à cidade, peço -lhe mandar mais volumes dos Anais a Leu
zinger para serem rebrochados.
Recomendações e saudades à ex.ma família.
Até breve.
Bien à vous,
C.
Rio, 30 de janeiro de 1912.

Mário,

Peço-lhe o obsequio de responder : se recebeu um cartão de Abril,


relativo ao pedido de licença de meu patrício José Vaz de Sousa, que
precisa de seis meses de licença para ir ao Cará visitar os irmãos, de
que é o único arrimo ; e se já agiu junto ao Mário e Luís, para eles
facilitarem o pedido na Caixa Econômica, junto a Pio e ao sogro .
Amanhã ou depois lhe escreverei mais longamente.
Bien à vous,
C.
Rio, 26 de fevereiro de 1912.

Meu caro Mário,


Em vez de responder logo às suas cartas, pus de lado : vão agora
saber aonde estão neste mare magnum .
Lendo-as, os caracteres me distraíram e apareceram sob um aspecto
simbólico . Você quis à força apropriar-se a letra de seu pai, conseguiu,
tornando a sua quase microscópica, isto é, forçando a natureza e aca
nhando-se. Só na grafia ? Infelizmente não. Sei que dificilmente V. po
deria fazer outra cousa, já por iniciativa própria, já por uma sugestão
irresistível, quase pressão. Não é tempo já de soltar a letra e as asas ?
Lembra-se do desenlace da Encarnação [ ? ]
Contou -me Patrocínio que com outro amigo tomou uma bebedeira
que foi do Carnaval à Páscoa. – E V. trabalhava, escrevia ? perguntei.
Sim, mas debaixo tudo de um nevoeiro. Acode-me isto, lembrando-me
da minha situação. Resolvi acabar o livro das caxinauás em abril. E
nesta atmosfera respiro , movo-me e vejo tudo através. Trabalho dez
CARTAS A MÁRIO DE ALENCAR 231

a doze horas por dia, revejo o que estava feito, agora com olhos mais
acostumados ao escuro , e não rejeito matéria nova . E continuo a esperar
firme. Leuzinger tem sido admirável, a linotipia opera milagres.
Mandei o último dos meus artigos do Jornal, sem escrever, juntando
apenas o endereço à assinatura, a um padre austríaco, grande notabilidade,
especialista do grupo pano, a que os caxinauás pertencem . O padre es
creveu-me uma longa carta, dizendo que seu trabalho ia ser editado nas
Memórias da Academia de Viena, pediu -me mandasse o vocabulário e a
gramática para publicar juntamente com as outras : neste caso espera
ria mais algumas semanas .
Tenho enviado provas do vocabulário, que mandara compor para
facilitar a revisão e a inclusão de novos vocábulos : já foi até letra K : 0
resto porei no correio na próxima semana.
Esta noite assentei -me para começar a gramática, veio a insônia,
resultado : fiz quase toda a gramática de uma vez, uma gramática feita
de cor, sem exemplo, mas contendo tudo o que há de essencial. Hoje
espero terminar. Está claro que no livro a cousa sairá com outro de
senvolvimento, mas não se trata mais de erguer o prédio, sim de divisões
internas e mobília.
Na semana começada amanhã, espero adiantar tanto o trabalho que
possa fazer jus a uma folga. Assim, pretendo entre 14 e 31 ir fazer-lhe
uma visita.
Meus respeitos à sra., D. Georgiana, Mário e Clarisse.
Cafunés nos meninos em que a idade permitir.
Bien à vous,
C.

Rio , 16 de março de 1912.

Meu caro Mário,


Acabo de ler sua carta, e fiquei espantado de tanta cousa encontrada
que lá não pus, na que há dias lhe escrevi.
Em suma queria dizer : V. apropriou-se da letra de seu pai; aumen
te-a, torne- a menos microscópica, porque os meus pobres olhos já não
dão muito para ela. Ao escrever, faça de conta que a missão de seu
pai findou : a sua é outra.
Quer mais claro ? Basta de leito de Procusto ; durma em sua rêde.
232 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Isto quer dizer : se há diversos modos de interpretar, é porque tani


bém há três anos e meio, quase quatro, tenho -me procusteado no leito
dos caxinauás, e o nevoeiro ambiente já se capitalizou em belida.
Continuo esperando no trabalho e confio vencê-lo no tempo marcado ;
reservo a Semana Santa para a gramática, e começarei a impressão depois
da Páscoa.
Se não chover, irei sábado de manhã, o mais cedo possível.
Meus respeitos à ex.ma familia.
Bien à vous,
C.
Rio, 24 de abril de 1912.

Caro Mário,
Li muito interrompido o que tinha de ser, e minha impressão final
foi boa. Quando tiver uma folga, relê-lo-ei com suas Poesias, e serei
mais preciso.
Notei certo excesso nas picardias da madrasta à enteada : com a

sensibilidade desta, poder- se -ia obter o resultado mais económicamente . Ao


contrário, a conversão da madrasta , o anticlímax, poderia ser mais mi
nucioso .
O envenenamento lembra o negro das Minas de Prata ideando o
roubo dos diamantes.

Uma vez, Ferreira de Meneses deu em folhetim uma conversa com


scu pai , que protestou em ligeiro apedido contra o fundo e contra a forma..
Disse -me então : eu lá seria capaz de dizer: estou entristecido ! Encon
trando a frase em seu livro, sorri e lembrei-me de trinta e sete anos
atrás .

Meu livro vai adiantado : os textos devem ficar compostos até o


fim da semana : falta a revisão do vocabulário e a redação da gramática,
mais um mês de trabalho.

Agora o objeto particular desta carta.


José Vaz de Sousa, meu patricio, que em tempo lhe recom [endei),
obteve prorrogação da licença, mas os últimos dois meses sem ordenado.
CARTAS A MÁRIO DE ALENCAR 233

Peço-lhe intervenha junto a Magalhães Castro, para ser reparada a


injustiça : trata-se de empregado antigo e assíduo, que estava realmente
doenie. O caso deve decidir - se amanhã .
Bien à vous,
C.
Rio, 13 de outubro de 1912.

Mário amigo,
Parabéns e abraços pelo dia de hoje. Viva bastante para que seus
filhos, hoje objeto de preocupações, sejam -lhe motivo de contentamento
e felicidade.
Vão aí umas folhas de meu caxinauá : veja se falta alguma, ou ao
contrário há duplicata. Para acabar faltam cerca de 150 páginas: espero
alforriar -me no próximo fevereiro .
Respeitos à senhora ; cafunés na meninada.
Bien à 10145,
C.
Rio, 30 de janeiro de 1913 .

Caro Mário ,

Há no Peru diversas coleções oficiais de documentos históricos, rela


tórios da junta de vias fluviais. Augusto, para obtê-los, bastaria pedir,
e ele bem podia trazê-los para a Biblioteca Nacional.
Por permuta com os Anais ele poderia bem obter a Revista da Socie
dade Geográfica de Lima, a Revista Histórica e outras cousas : seria uma
alegria para o Cícero.
Para mim desejo a Gramática Pano de Navarro e os vocabulários
quichua, piro, etc. – do colégio de Ocapa ou Propaganda Fide. Há
também trabalhos de Telo sobre lingüística, que eu desejaria obter.
Meu livro está agonizando : mando agora as últimas provas do voca
bulário, que deve ficar impresso esta semana : a gramática está quase
terminada .
Influído com a idéia de ir para o mês a Mato Grosso com Antônio
Penido, que vai entregar a estrada de ferro ao governo, tudo me parece
234 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

fácil agora claramente não irei antes de terminar e a partida é


nos primeiros dias de dezembro.
Se estiver com Afrânio , indague até que página életem , para
mandar o resto .
Bien à vous,
C.
Rio, 17 de novembro de 1913.

Meu caro Mário,

Saí do Rio um dia antes do que esperava ; por isso não lhe comuni
quei que partia para Poços de Caldas.
Aqui veio ter a carta de Augusto com as duas folhas já conferidas.
O livro ficou no Rio, e foi o melhor, porque aqui não preciso dele. Já
escrevi a Augusto agradecendo : vamos ver se o correio não faz das suas.
Contristou -me sua carta . Pensei que depois dos dois choques ter
ríveis do ano passado, V. voltaria a ser o que foi . Agora há um remédio
que V. não experimentou ainda, que me conste : sugestão e hipnotismo.
Por que não consulta Afrânio e Juliano ? Sendo seu mal puramente
subjetivo, o medicamento já está indicado. Aqui o médico permitiu -me
que tomasse dois banhos diários : já estou no décimo.
A fonte mais freqüentada é a de Pedro Botelho; à do Macaco, mais
afastada, quase ninguém vai : nas duas vezes que nela banhei-me, senti
me muito mais a gosto.
Minha demora será de poucos dias . Como tenho passe para toda a
linha Mogiana, é possível que chegue a Goiás . Espero carta do Bulhões,
a quem consultei .
Trouxe uns livros de Mitre para estudar e ver se serei capaz de
navegar D. João VI rio abaixo. Estou aqui no Hotel do Oeste, mas
não vale a pena escrever -me, porque talvez sua carta já não me ache.
Respeitos aos seus .
Bien à vous,
C.
Poços de Caldas, 13 de fevereiro de 1914.
CARTAS A MÁRIO DE ALENCAR 235

Meu caro Mário,

Já falei ontem com o Barão de Vasconcelos. Está pronto para


tirar as cópias ; e como pretende demorar até julho, pode deixar a obra
feita. Depois disto veremos o que há a fazer : publicação integral,
parcial ou mera apuração.
Peço-lhe mande a primeira remessa pelo Tuxunim. Quando o Ba
rão acabar, procederemos à revisão, devolveremos os originais, e então
virá nova remessa.
Continuo pegado com Artigas : o trabalho de reabilitação a que os
orientais, e particularmente Acevedo, atual ministro, tem procedido, é
admirável .
Até breve .
Bien à vous,
C.
Rio, 19 de maio de 1914.

Meu caro Mário,


Devolvo as cartas que o Barão copiou, ou antes fêz a filha copiar.
Faltam duas cartas. Pode mandar mais.
Creio que V. faria bem , dando toda a papelada à Biblioteca.
Até breve .
Respeitos à ex.ma.
Bien à vous,
C.
Rio, 11 de junho de 1914.

Meu caro Mário,


Não tinha a idéia de escrever-lhe esta carta ; deu-ma nosso encontro
casual de ontem .
Há tempos, lendo seu discurso ao Astrogésilo ( sic ), achei que
V. falava muito de si ; depois, percorrendo distraidamente a Rev. Am .,
vi as primeiras linhas afinando pela mesma nota ; enfim no Jornal já
V. não se contenta consigo e traz a filharada para a rua . Fiquei per
plexo : estaria V. imitando os líricos da velha escolha, que traem os
236 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

maiores segredos ao público ? Tratar- se -ia de um acesso de megalomania ?


E a megalomania não deitará na mania de perseguição, que é a segunda
fase natural ?
O trabalho do Jornal, pequeno para volume, é enorme para artigo ;
1
não o li, mas passei os olhos e fiquei senhor de seu pensamento.
V. leva os alemães para a berlinda : porque não seguem o exemplo
de Almeida Rabelo e Raunier, que não têm caixeiros viajantes ; porque
não vendem por dez tostões o que franceses e inglêses impingem a 5$ ;
porque um brasileiro insigne, chegado a Berlim com a mulher, obteve
com dificuldade que a polícia recebesse dêle as informações que queria
da mulher ; porque os alemães consideram - se superiores aos outros povos.
Gostaria muito que V. descobrisse que povos os inglêses, os franceses,
os norte-americanos consideram superiores a si : conheço apenas dois
povos que se consideram inferiores a quase todos os outros: infelizmente
são os que nos tocam mais de perto, ambos.
O caso do brasileiro insigne lembra o do J. R. que apanhou uma
gonorréia, consultou médico, e dias depois foi chamado à polícia para
declarar aonde se infeccionara .
A questão do barato e caro é toda pessoal : não compro chapéu -de
sol de mais de cinco mil-réis, porque costumo perdê-los e o prejuízo é
menor ; não me visto no Raunier porque sou como H. de Melo, de quem
dizia Pedro Luís o antigo ministro : veste-se todo chibante no Rau
nier, desce aprumado a Rua do Ouvidor, e chega com a roupa machu
cada na Rua Direita. Minhas finanças não me permitem mais que o
Colombo, mesmo isso sem a freqüência que fora para desejar. Entre
tanto Almeida Rabelo e Quatro Nações não são incompatíveis. V. tem
carradas de razão contra os caixeiros- viajantes, e vou mais longe : devem
ser proibidos os anúncios de jornais. Privados desta base, não atingiriam
a opulência, transformando -se em Pandoras pestíferas. Já o velho rifão
dizia : quem dói- lhe o dente ...
O papel histórico da Alemanha foi fundar povos a que apenas lega
o nome. Lombardia, Borgonha, Normandia , Andaluzia, Inglaterra , Fran
ça : sim , a França moderna é obra dos francos, e desde Clóvis , a França
medieval veio-se organizando da fronteira alemã para o sul . A In
glaterra com os anglos, saxões e normandos, que é, senão obra alemã ?
V. lembrará os celtas originários. É verdade : descubra que povo os
alemães já martirizaram tanto como os celtas da Irlanda passada e pre
sente. Os alemães são militaristas ? São tão agricultores que a Ingla
terra não conseguiu matar pela fome seus setenta milhões, e as centenas
CARTAS A MÁRIO DE ALENCAR 237

de milhares de prisioneiros lá encontram comida sadia e abundante : são


tão navegadores que seus vapores abriram época em cousas de navegação ;
são tão industriais que a indústria mundial está sofrendo de um bloqueio ;
são tão científicos que nos últimos setenta anos, podemos dizer, em três
quartos do século XIX e até o presente, quem quis aprender foi alisar
os bancos de suas universidades .
Li em Albert Sorel que os reis de França faziam umas guerras
chamadas de magnificência : indique-me uma guerra de magnificência
alemã. Guerras de magnificência ! Fiquei de cabelo em pé, quando li
este horror. Bismarck disse que a Alemanha foi invadida pela França
dezesseis vezes. A última foi por Napoleão. Leio nos autores franceses
e inglêses, que lhe não podem ser suspeitos, o que houve depois de Iena.
Na Alemanha, até então sentimental e cosmopolita, havia homens
de inteligência e caráter, que depois de Napoleão pensaram : isto não
pode continuar. Daí data a reorganização, a vontade de serem senhores
em sua
Organizou seu exército, como nenhuma potência, sem
desfalcar nem agricultura, nem indústria, nem comércio, nem ciência .
Por que a França e Inglaterra não fizeram o mesmo ? A Rússia não o
fêz ! E na Rússia o dinheiro público fica em mãos de particulares, e o
dinheiro, que devia servir ao armamento, serve para cocotes e champagne.
Tolstoi escreveu uma frase tremenda a propósito de sua infeliz terra : aqui,
diz êle, a cadeia é o único lugar decenie, em que um homem honrado pode
estar sem vexame.
A Alemanha é militarista, mas não conquistou Tonquim , Madagáscar,
Marrocos, Transvaal, etc. Dir -me- á : mas isto não é Europa, é Ásia,
é Africa , etc. Tem toda a razão : mas então V. não fala em nome de
um direito natural ingênito a todos os povos . Por minha parte não vejo
por que a Europa, que se arroga o privilégio de conquistadora, não possa
ser conquistada. Infelizmente não será para meus dias ver os amarelos
do Levante e os negros do Sul reduzir a tricolores toda aquela brancalhada
esgotada por excessos e abusos de tóda a ordem , durante tantos séculos.
A França e a Inglaterra, certas da vitória , não repugnam a conquistas,
conquanto [ sic ] que sejam na Alemanha. Leio pouco os jornais de além
mar ; mas vejo que The Statist quer que se tome os vapores, se arrecade
todo o dinheiro dos bancos, torne -se impossível o comércio exterior da
Alemanha durante cinqüenta anos, etc. Ernest Dénis, professor da Sor
bonne, autor de uma importante história da fundação do império alemão,
quer que a Prússia fique reduzida nos limites de Tilsitt . E quando os
alemães dizem que a situação atual é semelhante à de 1813 trata - se
238 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

de sua independência, de sua liberdade e de sua vida chamam os


alemães de mentirosos, e dizem que os aliados sim, estão lutando pela
liberdade humana . Os alemães sabem o que dizem : já tiveram de pagar
a Guerra de Trinta Anos, as guerras de magnificência do Rei-Sol, e last
not least, as epopéias de Napoleão.
É curioso como se considera a história alemã.
Quando Napoleão fundou a Confederação Germânica e dela decla
rou-se protetor, havia talvez mais estados independentes ali e irredutíveis
do que departamentos franceses ; V. pode verificar os algarismos em
qualquer livro francês. O Santo Império Romano, que parecia presidir
a tudo, não era santo, nem império, nem romano, no dizer de Voltaire
o último titular tanto reconheceu o vácuo e o ridículo de seu trono que,
a partir de 1804, começou a assinar- se imperador da Austria.
As tendências para a unidade só apareceram a partir de Waterloo,
mas combatidas e perseguidas pelos governos. Se V. ler livros franceses
e inglêses de trinta anos atrás, verá a cada passo a profecia : a unidade
alemã não pode durar, porque o particularismo alemão não o permite. O
velho Guilherme um dos maiores sacrifícios que fêz foi aceitar a coroa
imperial; preferia a coroa prussiana. Assim, pode-se falar da Alemanha,
só a partir de 1871; antes, não havia Alemanha senão nas aspirações dos
poetas e utopistas; ou então havia dezenas de Alemanhas microscópicas.
V. foi arrancar do sepulcro a Hansa ; o que V. refere combina mal
com o que li ; mas V. tem idéias mais frescas, leu autores melhores e
curvo -me .Para ver como se pode escrever a história, apenas trans
creverei um pedacinho do Manuel Historique de Politique Étrangère de
Émile Bourgeois, professor de História Diplomática da Universidade de
Paris. Na quinta edição, vol . 1.º, pág. 6, lê-se : Enfin l'Angleterre, qui
triompha du droit divin , fit de son triomphe à Utrecht un prétexte d
détruire la marine, le commerce et les colonies de tous les autres peuples,
à s'emparer de la mer et de l'empire colonial. Quand elle les eût pris,
elle ferma tous ses ports à ses voisins et soumit ses sujets d'outremer
à un régime odieux d'exploitation . L'esclavage de nation à nation succé
da, entre le nouveau monde et l'Europe, à l'antique servitude de la glèbe.
La féodalité des compagnies commerciales remplaça la féodalité des sei
gneurs ... Il n'y eût de différence que dans l'étendue de leurs domaines”.
V. poderá dizer que a Inglaterra nada disto faria, se não tivesse havido
antes a Hansa. Não contesto .
CARTAS A MÁRIO DE ALENCAR 239

Alonguei -me mais do que queria e, se chegar ao fim desta mercurial,


V. há de estar dizendo : qual é em suma o meu pensamento ?
É muito simples. Nós temos hoje as mesmas simpatias e ódios que
nutríamos o ano passado em agosto. Temo-los, porque, a menos de
sermos hipócritas, não podíamos ter outros : nossos estudos, nossas idéias,
nosso passado individual tolhiam-nos a liberdade de escolha : continue
cada qual com sua opinião ; um artigo, por mais eloqüente e fundamentado,
pode envaidecer o autor da obra -prima ou irritar o adversário da diatribe ;
só convence a quem já está convencido.
Mais alto que todas as logomaquias falam os milhões de heróis que
seis povos atiram a todo instante ao matadouro, e que vão para o outro
mundo, certos da justiça de sua causa , contentes de ter cumprido seu
dever.
Vou amanhã matar e renovar saudades. Martim Francisco telefo
nou -me para almoçar com ele na Tijuca : lá irei .
Depois de um período longo de amortecimento cerebral, voltei ao
bacairi. Darei conta da mão ? Depois de vinte anos de abandono, se
rei capaz de recomeçar ? Em todo caso, viro as costas à História ; não
faltarão Tácitos e Suetônios : os pobres indios sumir-se-ão do mundo ;
quero apenas que não vão sem acompanhamento ao túmulo.
Lembranças, saudades a todos.
C.
Rio, 6 de setembro de 1915 .

Rio, 9 de setembro de 1915.

Meu caro Mário,


Chegou -me sua carta poucos minutos depois da notícia do assassinato
de Pinheiro Machado. Nunca me fêz bem nem mal; nunca lhe falei ;
conhecia - o apenas de vista, antes, de retrato ; mas o inopinado do sucesso
abalou-me dos pés aos cabelos ; de relance revi o seu passado, desde a
invasão do Rio Grande, à frente de quatrocentos correntinos, até as últimas
campanhas do Senado, e senti o travo da experiência histórica sempre
confirmada: assassinar chefe político é operar canceroso ; extraído aqui
o cancro, reaparece além , em parte mais nobre, e mais virulento.
Lidas três vezes seguidas, suas palavras pareceram-me obscuras ;
deixei passar a noite, para relê-las hoje de manhã, depois de lidas as folhas
e falar, compos mei. Posso fazê-lo agora.
240 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Quando sua novela saiu no Jornal, guardei um exemplar e fiz mais


de uma tentativa ; só a li depois do volume e escrevi-lhe o que sentia.
Vendo o artigo Guerra , depois de tomar - lhe a dimensão, se não fôsse V.
o autor, dobraria simplesmente a página; por ser seu, li o princípio e
passei os olhos pelo resto . Pensei: trata - se evidentemente de uma cadeia ;
a cadeia vale tanto como seus elos mais fracos ; esta não resiste.
Depois veio-me a idéia do discurso de Austregesilo, em que não
contei os pronomes, mas chocou -me a justificação remanchada da candi
datura , a atitude de protetor, a apresentação do filhote como emplumado
sub umbra alarum tuarum ; veio -me a idéia de um número da Revista
Americana, percorrida às pressas numa livraria ou numa casa particular,
em que ficou, e refleti : tratar-se-á de um lírico da velha escola, trazendo
suas confidências à publicidade ? Tratar-se-á de um caso de megalo
mania ? Virá depois das grandezas a mania das perseguições? Se o
tivesse encontrado, dir- lhe-ia isto, e seria compreendido. Nosso encontro
decidiu -me a escrevê -lo, e tudo ficou escuro e enviesado.
Do seu valor literário nunca tive dúvidas, nem tenho. Acho que
V. não deu ainda tudo quanto pode, por causa da pressão de seu pai;
se estivesse vivo, ele lhe apontaria a Encarnação como sua última von
tade : podes acatar e venerar uma memória , independente de simulacros.
Encontrei ontem umas cópias de bacairi, feitas por V. em 94 e 95, a
meu pedido, e vendo a letra graúda daquele tempo, e a de hoje, em
que V. conseguiu imitar a de seu pai , tornando - a quase microscópica, reco
nheci a nobreza do sentimento, mas perguntei-me: não poderia traduzi -lo
por outro modo ? Mais de uma vez tenho separado seu volume de prosa
e o de versos , para lê-lo atentamente ; a falta de método na vida, a má
distribuição do tempo, o desarranjo em que andam minhas cousas, sei
que não são desculpas suficientes ; poderia dizer-lhe ou escrever - lhe algu
mas palavras gerais, creio que não seria trabalho de Hércules, e V. ficaria
satisfeito, e a desconfiança não entraria . Por que não o fiz ? Porque
V. merece mais: quis antes sair culpado a seus olhos do que aos meus.
Ouvi Tobias uma vez gloriar-se de ter aprendido alemão sem
mestre. No século de Burnouf e Champollion ! Não me vanglorio nem
me envergonho de ter estudado a lingua. Fi -lo porque certos livros ale
mães satisfaziam -me algumas curiosidades de meu espírito, e esperar que
fôssem traduzidos importava, na melhor hipótese, numa demora de anos.
A primeira vez que fui à Tijuca, obedecendo a um convite de sua boa
mãe, na Semana Santa de 80, subi a pé. Anteontem , fazendo a viagem
CARTAS A MÁRIO DE ALENCAR 241

de bonde elétrico, senti-me tão orgulhoso como em não ser de todo leigo
nessa lingua para que não faltam gramáticas, dicionários nem mestres.
Nunca o alemão foi para mim mais que um meio de transporte mais
rápido; na atual guerra não invejo os que citam sòmente os inimigos;
audietur altera pars, aprendi desde muito môço ; não vejo motivo para lan
çar carga ao mar. Sõbre minhas simpatias só converso com S. Ali : ele lhe
dirá se sou incondicional, se amo mais a Alemanha do que a minha cons
ciência . V. transforma -se em mestre- escola pretensioso ... Tem graça !
Felizmente tive alunos, nunca tive discípulos e nunca os cobicei.
Na Suíça, li algures, é proibido hoje nas escolas públicas introduzir a
história de Wilhelm Tell, depois da crítica histórica ter demonstrado sua ina
nidade. Porque, tendo estudado o depoimento de Tiradentes e a sentença
da alçada, sou obrigado a repetir a versão corrente e a colocá -lo no Pan
teon ? Nunca escrevi sõbre éle ; nos Capítulos, dada a escala, não entrou
porque não cabia : tenho emitido minha opinião em conversa : é tão fácil
derrubar o que não chega a ser granito. Que mal já veio dela ?
Para concluir.
Quando Diderot foi às margens do Neva, agradecer a excelsa pro
tetora que lhe comprara a biblioteca e mais de uma vez o socorrera
generosamente, disse - lhe uma vez Catarina II : o Sr. talvez tenha razão,
mas o Sr. escreve tudo isto em fôlhas de papel, eu teria de escrevê- lo em
fôlha humana.
Digo eu : artigos defendendo ou atacando os beligerantes são exercí
cios de estilo, árias de bravura, logomaquias: a realidade são os milhões
de turcos, sérvios, russos, alemães, franceses, inglêses, belgas, que diària
mente tombam aos milheiros, certos da justiça de sua causa , etc. Isto
quis dizer, mas a língua não me ajudou : paciência.
Bien à vous,
C.
Respeitos à sr.a, lembranças aos seus.

Meu caro Mário,

Agradeço sua carta de 11 , que acabo de receber com a mesma satis


fação com que a li a primeira vez. Não pense que noto não ter vindo por
estas alturas. Trago tudo tão desarrumado que é até vexame ver alguém .
Uma ou outra vez aparece Said Ali, quando passa muito tempo sem nos

19 - 1. •
242 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

vermos . Vem uma ou outra pessoa a negócios e felizmente tenho -os


muito poucos .
Agora resolvi uma medida drástica . Sá comprou uma fazenda lá em
Morro Azul, perto da Sacra Familia do Tinguá , município de Vassouras.
Quero mandar para lá uns dois caixões de livros. A dificuldade é es
colhê - los. Cada um representa tanta cousa ! Uma veleidade, um projeto,
uma decepção. Nêles vejo como por passeio a cronologia de meu espirito,
e a impressão não é fagueira : reduz -se a lançar continuamente carga ao
mar, para não [ sic ] evitar a submersão completa .
Não pense que tenho deixado de ir a sua casa de propósito .
Uma vez pedi para telefonarem , e veio uma informação sobre sua
estada no Leme, tão vaga que nada pude concluir. Também só há pouco
tempo fiquei ciente de que V. trabalhava na antiga Câmara , não no Monroe.
Não sei como se entra neste.
A partir de abril, pouco depois de minha viagem a Corumbá, fiquei
muito caseiro ; passei semanas sem sair de casa, porque as cousas da cidade
Abril traz ! Agora estou saindo mais, logo depois do almoço, porque
vem -me um sono irresistível, e T. Figueira aconselhou -me que o evitasse.
Em tese, não creio que tenlia razão, mas tive a prova de que em certos
casos pode ser funesto.
Saio ao meio-dia, e habitualmente estou de volta das três para as
quatro.
De noite é rarissimo sair .
Agora estou passando regularmente : durmo com facilidade e não
tenho sonhos agitados . Umas noites em que o sono custou a vir simpli
fiquei Kneipp : molhando os pés na água fria e calçando as meias sem
enxugá -los. Se isto não me fêz bem , não me fez mal. Outro dia trouxe
da B. Nac. os cadernos bacairis que encontrei. São apenas uma parte
minima, talvez um sexto . Não voltei ainda a ver se aparecem mais,
porque, contando sempre com a pior hipótese, adio a decepção.
Os cadernos trazidos são exatamente os primeiros que escrevi , os mais
fáceis. Quase todos têm tradução interlinear . Compreendo a gramática
melhor que em outro tempo, mas faltam -me muitos significados. Infeliz
mente não tratei do vocabulário em tempo, nem era fácil, porque substan
tivo e verbo vêm geralmente acompanhados de prefixos móveis, e qualquer
modo de dispô -los alfabèticamente é defeituoso : uma saída seria tomar por
base nosso vocabulario ; não me sorriu na ocasião e agora expio.
CARTAS A MÁRIO DE ALENCAR 243

O ano passado estéve aqui um bacairi, mas só o vi uma vez . Em


viagem por Mato Grosso falei com um cieputado novo sobre isto, e disse-me
que seria fácil arranjar um ; mas não pensei mais no caso : para andar
com índios, seria preciso sair da cidade, e hoje não disponho mais deste
recurso, porque Virgilio vendeu a fazenda. Para passar a limpo os ca
dernos antigos, alguns já bem furados de traças, não fiz separação de
horas. Se achar os outros, consagrar-me- ei a seu estudo, só à tarde e à
noite. Na primeira parte do dia, tratarei de preparar uma nova edição dos
Capítulos.
Com o catálogo dos mss. do Conselho Ultramarino, começado a pu
blicar pelo Cícero, vê-se como é prematuro pensar em escrever história do
Brasil . Só conhecíamos os documentos triviais, dos mais importantes, dos
fundamentais, só agora se vai conhecendo a existência. Uma pessoa môça,
de recursos, que pudesse ir residir em Lisboa, poderia fazer alguma cousa,
se valesse a pena. Quem sabe se o Brasil está em evolução ou dissolução ?
Se a Câmara ainda recebe The Nation, chamo sua atenção sobre um
artigo do semestre passado, relativo a duas célebres quadrinhas de Goethe
no Wilh . Meister. O sentido é que quem nunca comeu seu pão com lágri
mas e passou as noites chorando sem dormir, não conhece os poderes
celestiais, que atiram a criatura ao mundo, fazem - na pecar, deixam-na en
tregue a si , porque tudo se expia neste mundo - o alemão diz vinga - se.
O artigo traz a tradução de Carlyle, que é admirável, e traz outra em
grego, feita por um amigo do autor, a seu pedido.
Não lhe falo sobre sua terrível doença, de que o primeiro ameaço
manifestou-se quando V. tentou o concurso de grego. Arrojado convi
dou -me para uma excursão a Ouro Preto e Belo Horizonte: na volta
procurá -lo - ei. Devemos partir amanhã ou depois.
Respeitos à sr.a, lembranças a todos.
Bien à vous,
C.
Rio , 15 de setembro de 1915 .

Mário amigo,

Escrevo-lhe de Pedras Altas , da granja de Assis Brasil, aonde vim


solver um compromisso tomado em 80/81. O tempo de verão não é o
mais próprio para visitar uma terra essencialmente fria, mas tenho sido
244 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

feliz : a dois ou três dias de calor intercalados , tem sucedido sempre a


chuva, e a temperatura não pode ser mais agradável. Uma das últimas
noites acordei com o frio. Diz-me Assis que talvez o termômetro baixas
se a 30.
Há dez anos havia sòmente campos, com uma ou outra árvore silvestre.
Hoje há bosques de eucalipto, pinheiro, carvalho ; representam -se, em de
zenas de espécies, pessegueiros, macieiras, pereiras, ameixeiras; pela pri
meira vez vi oliveiras. A casa de morada é um castelo granítico, em cuja
construção consumiram -se não menos de cem contos. Em roda nascem
buxos americanos, que sob a tesoura assumem formas variadas, entre as
quais as de muralhas com ameias : muito interessante um dia dêstes vê-las
tremerem com um vento forte do Norte, que persistiu algumas horas.
O que mais encanta é a família forte, sadia, perfeitamente contente e
satisfeita. O ano é excepcional, porque não faltam chuvas nesta época,
em que são mais necessárias, e a praga de gafanhotos anda longe e talvez
não alcance aqui . Mas mesmo em anos menos propícios creio que o fundo
psicológico não se altera .
Na granja fabrica-se manteiga que encontra rápida extração : criam -se
animais de corrida, que nos prados fluminenses vão levantando prêmios
repetidos; há gado Jersey e Devon em exemplares escolhidos. A fôrça
do gado está em Ibirapuitã, lá para as bandas de S. Gabriel, que devemos
ir visitar na próxima semana .
Moro só, em chalet de madeira , habitado antes de erecto o castelo : é
impossível achar reunido maior número de comodidades que nos poucos
metros do andar térreo que ocupo. Dentro em poucos dias terei com
panheiros.
Ainda não sei quanto tempo ficarei ; mas não entra em meus planos
partir antes do fim de março.
Peço-lhe o obsequio de procurar na Nation de setembro e novembro,
nas Notes, ao voltar a página direita para a esquerda, o nome de um
livro traduzido em italiano, sôbre as missões de Peru ou Bolívia ; nas
críticas, o de outro sobre comércio internacional, câmbio, etc.: neste artigo
fala -se em uma obra intitulada The Purchasing Power of Money. E,
encontrados os nomes dos autores e os títulos exatos, rogo -lhe os copie e
transmita a Briguiet para encomendá -los.
CARTAS A MÁRIO DE ALENCAR 245

Chegado aqui, lembro-me que V. fêz anos: o abraço vai retardado,


mas nem por isso menos caloroso .
Bien à vous,
Cap.
Respeitos à ex.ma família.
Pedras Altas, 31 de janeiro de 1916.
[Anotados a lápis encontram-se os títulos pedidos : ]
“The Calli e [ ? ] Chaucer " — by Henry Noble Mac Cracken , 1,50 - Yale
University Press, N. Y., 255 Fifth Aven ."
"Irving Fisher, The Purchasing Power of Money ."

Mário amigo,

Trouxe-me a S. Paulo a notícia da próxima venda da biblioteca de


Eduardo Prado. Nela tenho trabalhado constantemente, das 12 às 4 da
tarde . Não me gabo de lanços de rêde nem mesnio de tarrafa, mas o
anzol vai fisgando piabas, lambaris e cangatis e, como não sou pobre
soberbo, enfio -os todos na minha embiricica, para falar como a gente dos
verdes mares bravios.
Durante este tempo, em casa de Jaguaribe, tenho -me cercado de livros
sôbre a história e a geografia de S. Paulo, e não tenho lido outra cousa e
voltarei menos ignorante do que vim.
Depois de amanhã iremos a Santos e Itanhaém. Para o fim da
semana pretendo visitar Ribeirão Preto, de que é prefeito um irmão de
Sancho. Domingo, 12, devo estar no Rio .
Só um livro li alheio à paulística e por tê-lo encontrado entre os de
Jaguaribe os Pensamentos de Marco Aurélio. Conhece -os ? Taine lia
algum trecho diàriamente e compreendo agora esta devoção. Muitas vezes
lembrei-me de Pompéia. E invejo a V. que já o leu ou poderá ler no
original.
Respeitos à senhora, lembrança à prole.
Bien à vous ,
C.
S. Paulo, 30 de outubro de 1916.
Rua Jaguaribe, 27.
246 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Mário amigo,
Pretendia ir almoçar com você em companhia de Alberto Faria que
fiquei conhecendo da última vez que estive em S. Paulo e apreciando
muito .
Não foi possível, porque estava de viagem marcada para Morro Azul,
fazenda de Francisco Sá , em companhia de Cecilia e Abril, e pretendia
fazer umas verificações miúdas sobre um artigo relativo a S. Paulo, que
me ocupa desde o princípio do ano e ainda não quer me largar.
Se V. ainda não está comprometido, recomendo a seus sufrágios
Aloísio de Castro, em quem reconheço mais de um traço de semelhança
com V.

Este ano sinto vontade de estudar e escrever : tenho em vista uns


quatro a cinco artigos sõbre S. Paulo, dos quais um quase concluído, outro
adiantado , os mais em pesquisas enfadonhas cujo resultado mal antevejo.
Se encontrasse na Biblioteca um ms. de que preciso , e Studart imprimisse
uns documentos que prometeu , pode ficar bastante esclarecido o papel dos
paulistas Matias Cardoso, João Amaro e Navarro, e escrita a história da
conquista do sertão do Rio Grande do Norte, parte do Ceará e Paraíba.
Prende-se tudo à estrada do Maranhão à Bahia , do Ceará a Pernambuco ,
assunto que para mim teve sempre atrativo especial .
Na casa de Sá muito curta será minha demora ; estarei aqui no dia
1.º de março para me encontrar com Teodoro Sampaio, que vem de S.
Paulo e parte para a Bahia .
Cumprimentos à ex.ma família.
Até um dia .
Bien à vous,

Rio , 22 de fevereiro de 1917.

Mário amigo
Acabo de receber sua carta, e respondo em poucas palavras antes de
partir para uma missa de defunto.
Por que, antes de partir de uma vez , não vem ao Rio e não
consulta a Austegésilo [ sic ] e Miguel Couto ?
Por que não segue o sistema de consagrar as férias só ao animal ?
CARTAS A MÁRIO DE ALENCAR 247

Vou escrever a João Jaguaribe, que há anos trabalha na biografia


do pai pode talvez esclarecer o ponto que V. deseja.
Meus estudos agora são para elucidar partes das Páginas, e versam
sôbre pontos muito concretos ; não há perigo de extraviar-me ; se depois
achar uns documentos que devem existir no Arquivo Ultramarino, o que
resta a fazer para a nova edição das Páginas até 1830 é relativamente
fácil .
Matilde e o noivo decidiram casar em principios de maio. Vão para
o Machado, no Sul de Minas, aonde ele iniciou a clinica e está esperan
çado. Se a sorte lhes fôr favorável, podem vir dentro de dois ou três
anos para o Rio. A província fará bem a ela, criada num mundo artificial
que tem por limites a igreja do Coração de Jesus, os números 122 e 145
na Rua D. Luísa, aonde moram umas amigas de quem não se separa.
Bien à vous,
C.
Rio, 1 de março de 1917.

Mário amigo,
Indo hoje à Biblioteca da Câmara, soube com grande prazer que
V. ainda está em Paquetá.
Muito bem !
Hei de lhe mostrar um dia a biografia de Herbert Spencer.
Teve épocas de só poder trabalhar três horas por semana ; e passou
dos 80 , e deixa quantos volumes.
Tenho estado escrevendo um artigo sôbre cousas de S. Paulo. Desde
o princípio do ano labuto com ele ; só agora vejo bem o fim .
Quando V. voltar, falaremos nisto.
E quando volta ? O mais tarde possível, é o que desejo.
Respeitos à sr.a, lembranças à petizada.
Bien à vous,
C.
Rio, 24 de março de 1917.
248 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Mário amigo,
Terminei a documentação do meu artigo ; espero escrevê - lo na Seinana
Santa. Avise para a Revista do Brasil. Dei-lhe o título geral Paulistica
porque são uns cinco ou seis, e tratam todos de S. Paulo, os que tenho em
vista . Como se trata de uma moeda, vou ver se obtenho uma fotografia
na Biblioteca para ilustrar o texto .
Desejaria também ver as provas, se fosse possível.
E usam separata ? Na Alemanha é costume geral dar umas vinte e
cinco por conta do editor ; se o autor quer mais, paga o papel.
Desejava mandar, no vapor que têrça-feira parte para os Estados
Unidos, ao velho e sincero amigo do Brasil, Dr. Branner, um artigo, que
saiu na Revista, sôbre o dialeto caipira.
O número não há mais no Briguiet. Poderia ceder-me o seu, en
quanto vem de S. Paulo o exemplar que vou encomendar ?
Agora que libertei-me da moeda de S. Vicente, passo a ocupar -me de
Estêvão Ribeiro Baião Parente, paulista que andou conquistando o sertão
baiano na penúltima década no século XVII. Pouco se sabe a seu res
peito ; o que tenho apurado não é muito, mas em todo o caso adianta a
questão. E depois virão Fernão Dias Pais, Matias Cardoso de Almeida,
Morais Navarro e, quem sabe ? o próprio Domingos Jorge Velho, que por
ora resiste a todas as pesquisas antes da Campanha dos Palmares. O
Basílio aborda - o no último número da Revista do Brasil; antes não esca
para a Studart e a Pereira da Costa .
Pelo papel verá que estou escrevendo da agência, para não demorar.
Segunda -feira irei à Câmara ver se V. trouxe a Revista para o Branner.
Bien à vous,
CAP .
Rio, 31 de março de 1917.

Mário amigo,
Recebi sua carta que me lembrou outras duas bem dolorosas : uma
quando a mãe morreu e V. estava na Tijuca, outra quando Honorina en
trou para o convento. Recebi também cartão de D. Chiquita, telegramas
de Clarisse e Harold .
CARTAS A MÁRIO DE ALENCAR 249

V. conheceu - o de pequeno e nunca variou. Defeitos tinha e muitos,


mas supria a tudo a alegria com que encarava as cousas, a decisão com
que nada deixava a meio caminho, o otimismo contra o qual os abrolhos
se convertiam em flores.
Encontrou companheira condigna, fê-la feliz e foi feliz, e não deixou
degradados para este vale de lágrimas. Consolei-me, estes dias, escre
vendo a Honorina, lembrando, como podia, os trinta e dois anos agora
encerrados. Pedi-lhe que fizesse-o também e o mesmo pedi a Adriano,
que já está fora de perigo. Se me atenderem , guardarei os três papéis,
como o mausoléu de nosso querido morto .
Já liquidei a situação. Meu cunhado virá morar com a mãe, e Cecília
voltará para a casa do pai, eu continuarei neste quarto, onde não há ca
deira em que não sentasse, livro que não procurasse, e, durante nove anos,
quase não houve dia em que não viesse.
Parto na próxima semana para Pedras Altas, aonde ficarei o mais
que puder.
Respeitos à sr.a e próximo restabelecimento de todos.
Bien à vous,
CAP .
Têrça - feira, 29 de outubro de 1918.

Mário amigo,
Recebi sua segunda carta . Muito obrigado. Dentro de uma hora
estarei a bordo, rumo de Pedras Altas. Escreverei de lá.
Adeus , Baby !
Adeus, nova geração.
Rio, 10 de novembro de 1918.
Marido de Matilde : Dr. Aprígio Nogueira.
Machado, Viação Sul-Mineira .
Telefone de Cecília : Berenguer, César, S. Clemente, 460 , av., casa 6.

Mário amigo,

1.º do ano, 1.º de janeiro. Neste mês faz V. anos e o fim desta
carta é antecipar -lhe os parabéns, na esperança que chegue a tempo .
250 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

O correio em Pedras Altas é singular. A politicagem não permite


agência; a correspondência vem , de Bagé ou Rio Grande, fora da mala.
Hoje foi dia cheio. Chegou uma carta de Adriano, de 15 de novembro
com outra de 3 de dezembro. Recebi 15 registrados, alguns de novembro.
Esta carta vai ser expedida de S. Paulo, para onde parte um filho de
Assis Brasil em busca do colégio.
Fiz bem em vir. O sentimento de esfoladura, deixado pela morte
de Abril , vai - se atenuando ; sinto -me reencourado em certas partes, nou
tras já se formou o cascão . Às vezes vem uma lancetada mais forte
e sinto -me como quem despertasse de um pesadelo para defrontar uma
realidade, ainda mais terrível .
Ocupo -me quase exclusivamente com o bacairi; está adiantada a cópia
dos antigos apontamentos quanto ao texto e, sem medo, porém com muito
pouca confiança, vou -me preparando para a tradução.
Não desejo chegar aí antes do fim de março .
Meus respeitos às senhoras.
Adeus, nova geração !
Bien à vous,
C.
P. A., 1 de janeiro de 1919.

Mário amigo,

Acaba de chegar sua carta de 8, e por ela vejo que recebeu a minha
do princípio do ano.
Alegram -me as notícias da saúde de Jorge e da sua. Lembre - se de
Spencer, que fez tudo quanto planejou, tendo semanas em que apenas
podia trabalhar algumas horas , e chegou aos oitenta e tantos.
De sua colaboração da Noite tinha lido notícia, a do Jornal do Brasil
é novidade. Fêz bem em aceitá-los : os compromissos inadiáveis são um
bem, porque, fazendo de ossos resistentes, equilibram o organismo e re
partem melhor o tempo. Não lastime o adiamento das novelas : repense
e repense nelas de modo que, quando se sentar para escrevê-las, escorra a
linfa cristalina. Nenhum de seus artigos li ; ainda não vi V. depois da
partida: mesmo o Jornal do Comércio, que assinei, vem com irregu
laridade. () correio do Rio Grande, pelo menos em Pedras Altas, aonde
não permitem agência, pode contar- se entre as maravilhas do Estado.
Parece que daqui para lá os extravios são menores que de lá para cá .
CARTAS A MÁRIO DE ALENCAR 251

Touxe os manuscritos bacairis e dêles quase exclusivamente tenho


tratado. Da gramática estou ainda senhor e penetro bem a estrutura das
frases. Faltam-me muitos significados. Para a obra ser imprimível ,
preciso de um indio do Paranatinga. Aguardo a chegada de Arrojado,
para ver o que se pode fazer.
Um dệstes dias li os prolegômenos do Frei Vicente e aborreci-me
bastante. Com a linotipia não há meio de evitar surpresas desagradáveis.
Em regra corrigem o erro marcado, mas não escrupulizam em acrescentar
outros por sua conta . Meu revisor, aliás competente, não admitia os ca
baços e per razão de Frei Vicente, mas deixou passar os resultados resul
taram . O filho é sem dúvida meu , mas não poderia ao menos chamar -me
a atenção para o aleijão ? O bacairi é um defunto insepulto desde 93 ; é
credor pelos menos de uma das obras de misericórdia ; enquanto não o
depuser no campo-santo, minha liberdade está alienada.
Em nova edição dos Capítulos tenho pensado. Creio que entre cópias
recebidas no Rio, que recomendei lá guardassem , vêm dois documentos
que adiantam casos do governo de D. Manuel ; nas guerras cariris, ponto
de especial importância, porque explicam a ligação entre S. Paulo e Ma
ranhão, percebo alguns clarões ... mas vejo em tudo tamanhos rombos
que desespero de apanhar peixe com tão esfarrapada tarrafa.
Reunir artigos causou-me sempre repugnância. Mesmo se a não sen
tisse, teria de abrir mão da empresa, porque não coleciono tais aparas.
Últimamente pensei na possibilidade da cousa, fiado em que Paz devia
possuir a maior parte e mos cederia com gôsto. E Paz morreu .
Recebi há dias carta dos testamenteiros, comunicando que em carta
de consciência me pedira auxiliar a venda de suas coleções e deixava-me os
vinte volumes que quisesse escolher. Se encontrar meus artigos e os tes
tamenteiros o permitirem, ficarei com eles ; verei se podem servir requen
tados. Creio que não.
Por lembrança minha , com o título Eduardo Prado, o Paulo custeará
uma publicação de obras sõbre o Brasil, com a condição de eu a dirigir.
Talvez a esta hora estivesse pronta a introdução de Cl . de Abbeville, se
não fosse obrigado a vir refugiar-me aqui . Sei que no Rio começaram a
chegar cópias, pagas por ele, de processos da Inquisição, abertos no Brasil
na última década do século XVI ; a éles refere -se vagamente Fr. Vicente ;
a maior parte dos processos guarda -se na Tôrre do Tombo.
Aqui chegam com regularidade só um jornal de Bagé e outro de Pe
lotas. As secções telegráficas de ambos podem ler -se em cinco minutos.
252 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Por aí pode ver como ando bem informado quanto ao que se passa no
mundo.
Sei apenas que a gente do Rui se empenha agora em desmoralizar e
despedir Domício. Rui é Moloque. Seja - o a seu gosto ; gênio nunca será :
a mim só lembra uma cobaia prolífera e multipara.
De Augusto ainda não tive notícia. Espero chegar a tempo de
abraçá-lo.
Pretendo partir daqui a 29 e tomar vapor no Rio Grande, dia de
mentiras .
Respeitos à senhora.
Adeus, nova geração !
Bien à vous,
Cap.
Pedras Altas, equinócio de 1919.

Mário amigo,
Um acesso de reumatismo, sobrevindo 2.a feira, não me priva de
ler e até escrever deitado, mas prende-me à rêde.
Envio agora a nota à viúva Bertino.
Se fôr possível desde hoje, mande todos os convites da Academia ao
Dr. Eugen Vann, City Bank.
É um intelectual, professor da Stanford University, que me foi reco
mendado pelo Branner.
Bien à vous,
C.
Rio, 13 de novembro de 1919.

Mário amigo,
Cheguei a 18, comecei as águas a 19, pretendo partir a 11 de abril
para visitar Matilde no Machado , depois demandar a combra protetora do
Gigante de Pedra, a 15 ou 16.
Bebo da Fonte Viotti , a mais fraca, e por isso mesmo a mais eficaz.
Para saber do efeito produzido, precisaria saber o que tenho. Vim lavar
o fígado para atacar o reumatismo em suas bases. Sinto que o reuma
MÁRIO DE ALENCAR
1
1

1
CARTAS A MÁRIO DE ALENCAR 253

tismo não me deixou , porque não estão muito correntes as articulações.


Acha Natal, que veio comigo, que devo voltar em setembro. Qui a bu,
boira .
A flora de Caxambu tem como espécies características a roleta, a
dança e as subscrições. No dia de minha chegada, atirei 5$ nas fauces do
monstro, perdi-os e julgo tê -lo propiciado com este sacrifício, porque não
reincidi. De subscrições ainda estou imune, contra elas estou armado de
perdoes e deus-o -favoreça, que talvez mintam fogo na ocasião. De danças
fiquei conhecendo de vista o maxixe, o tango argentino e não sei que
mais. Prefiro o baião, o batuque, a embigada.
Pretendia escrever o capítulo de Minas para o Atlas Histórico, plane
jado pelo Briguiet. Fiado nos recursos locais, trouxe apenas três livros.
Nada descobri até hoje que os suprisse. Comecei assim mesmo e já tenho
escrito umas seis páginas. Pedi para Belo Horizonte dois números da
Rev. do Arq. Mineiro. Se vierem, poderei avançar ; as prateleiras pelo
menos irão armadas e no Rio poderei guarnecê- las.
Calógeras está anunciado para qualquer dia ; se chegar antes de minha
partida, poderemos discutir o caso, lucrando eu muito com isto.
Junto uma carta para o Azeredo, cujo endereço esqueci.
Espero que V. já o terá pôsto em contato com o Cícero e que dai
nasçam bons frutos para nossa história.
Leu no Jornal do Brasil o artigo de Said Ali sôbre proposital e
propositado ? A Gramática Histórica vai desta vez e ele espera tê-la
terminada no fim do ano . A sua documentação poderia ser mais completa,
mas vamos ter cousa muito valiosa, que será para a gramática o que durante
muito tempo foi o Dic. de Morais.
Sabe alguma cousa sôbre o professor Sintra, que prepara um dicionário
brasileiro ? segundo li num artigo de Monteiro Lobato. A idéia é
muito simpática : poderá ombreá-la ?
Aqui, levo uma vida de ermitão. Fora jantei só uma vez com o
Teodoro Gomes ; visitas fiz duas, uma a Viotti, para agradecer o exemplar
de seu folheto, e ontem a Cernechiaro, amigo de melhores tempos.
Bien à vous,
C.
Caxambu , 30 de março de 1920.
254 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Mário amigo,

Véspera de S. João, com dois bacairis arranjados pelo Rondon , vim


ter a esta fazenda do Moura Brasil , donde escrevo. A cidade representa
um elemento estranho à psique selvagem , muito melhor lhe convém qual
quer pedacinho de mato . A fazenda de Paz Barros é banhada de três rios,
o Piabanha, o Paraibuna, que aqui fenecem , e o Paraíba, que procura o
mar em São João. Não se poderia imaginar melhor escolha. O resultado
não tem correspondido. A gripe caiu com violência . Eu próprio fui
vítima de uma intoxicação gástrica, que me levou à perda de sentidos e
delírio, um dia, horas apenas, mas ando ainda derreado e sentido da
capadura.
Hoje recomecei o trabalho fracamente; não posso prever o resultado ;
duvido que, com a aventura, minha ciência prospere tanto como se deterio
rarão minhas finanças.
Devo cair no Rio com a Bastilha e lá permanecer.
Peço -lhe o obsequio de pedir a Augusto me arranje o n.º da Am .
Hist. Review de 1 de out . de 1916 ( vol . 32 ) com um artigo de H. van der
Linden sôbre Alexandre VI e a demarcação dos limites marítimos e colo
niais de Espanha e Portugal.
Não sei por que há tanta dificuldade em arranjar números de revistas.
Três de English Hist. Rev. , três do Geog. Mag. de Edinburgh, pedidos não
sei quantas vezes aos livreiros, Mich. Calógeras me arranjou com a maior
facilidade, apenas recebeu a minha carta com o pedido .
Mesmo daqui ou apenas chegue ao Rio , escreverei longamente sobre
a questão presidencial ao nosso Augusto. Como V. naturalmente já tem
feito o mesmo, ele verá qual dos dois mais se acerca da verdade.
Respeitos às sr.as
Adeus, nova geração !
Bien à 1'0118,
C.

F. das 3 = Estação Moura Brasil , L. R.,


2.a feira , 4 de junho de 1921 .
CARTAS A MÁRIO DE ALENCAR 255

Mário amigo,
Aí vai a cópia da carta do Nunes. Peço-lhe entregue ao Tuxunimo
Nyrop e o Pidel para mandar ao Said . Há hoje 47 anos que vi seu pai
pela primeira vez em Maranguape !
C.
Dia em que todos os diabos andam soltos, 1921.

Mário amigo,
Parti do Rio a 23, no dia seguinte cheguei a Santos: Quinta- feira
subi a serra, fiquei com Martim Francisco em São Bernardo. Anteontem
fui almoçar em S. Paulo.
Hoje é aniversário da senhora do Martim : dentro em pouco devem
chegar hóspedes.
Amanhã descerei de automóvel com Paulo Prado. Com Jaguaribe,
que faz anos a 2 de novembro, ficarei até a outra terça-feira ; conto estar
aí a 9.
Diga a Adriano que reclame do Mota uns cadernos em branco, como
o que entreguei a Pirilo para este fazer as cópias : é conveniência que
todas as cópias sejam do mesmo formato, para mais fàcilmente se car
tonarem .

Muito obrigado por ter-se lembrado de mim a 23 .


Bien à vous,
C.
S. Bernardo, 30 de outubro de 1921 .

Mário amigo,

É amanhã seu aniversário . Deixo -lhe aqui antecipadamente o abraço


amigo.
Vou para São Vicente, para casa do Jaguaribe, tomar banhos de
mar . Ficarei todo o mês de fevereiro. Em março partirei para a Pauli
céia. Se Calogeras för às manobras, como pretende, seguirei na comitiva.
Se não, estarei em abril de volta .
Levo os papéis do bacairi. Já poderiam estar impressos, mas a tipo
grafia da B. Nac. é encantada e ainda não comecei. V. parece que se dá
256 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

com Arn. Azev. presidente da Câmara : por que não lembra o Pedro II
de preferência para sede da barulheira ?
A casa de Jaguaribe é praia de São Vicente, 82.
Respeitos à senhora e prole.
Bien à vous,
C.
Rio . 29 de janeiro .

[ Com a nota de recebida 13/2/922 ) .

Mário amigo,
Recebi o número da Revista da Academia e li com avidez seu pare
cer. Suas opiniões estão muito bem fundamentadas. Algumas das res
postas ao Duque são particularmente felizes. Devo dizer que este não
estava tão ruim como eu pensava.
Estive com Alcino e prometi visitá-lo antes de retirar -me. Pretendo
voltar para o Rio no princípio do mês. Se Calógeras fôr mesmo para o
Rio Grande, aí me juntarei à comitiva .
V. encarregue Jorge de procurar nas Memórias da Academia de Ciên
cias de Lisboa um artigo de Fr. Francisco, digo, do Marquês de Resende
sôbre Frei Francisco de S. Luís : está nos últimos dez volumes. Nêle
encontra-se uma carta de Carneiro de Campos, escrita do Rio de Janeiro,
em fins de 1821 : eu gostaria que ele a copiasse e remetesse a Roberto
Haddock Lobo no Auto Club São Paulo . Conviria mandá - la
registrada .
Até breve.
Bien à vous,
C.
Praia de S. Vicente, 82 – Santos.
17 de fevereiro de 1922 .
CARTAS A MÁRIO DE ALENCAR 257

Mário amigo,
Aí vai este livro , seleta, gramática, dicionário – tudo alemão .
Tolle et lege.
C.
2.a f.a, 22 de maio de 1922.
101

Mário amigo ,
Por Adriano deixei- lhe dois recados que repito :
1.° : dizer a Augusto Pinto que do índice do Marquês de Pombal
mande compor apenas o título de cada capítulo : assim determinou o autor.
2.° : Moacir, que quase diàriamente vai ao Jornal do Comércio , peça
as provas paginadas do meu artigo, e entregue no Briguiet ao Ladário,
para, registadas, remetê-las para a praia de S. Vicente, 82, casa do Ja
guaribe.
Por meu jeito ficarei aqui até o equinócio.
Diga a Pirilo que, quando fôr tempo, vá ao Colombo receber o
dinheiro .
Saudades.
Bien à vous,
C.
S. Vicente, 14 de agosto de 1922.
101

Mário amigo,
Escrevi-lhe semana passada pedindo :
1.° : dissesse a Pinto que, por indicação do autor, mandasse compor
apenas o título dos capítulos para o índice do Marquês de Pombal de Lúcio
de Azevedo ;
2.0 : dissesse a Primitivo Moacir reclamasse umas provas minhas no
jornal e as entregasse a Briguiet para mas remeter ;
3.0 : comunicasse a Pirilo que na Casa Colombo existe dinheiro para
o pagamento do mês corrente.
Desejo muito que a carta chegasse a seu destino.

20 - 1.º
258 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Fui há dias à frente da praia, visitar Alcino : encontrei a filha, que


agora confessa quinze anos, a viúva Marques de Sá e a matriarca em que
os 84 apenas perpassaram ; êle e a senhora não estavam .
Aqui estou com Jaguaribe, praia de São Vicente ; aqui pretendo ficar
até o equinócio, quando o Rio voltar de Cafarnaum à cidade que conhe
cemos e queremos .
Amanhã teremos notícia do discurso do Constâncio.
Lembranças a ele e aos amigos.
Bien à vous,
C.
Praia de S. Vicente, 82.
Agosto, 1922.

Mário amigo ,

Obrigado pelo telegrama.


Touxe uns livros para ler, e parece levá-los-ei lidos. Alcançarei assim
um dos intuitos da minha estação : cansar um pouco , pois desde o começo
do ano não tenho feito senão vadiar .
Tomo águas de D. Pedro, Viotti , Mayrink.
Tomo duchas escocesas .
Se V. e Baby as freqüentassem, estavam outros .
Como vai o alemão ?
Ergebenst,
C.
Caxambu, 27 de outubro de 1922.
101

Mário amigo,

Encontrei ontem um velho amigo, de sociedade irrefragável, mineiro .


No seu entender, Epitácio só teve um ministro – Calógeras. Entre
tanto, na roda de Bernardes passa ; or traidor insinuei. Sei disto ;
explicaram -me que provém isto de Jackson de Figueiredo ter levado a
Belo Horizonte autógrafos de Calógeras, atacando Bernardes no O Jornal.
CARTAS A MÁRIO DE ALENCAR 259

Conheço Calogeras de largos anos, quando era estudante ; desde que


seria deputado sob o Prudente, nossas relações têm sido constantes, apenas
espaçadas quando está no ministério ; duvido, portanto, que tais autógrafos
possam existir ; duvido, portanto, que Jackson pudesse apresentar o que
não existe.
Mas, diz Spencer, e verifiquei que Shakespeare dissera quase o mesmo :
there is a soul of truth in things erroneus.
Vou ver se apuro esta almeida .
Bien à vous,
C.
Rio, 18 de novembro de 1922.
CI

Mário amigo,

O Tuxunim entregará a reimpressão de Cl. de Abbeville, de que já


falei .
Leia-o a seu gôsto e ofereça depois à Academia, em nome do Paulo
Prado .

Saudades,
AB
3 de maio de 1924 .

Mário amigo,
Acabo de ler a notícia da morte inesperada de Alberto de Faria, em
Paquetá.
Dou-lhe sentidos pêsames pelo triste sucesso , e peço -lhe transmita -os a
Leo e senhora.
Escrevo - lhe de Prata, estação de águas na linha Mogiana, perto de
Caldas. Vim a convite de Jaguaribe a esta Vichy paulista. Devemos vol
tar depois de 20. Tenho um critério seguro para saber se a cura me fará
bem ou não. Há dias pesei 75.700 gr.; se levar alguns quilos a menos, é
sinal de que não perdi o tempo.
Pretendo passar em S. Vicente o mês de outubro, e estar aí em
começo de novembro.
260 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Adeus, Baby ! Abraço e beijo as mãos da prezada amiga.


Adeus, nova geração !
Ergebenst,
JoÃO NINGUÉM
Prata, 9 de setembro de 1925.

Pretendo tomar depois de amanhã o vapor da Costeira, estar aí na


sexta - feira.
Talvez me seja necessário para certo trabalho que planejo consultar :
Poder Moderador ;
Cartas de Erasmo ;
Guerra dos Mascates.

Gostaria muito que V. os tivesse à mão .


Ergebenst,
C.
São Vicente, 3 de novembro de 1925.

[ Fôlha sôlta ]
Já seguiu para o Jornal o 2.º e último artigo do prólogo dos Diálogos
das Grandezas do Brasil. Logo que sair, mande-me um Jornal com ele,
para eu corrigi-lo. O primeiro artigo leve à Imprensa Nacional, para ser
composto no mesmo tipo da introdução a Frei Vicente.
Lembrei -me que V. conhece o reitor de Friburgo – Fr. Domenico
De Meis. Em carta registrada mande o recibo, avisando - o que o faz
porque eu estou ausente do Rio, a meu pedido que os livros foram
entregues aí, etc.
Que pena Portela não mandá -los pelo comissário ! Não compreendeu
que eu , salvando 200 $, tinha verdadeiro prazer em gastar 3 $ com o co
missário !
Mande-me um exemplar do artigo sobre Eduardo Prado. Quero
corrigi-lo para mandar para S. Paulo .
A DOMÍCIO DA GAMA 1900-1919

1
3.a feira – 4 de dezembro ( 1900]

Fiquei espantado, hoje, vendo no Diário Oficial a discussão do


Senado .

O que eu tinha lembrado ao Bulhões, o que ele foi combinar com


o Feliciano Pena, foi conceder-se cinqüenta mil libras à missão, das quais
40 mil ao Barão, 10 mil a V., e ao Raul, ao outro auxiliar adido. Se fôsse
possível V. e Raul seriam pelo mesmo decreto confirmados em seus
cargos. Disso não vi vestígio no Senado.
Agora, porém , esteve aqui o Elpídio de Mesquita, e me disse que
ontem era a idéia advogada pelo Feliciano Pena não sei se só quanto
às libras a respectiva distribuição, se também quanto ao mais, aceito com
entusiasmo pelos pais da pátria.
Parece-me, pois, que a pensão foi votada ontem por artifício regimen
tal, para adiantar a votação do todo. Hoje será apresentada emenda,
provavelmente votada em 2.a discussão, amanhã em 3.a - e logo irá para
a Câmara. Antes desta carta, V. já terá sabido pelo telégrafo o
que haverá.
Se as cousas passarem como desejamos, V. venha, venha convalescer.
É provável que o Barão venha trazer a estátua do pai. Venha com ele ou
venha antes. No Pará está reinando grande estusiasmo; vou lembrar a

1. Esta carta foi encontrada entre a correspondência ao Barão do Rio Branco.


O texto leva a crer que é dirigida a Domício da Gama.
1

262 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Goeldi, se não tiver partido hoje conio planejava, a concessão de uma


terra na zona contestada.
Junto o artigo do Rui .
O Manecão deve estar furioso. Pobre Manecão !
Adeus .
Sempre seu ,
CAP .

Domício amigo ,
V. chega , eu parto . Recordo -me com veemência de nosso idílio de
1900, com o nosso convívio quase diário, e as duas velhinhas, desigual
mente caras , mas tão boas, tão santas ambas.
V. encontra a situação muito melhor que um mês antes; não temos
de mandar soldados, felizmente.
Em diplomacia somos associados, não somos aliados ; temos de formar
ao lado dos Estados Unidos, entregar nosso voto a Wilson.
Não creio na amizade dos Estados Unidos, filho espúrio de Salvador
de Mendonça, criado e chocado pelo Barão, pelo Nabuco , por V. , talvez
por Assis Brasil, que já tem a visão menos turva.
O que vocês querem é colocar o Brasil relativamente aos Estados
Unidos na relação de Portugal para com a Inglaterra .
Imagino e desejo anibições menos modestas.
O manual do Itamarati deve ser a Ilusão Americana. Tem um ?
Deve ter, mas é o livro de um homem .
Ficarei em Pedras Altas até Páscoa ou S. João, conforme circunstân
cias que só em parte dependem de mim .
Até a volta .
Cap .
Santos, 11 de novembro de 1916.

Domício da Gama amigo,


Tenho a satisfação de apresentar -lhe meu amigo Dr. Oscar Clark.
Médico distinto, vai aos Estados Unidos em comissão da Prefeitura
e também a continuar estudos de sua especialidade. Já aí estêve de pas
sagem , e dois anos na Europa. Em carta que vai pelo correio sou mais
explícito.
CARTAS A DOMÍCIO DA GAMA 263

Que lhe direi de nossos amigos ? Um a um vão desaparecendo, e


quando me lembro de nossas sessões da Rua Nova do Ouvidor, e de sua
aparição fulminante nas festas do centenário, hesito se é melhor morrer ou
ver morrer, que é afinal em que se resume a vida.
Ainda nos veremos ? Só se a montanha vier a Maomé.
Pelo Oscar, na volta, espero ter notícias suas bem minuciosas.
Bien à vous,
Cap.
Rio, 3 de setembro de 1917.

Domício amigo,

Espero brevemente notícias suas pelo Oscar Clark, que não pode
tardar.
Também você as terá minhas pelo Paulo Prado, se fôr, como pre
tende, para a Europa, via Estados Unidos, para conversar com V. Um
jornal de ontem dá cousa certa sua entrada no próximo gabinete. Se
fôr para bem de todos e felicidade geral da nação, não hesite. Do meu
ponto de vista, sua presença me dará prazer e felicidade.
Nilo já preparou a saída. Modesto foi escolhido senador e reconhe
cido depois de uma campanha terrível da imprensa, em que a nossa velha
Gazeta não escolheu anos, para guardar -lhe a cadeira curul.
Nosso Bulhões rodou . Escrevi -lhe e não me respondeu : ele não
esperava esta sorte. Parece que foram executores S. Paulo e Minas.
Azevedo vingou - se nele do voto do Natal no Supremo Tribunal. Não
sei que vai fazer, se será nomeado ou aceitará o lugar no Tribunal de
Contas. Antes da depuração, organizava -se uma companhia de que seria
presidente. Ignoro se mudaram de opinião, desde que não é senador.
Caso semelhante aguardava Calógeras, porém foi mais feliz, e volta
à Câmara, embora não por seu antigo distrito. Anda muito ocupado
com a história do reconhecimento de Independência e passa os dias em
Itamarati. Talvez V. possa trazer-lhe alguns subsídios dai.
Vou agora pedir-lhe um livro, muito contra minha vontade, só porque,
apesar de encomendado, não pude obtê- lo.
A Princeton University está publicando uma edição fac -similar das
cartas de Am . Vespucci. Vi-os no Instituto. Briguiet, apesar do bom
correspondente que possui aí, não me arranjou. Ignoro por quê. A edição
deve ser grande.
264 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Se Paulo fôr, levará a nova edição do Fr. Vicente do Salvador, que


estou concluindo : em vez de notas, fiz prolegômenos, e assim não há
risco de confundir o azeite com o vinagre.
E até breve ?
Bien à vous,
C.
Rio, 3 de junho de 1918.
D. Luisa, 145 ( Glória ) .

Domício amigo,
Escrevi-lhe há alguns dias, transmitindo pedidos. Ontem chegou sua
carta de 12, vinda de Bagé. Antes dera-me noticias vagas o Arrojado.
Minha carta de Santos parece não foi bem compreendida. Continha
uma tese ; acredito tanto na amizade dos Estados Unidos pelo Brasil como
na da Inglaterra por Portugal. Faltam às duas nações latinas certas qua
lidades que se impõem ao respeito e à estima dos anglo - saxões. Têm
ambas um fundo de fraqueza, que as faz antes patrocinadas, que aliadas.
Agora a hipótese : no momento atual nossa atitude só pode ser formar
ao lado de Wilson. Parece que não será difícil . Das eleições, apesar de
enfraquecido, apesar de seu manifesto desastrado, não provirão dissabores,
desde que a paz för ditada, como queriam os botafogos de lá, julgando
pedir a lua, e parece vai ser. Seu decálogo 4/10, aliás antes russo que
wilsoniano, foi perfilhado pelo Poincaré, será farisaicamente aceito ; na
realidade ninguém o quer. Em tudo nosso papel deve ser o de carneiro de
batalhão. Isto será fácil, porque não temos para nos representar o pri
meiro dos brasileiros, tolhido na sua veleidade de mostrar, num sumário
como ainda não houve outro igual, que é o maior dos contemporâneos,
se não o maior dos filhos de Eva . O homem atingiu ao niilismo absoluto :
ninguém o tolera a seu lado.
Desagradou -me conseguirmos três delegados, mais uma prova do pa
trocínio dos Estados Unidos. Só os ingênuos ignoram que a grandeza
dos planētas não lhes comunica luz própria.
Achei graça na rabadilha conduzida pelo Epitácio. Temos o sebas
tianismo do encilhamento embaixada de ouro , missão médica, exames
por decreto, etc. Conheço pouco Epitácio : parece-me um pouco obstrusivo :
escrevi a Calógeras que em caso de dissidência corresse ao telégrafo.
CARTAS A DOMÍCIO DA GAMA 265

Nas aperturas da partida, Calógeras achou tempo para escrever -me


uma carta, tôda cheia das melhores intenções. Gostei muito que fosse
nomeado ; ninguém pode competir com ele no conhecimento do Brasil: seu
defeito é ser demasiado livresco : coup de couteau = golpe de faca. Veja
se o demora pelo Velho Mundo o mais possível. Sua situação política
melhorou muito em Minas com o atual presidente e não precisará de
voltar este ano . Depois de firmada a paz, encarregue - o de percorrer os
arquivos europeus, em busca de documentos para a história da Independên
cia e do reconhecimento . Já trabalhou muito sobre isto no Itamarati.
E lá se foi o Jansen, um grande trabalhador.
Não será possível reconduzir o Mário de Vasconcelos para o Arquivo ?
No tempo de Lauro tive permissão para consultá - lo e vi como o Mário
o conhecia. V. pode fazer para o Arquivo o que o Barão começou com
tanto gôsto e deixou a meio caminho .
Tenho pena de Graça Aranha. L'amitié d'un grand homme... não
se aplica. Se não fosse o contato do Nabuco , teria continuado a vida
difícil de advogado e teria dado melhores frutos. Várias vezes o vi
depois de viajado e creio que aposentado. Sempre amável, inteligente e
bom ; mas lembra -se da impressão de Mac Leclerc, comparando Ferreira
de Araújo no Rio e em Paris ?
Cheguei a Pedras a 15 de novembro, em busca de uma perna de pau
que substituísse a que fôra amputada. Aqui encontrei combinados a ami
zade e o isolamento de que precisava.
Trouxe uns textos bacairis, colhidos há bom par de anos e deixados
de parte desde o governo do Prudente. Nêles trabalho com regularidade
e, como tenho à mão tudo quanto preciso, e as condições são mais favorá
veis do que no Rio, não pretendo estar de volta antes do começo de abril.
Recebi duas cartas de Bulhões. Não sei se Delfim considerará válido
o compromisso de Wenceslau. Felizmente nosso amigo não espera o
Pritaneu a que Sócrates se condenou e vai lidando. O sangue de Anhan
güera dá destes rebentos.
Não espero resposta sua, nem é necessário. Reservo -me para o Rio.
Bien à vous,
C.

P. A., 23 de janeiro de 1919.


Assis vai bem, sempre trabalhando, não desinteressado da política,
mas trabalhando como se ela não existisse.
Que senhora heróica descobriu .
266 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Domício amigo,

Cheguei ontem de uma excursão pela campanha, que me levou a Ale


grete e Uruguaiana, e durou quinze dias. Quase todo o tempo estive
com parentes de Assis Brasil, já visitados na outra viagem , todos fortes,
bons e prósperos. Em S. Gonçalo, berço da família, revi os dois angicos
que para mim resumem a beleza florestal do Rio Grande. Lá reside o
irmão Paulo que, depois de fazer os preparatórios, não quis prosseguir
nos estudos. Com os preços vigentes do gado este ano deve apurar
200 contos . Solteirão refratário, contenta-se em ter vinte e dois filhos
vivos, segundo afirmam : só conheço um .
Uruguaiana foi para mim verdadeiro lôgro. Pretendia estender -me
até Itaqui e São Borja ; as moscas do hotel me enxotaram . Quis ao me
nos ver o Uruguai e ter uma idéia da cidade : um automóvel levou -me a
custo à margem do Uruguai, passeou -me duas e três vezes pelas ruas
pouco numerosas, não me mostrou a estátua do Barão, que dizem inte
ressante, e cobrou -me 40 $, porque era domingo de carnaval .
Na ida , em Bagé, um sobrinho de Assis Brasil deu -me notícia da
escolha de Epitácio. Gostei . Devo -lhe uma disponibilidade, que há vinte
anos me dispensa de alunos ignorantes e desatentos. Das poucas vezes
que temos estado juntos, tem -me tratado do melhor modo. A eleição
dêle, significando sua continuação no Itamarati, livrou -me da possibili
dade do desencontro que eu tanto temia.
Pode alegar-se contra ele o primeiro casamento , que parece ter sido
de quem estava cansado de ser pobre. Que se passou realmente, nunca
pude apurar. Em um apedido, que talvez agora desenterrem , comparou - o
Andrade Figueira a Verres, que entrou pobre na Sicilia rica e saiu rico,
deixando a Sicilia pobre.
Senti que Bulhões não tivesse votado nêle, porque foi um dos sete
que acompanharam o entêrro no Senado. Rui ficou em casa e nunca o
anistiara : para a eleição malograda de Goiás no ministério Dantas, para
o combate à política financeira do governo provisório, não há indulto
possível
Um lado bom terá o voto de Bulhões : não entrará no ministério. Já
é tempo de ele deixar -se da vida aleatória de político pobre e honesto :
trate do futuro dos filhos.
Um momento julguei irreprimivel a corrente favorável ao Rui . In
dignei -me contra os voos do capão milhado tantos anos no galinheiro
do Pente Fino ; por fim já estava resignado ... Com tanto maior reco
CARTAS A DOMÍCIO DA GAMA 267

lhimento repeti, quando conheci o desenlace, o velho rifão : do prato à


bôca se perde a sopa.
Agora sinto verdadeiramente que não tivesse ido para Paris. Queria
vê-lo espernear , quando reconhecesse que só podia comer na segunda
mesa .
Talvez se desdobrasse em discursos e conferências pela Sorbonne
e alhures, para mostrar que em sua presença tem de obumbrar-se qual
quer astro .

Ignoro as instruções levadas por nossos representantes . Reclamar o


dinheiro do café com juros de mora é evidentemente justo. Pretender aos
vapores acolhidos em nossos portos, que declaramos não confiscar, lembra
a esperteza de vendeiro da esquina. Preferiria que nos comprometêsse
mos a indenizar as propriedades alemãs que destruímos . Mas a Ingla
terra consentiria nisto ? Conhecendo a força de nossa Armada e de nosso
Exército Calógeras bradou que poderíamos mandar para a guerra
150.000 homens, ah ! coup de couteau, golpe de faca ! — os inglêses dese
javam apenas que os livrássemos de concorrentes e repuséssemos o Brasil
na situação de 1808, quando nos felicitava D. João.
Desgostou -me a ida do Bruno a Montevidéu, só para fazer jus
à ajuda de custo de 10 ou 20 contos. É sempre a mesma gente. Um
avó publicou, nos fins da colônia ou começos do império, interessantes me
mórias ecônomo-políticas 1 sôbre o Rio Grande do Sul. Cerca de 82,
um de seus descendentes falou em reimprimi- las e estacou entre a despe
sa de 4 ou 5 contos . E era rico ...

No rio S. Francisco contava - se que os boiadeiros de Goiás exigiam


40 $ de cada rês que levavam à cidade de Barreira. Depois disto obtido,
pagavam sem regatear as mercadorias pelos preços pedidos. Não é o
caso do Wilson com a Liga das Nações ? E todo o trabalho pode ficar
perdido, porque provavelmente o Senado não o aprovará e o povo dar
lhe-á razão. Talvez Hugues não caisse do cavalo magro.
Não sei de que verba dispõe a biblioteca do Itamarati.
Lembro a conveniência da aquisição das :
Révue Historique - Paris ;

1. Trata -se da obra de Antônio José Rodrigues Chaves, cuja primeira edição
é de 1822 ( Rio de Janeiro ) e a 2.a, reproduzida na Rev. do Inst. Hist. e Geog. do
R. G. do Sul de 1922.
268 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

English Historical Review ;


American Historical Review .
Coleções completas e encadernadas : nenhuma biblioteca pública do Rio
possui estes instrumentos de trabalho.
Também conviria obter :
Leslie Stefens & S. Lea ,
Diction. of National Biography.
Será esta minha última carta. O mais tardar, tomarei no Rio Grande
o vapor de 3.a, 1 de abril .
Junto uma nota para que peço sua benevolência .
Bien à vous,
C.
Pedras Altas.

Domício amigo,
A ocasião é calva. Nunca me senti melhor do que agora , lembrando
me que depois do jantar poderia acompanhá -lo aſo] Itamarati, em vez
de voltar de automóvel com Augusto.
Acho que o procedimento do Epitácio com V. não foi de gentleman ;
êle há de reconhecê-lo, de excogitar qualquer motivo que a ele não deixe
mal, e há de encontrá-lo ; será o coice depois da queda.
Se V. estivesse só, a solução seria simples : poderia, por exemplo,
tomar o Idaho e ir gozar uma licença em S. Francisco ou Honolulu.
Mas há a tragédia doméstica ; e lembre -se do conselho incomparável de
Azeredo a Floriano : é preciso dar uma solução imprevista à questão.
Parece -me que V. deve ir hoje à Academia e assentar hoje mesmo
no que pretende fazer, de modo a começar agosto desanuviado.
Lembra -se do caso do Tesouro ? Passou -se em 1900, creio . V.
procurou um dos figurões, que pôs-se em movimento, apenas V. começou.
V. acompanhou - o alguns passos e depois, estacando, disse : assim, até
onde vamos ?
Pretendo jantar hoje com Bulhões.
Ando de laringite ; hoje vou procurar médico : não sei que regime
me imporá.
CARTAS A DOMÍCIO DA GAMA 269

Minha filha casada passou aqui duas semanas ; não a via desde o
casamento maio de 1917 ; não tem ainda degredados para este vale
de lágrimas, e progrediu moralmente durante o biênio . A partida, do
mingo passado, assanhou -me as saudades e fiquei e continuo aborrecido
de tudo e de todos.
Bien à vous,
CAP.
Rio, dia de S. Inácio de Loiola.
A PAULO BRANDÃO 1904-1912

Amigo Paulo,
Recebi sua carta e os 50 $.
Quanta maçada ! Fico-lhe muito obrigado por esta vez , e não me
despeço de ocupá -lo ainda outras.
O mais interessante é que estava impaciente por ir ao Rio e não
pude ir. Antes do dinheiro chegou o reumatismo, fraco é verdade, mas
quem sabe se ficaria no começo ?
Há aqui uma planta chamada cinco - fôlhas, com a qual dizem que
reumatismo não pode. Atirei -me a ela com entusiasmo, e na dúvida
juntei-lhe um pouco de iodureto . Creio que o mal está atalhado. Pre
tendo dormir segunda- feira em Petrópolis. Terça- feira irei ao escritório.
Meu abraço ao querido Brandão.
E V. continue a querer bem ao
amigo velho
C. DE ABREU
Paraíso . 20 de novembro de 1904.

Meu caro Paulo,


Pelo dia de hoje recebe um apertado abraço do velho garrano e
amigo
C. DE ABREU
Rio, 26 de janeiro de 1907.
CARTAS A PAULO BRANDÃO 271

Amigo Paulo ,
Recebi uma carta de Abril, dizendo que, por estar doente, não poderá
êste mês ir ao Tesouro .
Por isto junto uma procuração para V. este mês e ainda o seguinte
poder receber meus vencimentos.
Do dinheiro peço que entregue 36$ ao caixa da casa Laemmert,
que lhe entregará um recibo da Germânia ; 50 $ mande -me pelo correio
em notas de 10 $ ; o resto mande entregar a Abril. Creio que se paga
amanhã , sexta - feira .
Desculpe estas maçadas com um abraço do
amigo velho
Cap.
Paraíso, 4 de novembro .
No endereço basta por : Porto Novo do Cunha.

Amigo Paulo,
Vou agora a Pôrto Novo, ver se V. mandou sábado o dinheiro
que lhe pedi .
Se não tiver mandado, é um grande transtorno, porque preciso de ir
ao Rio esta semana , e a soma de que disponho não chega para a
passagem .
Recebi uma carta de Abril, anteontem , dizendo que já está bom, e
que a avó e o senhorio estão -se queixando de demora. Por que ele não
deixou a doença para depois do dia 5 ?
Escrevi-lhe que procurasse V. , porque, se a firma ainda não esti
vesse reconhecida, V. entregaria a procuração e ele poderia receber
com a dêle, que ainda não foi revogada.
Veja V. como a doença de Abril e do Evaristo perturbou a vida
de um cidadão ! sem falar nas maçadas em que V. está metido.
Veja se Cunha fez o meu trabalho ! Levo agora o resto . Já estou
farto de língua de índio . Desde junho não faço outra cousa : é tempo de
terminar
Um abraço ao querido Brandão , e outro a V.
do amigo velho,
C.
Paraíso , 15 de novembro de 1909.
272 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Amigo Paulo,
Recebi com muito prazer a notícia da terminação de seu curso . Muito
me satisfez a nota brilhante com que o concluiu .
Não será possível adiar o grau para 4 de janeiro ? Só a 3 posso
sair daqui.
Sôbre seu negócio falei ao amigo Brandão da penúltima ou ante
penúltima vez que estive no Rio. Quando Fr. João morreu , escrevi-lhe,
fazendo considerações filosóficas, e tratei de seu caso com muita nitidez,
talvez excessiva . Que ele recebeu a carta, sei ; “ estou com V. até aqui”,
disse -me; mas não tivemos ocasião de abordar o assunto. Já isto mostra
que minha intervenção tem sido ineficaz até agora .
Não me descuidarei, mas quer um conselho ? D. Mariquinha é mãe ;
recorra a ela .

E com as felicitações de novo ano, com o desejo de todas as felici


dades aí vai o abraço
do amigo velho,
C.
Paraíso, 28 de dezembro de 1909.

Meu caro Paulo,

Não sei bem se foi ontem, é hoje ou será amanhã o seu aniversário.
Seja como fôr, aí vai, com o abraço do amigo, o desejo de que todas
as felicidades lhe domem a existência. Tanto mais preciosa lhe deve ser
agora, quanto a partilha a companheira querida, aquela dentre as mulhe
res que V. achou cheia de graça.
Apresente-lhe meus respeitos, que depois irei levar pessoalmente
logo que fôr possível.
E mais um abraço do amigo velho
C. DE ABREU
Rio, 25 de janeiro de 1911 .
CARTAS A PAULO BRANDÃO 273

Meu caro Paulo,


Soube que sua filhinha tem estado doente.
Como um reumatismo imprevisto não me deixa ir à sua casa, escrevo
lhe estas linhas por Vicente para saber notícias dela. Espero -as boas.
Meus respeitos a D. Alta.
Um abraço do amigo velho.
C.
Rio , 10 de setembro de 1912.
D. Luísa, 145 .

Paulo amigo ,
O dia 28, aniversário de Bulhões, vamos passar na Gávea, como
Brandão já sabe.
Junto 10 $ para V. inandar a Emilio e me comprar de moringas.
Outro dia, quando estivemos lá, só se podia beber água na bica.
Desculpe -me a maçada.
Respeitos a D. Alta, e fosquinhas à gentil Paula .
Um abraço do amigo velho,
C. DE A.
Rio , 19 de setembro de 1912.

21 -- 1.º
A AFONSO TAUNAY 1904-1927

Afonso amigo ,

É você teimoso ! Já lhe disse várias vezes : nem mestre nem dr . !


Mestre !? Mestre de meninos ? Sabe você perfeitamente que me dou
torei na " academia de xenxém ” . Não reincida que o caso é de non
placet.
Se você escreve um romance histórico, tome tento sobretudo com
os diálogos. Não vá fazer um sujeito de 1630 falar como um carioca
de agora . Aí está o maior escolho, a meu ver.
E leia, leia e leia ! Não conheço os tais Alabanzas de que V. me
fala. Em matéria de feitiçaria do tempo encontrará você muita cousa
publicada.
Com prazer lerei os seus capítulos já escritos. Mande-mos. Quan
do vem ao Rio ? Não deixe de me avisar de sua vinda logo. Podemos
almoçar juntos. Conheço a Miscelânea de Miguel Leitão de Andrade.
É realmente muito curiosa. Sobre a jornada da Africa mande comprar
em Portugal o J. de Mendonça. Convém lê -lo.
Tem você visto Derby e Sampaio ? Dê-lhes lembranças .
Bien à vous,
Cap.
[s. d. ]

1. Reproduzido segundo o texto publicado por Afonso de E. Taunay no Jornal


do Comércio .
CARTAS A AFONSO TAUNAY 275

Afonso ainigo ,

Como está você sabido ! Sabe de minha vida mais do que eu mes
mo ! Fala-me da minha viagem a S. Paulo como de cousa assentada.
Não está de todo marcada. É mesmo provável que não se realize. An
do muito pesadão.
Não acredito no seu encontro com Olaus Magnus 1. Isto é invenção
sua , para ver se desembucho alguma cousa que dê repasto à sua inco
mensurável curiosidade. Não, meu amigo ! estão verdes os roxos, ma
duros cachos ...
Se eu fôr, só me decidirei depois do dia 15, ou mesmo 20, porque
não posso ficar fora de casa tanto tempo. Quero passar o aniversário
de D. Zé em S. Bernardo e depois irei a S. Vicente para o dia de anos
de Domingos.
Isto já lhe servirá de referência. Vá ver-me em casa de Martim,
se é que não receia, pela sua fé, a companhia de um velho ateu e de
um velho agnóstico.
Martim me chama, mas creio que não poderei demorar em sua casa
mais de dois dias, no máximo três. Por aí se governe você, pois para
o castigar de sua indiscreta curiosidade, não o prevenirei de minha passa
gem pelas paulistanas terras. Mas tudo isto é muito hipotético ...
Em todo o caso você conhece os meus hábitos e assuntará ... Só
lhe perdôo o intrometimento em atenção às intenções, que são puras ...
Respeitos à sua sr.a.
Bien à vous,
CAP.

( s. d . ]

Afonso amigo,
Bravos ! Trabalha - se ! Heu mihi ! Nada tenho adiantado . Ando
cansado e só tenho lido, aliás, bastante. Estou esperando umas cousas de
Portugal que me parecem boas.
Já ouvira falar do casamento do ... Mais que provavelmente encer
ra-se uma carreira promissora. Neste nosso país só conheço, como já
lhe disse várias vezes, duas exceções à regra dos resultados dos casamentos
ricos : Zacarias de Góis e seu pai .

1. Olavo Ekman.
276 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Não conheço outros que hajam continuado a trabalhar e a produ


zir . Disse -me certa vez um pernambucano que em sua terra chamain
aos que fazem fortuna pelo casamento galinha gorda. É bem achado .
O ... nada mais teria feito, se não houvesse logo perdido a fortuna da
mulher em especulações de Bôlsa. Assim ao meu ver o ... é homem ao
mar, o que lastimo.
Se você encontrar por ai à mão um Hans Staden ( edição paulista ) ,
mande-me. Dele preciso para um amigo da Europa.
Não deixe de me avisar quando vier até cá. Podemos ir juntos
ver Pires Brandão, que muito estimava seu pai e deseja conhecer a você .
Bien à vous,
C.

[ s. d . ]

Afonso amigo,

A sua idéia de escrever uma história dos capitães-generais de S. Paulo


é simplesmente infeliz. Que lembrança desastrada a de preferir um
período desinteressante, quando a grande época dos paulistas é o século
XVII ! Deixe este encargo ao ... ou ao ... Isto lhes vai a calhar. Que
encham as páginas da Revista com tão desenxabido assunto .
Reserve você para si o melhor naco, deixe os miúdos para quem
deles gostar .
Eu estimaria conhecer um trabalho de Severiano de Resende sõbre
Eduardo Prado. Veja se me obtém um exemplar.
Bien à V013,
C.
Dia de S. Bertoldo e S. Columbano. [ 1904 ?]

Afonso amigo,
Pelo que me parece, deve você andar ou muito atarefado ou muito
preguiçoso. Já lhe escrevi há uns 10 dias e até agora nada recebi
em resposta .
Espero que este silêncio, augusto e prolongado, não seja causado por
moléstia, nem por desgostos . Seu gênio era antigamente nienos comuni
CARTAS A AFONSO TAUNAY 277

cativo, apesar de você pretender o contrário. Não o negue, que até ouvi
de seu pai isto mesmo, a saber : que você não tinha a sua expansividade.
Talvez a dêle fosse demasiada, sobretudo para um homem político .
É a sua mais brasileira, influenciada pelo gênio da gente de sua mãe,
filha de mineiros soturnos, que pouco freqüentava o Rio .
Disserarn -me, contudo, que seu avó era dado, embora reservado e
circunspecto. Discreto e distinto, dizia-me José Fernandes Moreira, que
muito lhe freqüentou, como você sabe, a casa de Vassouras. Era até
meio aparentado com vocês ; creio genro do seu tio, o Visconde do
Araxá, não ?
Se você se encontrar com Derby, diga-lhe que breve lhe escreverei,
estou lendo umas cousas para responder melhor ao que me perguntou .
Recebi carta de Branner, que andou em viagem.
Como se chamava o seu tio que morreu menino, de febre amarela,
quando morava com o Leopoldo ? Era Francisco ou Afonso ? Achei- o
muito simpático e inteligente, um dia em que o vi no Pedro II a fazer
exames . Ontem dêle me lembrei, vendo o Leopoldo num bonde.
Bien à vous,
C.
( s. d .]

Meu caro Afonso,

Não me esqueci do interesse que vota ao Caramuru de Frei Gaspar.


Até agora nada adiantei : A Biblioteca Nacional é um mundo ; papel
deslocado ou mal classificado fica perdido indefinidamente até que um
acaso favorável o reconduza à luz .
Um de importância capital para meus estudos não apareceu e entre
tanto consulteio haverá três ou quatro anos. Imagine o de Frei Gaspar,
mostrado por Vale Cabral no começo da era de 80, há mais de trinta !
Alegrou -me a resolução de acrescentar indice à Nobiliarquia de Ta
ques ; o livro ficará valendo muito mais ; sua Formação Intelectual não
menos . Em história o ideal é não deixar trabalhos para os outros, en
quanto não aparecem novos documentos. As notas que fizer, acoste- as
ao texto , sem chamadas: as diferenças de tipo impedirão a confusão.
Bem quisera fazê- lo com Varnhagen mas o texto compacto e duro
só permitirá isto com modificações radicais a que não me arrojo : em Ta
ques o caso é simples.
278 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Desejo saia -lhe proveitosa a estação de Caxambu : a primeira condi


.ção é não pensar em escrita nem leitura, ser só animal.
Meus respeitos à ex.ma família.
Bien à vous,
C. DE ABREU
Rio, 9 de janeiro de 1914.

Afonso amigo,
Redevolvo -lhe, já lidos, os artigos sõbre Pedro Taques. Todos mui
to interessantes, um verdadeiro feixe de novidades.
Alguns reparos :
Para notas o meio parêntese é mais elegante. No texto, além do
meio parêntese, conviria usar de tipo menor no alto : as guaritas são re
barbativas. Cuidado com as notas : tendo de levantar e abaixar os olhos,
tem-se a impressão de estar cochilando. Melhor seria reunir no fim
de cada capítulo, mas sem chamadas. Assim : para tal fato cita-se o
documento. Outras seria melhor incorporar no texto.
Chamo a sua atenção para o estilo : há certos hipérbatons desgracio
sos ; algumas vezes reunindo dois períodos em um, o estilo fica mais
terso .
Já me desobriguei como pude com o nosso amigo Rangel. A obra
vai -se vendendo regularmente.
Estou pensando em reler as Atas de Santo André e S. Paulo para
escrever a 2.a Paulistica : Sob as Ordenações Manuelinas. Irei, porém,
um pouco adiante de 1603, porque pretendo aproveitar uns inéditos sõbre
Dom Francisco de Sousa e assim chegarei até sua morte.
Respeitos à sr.a.
Bien à vous,
C.
Rio, 13 de junho de 1914.

Afonso amigo,

O nosso Tapera cada vez pior. Osobrinho, seu médico assistente,


acha-se muito desanimado. Creio que não vencerá a crise. Que falta
vai fazer -me !
CARTAS A AFONSO TAUNAY 279

Mostra -se Rangel muito grato aos subsídios volumosos e valiosos


que você lhe forneceu. Encarece muito, sobretudo, a sua contribuição
para a parte paulista da biografia da Marquesa ; preciosa, declarou-me.
Faz V. muito bem em lhe prestar tal auxílio. Tem o livro real va
lor. Sobre ele vais escrever, talvez , para o Jornal do Comércio.
Numa de suas últimas cartas alude João Lúcio à história da Re
vista daí, que lhe pediu e ainda não lhe chegou às mãos.
Terá V. esquecido a encomenda ? Peço -lhe que o satisfaça logo.
Talvez por discrição não haja J. Lúcio renovado o pedido.
Rangel quer voltar logo ( s. c. para a Europa) que não deixa de ser
imprudente. Em nossos dias de torpedos e minas flutuantes, as velhas
orações pro navigantibus, que a navegação a vapor tornou esquecidas,
têm a maior atualidade.
Bien à vous,
Cap .
Is. d. ]

Afonso anrigo,
Recebi sua carta e ontem seu romance ; fico à espera para quando
puder lê -lo, o que não será já. O diabo da moeda complica -se cada
vez mais e calculei mal, julgando liquidado o caso no fim do mês.
Estive com Fazenda sábado . Pela manhã mandara-lhe um volume ad
quirido na 'biblioteca do Eduardo para ser-lhe oferecido. Começara a
leitura e conversamos sobre o caso. Quinta- feira tivera grande crise, mas
estava de todo aliviado e Godói mostrava -se esperançado.
Domingo, Souto Maior achou-o bem disposto. A crise fatal sobre
veio às 10 horas ; à 1 estava liquidado ! Compareci ao entêrro ; pouca
gente, por absoluta falta de carros ; tive de ir adiante, de bonde, para
esperar o féretro no cemitério ; os discursos de Ramiz, Bilac Sobrinho,
e Alberto de Carvalho, ouvidos, deixaram muito boa impressão.
Ainda não dei conta da moeda, e já embetesguei pelos paulistas
contratados pelo governo baiano para guerrear o gentio bárbaro. Estou
animado, porque pude apurar mais cousas do que pensava. Encontrei
a patente de Matias Cardoso , a de João Amaro e de Morais Navarro. A
propósito : Azevedo Marques ainda viu o inventário de Matias Cardoso .
Ainda existe?: É acessível ?
280 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Creio que o Padre Roque nada contém que lhe aproveite; em ge


ral dá a descendência sem observações ; creio que Silva Leme é pouco
mais ou menos assim . Veremos.
Respeitos à ex.ma família. Quando nos restitui o Alberto Rangel ?
Bien à vous,
C. DE ABREU
3.a f.a gorda de 1917.

Afonso amigo,

Esperava carta sua mas vejo que V. anda preguiçoso. Não se es


queça de me ver aquilo que já lhe pedi na documentação inédita do
Morgado. Piza imprimiu muita cousa mas morreu e depois dêle quase
nada mais se tem feito. Bem poderia você estimular os seus amigos do
Governo a impulsionar tão útil série. S. Paulo precisa mexer-se ! Há
tanta cousa a fazer ! Pena foi que Piza tivesse quase sempre muito
poucos recursos, pois sabia trabalhar deveras. Deixou excelente base
com os seus 40 [ ? ] volumes de Documentos Interessantes. Porque não
se põe você em contato com alguns portuguêses ? Estou certo de que
isto lhe será útil. Disseram -me que o Instituto anda em pasmaceira.
A Revista não sai porque não há dinheiro ? Mas se o Diário Oficial
a imprime! Ouvi dizer que o principal estórvo provém de brigas da
politicagem provinda da disputa do penacho. Dizem -me que fervem .
Que há de exato nisto ?
Sempre a mesma história das competições pessoais e da vaidade
zinha toleirona !

Com isto padecem as Musas. Enfim não quero meter-me nestas


brigas nem fazer o papel de conciliador. E você andará muito bem se
se alhear de semelhante ambiente .
Esperamos a volta do país ao pequeno acampamento de Agramante
em que se converteu o Instituto. O seu simpático amigo Cardoso con
tou -me alguma cousa do andamento dos seus projetos da reedição da
Nobiliarquia em colaboração com você.
Bravo ! Excelente idéia a de fazer a concordância do Taques com
Silva Leme. Não haverá alguns capítulos inéditos da Nobiliarquia a publi
car agora ? Isto é que seria excelente, dando o maior realce ao trabalho.
CARTAS A AFONSO TAUNAY 281

O seu estudo prefacio desenvolvendo a conferência do Centenário ;


disse-me você que será extenso à vista da documentação nova. Parabéns
pelo que me conta . Sobretudo se é tão extensa e tão cheia de novidades
sobre a biografia do genealogista. A descoberta do testamento repre
sentou um belo achado, como já lhe disse mais de uma vez .
Parabéns !
Vamos ! macte puer ! Taques merece um estudo aprofundado.
Adeus, nova geração ! Respeitos à sr.a.
Bien à v0115,
J. N.
Quase nada tenho feito nos últimos dias a não ser ler. Continuo
no cipoal do caso da moeda.
Confirmo o que lhe contei do Padre Roque e a ama.
Genealogia. Dá a descendência sem observações.
Diz que se valeu muito de Taques. Reduziu o texto do parente
a árvores de costado que são muito numerosas, de São Paulo, Espírito
Santo .
Bien à vous,
J. N.
Rio de Janeiro, etc.
1917 idos de março .

Biblioteca Americana Histoire. Géografie, Voyages, Archéologie


et Linguistique des deux Amériques et des îles Philippines, redigée par
Ch. Ledence, Paris, Maison Neuve et Cie ., 1878, pág. 414.
1597 Juzarte (José ) Diário de Navegação do Rio Tieté, Rio
Grande, Paraná e Rio Iguatemi em que se dá relação de todas as coisas
mais notáveis dêste rio, assim como sua distância e de todos os mais rios
que se encontram , ilhas, perigos e de tudo o acontecido neste Diário pelo
tempo de dois anos e dois meses que principiou em 10 de março de 1769.
( Au verso) Escrito pelo Sargt.-mor Teotônio José Jusarte Inv. 4
rel. recouverte de soie 150 fr .
132 ff. Manuscrit original et inédit d'une bonne écriture ...Rela
tion très précieuse.
28 / IV / 1917.
282 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Afonso amigo,
Se ainda não tem copista, recomendo - lhe Cassius Berlinck, inteli
gente, instruido, fidedigno, empregado da Bib. Nac. Poderia dar conta
da grande parte da coleção de Angelis relativa às bandeiras paulistas.
Angelis , capanga jornalista de Rosas, locupletou - se de raridades na Ar
gentina e vendeu-as ao Brasil.
Não sei se Cassius poderá tomar a si a empreitada. Tão pouco sei
em que condições faria . Não lhe toquei no assunto. As cópias aqui não
podem ser tão baratas como nos lugares onde há constantes pedidos.
Lembra -se do estalajadeiro holandês que cobrou caro uns ovos servidos
a não sei que Jorge da Inglaterra ? Senhor, ovos há na Holanda, há até
muito ; reis até muitos ; reis são raros (deixo esta linha como saiu da
pena para V. ver como a afasia ou a agrafia vem perto ).
Não vejo com bons olhos a idéia de duas linhas. Em Pernambuco
um ladrão exigiu de um passageiro ou transeunte, na ponte da Boa Vista,
a bölsa ou a vida, e quando este apresentou-lhe os únicos tostões que
possuía, caiu-lhe em cima aos sopapos, bradando raivoso : " Miserável,
por esta miséria expões um pai de família à perdição ?!”
A parte sõbre os chiquitos poderia ser anotada pelo Ministro da
Bolívia ; dizem -no erudito e dedicado a estudos históricos.
Respeitos à ex.ma sr.a.
Bien à vous,
C. DE ABREU
Rio , 15 de maio de 1917.

Afonso amigo,

Vi ontem o modo por que V. escreve Brasil e fiquei horrorizado.


Continue, se quiser, com a cangalha quebrada, mas nunca diga que lhe dei
uma só lição. Hei de negá-lo uma e muitas vezes a pés juntos, antes
e depois do galo.
Acha o sumário muito carregado de história. O Juzarte tem cabi
mento porque se trata de um documento histórico, mas o plagiário ? se
acho um meio de introduzi-lo é em nota , sem retórica, tratar do Diver
timento Admirável : ai V. dará ràpidamente o mais. Monografias
históricas de pontos mínimos deixe-as para o Arquivo e para o Insti
tuto . Talvez convenha dar o volume com menos matéria : imprima o
CARTAS A AFONSO TAUNAY 283

que já tem ; lembre -se que para o ano V. terá de entrar com o outro
número. Uma nota em forma de carta a V. dirigida sobre o tal rotei
ro não me custaria ; mas o escrito sobre os chiquitos exigiria um bom
mapa da Bolivia, que não tenho ; por isso lembrei o nome de Carrasco,
que dizem competente.
Interrompi o artigo sobre a Marquesa, para fazer notas e correções
ao livro de uma pessoa a quem desejo ser agradável : em um dia farei
o resto : o interessante será se ela não ficar satisfeita, como é provável ;
hoje poderei terminar.
Assim o artigo não poderia sair ao mesmo tempo que o livro fósse
despachado da alfândega. Já fiz Bhering distribuir ontem exemplares
pelas redações dos jornais.
Quem é A ... ? Li os três artigos; faltou-me o primeiro, que seria
o mais interessante, porque fere logo a nota. O tal sujeito não passa
de um cretino industriado. E é mau caráter : para dizer que S ... A ...
aproveitou-se de idéias suas e maltratou-o, substituiu no artigo de Ve
ríssimo, que transcreve, o trecho em que éste notava a prioridade de
nosso patrício e meu amigo muito querido, por uma linha de reticências.
Se conhece A. , peça-lhe que continue, mas lembre-se que o bicho tem
mais cabeça que a hidra de Lerna.
Meus respeitos à ex.ma sr.a.
Bien à vous,
C.
Rio, 2 de junho de 1917.

Afonso amigo,
Escrevi-lhe ontem sôbre Fr. Salá, que deve partir hoje para S.
Paulo e aí demorar -se três dias no Seminário da Luz. V. pode tirar
proveito dêle. Indague se em Uberaba, onde vai ficar, existe o vol. da
R. do Inst. Hist. ( um que é o terceiro) com a monografia de Paulo
Ribeiro sobre as nações gentilicas do Maranhão. Arranje-lhe o volu
me do Congresso dos Americanistas, um que é o de Londres com um
copioso vocabulário , feito por João Feliciano, da língua xavante ou
xerente ; se ele tiver capacidade para estabelecer um confronto sobre
o caiapó e o xavante ou xerente , prestará bom serviço.
Terá V. meios de obter um vocabulário dos xavantes do Paraná e
S. Paulo ? É uma lingua que tende a desaparecer e é preciso andar de
284 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

pressa. Se não estou enganado, teremos nēle um representante do grupo


guaicuru ; nada tem de comum com índios de igual nome, que habitam
nas margens do Tocantins e chegam até Piauí e Bahia.
Para evitar desencontro com Fr. Salá, conviria empregar telefone
ma : o Seminário da Luz deve tê-lo.
Pergunte -lhe o nome por que os caiapós chamam a si próprios; Kis
senbeth já mo tinha dado ; o frade repetiu - o ontem mas me esqueci.
Recebi os artigos sobre S. André e percorri-os ligeiramente. Mas
os nossos pontos de vista são diferentes ; certas conclusões suas não me
parecem aceitáveis. Veremos .
Respeitos à ex.ma sr.a.
Bien à vous ,
C. DE A.
Rio, 22 de janeiro de 1917.

Afonso amigo ,

Ainda não sei quando poderei partir. Ando fazendo uma leitura
e vendo cousas que me prendem por aqui. Como vai Taques ? Não re
cebi a continuação dos seus artigos. Ouça-me : nada de alusões literá
rias ! Nem mesmo as corriqueiras : o que uma geração conhece é muitas
vêzes totalmente ignorado pela seguinte. Compreendo as saudades do
seu amigo Cardoso interrompendo -se uma colaboração agradável como
era a sua. Quanto senti a falta de Vale Cabral! Logo que me decidir
a partir, avisarei.
Bien à vous,
Cap.
[ s. d. Deve ser esta carta de meados de 1917. )

Afonso amigo,
Recebi os artigos do xará e li-os imediatamente. Muito interessan
tes , muito instrutivos.
Não tenho estado doente, mas sinto a cabeça vazia ou entorpecida
de tal modo que repugna-me qualquer coisa que não seja a leitura. Espe
rava em fins de mês passado escrever a segunda Paulistica mas não passei
CARTAS A AFONSO TAUNAY 285

das primeiras linhas. Quero ver se faço uma ligeira ( nota ] sôbre Goeldi
de quem fui amigo, e traduzi os Mamíferos e Aves.
Está a cidade em greve. Às alturas em que moro não chega o
burburinho ; se a polícia capitular, nunca mais teremos paz ; é preciso
que ao menos consiga que as greves dora em diante tenham o curso
normal do Velho Mundo. Já fui absolutamente spencerista ; tenho muda
do de idéias, mas ainda fico muito longe do socialismo, principalmente
do que procuram implantar entre nós.
Respeitos à ex.ma sr.a.
Bien à vous,
C.
Rio, 25 de julho de 1917.

Afonso amigo,
Só hoje foi-me possível ler os artigos que ultimamente recebi. Muito
interessantes e instrutivos todos. Fazem parte da monografia sobre
Taques ?
Continuo hoje estas linhas, começadas a três ou quatro dias. Junto
umas notas a êsmo.
Epidemias : melhor ocasião para vacinares há que esta : Vacina,
vaca, Jenner : não há anacronismo ? Será variolizar-se ?
Rispidez e gravidade : o Governador de São Paulo tinha o trata
mento de Sua Ilustrissima ? Só conheço este tratamento dado aos bis
pos.
Pronomes na segunda pessoa do plural: cf. Manuel da Fonseca ,
Vida de Belchior, onde se lê que os paulistas tratavam assim aos servido
res por desprezo. A candura dos lares não está em contradição com
o que se le alhures ?
Festas de Igreja : no Ceará diz-se Corpo de Deus.
Tratado de Methuen parece mito. Conforme uma monografia ale
mã não havia então indústria em Portugal. Jean de Bonnefon ! Para
que obrigar um Afonso do futuro a quebrar a cabeça a inquirir quem
foi tal nulidade ? Quanto menos alusões depararem os pósteros tanto
mais agradecidos ficarão ao trabalho poupado .
A vida em começos do século XVIII : se V. encontrar em alguma
livraria o livro de Bucher, traduzido com o título aproximado de Estu
dos Históricos e Econômicos, leia um capítulo em que caracteriza a econo
286 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

mia doméstica, a urbana e nacional . Também Spencer trata das socieda


des em que um órgão só exercia mais de uma função : hoje chamariam
isto vicariato ?
A monotonia da vida : o espanhol também é triste ?
Sôbre cêra procure em Jaboatão, ou Loreto Couto, e verá como prova
de santidade terem acendido as velas e, ao apagarem -nas, pesando -as,
encontrarem o mesmo peso, uma espécie de virgindade cerifera, antes, du
rante, e depois do serviço .
Decreto de 1766 que aniquilou a indústria brasileira : estará certa
a data ?
É o que me ocorre por agora .
Viu V. na Rev. do Arq. Mineiro um artigo que completou Taques ?
Naturalmente. Só vi um volume do Registro de São Paulo ! Disseram
me que há três ou quatro ... "Será possível?
Vi um livro do Marcondes, creio, sobre o E. de S. Paulo, impresso
não há muito tempo. Pelo menos volumoso e bem impresso achei- o . É
publicação oficial ?
Não tenho tido mais notícias do amigo X. Longa carta que lhe
escrevi ficou sem resposta. Mandei-lhe o meu artigo e penso que ficou
aborrecido. Não me incomodo muito com isto porque a razão não esta
va do seu lado. Maior receio tive de poder aborrecer-se ... felizmente
tal não se deu : tratou -me com o maior carinho, se é possível .
Na livraria disseram -me que o livro vende-se mais ou menos.
Depois do artigo de João Ribeiro começaram a enticar com ele.
Em fins de outubro removerei meus penates para S. Vicente, onde
farei companhia a Jaguaribe, pelo menos um mês. Seguirei depois para
o Rio Grande .
Respeitos à ex.ma sr.a.
Bien à vous,
C. DE A.
Rio, 12 de setembro de 1917.

Afonso amigo,
Sinto muito que tantas pessoas caras tenham estado adoentadas ; de
sejo -lhes rápido e completo restabelecimento .
Recebi os dois volumes do Registro Geral de S. Paulo e fico - lhe
muito obrigado .
CARTAS A AFONSO TAUNAY 287

Tive carta de X, muito amável como sempre, porém pouco satis


feito. Defende-se que seu temperamento é assim e não pode escrever
de outro modo. Há um fundo de verdade nisto, mas a verdade não é
inteira. Ele deve fazer um exame de consciência e distinguir o tempera
mento do procédé, na expressão de Taine, voltar à imitação da natureza
e em vez de imitar -se a si próprio. Isto lhe escrevi do melhor modo :
aconselhei-lhe uma cura de estilo com Eug. Fromentin e Fernão Mendes
Pinto.
Em minha última carta citei-lhe Goethe, que depois da viagem à
Itália renovou sua arte.
Ele sentirá muito se souber dos artigos do Estado de S. Paulo e não
os puder ler. Veja se faz um esforço ; em último recurso mande datilo
grafá-los e por precaução tirar duas ou três cópias: amitié oblige.
Soube que na imprensa não puderam decifrar os originais de Taques
e lhes devolveram . E agora ? É recorrer também à datilografia, se não
quiser ver o trabalho perdido.
Você ainda está muito môço e pode sujeitar - se a uma cura seme
Ihante. Sua última carta já é legível ; continue. Para decidir minha
viagem estou à espera de Jaguaribe. Ainda não resolvi se irei por
terra ou por mar. Indo por terra, talvez siga diretamente para Ribeirão
Prêto e só na volta nos avistaremos.
Que prepara para o Dicionário Histórico e Geográfico ? Se houver
tempo, recomendo-lhe preferência para Bartolomeu Pais de Abreu.
Que há sôbre Cristóvão Pereira ? Encontrei algumas novidades e o
assunto está -me tentando. Não para agora ; em São Vicente e em Pedras
Altas estou resolvido a consagrar ao bacairi . Ou darei conta de uma vez
ou desistirei, dando os manuscritos à Bib. Nac.
Respeitos à ex.ma sr.a.
Bien à vous,
Rio , 7 de outubro de 1917 .

Afonso amigo,
Desejo que já tenham cessado os motivos de inquietação devidos ao
estado de sua boa mãe .
Continuo a braços com Fr. Vicente . Segunda-feira entreguei os
dois primeiros livros com os respectivos prolegômenos; no decurso da se
mana o terceiro ; o quarto e o quinto estarão concluídos em Natal?
288 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Ainda não posso responder, porque só agora vou inventariá -los com
cuidado .
O meu plano é simples; indicação das lacunas, apuração das fontes
em que bebeu o franciscano , apontamento dos documentos contemporâ
neos e das monografias ; umas sessenta páginas, sem contar a introdução
geral fundada no que saiu nos Anais da Biblioteca Nacional, porém mais
rápida e mais precisa .
Não lhe será muito fácil obter os Anales de la Biblioteca Nacional
de Buenos Aires porque, parece, esgotaram -se apenas impressos.
Ainda não pude obter o décimo ; não sei se já há undécimo.
Encontrei ontem uma notícia de certo interesse para você. Em fe
vereiro de 1583, houve uma justificação ou o que melhor nome mereça,
sôbre as naus inglêsas entradas em Santos : nela aparece como testemunha
Brás Cubas, que declara ter setenta e seis anos pouco mais ou menos .
Teria nascido, portanto, em 1507 pouco mais ou menos ?
Talvez escreva nos prolegômenos do segundo livro de Fr. Vicente
algumas linhas sobre a sesmaria concedida a Brás Cubas, comparando -a
com a de Duarte Lemos. A julgar por minhas impressões, que amanhã
apurarei, representam um tipo que não medrou no Brasil, ao regime de
terras .
A propósito ; disse -me Pedro Lessa que Teixeira de Abreu, aí emi
grado, escreveu um livrinho excelente sõbre enfiteuse.
Aqui não existe. Será possível arranjá-lo ai, terra de juristas?
Ainda outra maçada. Disseram -me que na Revista Argentina de Ciên
cias Políticas, em número anterior a setembro , há notícia de um livro sobre
a civilização argentina, em que se fazem largas referências a meus Ca
pítulos.
Haverá tal revista, ai , de modo que possa encomendá - la sem precisão ?
Ontem falei com o Gentil sobre o mapa espanhol que estamos impa
cientes por conhecer. Devo receber cópia de um manuscrito citado pelo
Padre Pastells .
Como desapareceu de todo o nome de Biaça dado àquelas regiões até
Laguna, pelo menos ? Biaça terá algo de comum com piacaba ?
Chegaria até aquelas bandas tal palavra ?
Respeitos às senhoras.
Bien à vous,
C. DE A.
Rio, 29 de novembro de 1917.
CARTAS A AFONSO TAUNAY 289

Afonso amigo,
Boas saídas, melhores entradas.
Li os dois artigos sobre Taques, que devolvo. Por que rush e placer ?
Será tão indigente a língua que para coisas brasileiras precisa de palavras
peregrinas ?
Tenho dúvida quanto ao duplo provincialato de Estanislau de Campos.
Numa lista, muito deficiente, das primeiras que me deu o Padre Pablo
Hernandez, o novo editor de Charlevoix, não me lembra ter lido éste nome.
Tenho também dúvidas se saberia francês. Parece que ele leu Valmont
ou autor semelhante, traduzido em português.
Sobre os estudos dos jesuítas é possível que V. encontre no colégio
daí a Formação Intelectual do Jesuita de Francisco Rodrigues, cuja leitura
é instrutiva e poderia servir, tratando dos pátios ; é obra de 1917.
Do Fr. Vicente já li as segundas provas dos prolegômenos ao primeiro
livro, as primeiras ao segundo, já remeti os originais dos prolegômenos ao
terceiro. Vou começar agora os do quarto, que não são ( ilegível ] do
quinto. Se acabar esta semana os do quarto, tirarei de cima de mim um
grande pèso, poderei ir com José de Mendonça passar uns dias em Cabo
Frio, concluir a impressão em fevereiro e disparar em março para o Rio
Grande, à espera do veranico de maio .
Da biblioteca Eduardo Prado o governo paulista adquiriu alguns
volumes, segundo me consta. Para o Arquivo ? Para a Biblioteca ? Para
o Museu ? Desejaria saber quais foram e para que repartição.
Acabo de receber um volume do Inst . do Ceará com muitos documentos
sôbre Morais Navarro . Se houvesse cousa semelhante sobre Matias Cardoso !
Ontem procurou -me, por indicação de Branner, o Sr. Eugênio Vernon
( ?) , comerciante, muito a par da História do Brasil. É môço, deve demo
rar bastante tempo a serviço de um banco , pensa na possibilidade de es
crever uma história da abolição no Brasil.
Já chegou aí o 3.0 vol. de Pastells ? Por aqui não, apesar dos lem
bretes constantes no Briguiet. Também o 10.º vol. dos An. de la Bibl. de
B. Aires ainda não o consegui; parece esgotou -se, apenas impresso.
Respeitos às senhoras. Até fevereiro , talvez,
Bien à vous,
Rio, 7 de janeiro de 1918 .

22 - 1.•
290 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Afonso amigo,

Apenas pude agradecer a sua carta na azafama da partida.


Estou em Pedras Altas desde 15 e não sei quanto demorarei.
Trouxe os textos bacairis, colhidos pela maior parte em 1893 e 1894
e desde então postos inteiramente de lado. Alguns perderam - se. Sobra
ram só os que tive a boa idéia de depositar na Biblioteca Nacional.
Com eles poderá ser compilada uma obra talvez do volume da Língua
dos Carinauás ( ilegível ] muito superior.
Tenho descrições de plantas, animais, infelizmente ( ilegível ] de obje
tos etnográficos, de costumes ; abundante material para ſilegível] ou como
se diz geralmente, o folclore.
Tenho ? Terei mesmo ? Na minha impaciência só tratei de apanhar
originais sem atender quase à tradução e sem atender ao vocabulário. O
de C. von den Steinen é admirável mas insuficiente porque o meu mate
rial é muito maior.

Comecei a passar a limpo as descrições que já estavam traduzidas e


não ofereciam dificuldades se não fossem os verbos. O verbo no bacairi,
principalmente na terceira pessoa, dá água pela barba. Antes do fim do
mès abordarei os mitos mais simples, deixando para o fim o de Enko
mami [ ? ] , de que von Steinen nunca ouviu falar, e o de Keri e Kame.
Dêste o meu texto é pelo menos o décuplo do dêle. E quanto à forma
nem há comparação .
Que estupendo livro não teria ele produzido se, como eu, ficasse com
um índio em casa durante meses, em vez de fazer tudo nos atropelos de
duas explorações !
Junto uma lista com os nomes de pessoas de São Paulo a quem desejo
oferecer exemplares de Frei Vicente, se algum dia terminar... ( ilegível]
Por seu intermédio mandarei a lista para o Rio que ( ilegivel ) se encarregará
de distribuir.
Aqui desejo quinze : o melhor meio seria mandá - los em pacote ao
Rio Grande, endereçado a Otaviano Menditeguy, isto na hipótese da casa
não ter correspondente aqui.
Respeitos às sr.as.
Bien à vous,
C.

Pedras Altas, 20 de janeiro de 1918.


CARTAS A AFONSO TAUNAY 291

Concluo hoje, 22 .
Junto as três listas para V. as entregar ao editor. Continuo no tra
balho do bacairi .

Só as descrições, que ainda não passei tôdas a limpo, contam mais


texto do que todas as de C. von den Steinen . Já começo a encontrar
embaraços. Numa, bastante longa, do ninho há palavras de que não notei
a tradução. Talvez porque o índio ignorava o equivalente português.
Terra singular a de Pedras Altas! Parece que as cartas expedidas
para fora alcançam seu destino, as que deviam vir ficam, como eu ouvia
dizer, menino : no caminho do Icó, penduradas num cipó.
Seu parente, Gomes de Carvalho, ainda está em Lisboa ? Escreva -lhe
que procure Antônio Baião na Tôrre do Tombo e examine os volumes
manuscritos relativos à tentativa de introduzir a Inquisição no Brasil du
rante o governo de D. Francisco de Sousa.
Sôbre eles Baião escreveu no 1.º vol. da Revista de História uma
nota muito curiosa. Gomes Carvalho terá material para ti.
Conto concluir hoje os prolegômenos ao tomo IV de Fr. Vicente.
Fica faltando o último ; tenho esperança fundada de la para dez do futuro
março estar aspirando os ares serranos da Paulicéia.
Bien à vous ,
C. de A.
Rio, 15 de fevereiro de 1918.

Afonso amigo,
Vai este cartão registrado para ter certeza de que lhe chegou às mãos.
As notas que tomei no Livro 2.º do Brasil, na biblioteca de Eduardo
Prado, saíram muito incompletas. Desejaria completá -las, e como não
posso ir a S. Paulo, acudiu-me a idéia que vou expor :
Pode V. mandar oficialmente o ms. ao Instituto Histórico durante
uma semana para que eu possa melhor consultá-lo ? Se o fizer, ficar-lhe -ei
muito grato : se não puder nem estranharei, nem ficarei zangado. Nem
quero resposta fundamentando o não : basta o silêncio.
292 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Vou entregar hoje mesmo o resto dos prolegômenos ao livro IV ; deu


tudo 26 páginas que crescerão naturalmente na revisão das provas.
Restabelecimento do guri, respeito às sr.as.
Bien à vous,
C.
Rio , 20 de fevereiro de 1918.

Afonso amigo,
Com grande aborrecimento encontrei perdida no meio da papelada
uma carta escrita há dias. Deixei- a selada ; pensei que a tivessem pôsto
no correio e até estranhara seu silêncio. Mando - a sem abri-la .
Recebi todo o livro quarto, paginado, que alcançava pág. 415. Hoje
acabarei a parte dos prolegômenos do quinto, que trata da empresa do
Maranhão e Pará. O resto deve ficar concluído esta semana sem grande
atropelo, salvo caso de força maior.
Está aqui o editor. Disse que a impressão se fará depressa, por
isso não a comecei. Não fiquei aborrecido com isto, senão porque atra
palha a viagem ao Rio Grande, que fica perdida, ou antes adiada para o
fim do ano . Ainda não será desta vez que verei o veranico de maio.
Só pretendo começar a impressão depois de 15 de abril, quando tornar
à Paulicéia. À vista disto, estou pensando em ir passar ai uma quinzena
para acompanhar o trabalho de perto. Se isto decidir, escreverei em tempo
para você tomar cômodo.
Recebi carta de João Lúcio com a notícia de que já pusera no correio
a cópia da escrituração de um ano do engenho de Sergipe do Conde,
para eu julgar do importância e do volume da cousa . Ainda não me
chegou às mãos. Teriam os submarinos intervindo ?
Antes de Antônio, que poderá ser seguido de Varnhagen, pensei em
um volume de 400 páginas com documentos sõbre o sertão. O editor aceita
o plano no qual vou trabalhar, na volta de São Paulo , se lá fôr.
Não tenho preconceito de inédito. Entrarão a carta de Navarro e a
de Veiga subindo o Tocantins; talvez informe-nos a [ sic] Memórias de
Cândido Mendes: Entrarão uns dois ou três documentos impressos na
Revista de São Paulo e na coleção de Siudart e no Inst. Hist.; verei o
que posso aproveitar na Bibl . Nac. Quatrocentas páginas é muito pouco ;
tratarei de escolher as peças de modo a abraçar o Brasil inteiro , dando
non multa sed nultum .
CARTAS A AFONSO TAUNAY 293

É este o meu programa de trabalho até o fim do ano. Se puder,


não deixarei de parte os Capítulos. Roquete Pinto deve estar aí ; dê-lhe
lembranças.
Respeitos às senhoras.
Bien à vous ,
C.
Rio, dia de S. José, 1918.

Afonso amigo,
Não recebi a fotografia e melhor foi que não viesse.
Tão apagada, para que serviria ?
Faça uma experiência : em qualquer botica encontra-se tintura de
noz-de-galha : um pincel molhado nela, passado por cima da escrita, aviva
a tinta sem estragar o papel. Experimente primeiro em qualquer pape
lucho sem importância.
Já comecei a receber papéis de Mem de Sá – o testamento , que
pouco adianta, e creio que é apenas o primeiro ; o inventário dos bens
possuídos no Rio, onde fez contrato de meação com Antônio de Mariz.
Aqui aparecem nomes paulistas como o de Eobano e outros.
Os prolegômenos do quinto e último livro estão virtualmente concluí
dos ; já estariam de fato se houvesse urgência. O editor me disse que
só voltaria a São Paulo lá para 5 e só então iria tratar da impressão.
Temos muito tempo. Quem corre cansa, quem anda alcança.
Respeitos às senhoras. Saudades ao Zaú .
Bien à vous,
C. A.

Rio, 3 de abril de 1918.


Será possível arranjar o número do O Estado de São Paulo contendo
um artigo de Oliveira Lima sobre Antonio Vieira, evolução do sebastia
nismo, Jcão Lúcio de Azevedo, etc. ?
Devo encontrar na Bib . Nac. o catálogo dos mapas existentes no
Conselho Ultramarino, que me foi remetido pelo conservador E. de Castro
e Almeida. Darei depois notícia.
Vou hoje ao Instituto Histórico tomar as notas para refazer o artigo
sôbre guaianases que será reimpresso na Revista de Alberto de Faria. Na
mesma ocasião redigirei um ofício ao Presidente sobre o tal medalhão de
294 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

ouro , entaladela bem desagradável para quem como eu abomina a Satanás


com todas as suas pompas e obras.
Já falei com Afonsinho de quem sou muito amigo há mais de trinta
anos, dizendo-lhe que queria seguir o precedente de Varnhagen ; infeliz
mente nada achou a dizer, e é o que importa. O precedente de Varnha
gen consta das atas do vol. 9 ou 10 que vou examinar.

Afonso amigo,
Obrigado pelos dois volumes do Registo ontem recebidos. E a Re
vista do Museu como vai ?
O Frei Vicente caminha, caminha, com as demoras inseparáveis dos
rabinhos. Se o Instituto e a Biblioteca estivessem abertos hoje, apenas
restariam o índice, que depende da numeração das páginas do livro V, e
a introdução, que sairá pequena.
Minha ida a S. Paulo foi adiada sine die.
Respeito às senhoras: cafunés e muchochos para a prole.
Bien à vous,
C.
Rio , dia da Ascensão, 1918.

Afonso amigo,
Escrevo -lhe a correr, para comunicar que parto depois de amanhã, 20 .
Infelizmente não poderemos encontrar- nos desta vez. Tenho neces
sidade de voltar sem demora. Talvez esteja, S. João, na Paulicéia, mas
S. Pedro me verá aqui na muito histórica e leal. Não irei a Santos.
Escrevi a Álvaro de Sá, médico, Conselheiro Nebias, 56 ; para lá
V. poderá dirigir qualquer carta ; escrevi para tomar m
- e cômodo na Luz.
Peço mande os dois volumes de jesuítas o mais depressa possível.
Depois de fazer o que preciso, devolverei. Como sabe, tenho de preparar
o volume de que me incumbiu Afrânio Peixoto, e não quero perder tempo ,
para em novembro estar a caminho de Pedras Altas.
Respeitos à senhora.
Bien à 1'015,
C.
Rio, 18 de junho de 1918.
CARTAS A AFONSO TAUNAY 295

Afonso amigo ,
Cheguei a 20, instalei-me no Hotel Fracaroli, o mais cômodo para
quem demora pouco .
Estive com Weiszflog. Amanhã devo ter as provas da introdução,
que devolverei do Rio. Depois só falta o índice alfabético em que tratarei
de andar depressa .
Já lhe falei na coleção Eduardo Prado.
Paulo achou o caminho de Damasco na História do Brasil. Anteontem
mostrou -me um artigo seu, muito interessado pelo bom Fernão Cardim , que
não conhecia .

Do Rio, onde participou -me a conversão, escrevi-lhe sugerindo a


idéia de uma série intitulada Eduardo Prado, publicada à custa dêle. De
passagem, disse a um amigo comum que estava pronto. Abordamos agora
o negócio .
O primeiro volume será o Claude d'Abbeville, que será impresso mesmo
em Paris, talvez em fac-simile. Vou escrever a Graça Aranha, que estu
dará o caso , de modo a ele achar tudo preparado.
O segundo volume pode ser dos processos da Inquisição feita na
Bahia e em Pernambuco, no governo de D. Francisco de Sousa, 1591 a
1595 , que será ?
Frei Vicente dá notícia do inquisidor, Baião, na Rev. de História ;
fornece algumas informações incompletas. Paulo deu um cheque de 300
escudos para o Lúcio de Azevedo mandar começar as cópias. Trezentos
escudos chegam para duas ou três mil páginas e é provável que bastem.
Sabe da biblioteca que Afrânio Peixoto influiu ao gerente da Casa
Alves para começar ?
Quis principiar com um volume, mas com documentos do século XVI ,
escolhidos e comentados. E de que vou tratar, apenas regresse. Pensava
antes em um sôbre os sertões e a este respeito já escrevi a João Lúcio,
pedindo certas cópias. Um não faz mal a outro, mesmo porque Afrânio
quer também um volume sobre os sertões.
Em novembro pretendo partir para Pedras Altas e exclusivamente
ocupar-me dos bacairis. Se der conta da cousa, entrará no Eduardo
Prado.
296 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Vou muito triste por não vê-lo, mas voltarei em outubro, para demorar.
Peço-lhe mande para o Rio as três cartas dos jesuítas ; preciso de extrair
cópias para ficar em dia com Afrânio .
Respeitos à sr.a.
Bien à vous ,
Cap.
S. Paulo, 23 de junho de 1918.

Afonso amigo,
Recebi os primeiros artigos sobre Bösche e li-os . Muito interessantes.
Em tom muito diferente do seu escrevi alguma cousa no Jornal do Comér
cio. Não sei há quantos anos. Deve ter sido no governo do Pena porque
me servi de um exemplar de Alfredo de Carvalho, que por aqui andava
naquele tempo . Restituí-lhe bastante pesaroso por não ter esperança de
arranjar outra. Felizmente a nova tradução vem minorá-lo.
A satisfação de uma necessidade natural de Pedro I diante da tropa
seria caso de imperatória impudicícia. Sua necessidade se traduziu por
forma líquida ; antecipou com solenidade o mirrado mann Kempiss ( es
crevo fonèticamente ) de Belmiro de Almeida.
O que conta sõbre Schaeffer nas ilhas Sandwich é novidade
para mim. Se não estou enganado, fêz qualquer publicação sobre o Brasil,
naturalmente antes do descalabro .
Nunca o li .
Bösche, viajante, deve ser o autor de um dicionário português-alemão
que prestou bons serviços e saiu muito aumentado depois da República.
Agora tomou -lhe o lugar o de Michaëlis, mulherzinha que mesmo em por
tuguês brave l'honnêteté. Julgo -a solteirona. É irmã da Carolina Michaë
lis de Vasconcelos cujos trabalhos sobre a lingua e a literatura portuguêsa
revelam grande critério e saber.
Procurou -me há dias Madame... sua conhecida. Creio que deseja
uma carta minha abonando -lhe um trabalho. Para descalçar a bota, vou
examinar a parte relativa ao Brasil e mandar-lhe-ei sem demora a nota
que me parece emendável.
Estou reunindo material para a introdução do Claude d'Abbeville;
pretendo fazê-la curta, mesmo porque é preciso que Paulo a leve e a
viagem déle tanto pode ser demorada como vir de súbito .
O livro presta-se a um estudo sobre as migrações dos tupis de
Pernambuco ao Maranhão, mas acho -as tão obscuras que não desejo
meter a mão na cumbuca .
CARTAS A AFONSO TAUNAY 297

Pensei que esta carta , escrita há muitos dias, tivesse já seguido.


Mando-a machucada como a encontro.
Bien à vous,
C. DE A.
Rio, 7 de agosto de 1918.

Afonso amigo,

O mundo ainda não pegou fogo porque os gostos variam . Há quem


prefira até cangalha quebrada e por achá - la mais bonita junta-lhe rabicho.
Largos séculos esperam ainda a humanidade !
Recebi uma carta de Figueira há que anos ! Tão aborrecido que não
me animei a escrever-lhe mais. Alegra-me que tenha conseguido penetrar
na Propaganda Fide. Ao Schuller disse um americano que, apesar de
monsenhor e residir anos em Roma, nunca o conseguira. Haveria alguma
medida de favor para Figueira ?
Se só encontrou documentos quinhentistas, a colheita não deve ter sido
grande. Os jesuítas não dependiam da Propaganda, capuchos e carme
litas só vieram no fim do século, beneditinos não missionaram .
Lembro -me vagamente de ter recomendado a Figueira prestasse aten
ção especial aos capuchinhos franceses de S. Francisco . De Frei Teodoro
de Lucé talvez exista ainda um escrito sobre os índios daquela região, que
podia ser capital . Teria esquecido minha recomendação ? A entrada que
lhe facultaram seria limitada ? Não existirá mais o documento referido
por Frei Martim de Nantes ?
Está aqui o Dr. Rocha Lagoa Filho, que pretende dedicar -se à história
das ordens religiosas no Brasil .
Sôbre jesuítas pode encontrar muita cousa na Europa : os arquivos
jesuítas dispersos por muitos países foram conservados na maior parte.
Das outras ordens, se restar alguma cousa , deve estar na Propaganda.
Disse-me que na casa dos lazaristas, rua General Severiano, há um repre
sentante da Congregação e iria procurá -lo. Ignoro o resultado.
O Cardeal disse - lhe que poderia mandar copiar os manuscritos do
Vaticano. Com certeza não sabe o que prometeu . Li o artigo de João do
Norte. É um patrício, fui muito amigo do pai ; a mãe era de origem
alemã, filha do engenheiro Dodt ; ignorava que soubesse alemão. Bem
poderia publicar a tradução ; infelizmente falta muito no Brasil aquilo
sem o que não se amarra negro. Não agoure meu prólogo a Cl . de
298 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU
Abbeville. Sinto-me incapaz de trabalho intelectual, já comecei uma porção
de vêzes e não passei das primeiras linhas.
Respeitos às sr.as.
Bien à vous ,
C.
Rio, 13 de agosto, dia de S. Rui, 1918.

Afonso amigo,
Melhor notícia não podia você dar do que a da existência do Claude
d'Abbeville na biblioteca do Eduardo .
Não por mim : comecei e acabarei no regime do bacalhau do César
Marques .
A grande vantagem é que agora o fac - simile não encontrará mais
embaraço .
Que D. Luís, governador geral, é apenas primo e não filho de D.
Francisco não pode haver dúvida. Você verá no próximo Frei Vicente.
Respeitos às senhoras.
Bien à vous ,
C. DE A.

26 de agosto de 1918.

Afonso amigo ,

Uma carta que registrei para Assis Brasil na agência da Lapa, sábado,
2 do corrente , só ontem foi recebida. Embarquei domingo 10 e de cartas
jornais posso dizer o mesmo que alguém a respeito da sorte grande: uma
coisa que espalham que era para os outros.
Na lista das pessoas a quem devem ser entregues exemplares de Frei
Vicente em S. Paulo, peço por seu intermédio aos editores sejam incluídos
os Drs. Galeno e Brás de Revoredo. Trabalho nos textos bacairis. Devo
acabar hoje ou amanhã a transcrição das ( ilegível ] definições ; em geral
estavam traduzidas e não oferecem dificuldades.
O mesmo não fiz aos mitos e não sei como darei conta dēles . Dis
ponho de tempo e não fugirei sem ver de quê .
Respeitos às sr.as
Bien à vous,
Cap.
Pedras Altas , 25 de novembro de 1918.
CARTAS A AFONSO TAUNAY 299

Afonso amigo ,
Um telegrama de Paulo adiou sine die a excursão a S. Martinho.
Mesmo sem o adiamento eu não iria, porque turvavam-se os céus hipocrá
ticos . Combinei com o Briguiet um atlas histórico do Brasil. Chamei

para auxiliarem o Rod. Garcia e o Gentil Moura, éles farão o serviço ;


ficarei com a batuta.
Enviei à Casa Weiszflog um exemplar do livro do Herbert Smith,
sugerindo a reimpressão. Veja se percebe alguma cousa : como pretendia
ir esta semana a São Paulo, não pedi resposta. O livro de Herbert Smith
intitula -se Do Rio de Janeiro a Cuiabá e só existe na tradução que fiz
do original inglês, nunca impresso até hoje.
Desejo que dêste ao outro São Silvestre tudo seja de ventura para
V. e os que lhe são caros.
Respeitos às senhoras .
Adeus, nova geração ! ( Seus meninos e meninas: pensei que fosse
claro. )
Bien à vous,
C.

S. Silvestre, dos dois 19.

Ignotum per ignotius,


Escrevi a Figueira de Melo para procurar a viúva Lúcio de Azevedo :
dela receber cópias, informações, dinheiro para continuar o trabalho in
terrompido.
Não confiando em meu prestigio junto ao diplomata, com quem ficou
suspensa minha correspondência, que foi transferido para o Tibre, escrevi
ao cunhado para que encaminhasse e apoiasse minha carta com outra, de
apresentação à viúva.
Miguel satisfez ao meu pedido em principios de dezembro, creio.
Até agora nada de resposta. Teria ela sido transferida para o Letes ?
Esta semana começo a mover -me. A 24 estarei em Alegrete, de 27-28
de março São Borja, 8, Uruguaiana, 8, Pedras Altas.
300 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Com o equinócio começarei a procura do mar e estarei no Rio na


primeira semana de abril . Acharei desencantada a Nobiliarquia ?
Bien à vous,
CAP .

Pôrto Alegre, 17 do capenga de 1919.

Afonso amigo ,

De Pedras Altas man -lhe dois outros cartões que ficaram sem
resposta . Considero -os extraviados, mas não devem ter sido porque
Weiszflog recebeu os dêle. Aqui cheguei a 4, mas ainda nada fiz.
Vou ler agora o primeiro volume da História do Padre Vieira de
que João Lúcio me foi mandando as provas. Sem o apêndice, que consta
de documentos e ainda não chegou, termina o vol. 366 com a retirada defi
nitiva do Maranhão para a Europa.
A redação do segundo volume ficará concluída em outubro. A parte
mais curiosa deve ser o processo da Inquisição desflorado por João Fran
cisco Lisboa e agora esgotado.
Recebi e agradeço novamente o número da Revista. Está bem feito
e dissipou meus receios. Apenas lamento que não saísse completo o tra
balho do frade . A revisão do léxico de seu pai é oportuna, mas não
viria melhor no fim.
Não li ainda o trabalho de Childe, deve estar bem feito, pois me
dizem ser de grande competência. Mas seria mais urgente ?
Vamos ver agora o que fará Frei Salá.
O caiapó, no fundo, deve ser a mesma língua dos caingangues e
dois trabalhos podem esclarecer -se. Afinal são os ubirajaras, tão falados,
que Alencar considerava tupis típicos. Com os novos elementos talvez se
possa decidir se os aimorés pertencem ao grupo jé. Não me parece.
Agora chamo tôda a atenção para um ponto que talvez em pouco
tempo seja insolúvel . Há em São Paulo e no Paraná uns xavantes in
teiramente diversos dos do Tocantins. As poucas palavras conhecidas re
velam certa semelhança com os guaicurus. Os xavantes atualmente já são
poucos e em breve desaparecerão [ ilegivel ] em massa.
AFONSO TAUNAY
1
CARTAS A AFONSO TAUNAY 301

Desde que cheguei nada fiz. Vou ver se leio o livro do Padre
Teschauer para reconciliar-me com o bacairi.
Respeito às sr.as
Bien à vous,
C. DE A.
Domingo de Páscoa 19.

Obrigado pelas Atas e Registos.

Obrigado pela nota. A razão está evidentemente do seu lado. Por


que não seria o próprio Taques o autor do artigo ?
Já uma vez lhe escrevi que Silva Lisboa copiou páginas e páginas do
genealogista paulistano cujos escritos conheceu na roda de João Pereira
Ramos ; também pode ser éste.
Não tenho tido notícias de sua edição da Genealogia.
Encalharia aqui ainda ? Passarei sábado no Instituto ; não tenho ido lá.
Amanhã talvez tenha notícia sobre Figueira de Melo jantar com o
cunhado.
Respeitos à sr.a.
Bien à vous,
Cap .
Rio, 11 de junho de 1919.
A nota de Madureira não recebi nem sei do que trata. Os verbetes

da biblioteca do Eduardo são com certeza diferentes das cópias que re


cebi. Estas não eram conhecidas enquanto viveu. A primeira notícia
deve-se a Antônio Baião, diretor da Torre do Tombo.
Pode informar-me em que consistiram as descobertas de Figueira de
Melo na Propaganda Fide ?
Sei que brevemente estará por aqui.
Rangel talvez esteja entre nós lá para agôsto, informaram -me no
Grêmio E. da Cunha .
Como vai a tradução de Boesche ?
C.
Rio, 13 de junho de 1919.

Não encontrei no meio da papelada sua carta sobre os medalhões.


Vou procurá -la novamente, e apenas encontre, mandarei.
302 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Vejo que já tem em seu poder a História de Antônio Vieira. Man


dada pelo autor, ou comprada aí ? Por ca ainda não a vi nas livrarias.
Estou vendo se escrevo alguma cousa sobre ela .
Respeitos à sr.a.
Bien à vous ,
C.

Rio, 15 de agosto de 1919.

O livro de R. Pombo recebi mas não li. Seu artigo não conheço.
Mandando algumas coisas para João Lúcio, incluí seus artigos sobre
Xeria .
Se V. fôr capaz de sacrificio, aconselharia um : deite fora a retórica,
reduza o volume ao rigorosamente significativo e ajunte como apêndice
ao Frei Gaspar os seus estudos sobre São Paulo no século XVI .
Recebi ontem um telegrama de Belo Horizonte convidando -me a con
tribuir com alguma cousa para o Congresso de Geografia. A estas horas !
Lembrei-me de estudar a estrada da praia mas duvido que o tempo chegue
para reunir os materiais.
Respeito às sr.as
Bien à vous,
C.

Rio, 26 de agosto de 1919.


Se puder, mande umas três separatas do B. Sobre o livro escrevi no
Jornal há uns anos.

Segue no luxo o Dr. José de Mendonça, meu discípulo no tempo do


Colégio Aquino ( 1876-79 ) e amigo desde então .
Procure-o, festeje- o e afague-o ; tudo merece, tudo agradecerei.
Ontem comecei a ocupar-me com a livraria do meu finado amigo
Ramos Paz. O catálogo vai muito adiantado, mais de dez mil fichas.
Vou proceder a uma distribuição sumária e proveitosa de modo a não
acumular subdivisões e evitar asneiras .
CARTAS A AFONSO TAUNAY 303

Quero ver se parto para aſ em fins de outubro, mas está tudo subordi
nado ao encargo da livraria .
Respeitos às sr.as.
Bien à vous,
C.
Rio, 18 de setembro de 1919.

Afonso amigo,
O reumatismo pegou -me a 10 de novembro. Ia soltar -me a 29 quando
um copo de leite em jejum, o mais daninho e letal conhecido desde que
mamíferos pastam , quase levou -me a outro mundo.
Recebi e agradeço a fotografia do mapa. Fiquei triste, os letreiros
não fazem parte dêle, são talvez mais importantes que o traçado. Como
aproveitá - los? Que motivo de ordem sagrada ou profana, burguesa ou
bolchevística aconselhou uma redução de tal ordem ? Num começo de ca
tálogo de mss. da Bib. Nacional de Lisboa encontro duas novidades que
podem interessar-lhe : primeira, a cópia não chegará mais a tempo, trata -se
de uma carta de Frei Gaspar da Madre de Deus sõbre a história eclesiás
tica do Rio de Janeiro ; a 2.a é um livro contendo as ordens régias
existentes na Secretaria do Governo de São Paulo, a partir de 1702 até ...
De outra vez darei informação mais completa.
Para mostrar que não morri é o bastante.
Respeito às sr.as
Bien à vous,
C.
Rio, 4 de dezembro de 1919.

Afonso amigo,

Junto as duas notas que lhe interessam, tomadas da parte do Catálogo


de M ss. da Bibl. Nac. de Lisboa, que foi impresso. A carta de Frei Gaspar
não pode ser muito longa ; o índice do livro de ordens tão pouco . Talvez
escrevendo ao diretor do estabelecimento, em caráter oficial, V. obteria
uma cópia, pagando.
Examinando o índice, V. poderia recorrer ao Washington que, segundo
me informou Paulo Prado, está disposto a imprimir todo o arquivo.
304 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Que providência fará ? Se atender aos convites de França, em vez


de ficar na terra ou ir aos Estados Unidos, poderei tirar o horóscopo.
Muito obrigado pelos três artigos, que li com interesse crescente .
Mais uma vez chamo sua atenção para as paráfrases e alusões. Não es
tará V. em idade de poder ou vir ainda libertar - se dêste cacoete ? Não
tenha medo de fazer artigos curtos e siga o conselho augusto : pão, pão ;
queijo, queijo.
Sarei do ataque de gộta; para acautelar o futuro, tomei o Paulo para
médico e estou usando desde domingo o suco hepático que me receitou.
Respeitos às sr.as.
Bien à vous,
C,
Rio, 17 de dezembro de 1919.

Afonso amigo,
Recebi as provas do seu trabalho. Ainda não comecei a ieitura para
não ler de interrompido com outros.
O cacoete já é mais alguma cousa :

Cesse do sábio grego e do troiano ;


Cale - se de Alexandre e de Trajano ;
A quem Netuno e Marte obedeceram ;
Nunca por Dafne, Clicia ou Leucotói;
são belos modelos dignos de eterna imitação.
Conheci um bispo ou arcebispo do Tesouro, gravibundo, hierático,
dignitário da ordem do amor e da fidelidade. Não gostava que o cha
massem comendador; um dia, com espanto, em um lugar seleto do Jornal,
lemos com espanto uns versos seus :
Ao café
Esta bebida que tão útil é.
Visitava minha sogra, que ainda não vira, sua conhecida da Bahia.
Ostentava, calmo, no dedo apropriado, um farol escandaloso.
Discutiam as môças há quanto tempo foi isto ! se ele acreditava
trazer mesmo um solitário legitimo ou se esperava impor-se ( ilegível] à
galeria.
Quando menos o esperava, tenho de ir a São Paulo, chamado por
um convite do Conselheiro, transmitido pelo Paulo , para , dia de Reis,
CARTAS A AFONSO TAUNAY 305

assistir à inauguração da casa nova , na fazenda de São Martinho.


Estava tão longe de prever esta aventura !
Não posso faltar a este convite, que já é o segundo, mas não irei
garboso. Faceto e abnegado, como dizia um velho major do Exército que
tão boas gargalhadas me fez dar no Ceará, em 1874 .
Irei pisando brasas, só tratando de voltar o mais depressa possível.
Na Paulicéia passarei horas. Pretendo partir na Costeira dia de Ano
Bom ; passar com Jaguaribe um ou dois dias e de volta de São
Martinho apenas esperar as horas do primeiro trem noturno .
Viu no Jornal do Brasil de 25 o artigo de Alberto Rangel sõbre a
revolução de 17 ?
Boas saídas e melhores entradas.
Respeitos às senhoras. Adeus, nova geração !
Bien à vous,
C.
Rio, dia de São João Evangelista. [ 1919)

Afonso amigo ,
A nova geração consta de suas filhas e de seus filhos. Digo -lhes
adeus, conformando m
- e com o preceito de certo prêto que, tendo um ôlho,
fingia de rei em uma terra de cegos.
Acostumai -vos a ser invocados.
Você seria muito gentil se remetesse o último número da Revisto do
Museu e os que viessem depois ao
Dr. Th . Koch-Grünberg.
Stuttgard, Hegel Platz, 1 , Alemanha.
É autor de várias obras de valor sõbre etnografia, particularmente do
Amazonas. Acabo de receber dois volumes de uma que constará de cinco .
Pròximamente irei a Caxambu lavar o fígacio e os rins, como me aconse
lha o médico amigo. Prende-me apenas a revisão das provas de um
catálogo
Respeitos às senhoras.
Adeus, nova geração !
Bien à vous,
CAP.
Rio , 17 de fevereiro de 1920.

23 --- 1 .
306 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Afonso amigo,
Adeus em minha terra não tem significação agoureira que V. lhe
empresta. Escrevendo : adeus nova geração ! não digo mais do que :
Salve, Afonsinhas e Afonsinhos ! acostumai-vos a ser invocados, ó Tau
nayzinhos !
Ocupo -me agora com o catálogo da livraria de meu finado amigo
Francisco Ramos Paz. Não descrevi os livros, não os avaliei, não os
reparti em classes, embora indicasse as que me pareceram mais simples,
revejo apenas as provas e serei o responsável de tudo ! Haverá em toda
a superfície do planeta um rei mais constitucional ?
Obrigado pela remessa da Revista a Koch -Grünberg em Stuttgard.
Respeitos às sr.as
Adeus, nova geração !
Bien d vous,
CAP.
27 de fevereiro de 1920 ,

Afonso amigo,
Dei uma rápida busca na Bib. Nac. e não achei a carta do holandês ;
fica para mais tarde. Parece que o documento inédito que lhe mandaram
é a resposta de que Garcia remeteu cópia. Por uma conversa com o
Souto Maior, penso que este adianı iu muito ao que se sabia sôbre o
renegado paulista e não haverá muito a acrescentar.
Comecei a leitura de seu livro, encontrei nas primeiras páginas Brasil
mandado corrigir por um modo que não quero reproduzir, senti a picada,
suspendi a leitura. Levo -o agora para Caxambu e irei ao fim e lhe
escreverei. Consola-me não ser justo o nome de mestre, trazido por suas
cartas.
Vejo ligeiramente seu trabalho da Rev. Trim . ao qual só mais tarde
prestarei a devida atenção, porque não cabe na mala.
Gentil encontrou no mosteiro o testamento da mulher de Céspedes, o
inventário do velho Salvador, um título de dívida, contraída na Bahia
pelo governador do Paraguai e outras cousinhas mais. O arquivo do
mosteiro de S. Bento possui algumas preciosidades, e Gentil, a quem
o abade trata generosamente, vai -as desencavando.
CARTAS A AFONSO TAUNAY 307

Devo partir amanhã para Caxambu, onde permanecerei um mês.


Respeitos às senhoras.
Adeus, nova geração.
Bien à vous,
C.
Magister elegantiarum .
[ s. d . ]

Afonso amigo ,
Lendo os trechos do Diário, lembrei-me que V. poderia , se a possui,
publicar a correspondência com o Azevedo Castro ; seria muito interessante.
Quem um português, colaborador do Correio Paulista, que deu no
Instituto daí um artigo sobre Caramuru , fundado sõbre documentos por
tuguêses? Foi publicado ? Que novidade contém ?
Continuo faiscando em Minas, mas os últimos dias pouco tenho feito.
Hoje Calógeras deve marcar o dia da partida para Caxambu.
Se ainda demorar, partirei na quarta - feira de cinzas.
Respeitos às senhoras.
Adeus, nova geração ! ( nova geração é a prole ) .
Bien à vous ,
C.
Rio, ano da morte de J. A. Maranhão, 1920.

Afonso amigo,
Num artigo de seu pai, impresso na Gazeta, lembra-me ter lido
que da gente vinda a Caxambu sem consultar médicos, alguns morriam de
repente. Se o mesmo me suceder, não poderei queixar-me da falta de
aviso.
Desde 19 comecei o uso das águas Dom Pedro pela manhã ,
D. Leopoldina à tarde. Viotti aconselha que se comece pelas de seu nome,
mais fracas e por isso mesmo mais eficazes. Submeti-me sem protesto.
Hoje devo vê-lo. Hei de interrogá -lo sobre as tais mortes repentinas.
Trouxe muito poucos livros ; fiquei aborrecido de entre eles não encon
trar o seu ; já o reclamei duas vezes, e espero que a última dê resultado.
308 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Escrevi a Garcia pedindo o último número da Revista do Instituto, que


contém muito documento sobre Goiás, para lê-los a Guimarães Natal, meu
companheiro de trem .
Não sei como não veio o 7.0 vol. da Revista do Arquivo Mineiro,
que é indispensável para o que desejo - um esboço do povoamento de
Minas para acompanhar o mapa no tal atlas histórico.
Em duas páginas aqui escritas chegarei a Fernão Dias. Como vē,
caminho a passo largo. Se encontrar a Revista do Arquivo nas mãos
de algum amador local, tratarei no mesmo compasso do ribeirão do
Carmo, do rio das Velhas e do das Mortes e do Jequitinhonha, sem demo
rar na mineração além do indispensável. Conto não ultrapassar 20 a
30 páginas o que tenho a dizer até o século XIX . Gentil já tem quase
terminado S. Paulo em 1720 ; Garcia labuta com a antiga capitania de
Pernambuco .
Trouxe o livro de Felisberto Freire e o de Borges de Barros para
fazer um reconhecimento da Bahia ; o de Borges de Barros sobre ban
deirantes e sertanistas baianos contém alguns documentos interessantes...
A diária do hotel Correia Nunes é de 7 $ diários ; não pretendo
exceder de 200 $, mesmo porque devo ir a Machado um dia de viagem ,
se ainda existir a linha de automóveis em Pontalete visitar minha

filha, casada com um parente meu , parente do Jaguaribe. Espero estar


no Rio antes de 20 de abril .
Respeitos às senhoras.
Adeus, nova geração !
Bien à vous ,
C.

[ s. d .]

Três Corações, 12 de abril de 1920.


Afonso amigo,

Como em Caxambu se vendem passagens até aqui, decidi passar o


domingo de Páscoa às margens do rio São Lourenço, que a pouca distân
cia acaba no Verde, como éste desemboca no Sapucaí, em Pontalete, de
onde um automóvel me levará a Machado, a horas de jantar com minha
filha. Em Machado minha demora será curta .
Grande parte do dia de ontem empreguei lendo seu livro sobre São
Paulo quinhentista. Já estou no meio e hoje ou amanhã devo terminar.
CARTAS A AFONSO TAUNAY 309

V. proporcionou -me horas agradáveis e a mesma sensação proporcionará


aos leitores. Seu método de exposição tornará popular a leitura e é bem
possível que a tornem mais atrativa as perífrases, alusões, etc., afins dos
canindesismos que prenderam meu pobre patrício à famosa baronesa. De
pois de completar a leitura, exporei algumas dúvidas.
Há uma distração curiosa em seu livro : supõe as câmaras do tempo
regidas pelos Filipinos. No trabalho sobre as Atas, que comecei, o pri
meiro artigo devia intitular-se A Câmara de S. Paulo, sobre as Ordenações
Manuelinas. Se tivesse tempo, escreveria, porque não fariam double
emploi com o seu.
Volto de Minas, com idéias bastante claras, e, creio, exatas, sobre o
modo por que povoaram -se estes sertões. Tarda -me chegar à casa para
pô -las à prova. Em Caxambu só tive à mão o 8.0 vol., parte 2.a, de Mon
senhor Pizarro. Mesmo assim escrevi umas cinco páginas.
Quem é o professor Sintra ? O do dicionário anunciado pelo Mon
teiro Lobato será o mesmo de um artigo sobre a Independência, em que ouvi
falar ?
Respeitos às senhoras. Adeus, nova geração !
Bien à vous,
C.
O número da casa na Rua D. Luísa é 145 .

Afonso amigo,
Não quis escrever-lhe sem antes ter lido seu discurso . Li-o com
o maior prazer e, encantado, continuei, quando cheguei à parte dos accesits,
flores e menções honrosas. Caiu-me a alma aos pés, suspendi a leitura e
apagaram - se umas observações que pretendia apresentar.
Continuo no trabalho sobre o povoamento de Minas Gerais, mas o
resultado não corresponde ao esforço. Quando quis tirar a soma do que
cclhera sôbre o Sêrro, admirei -me da pouquidade da colheita.
Devia passar a Sabará, mas convenci -me que seria preferível atacar
a comarca do rio das Mortes, mais difícil e, por sua posição entre a de
Sabará e Vila Rica, muito mais importante.
Deveria passar mais tarde à Bahia, porém resolvi liquidar antes o
caso de Santa Catarina e Rio Grande do Sul . Documentos novos não
faltam , mas qual será o espólio ?
310 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Tenho pensado no povoamento do Piauí; escrevi hoje para Teresina


ao Antônio Freire, senador engenheiro, a quem estes assuntos não são
estranhos.

Uma conversa com Lutzselburg, que esteve no Maranhão e Piauí por


conta da repartição das secas, e anteontem embarcou para o Ceará, comis
sionado pela mesma repartição, clareou -me muito as idéias. Prometeu-me
também informações sobre Jeremoabo ; pode ser que o caminho antigo, que
por lá passava, fique menos obscuro.
Respeitos às senhoras.
Adeus, nova geração !
Bien à vous ,
c.
C.
Sob a sombra do Gigante de Pedra , 9 de maio de 1920.

Afonso amigo,
Acabo de receber e muito agradeço o último número da Revista.
Já lhe passara os olhos, não sei bem se na Câmara, se no Instituto.
Duas impressões senti : muito grosso, muito grosso, muito grosso. Acho
a ventripotência tão [ ilegível ] no indivíduo como no livro. Além disto tive
uma decepção por não ver continuado o trabalho lingüístico. Na mesma
ocasião vi algumas das deliciosas manifestações de Ihering e a lista dos
manuscritos valencianos.
Minha excursão a Vassouras foi adiada talvez para setembro. Já
mandei ao Bradenburger sua lista das inirabilia urbis para ele tê-la em
vista quando me cornaquear.
Passei algumas horas bem agradáveis e proveitosas com Teodoro
Sampaio, estudando mapas e roteiros da Bahia : é extraordinário !
Há três dias chegou meu velho amigo Studart. Não o encontrei
ontem em casa . Espero ser mais feliz hoje. Vem descansar e bem
Vi ontem dois artigos meus, escritos sobre o povoamento de
merece - o .
São Paulo e publicados na Notícia em 1895. No espólio do Paz encon
trei outros de 1899, impressos no Jornal do Comércio. Tudo bastante
atrasado e exigindo sérias modificações para ser posto em dia. Aproveito o
oferecimento do Fernando Gabaglia para reeditá-los nos Anais do Pedro
II . Corrigirei alguns erros do texto e em algumas notas exporei o que
penso vinte anos depois. Comecei a receber as cópias relativas à família
Pais, uma exposição de serviços apresentada pela viúva, outra por Garcia.
CARTAS A AFONSO TAUNAY 31

Veio também a primeira nomeação para Santos, em 1639. Naturalmente


virão depois as cartas régias e de governadores.
Pedi também os documentos sobre a Guerra dos Emboabas, que pare
cem bastante numerosos. Já apareceu o Vieira na livraria Alves daqui.
É possível que o mesmo suceda na de lá. Faça propaganda que bem
merecerá. João Lúcio já tem impressa a parte da biografia relativa ao
processo da Inquisição e está pegando na História dos Cristãos-Novos.
Até outubro .

Respeitos à senhora. Adeus, nova geração !


Bien à vous,
C
Sábado, 10 de junho de 1920.

Afonso amigo,
Se o ateniense sou eu, é que sou ático e le frappé c'est moi. Não
confundamos. Incluo um cartão do Dr. Schuller. Está em Viena, como
verá V. Pode, portanto, encarregar-se da cópia dos documentos rela
tivos à Independência. Dos documentos alemães pode mandar, além
das cópias, os originais.
Não sei se lhe disse que encontrei três artigos meus sõbre o povoa
mento do Brasil, publicados em 99 no Jornal do Comércio, que estou
preparando para a reimpressão. Quisera juntar-lhe dois sõbre o povoa
mento de S. Paulo, dados primeiro na História ; não há meios de desco
bri-los.
Quem é o Dr. Silveira Brasil, cuja História que é a luz por sua
morte ? [ ? ] Diz A. Sintra que é riquíssimo e votou a vida a esta
obra.

Na próxima semana pretendo visitar ligeiramente Morro Azul, Sa


cra Família, Vassouras, que nunca vi, e talvez chegue a Valença.
Respeitos às senhoras ! Adeus, nova geração.
Bien à vous,
C.

Quinta-feira, 17 de junho de 1920.


312 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Afonso amigo,
A 14 dirigi-lhe um telegrama, pedindo com urgência o endereço de
Schuller, contido num cartão que em tempo remeti, lembrando a con
veniência de aproveitar-lhe os serviços para cópias em Viena.
O telegrama era para atender a um pedido de Tobias Monteiro , foi
passado por um irmão dêste, que declarou ter o recibo.
A resposta ainda não chegou ; tive de servir -me de um endereço
existente no Instituto Histórico, que me parece incompleto.
Estou fazendo uma cousa que sempre me repugnou .
No espólio do Paz encontrei diversos artigos meus, de alguns dos
quais não me lembrava mais.
Fernando Gabaglia ofereceu m
- e a hospedagem do Anuário do Colé
gio Pedro II, prometendo -me um certo número de separatas. O ofere
cimento tentou-me, mandei copiar alguns artigos a muito custo descobertos
e posso oferecer-lhe um indice quase definitivo.
Caminha e a sua carta, do Jornal do Comércio de 1908 ; Gandavo,
da Notícia de não sei quando ; Rocha Pita, da Gazeta de 1880 ; Varnha
gen, do Jornal de 1878, logo que aqui se espalhou a notícia do falecimento,
e da Gazeta de 1882, quando se inaugurou o monumento do Ipanema.
Juntarei também dois artigos sobre o povoamento de S. Paulo, da
Notícia, de 95, três sõbre o povoamento do Brasil de 1897, talvez um
da Gazeta de 1880, que juraria nunca ter escrito e vou ver se é aprovei
tável.
Já recebi tôda a papelada de Fernão Dias, contendo um comunicado
dêle, já de volta da expedição e muitos poucos dias antes da morte, uma
petição de serviços, redigida pelo Padre João Leite, uma exposição de
serviços de Garcia Pais, uma carta de D. Rodrigo.
Para mim o importante é que D. Rodrigo seguiu o itinerário de Fer
não Dias e, como aquele partiu da Atobaia , este deve ter feito o mesmo.
Na próxima semana deve começar a vir o dossier da Guerra dos
Emboabas. Conforme o conteúdo, escreverei ou não alguma coisa, se
merecer, talvez para incluir na tal coleção.
Espero caiba tudo em umas cento e cinqüenta páginas.
Meu princípio é este : corrigir os erros, pôr os fatos em dia, deixar
intactas as idéias, corrigindo -as em notas, se me parecerem erradas.
Uma conversa com Gentil deu-me que pensar ; contesta ele que o Tieté
fosse caminho das bandeiras, antes das que levaram a Mato Grosso .
CARTAS A AFONSO TAUNAY 313

Não sei se ele tem razão ; acho que não terá, mas prová-lo parece
difícil porque ponho em dúvida o que sempre acreditei implicitamente ;
pega -me desprevenido.
Continuo disposto a partir para Caxambu em agosto, mas a demora
de minha filha, que devia chegar de 8 a 10 de julho e ainda não deu
sinal de vida, me atrapalha bastante.
Em outubro pretendo ir a S. Paulo : partindo pelo noturno de 22,
pararei uma semana com Martim Francisco e depois descerei para os
banhos de mar em S. Vicente, com que Jaguaribe me está acenando.
Respeito às senhoras .
Adeus, nova geração .
Bien à vous,
C.
Domingo, 25 de julho de 1920.

Afonso amigo,
Esperava a chegada dos documentos sobre a Guerra dos Emboabas
para lhe escrever. Ainda não os recebi e creio que haja qualquer extra
vio. Seria o primeiro.
Os papéis de Fernão Dias são interessantes mas não trazem grandes
modificações ao que se sabia : apura-se a data exata da partida, a sua
idade de 67 anos no começo da empresa e, portanto, a morte aos 74 ;
levou consigo porcos e galinhas e pelo menos um cavalo que montava, etc.
A estrada ou antes o caminho de Garcia Pais se esclarece melhor.
Chegado num certo ponto mudou-se para a Penha daqui, e atacou ao
mesmo tempo do lado de cá pelo rio Pilar, e do Paraíba para a divi
sória das águas .
O caminho de Proença, preconizado pelo Basilio, que já figurara
nos meus Capítulos, foi feito porque Garcia, alegando a idade, não quis
tomá-lo a si .
Um ponto ainda não consegui deslindar. O caminho de Pais, a prin
cipio, chamou -se apenas Caminho Novo ; depois da obra de Proença este
ficou conhecido pelo nome de Caminho de Inhó -mirim e outro pelo de
Couto . Não apurei quem fósse tal Couto.
Ontem ficou ultimado o negócio da livraria do Paz. Não irá a leilão :
Arnaldo Guinle apresentou a proposta de 75 contos pagos em janeiro e
recebendo os juros até lá. Naturalmente Guinle marcou esta época por
que é a dos dividendos.
314 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Agora tenho de escrever uma ligeira notícia do meu finado amigo.


Para informações procurei ontem um seu conhecido velho que pouco
adiantou . Ficarão assim muito secas as seis páginas a que pretendo cir
cunscrever -me.
Schuller recebeu a revista e mandou um recibo que, se encontrar,
incluirei nesta ou na outra .
Peço -lhe mande um exemplar para o Dr. P. Rivet, Rue Buffon , 61 ,
Paris. Tanto quanto posso julgar é a maior autoridade francesa em ques
tões de índios da América do Sul.
Numa carta de J. C. Branner, referindo-se ao Professor Jerernias,
remetida pelo Monteiro Lobato, contém o seguinte : That author ought
to be heard from again ; he certainly is a highly entertaining writer.
Is Leo Vaz a nom de plume?
Habilite -me a responder à pergunta.
Pretendia estar, esta hora, em Caxambu : a liquidação da livraria
do Paz, a chegada de minha filha no domingo burlaram -me o plano. Só
irei em abril futuro.
A minha ida a S. Paulo, em fins de outubro, continua resolvida.
Ficarei dois ou três dias na Paulicéia, partirei depois para São Vicente.
Gentil já entregou o mapa de S. Paulo em 1720 e o de Minas em 1780.
Trabalha agora no de Pernambuco em 1749, fundado na Informação Geral
de 1749, impressa nos Anais da Bib. Nac. Entendi que no caso de
existir un mapa contemporâneo serviria de base quanto à nomenclatura .
Na geografia física serão utilizadas as informações mais recentes ; os
claros mostrarão os lugares que ainda não eram povoados.
Cada mapa deve ser acompanhado de comentário conciso e preciso.
Como vai Taques? Como vai Frei Gaspar ?
Esta semana Said Ali deve entregar a Weiszilog a primeira parte
da Gramática Histórica. Desejo muito que esteja impresso em março.
Além da Lexiologia terá a Sintaxe Histórica. O livro de Epifanio é o
que os alemāks chanyam bahnbracher : Infelizmente o autor niorreu
apenas entregou o manuscrito ao prelo, e a Sintaxe veio à luz com todas
as imperfeições dos livros póstumos.
Conheço algumas partes da Gramática Histórica de Said Ali e
tanto quanto posso julgar, une a ciência à consciência.
Tenho em meu poder 3 contos de réis de Paulo Prado para adquirir
certos livros na biblioteca do Paz. Como a oferta do Guinle inutiliza
CARTAS A AFONSO TAUNAY 315

o objeto, penso em empregar estes cobres na Bib. Nac. Seria possível


saber quando o esperam ?
Respeitos às senhoras.
Adeus, nova geração !
Bien à vous,
C.
4.a feira, 1 de setembro de 1920.

Afonso amigo,
Tivemos chuva e reis da Bélgica e Congo. A chuva parece entrar
em férias ; sem grande alvorôço. Os reis continuam não muito satisfei
tos . Não encontraram o Brasil de seus sonhos. Queriam ver mata , ser
tão, indios ; encontraram engrossadores, toma -larguras e mendigos de co
mendas . Defendem -se, condecorando chauffeurs e abreviando uma se
mana a camisola-de- fôrça. Pensei em traduzir-lhe no melhor flamengo
a Prisão de Tasso do velho Magalhães e mandar como lenitivo.
Comecei a receber os papéis dos Emboabas; os chegados esclarecem
apenas a primeira parte ; os que faltam não me parece que lancem grande
luz sobre a missão de Antônio de Albuquerque.
A biblioteca de Fr. Ramos Paz passou às mãos de Arnaldo Guinle
por 75 contos. Escrevi no suplemento do Catálogo uma pequena nota,
de que talvez consiga avulsos. Se conseguir, mandar-lhe-ei alguns, para
V. distribuir com os amigos.
Minha ida aproxima - se. Pretendo partir no primeiro noturno de 22
de outubro, tomar o Hotel Fracarolli [ ? ] , passar uns três dias na Pauli
céia, uma semana com o Martim Francisco, estar em S. Vicente no dia
dos finados, aniversário de Jaguaribe. Com ele a demora será melhor.
Tenho estado com Fidelino de Figueiredo, expressa recomendações
de Lúcio de Azevedo. É môço trinta e dois anos simpático, sim
ples. Amanhã Ramiz pronunciará o dignus est intrare no docto corpore
do Instituto. Depois começará as conferências no Instituto, na Biblio
teca Nacional, no Gabinete Português. Irá também a São Paulo.
316 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Há em Portugal, à venda, um códice de Gaspar de Sousa, semelhante


ao de D. Luís que V. adquiriu para o Museu
Museu.. O dono pede 3 contos .
Não se deixa tentar ?
Respeitos às senhoras.
Adeus, nova geração !
Bien à vous,
Cap. ( Beócio )
31 , [ ? ] 28 de setembro de 1920 .

Afonso amigo,

Outro dia , por baixo de uns papéis velhos, encontrei uma


para V. em envelope selado. Mandei - a para o correio sem abrir. Que
conterá ?
Depois de amanhã, 6.a, pretendo tomar o primeiro noturno e aí estar
às horas do horário, se algum incidente não cortar a oração principal.
Depois de abraçar os amigos, infelizmente reduzidos e muito poucos,
despencarei para Santos -São Vicente,
Respeitos às senhoras.
Adeus, nova geração !
Bien à vous,
C

Quarta -feira, véspera das 11 mil virgens, 1920.

Afonso amigo,
Nos jornais li a noticia de sua excursão presidencial e da inaugura
ção do Caminho do Perequé.
Pouco tenho saido. Fui duas vezes a Santos comprar coisas de
que precisava. Cheguei de bonde até a ponta da praia. Vi um trecho
da Praia Grande : em Intanhaém estive da outra vez. Segunda-feira
almoçamos com o Conceição ; se o tempo consentir, visitaremos Bertioga
no próximo domingo. Quando vem ? Avise com antecedência , para
evitar desencontros.
Aqui fêz grande calor um dia, os mais tenho achado bem toleráveis.
Com as moscas e mosquitos não me tenho dado tão bem. Todas as
manhãs caio no mar com Jaguaribe e, como não nos atiramos a arrojos
CARTAS A AFONSO TAUNAY 317

aquáticos, representamos honestamente o papel de dois heróis circuns


pectos.
Pretendo subir a 1 de dezembro, e demorar o menos possível na
Paulicéia ; um dia para o Museu, um almoço com o Galeno , outro com
Brás, outro com o Capote. Não sei o que Paulo e o Conselheiro man
darão. Gostaria de dormir na minha rede até a Conceição . Pousarei
com Martim .
Respeitos às senhoras.
Adeus, nova geração !
Bien à vous,
C.
4.2 feira, 17 de novembro de 1920.

Afonso amigo,
Leu V. o Wilhelm . Meister algum dia ? Nêle terá achado umas
quadrinhas terriveis de harpista, e no último verso : tôda culpa ou pecado
ou
cousa que valha ( Schuld em alemão ) se expia neste mundo.
V. pecou cacografando o nome de nossa terra : não o fêz impune
mente , como vou mostrar.
Diz V. que a 2.a edição de Frei Gaspar deve - se a Varnhagen.
Ela saiu justamente com o Diário de Pero Lopes. Procure a Revista do
Instituto de 1861 e verá que Varnhagem se queixa de não lhe teren
comunicado as falhas de imprensa e por isso a segunda edição do
Diário saiu inferior à primeira. Que tem isto com as Memórias ? per
guntará V. Respondo : procure à pág. 139 de sua edição e lerá : . " O
roteiro de Pero Lopes de Sousa que vai em seguimento destas Memó
rias assinado M. 0. ” Não será a sigla de Machado de Oliveira ?
Pág. 8 [ilegível] da cópia do Peixoto : " sendo chamado pelo povo para
aclamarem rei...” e na página seguinte, em confronto : “ para o aclama
rem rei” . Será a mesma cousa ? Diz Renan Renard : Il faut savoir l'art
de soliciter doucement les textes. Usando desta liberdade, vejo con
firmado um palpite meu : proclamada a independência de Portugal , que
riam uns seguir unidos aos Habsburgs e na Rev. do Inst. V. verá o receio
existente na Bahia de que Salvador Correia, casado com uma espanhola,
cumulado de mercês pela corte de Madrid, seguisse -lhe o partido. Pal
pita-me que em S. Paulo Amador Bueno não foi aclamado rei, e sim o
aclamador de Dom João IV .
318 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Se bem me lembro V. perguntou-me por carta : se D. Luis de Sousa,


filho de D. Francisco, e o governador- geral de nome idêntico eram a
mesma pessoa. Respondi-lhe que não e em Frei Vicente fundamentei
minha opinião. Reproduzindo Frei Gaspar, pág. 306 , cabia - lhe a res
ponsabilidade de provar meu erro. Não enxerguei nisto ressaibo de
vaidade : de toda a história pátria só me envaidece uma descoberta : o
mamaluco de Ilhéus ou Espírito Santo que repeliu os franceses chamava
se Cotucadas, não Catuçadas como escreveram Santa Maria, Jaboatão e
Varnhagen . Quando eu tornar ao pó do que sai e V. quiser elevar
um monumento à altura de meus méritos, inscreva como epitáfio Cotuca
das e será um pouco néctar nos campos Elíseos não os da Paulicéia :
plus ultra.
Pág. 40, encontro uma referência à iniqua lei de 1765, supressora
da indústria brasileira. Qual foi ? Varreu-se de minhas memórias, aonde
apenas encontro a de 1785.
Leio algures : Luís Vaia Durão. Será diferente de Monteiro, o
Onça ? Parece que a estes querem reabilitar : Fazenda, conquanto re
servado, não parecerá infenso à tendência.
Uma chicaninha lingüística. Onde se fala em sésamo ? Será no
Aladino ? Talvez V. possa verificá-lo. Se o fizer, veja se não cabe
melhor gergelim ? Qual a conclusão ? dirá V. , já impaciente nestas al
turas .
A conclusão está no Evangelho : vai, e não peques mais : Brasil com
S é mascote ; com Zé urucubaca.
Comecei ontem e tomei hoje a leitura da biografia de que muito
gostei e tirei proveito. Apenas noto que V. podia fazer referências
mais explicitas às fontes.
Calisto tem aparecido e temos conversado bastante. Até sua vinda
cá, ao menos no domingo 21 , já destinado para a Bertioga ou minha
subida com os Braganças ( ? ) .
Respeitos às senhoras.
Adeus, nova geração !
Bien à vous,
São Vicente, 18 de novembro de 1920.

Afonso amigo,
Eu desejaria bem saber que é o mexeriqueiro que lhe manda notí
cias falsas e fantasiosas de minhas passadas, presentes e futuras.
CARTAS A AFONSO TAUNAY 319

Não irei passar o verão no Rio Grande do Sul nem em parte al


guma fora daqui. Nem mesmo pretendo ir a São Paulo como o tal
intrigante referiu a você. Já lhe disse uma vez que no Rio Grande
pretendo ir para o veranico de maio, se A. Brasil estiver em Pedras Altas.
Admiro -me muito de que haja quem se ocupe com os meus projetos
de viajar. Diga ao tal sujeito que lhe escreveu que cuide de assunto
menos fútil .
Quando vem você contemplar o Gigante de Pedra ? Não se esqueça
da cópia que lhe pedi. Dela precisarei breve. Também quero um extrato
do papel que V. viu no arquivo paulista, sõbre José Custódio.
Respeitos à sr.a.
Bien à vous,
Cap.

Afonso amigo,

Muito obrigado pelos pêsames.


Não lhe agradeci há mais tempo, à espera da certeza de sua vinda
para a Paulicéia ou de seu aparecimento por aqui, onde estava anunciada
uma conferência .
Começo a receber provas das Confissões da Bahia . Serão cento e
duas ou cento e três ; cortadas as frases tabelioas, podem caber em 300
páginas ; tenho que fazer um indice bem desenvolvido e uma breve intro
dução. Fiz mal em só agora pedir cópia das Denunciações. Não pre
tendia, não pretendo publicá-las, mas serviam para tornar menos magros
os preliminares.
Recebi ontem as últimas páginas da História de Vieira ; faltam
agora uns apêndices e o índice. Mal dera conta, e tão bem , dêste impor
tante capítulo de História, já o amigo Lúcio tem pronta outra a His
tória dos Cristãos -Novos. E prepara outro , que ele melhor que nin
guém fará : a edição das Cartas de Vieira , de que muitas estão inéditas
e outras foram inutilizadas .
Para este ano conto dar conta dos bacairis, pelo menos em parte .
Conto deixar alguns originais antes de dar um pulo a Diamantina, no
fim dêste ou no começo do próximo mês.
320 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

A empreitada representa uma expiação. Podia ter feito a impres


são há quinze anos ; deixei passar todo este tempo sem olhar sequer para
os manuscritos, alguns se perderam .
Perguntará V. quem me obriga a uma empresa de que não me sinto
capaz ?
Tem toda a razão ; quem me obriga ?
Disse Gentil que Armando Prado, no pouco tempo em que dirigiu
o Museu, publicou alguma coisa sôbre os bens dos jesuítas.
Nunca ouvira falar disto. É capaz de arranjar-me um exemplar ?
Meus respeitos à senhora. De minha excursão a São Paulo trouxe
a tristeza de ter falado tão pouco tempo com ela. Talvez de outra vez
seja mais feliz.
Adeus, nova geração !
Bien à vous,
C. A.
( a feira , 21 de janeiro de 1921. ( S. Vicente )

Afonso amigo,
Escrevo - lhe às pressas.

Jaguaribe escreveu -me, convidando -me para passarmos o mês de


fevereiro em Poços de Caldas.
Já estive lá em 914 ; a idéia de voltar ocupou -me mais de uma vez,
porém, como minha filha mora no Machado e assim podia vê-la , tinha
deliberado ir de preferência a Caxambu em abril.
Mas o convite de Jaguaribe seduziu -me.
Pretendo sair no noturno de sábado . Já escrevi ao Paulo que to
masse cômodo no Fracaroli.
Passarei aí 30, 31 e 1 .
Se V. ainda mora na mesma casa, irei vê-lo, dificilmente no do
mingo, que pertence ao Paulo e à família do Assis Brasil; é mais provável
a 31. O telefone arranjará os avisos.
Sei que nas águas não se pode trabalhar ; apesar disto levarei os mss .
bacairis. E peco-lhe que me arranje, creio que o vol . 3.º da Rev. do Bras.
CARTAS A AFONSO TAUNAY 321

de José Veríssimo, que traz meu resumo de gramática. Quero recor


dá-la.
Respeitos à sr.a.
Adeus, nova geração !
Bien à vous,
C.
Conversão de S. Paulo , 1921 .

Afonso amigo ,
Na fazenda das Três Barras desembocam o Piabanha e o Paraibu
na .
E o Paraíba segue, pedregoso e espumante, para as lezírias ferazes
em que a esfinge de seus entusiasmos tem em uma pata Jocasta, isto é,
o incesto, para o vencedor, e na outra a deglutição antropofágica, para
o derrotado.
Aqui mandou em outro tempo Sousa Ramos, Barão das Três Barras,
Visconde ou não sei quê, de Jaguari. Hoje manda o patrício e o amigo
Moura Brasil que me hospeda.
Trouxe os dois bacairis arranjados pelo Rondon e vim todo cheio
de quo non ascendam ? Cheguei véspera de S. João e ouso dizer não
pode imaginar -se fiasco maior. Um dos índios era o ideal, foi o com
panheiro de Steinen nas explorações e o mestre nos estudos lingüísticos .
Vinha animado das melhores intenções. Com poucos dias apareceu a
gripe, e os índios tornaram-se imprestáveis, intratáveis, insociáveis, in
suportáveis !
Pela beiçola genuína e pela dentuça estirada do ... juro que podia
dizer mais vezes e com maior veemência o famoso O que fizeste.
Cab ral ? das tra diç ões pau lis tas .
Mas, como contra os céus não valem mãos, adoeci também por sim
patia. Véspera de São Pedro dizem que delirei ; era uma intoxicação
gástrica !
Felizmente não estava aqui o velho Moura e nem ninguém da fa
mília e não houve por cima do próprio o incômodo alheio . Agora estou
bom , apenas muito derreado, sarando a capadura.
Que os bacairis afinal dêem de si, que não, ficarei até a próxima
semana, 14 ou 15, o mais tardar.
Neste ponto perguntará V.: este homem tomou tôda a carta para
mazelas e macacoas ?
Não, Afonso amigo : tenho a dar o verdadeiro motivo da epístola.

24 - 1.º
322 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Os trabalhos dos dois frades estão impressos e sei que me esperam


no Rio : desejo umas separatas, se fôr possível: até meia dúzia.
Não sou lama nem crocodilo, não quero saber daquilo ; mas não
perturbarei suas vigilias cívicas nem suas efusões comtescas ante a gafo
rinha mulática !
Respeitos à sr.a.
Adeus , nova geração !
Bien à vous,

3-27-21

Afonso amigo ,

Trouxe para divertir-me em Caldas um caderno de bacairi dos três


copiados em Pedras Altas. Ia medir -me com os textos e elaborar a tra
dução. São 140 páginas bem largas, nem todas cheias : com o texto por
tuguês darão talvez o quádruplo e vou acrescentar-lhes matéria tirada dos
outros cadernos. Depois de quase um mês de aplicação intensiva, não
tenho motivos para desanimar. Traduzo a língua correntemente. Fal
ta-me um glossário que tenho a esperança de arranjar. Inhô Amarante,
genro de Rondon, ofereceu-me um bacairi quando eu quisesse. A meu
pedido, Calógeras telegrafou neste sentido ao sogro , que respondeu estar
providenciando para trazer o indio consigo.
Fixei a estada do indio em três meses para ultimar a tradução, caso
seja inteligente e prestadio ; quinze dias seriam suficientes ; aproveitava
o resto do trimestre para apurar pontos da gramática, que é bem com
plicada.
Penso que as manhãs antes do almoço bastarão para a empreitada.
Assim, restará tempo para a História do Brasil ; se eu pudesse dar nova
edição dos Capitulos !
Últimamente estou lendo Oliveira Viana sobre as Populações Meri
dionais, livro erudito, bem escrito, bem meditado, mas, ao menos para
mim, nada convincente até a página 57, aonde cheguei.
O autor não gosta de mim , deduzo pela omissão proposital de meu
nome ; note bem que escrevi proposital e escrevi muito propositalmente.
Pouco importa ; se os gostos fossem os mesmos em tudo, desde muito
o mundo andaria pelos ares ; verdade é que a perda não seria grande.
Veio -me agora a curiosidade a respeito do Dr. Pompéu ( pronuncia -se
CARTAS А AFONSO TAUNAY 323

como chapéu ; assim ainda hoje pronunciam Pirinéus em Goiás) . Se


não me engano, você achou o testamento ; é possível haja ainda o inven
tário ; na monografia arquiepiscopal sõbre Araçariguama parece são pos
tas em dúvida as afirmações de Taques. Diga -me algo sobre o assunto,
sem pressa ; Le Play, mestre de Oliveira Viana, levou - o a conseqüências.
Desde que estou aqui, tenho ouvido as maravilhas dos Pocinhos do
Rio Verde, a 24 quilômetros daqui . Você que foi , ou é bom católico, de
ve conhecer os milagres de Santo Antônio. Recorde -os : quase tudo
quanto fazia, fazem os Pocinhos ; fazem até mais ; segundo me lembra , o
lisboeta-paduano pesava banhas como Oliveira Lima ; os Pocinhos o te
riam aliviado. Vou disposto a voltar em agosto, se as barbas de D.
João de Castro toparem algum onzeneiro acomodatício .
Suponho que Madame Taunay devia ter ido antes la que ao Prata.
Devo estar aí no dia 2 ; irei ao Museu com Paulo, que manifestou
este desejo, dando-me nisto grande prazer. Na Paulicéia minha demora
será a menor possível: uma demora de gato escaldado.
Alberto de Oliveira, o poeta, acaba de dar informações sobre Oli
veira Viana, que se conhecia de nome. E, como ele, de Saquarema, mo
rador em Niterói, onde advoga : dá-lhe vinte seis anos, deve ter uns dez
mais .
Respeitos à senhora.
Adeus , nova geração !
Bien à vous,
C.
Poços de Caldas, em plena soberania popular, 1921.

Afonso amigo,
Ontem quebrei o jejum no trem, lendo o Correio Paulistano, comprado
na véspera em Três Corações. A mina dos inventários e testamentos é
inesgotável. Quem já escreveu sobre eles, cujo nome você cita e ignoro ?
Encontrei clã e planalto paulista, prova de que V. já leu o livro de Oliveira
Viana . A mesma leitura atribuo a palavra clā, inserta num artigo de A.
Leão Veloso, do Correio da Manhã. Em Cruzeiro comprei o Correio
de ontem e li o artigo de Hermelino de Leão ; ao chegar em casa recebi,
com sua carta, o seu revide, sem o qual não poderia entender o debate.
Estarei equivocado e não veio em Rapôso com Diogo Flores ? Teremos
perpetrado o debate sobre Veloso como o de João Ramalho ?
324 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Num ponto o Hermelino absolutamente não tem razão : considera os


carijos exclusivos habitadores do Paraná !
Felizmente os tais não são exclusivamente carijos são carijos
arechanes.
Agora veja o que diz Rui Díaz de Guzmán, no cap. 2. ° do livro 1.º
da Argentina :

“ ... éste ( Rio Grande ) tiene dificultad en la entrada por la grande


corriente con que sale al mar, frontero de la isla pequeña que le encubre
la boca y entrado dentro es seguro y anchuroso, y se estiende como lago.
En sus riberas por una y otra parte están poblados más de 20.000 indios
guaranis que los de aquella tierra llaman Arachànes; no porque en las
costumbres y lenguaje se diferencien de los demás de esta nación, sino
porque traen el cabello revuelto y encrespado para arriba."
Merece mais fé o que diz sôbre os tapes ? Vou estudar o caso, já
tratado pelo Padre Teschauer, cujo segundo volume está por horas .
OS
Antes de mais, parece -me haver semelhança entre os tapes e
amapiras do rio S. Francisco, éste galho perdido nos tupinambás. Os
tapes bem poderiam ser galho perdido dos tupiniquins.
Lehmann Nietsche publicou na Rev. do Museu de Pelotas um estudo
sôbre o grupo lingüístico alacalufe, a que, segundo carta de 20 do passado,
parece filiar os guaianases. Conhece o trabalho ? Que me diz dele ?
Alacalufe dá - ine certa idéia de guaicuru . Com os guaicurus eu filiaria
antes os xavantes de S. Paulo e Paraná, já quase extintos. V. prestaria
um bom serviço à ciência se lhe guardasse estes salvados. Aí com certeza
há fonógrafo ; o Museu não pode dispensar um .
Não sei se poderei ir hoje ao Rondon para saber notícias dos
hacairis.
Passei uma semana em Machado, em visita a uma minha filha. O
marido é médico , próximo parente de Jaguaribe.
Agradeço seu segundo volume sõbre São Paulo, que vou ler e espero
me será útil nas Cartas de Anchieta que estou preparando.
Quanta falta está fazendo o Alfredo de Toledo ! Desde que morreu
não saiu um só número da Rev. Por que não editam ao menos as cópias
do Basilio ?
Respeito às sr.as
Adeus, nova geração.
Bien d veus,
C.
CARTAS A AFONSO TAUNAY 325

Rio, 19 de maio de 1921 .

Já viu a Lexiologia do Said Ali ?


O que é uma pessoa estudar pelo mero gosto de saber e não para sair
à rua de palmatória !

Amigo Afonso ,
Recebi os artigos de Alcântara Machado ; os esgotados verei no Ins
tituto ou no Jornal, agora que tenho as datas. A lista dos proceres da
Independência parece completa ; lembraria o Jequitinhonha, que parece ter
feito muito na Bahia, Gervásio Pires Ferreira Drumond ? Não sei : pare
ce-me sujeito a correção.
A tal história de escrituras em branco de Pedro II sobre que Martim
Francisco faz tanto finca -pé dá-me a impressão de cancã.
Os índios ainda não vieram : na expectativa, nada tenho feito, nem
mesmo correção de provas da Inquisição .
Respeitos à senhora.
Adeus, nova geração !
Bien à vous.
C.

Rio, 3 de junho de 1921.


Afonso amigo,

No Íris Clássico , de J. F. de Castilho, livro colegial do Ceará, deparei


um trecho de André João Antonil, que me interessou . Muitos anos depois
li a obra completa na Biblioteca Nacional . Quem era o autor ? pergun
tei a Vale Cabral, incomparável em bio -bibliografia brasílica . É um enigma,
respondeu, e mostrou -me uma página de Inocêncio .
Reli a Cultura, convenci-me que era obra de jesuíta e toscano, como
dizia o prólogo anfibológico .
No correr de leituras encontrei o nome Andreoni e disse comigo : é
este. Entretanto, descuidei-me de verificá-lo, anos e anos.
Um dia trabalhava na Biblioteca Nacional, a poucos metros de Cabral,
quando me veio a lembrança. Levantei-ine, disse a Cabral: V. vai morrer
de inveja, fui ao Backer, procurei s . v. Andreoni: lá estava o bicho ! Cabral
326 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

e eu celebramos condignamente o sucesso ou jantando juntos ou tomando


cerveja no Passeio Público, até as horas de fechar.
Creio que publiquei o achado pela primeira vez no prólogo às In
formações, de Anchieta, sem bulha nem matinada, como se tratasse de
caso charro. (Conhecem a palavra em S. Paulo ? Existe nos dicionários ?
Ouvi-a no Ceará ) . Posso dar as seguintes informações, consultando só
mente a memória ; se fôr preciso, irei ao Sommervogel.
Veio para o Brasil, como visitador, foi seu companheiro de visita
Estanislau de Campos, como consta da biografia dêste, publicada pelo
velho Araripe na Revista.
Depois da visita permaneceu no Brasil, foi reitor na Bahia, com certeza ,
mas talvez em outro colégio ; era reitor da Bahia , quando morreu Vieira,
e confiou - lhe o cadáver ao túmulo ; foi provincial dos jesuítas.
Há uma carta de Vieira muito interessante sobre ele : o nome passou
de Andreoni a Andreão.
Agora compare : André João Antonil.
João Antônio Andreoni.
O L de Antonil quer dizer luquense.
Com os índios vou regularmente.
Respeitos às senhoras. Adeus, nova geração !
Bien à vous,
C. DE A.
Rio , 23 de julho de 1921.

Afonso amigo,
Incluo o extrato de Sommervogel; não achei à mão Backer ; o último
bibliógrafo dispensa o anterior.
Dos livros de Andreoni só conhecia diretamente a Sinagoga de que
dá o titulo português com o número de páginas; das outras fala por
informação ; a primeira descrição da Cultura e Opulência deve ser a de
José Carlos Rodrigues.
Nos livros de Andreoni enumera -se um De Rebus Brasiliae. Que
virá a ser ? Pablo Hernandez, jesuíta de grande erudição no relativo à
América do Sul, que duas vezes estêve trabalhando aqui, nada soube in
formar. Acaba de morrer em Roma, segundo me informaram em Santo
Inácio , e nada me comunicou .
CARTAS А AFONSO TAUNAY 327

Tenho mais duas notícias sõbre Andreoni; uma a de que exercia o


reitorado da Bahia quando morreu Domingos Afonso Sertão, legando à
Companhia as fazendas do Piauí . ( R. Trim . Inst. Hist. v. 32, nota de
Alencastro ) . Outra refere-se à sua atitude na Guerra dos Mascates em
que parece não se mostrou simpático à gente de Pernambuco ; se o caso
interessar, poderei verificar na Biblioteca Nacional. Tive em tempo a idéia
de fazer a biografia de Antonil : desisti, à falta de documentos.
Pareceu -me de sua última carta, extraviada no meio da papelada,
que V. quer transcrever as notas contidas nas minhas. Pode fazê - lo mas
substitua " atraiçoado pelo velho ..." por vulgarizado.
Continuo pegado com os bacairis e vou regularmente. Para semana
deverei tonar o trem de Mato Grosso. Até fins de outubro.
Respeitos à senhora. Adeus, nova geração.
Bien à vous,
C.
Rio, 1.º de agosto, 1921.

Afonso amigo ,
Sim, recebi os livros, recebi o artigo sôbre Elísio de Carvalho, a quem
vão fazer uma manifestação, segundo consta ; recebi a nota sõbre Andreo
ni, que devolverei emendada.
Estão a partir os bacairis. Desejaria que V. os visse ; vão ficar um
dia em São Paulo com o Capitão Noronha, que os trouxe e levará. Fica
rei um dia em São Paulo, tratando de passagens, bagagens, etc. Tomarei
o Hotel Fracarolli. Gostaria bem que V. visse os índios, mostrasse o
Museu . Dê seu endereço para eu telegrafar -lhe.
Até 23 de outubro .
Respeitos à senhora. Adeus, nova geração !
Bien à vous,
C. A.
Rio, 11 de agosto de 1921.

Afonso amigo,
O vol . 19 dos Anais da Bibl. Nac. traz um escrito de Andreoni sõbre
Vieira. Creio será o mesmo impresso no vol. dos Sermões. Não o averi
güei porque V. terá aí os elementos.
328 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Escrevi-lhe perguntando aonde é sua nova residência . Não tive res


posta : continuo na santa ignorância que, à minha volta de Poços, impediu
o encontro . Por isto não telegrafei sôbre os bacairis. Partiram a 16 de
agosto.
Cícero quer concluir uns trabalhos antes de começar os meus ; isto é,
dos bacairis. Assim não entreguei ainda os originais preparados para a
impressão. Vou continuar.
Quero agora botar para fora os processos da Inquisição custeados pelo
Paulo Prado. A paginação, se não relaxarem no Jornal do Comércio,
aonde está sendo feita a impressão, pode terminar antes de quinze dias :
trezentas e tantas páginas, caiculo.
A introdução será brevissima : um livro inglés recente de Turberviile,
os artigos de Antônio Baião no Arquivo bastarão para as generalidades.
No resto só tratarei do conteúdo nas confissões ( 100 e poucas), apurando
certos pontos [ ilegível ] apontando os de Geografia, que não sei como
resolver.
O valor dos documentos é diminuído pela obscuridade de certas decla
rações. Você não os daria a ler ao seu engraxate, mas suspirará : por
que não veio também um visitador do Santo Ofício a estas terras de
Martim Afonso e Pero Lopes ?
Estou à espera do Paulo para ver se ele concorda com outro volume
consagrado exclusivamente a São Paulo seiscentista.
Quem é um Soares de Melo, paulista, recém - formado, que está inves
tigando nos arquivos portuguêses e vai para a Alemanha fazer estudos
econômicos ?
Pretendo sair daqui na última semana de outubro, passar uns dias na
Paulicéia e em Santos ; seguirei para Pedras Altas a 5 ou 6 de novembro
Respeitos à sr.a.
Adeus, nova geração.
Bien à vous,
C. A.
Rio, 9, 1921
1822
0099
D. Luisa. 145 .
CARTAS A AFONSO TAUNAY 329

Afonso amigo,
Senti a morte do Vicente , embora fosse a melhor solução para o
seu estado. Quanto podia ter feito ! Pelo que V. diz, não poderei aprn
veitar o livro de Oliveira Lima .
Não sei se lhe contei que pediram -ine, do Estado de São Paulo, que
garatujasse uma página sobre a Independência, no número especial a
publicar- se em setembro.
Não pretendia tocar no assunto porque minha participação não faria
falta é um verdadeiro curée do qual faltará carne, não urubus. Além
disto não sinto entusiasmo pelo Grito do Ipiranga.
Achei, porém , extravagante a idéia do Estado e estou assuntando,
como dizem na Bahia.
Respeitos à senhora.
Adeus, nova geração !
Bien à vous ,
c.
Rio, 26 de abril ( 1922 ).

No dia de ontem , em 1875 , avistei pela primeira vez as terras de


Guanabara .

Afonso amigo ,
Obrigado pelas informações.
Haverá meio de obter, ao menos por empréstimo, os artigos do Re
sende ? Na Secretari?, đo Exterior trabalha -se a valer. Serão impressos
talvez cinco volumes, dos quais o da Inglaterra orçará por mil páginas e o
de Portugal será fino, porque entre o Grito do Ipiranga e o reconhecimento
da Independência não houve por assim dizer negociações diplomáticas.
Na Biblioteca Nacional far- se- á alguma coisa.
Cícero está fora, em comissão. Aurélio luta com a falta de tempo e
de auxiliares. Em todo caso, penso que o volume sõbre o Rio sairá
até setembro ; ajudo um pouco .
Disseram -me que o Arquivo Público dará à luz um volume que está
sendo preparado pelo diretor.
Que fazem na Bahia ?
330 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

O livro de Tobias dará dois tomos. A documentação diplomática será


abundantíssima. Não sei se o mesmo sucederá com a indígena.
Esta semana tenho estado no Arquivo Público e visto algo da cor
respondência de Luis do Rego.
Se tivesse me lembrado em tempo, teria pedido a Pereira da Costa
que começasse pelo fim a publicação dos Anais Pernambucanos, que o
governo pernambucano começou. E eu que faço no meio de tudo isto ?
Assiinto, assunto, estou assuntando.
Já viu a nova edição das Memórias de São Leopoldo?
Quando o livro de Oliveira Lima vier à luz, espero Weiszflog mo
remeta. Não quero exemplar avant la lettre. Depois de Dom João VI,
e principalmente depois da guerra, ele tem melhorado muito .
O livro de Carlos Maul não sei como vai. Conheci há muitos anos
o autor. Pareceu -me inteligente.
Da massa de publicações surgirá uma concepção nova da Indepen
dência . Eu, quanto mais consulto documentos, tanto mais vejo confusos
OS casos .

Respeitos à senhora.
Adeus, nova geração !
C.
Rio, solsticio, 22/10.

Afonso amigo,

Recebi seu opúsculo sôbre a Côrte Imperial e as Visões do Sertão .


E muito agradeço .
V. devia reimprimir os Céus e Terras, as Сenas de Viagens e os
Relatórios de Mato Grosso .
Quando as críticas se apurarem , reconhecerão que seu pai foi o pri
meiro dentre nós que descreveu sertões de experiência e autópsia, não de
chic : antes dele só houvera estrangeiros.
Estou à espera do prólogo de Antonil.
Afrânio Peixoto quer fazer uma publicação sobre história, literatura
e não sei mais. De Gregório de Matos encarregou -se Constâncio Alves,
que sairá em abril, centenário do Boca-de-Inferno.
CARTAS А AFONSO TAUNAY 331

Tenho de marchar com Garcia ; nos documentos de história pátria


atirar-me às donatarias.
Em março pretendo ir a Caxambu.
Respeitos à senhora. Adeus, nova geração !
Bien à vous,
C.
Rio, 9 de janeiro de 1923.

Afonso amigo,

Escrevo-lhe às pressas para lhe lembrar três coisas, que aí vão, na


ordem de sua importância crescente :
1.0 — um catálogo sumário do tal Código em que existe a tal carta
de Manuel de Morais ;
2.0 - cópia da carta do Arcebispo Vice-Rei a D. Luís de Sousa
relativa à viagem de Francisco Caldeira, citada em um Prolegômenos de
Fr. Vicente ;
3.0 remessa a Paulo dos números do 3.° e 4.0 vol . da Revista
de José Veríssimo contendo meus artigos sõbre bacairis. Como lhe disse
( ou não teria dito ? ) Monteiro Lobato parece disposto a editar a minha
bacairicada, permitindo -me como ao velho Simeão : nunc dimittis ...
Respeitos à senhora.
Adeus, nova geração !
Ergebenst ,
C. A.
Rio, 27 de fevereiro de 1923.

Afonso amigo ,
O documento é exatamente o de que V. mandou extrato.
Peço-lhe agora um cópia completa e datilografada que V. terá a bon
dade de mandar a Santa Rosa no Pará .
Estou pegado com os documentos para a coleção de Afrânio. Ficarei
em Cristóvão Jaques. O Diário de Pero Lopes tocará ao Eugênio de
Castro, um oficial de marinha, distinto, trabalhador , que pode dar cousa
boa .
Um volume sobre os donatários deixarei ao Garcia, cabendo -me a
parte de cireneu preguiçoso ou malandro .
332 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Em compensação tratarei com carinho do Valeroso Lucideno, um dos


poucos livros que desejaria editar. Tratarei de tirá - lo da obscuridade
imensa que o embuça.
Minha partida para S. Vicente em abril depende de avença ( hoje
entente , como estão querendo trocar sertão por hinterland ) com o amigo
Jaguaribe. Respeitos à senhora.
Adeus, nova geração.
Ergebenst ,
C.

Rio, 10 de março de 1923.

Afonso amigo,

Entendo que guaiana, gualaxo, guaralho, miramomim , é tudo a mesma


gente, é o gentio que ocupava o litoral antes de avançarem os tupiniquins,
os tupinambás e carijos, todos de língua-geral.
Pero Rodrigues diz que os miramomins avançavam muito pelo sertão
do Espírito Santo. Isto se confirma pelo nome de gualaxos do Norte e
gualaxos do Sul, dados aos afluentes do alto Rio Doce. Segundo do
cumento da R. A. Mineiro, o nome provém de uma tribo indiana. Borges
de Barros escreveu que na Bahia havia gualaxos. Interpele -o .
O quadro etnográfico de S. Paulo aparece -me assim : guaianases, até
Espírito Santo, com inserções de goitacases, cuja posição é desconhecida,
e tupiniquins, tupinambás que, vindo posteriormente, predominaram . Os
tupiniquins, que ocupavam principalmente o Tieté, ligavam -se pelo inte
rior aos homônimos de Ilhéus e Porto - Seguro ; os carijos eram guaranis.
No interior aparecem ubirajaras idênticos aos caiapós.
O ponto capital da etnografia paulista que V. deve tomar a si , se
ainda fôr tempo, reduzidos como vão ficando diàriamente, são os xavantes,
periculum in mora . Serão guaianases ? Serão guaicurus ?
Pretendo partir para S. Vicente em 8 de abril. A 10 estarei na
Paulicéia para jantar com Ekman , que cumpre bodas de prata !
Que tempo será minha demora, só saberei depois de falar com
Jaguaribe.
Obrigado pela cópia dos artigos. Bastava copiar o primeiro. lan
do- os ao Paulo. M ... não o conheço.
Não esqueça o índice do ms. que V. adquiriu : ardo de curiosidade.
CARTAS A AFONSO TAUNAY 333

Depois de amanhã Calógeras embarcará para a Europa e subirei


para Petrópolis onde ficarei o resto da semana.
Como vão Martim e D. Zé ? Respeitos à senhora . Adeus, nova
geração !
Ergebenst,
C.

Rio, oitava da Anunciação de 1923.


Já conclui o artigo de Pedralves. Vou pegar . no de Caminha, que
será curto. No mestre João em que serei excomungado pelos que juram
ser proposital o descobrimento do Brasil ! no tal piloto de Ramúsio, que
não é piloto e já corria mundo em lugares vários, antes de Ramúsio ter
começado a coleção.

Afonso amigo ,
Extraviou-se a carta que lhe escrevi sõbre indios. Dizia em resumo :
guaiana, miramomim , gualaxo , no meu entender, é o mesmo grupo .
Junto-lhe os gualaxos, de que os parentes do alto Rio Doce guardam
0 nome . Afirma Borges de Barros que gualaxos existiam na Bahia :
escreva-lhe .
Este grupo ocupava a maior parte da costa, com inserções de carijos,
ou guaranis, de tupiniquins, que pelo sertão se comunicavam com os de
goitacases . Penetrava muito
Ilhéus e Pôrto-Seguro, de tupinambás, de goitacases.
pelo Espírito Santo, informa Pero Rodrigues.
Quais são hoje seus representantes ? Talvez os puris: não conheço
o caso .

A oeste demoravam os ubirajaras. Bilreiros, caceteiros idênticos aos


caiapós atuais.
Um problema ainda a esclarecer, se ainda för tempo, é o dos xavantes
paulistas. Estão-se extinguindo. Pertencerão aos guaicurus ? Desejo
muito estar em S. Paulo a 10 para jantar com Ekman nas bodas de
prata. Mas veja que desgraça ! Foi vendida a casa em que moro e

tenho que procurar outra a tôda pressa.


Respeitos à senhora . Adeus, nova geração !
Ergeb .,
C.
Rio, dia das pêtas ( 1 - IV-1923 ) .
334 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Afonso amigo,
A correr.

Os artigos bacairis devem ser remetidos a Paulo Prado : não conheço


e nunca vi Monteiro Lobato.
O documento do códice de Eduardo Prado está citado nos Prolego
menos do quinto livro de Fr. Vicente, onde digo que Castelo Branco
chegou aonde seria a cidade de Belém , a 11 ou 12 de janeiro : " digamos
onze para fazer coincidir a data com a do trucidamento de Francisco
Pinto, oito anos antes ” .
Palavras tão simples saíram -me caro nas ribeiras do Guajará.
Você disse que comprara um códice em que havia uma carta de
Manuel de Morais : dêste códice é que desejo um indice sumário.
Na releitura, não sei que vez, da carta de Caminha, encontrei a
solução de um problema que aborrecia : as palmas de palmitos saborosos
encontradas em Porto Seguro pelos que desembarcaram são bananas e
bananeiras. E diga V. que não sou um alho.
Minha ida a São Vicente deve ser em meados de abril.
Respeitos à madame.
Adeus, nova geração !
Ergebenst,
C.
Rio, 6 de maio de 1923.

Afonso amigo,
Casualmente, por alguém da Livraria Científica, soube que V. calcava
esta boa terra onde nasceu , mas onde eu tenho morado mais que você.
Ainda poderia encontrá-lo ? Ninguém sabia dizer-me. Quanto tempo
demoraria ? Horas apenas. Não seria melhor que eu nada soubesse do
meteoro ou meteorito ?
Já lhe devo ter dito, mas repito ; o telefone 3269 B. M., em casa
de meu cunhado, fronteira à minha, pode receber qualquer recado mar
cando encontro na cidade .

Depois de amanhã, 5.a, devo partir com o Sá rumo de Diamantina.


Realizo assim um meu maior desejo. A excursão será rápida ; estaremos
de volta na 4. feira. Resta -me agora ver S. João d’El-Rei, a primeira
CARTAS A AFONSO TAUNAY 335

cidade mineira, de que ouvi falar com alguma nitidez. Junto hoje exem
plares de meu prólogo às Confissões do Santo Oficio. V. me fará o
obsequio de distribuir os que levam endereço .
Feliz, feliz ano, de fio a pavio, de pupa a prua.
Respeitos à sr.a. Adeus, nova geração !
Bien à vous,
C.

Rio, ( ilegível] 1923.


CII

Afonso amigo ,
Recebi a cópia, que muito agradeço. Creio que a de Santa Rosa deve
V. diretamente remeter para o Pará.
Estou tratando da mudança, não sei ainda para onde. Pedi a Souto
Maior procurasse um cômodo para nós dois. Ainda não achou .
Paulo Prado, que ontem embarcou para aí, donde não tornará a
voltar, porque o Conselheiro passará todo o inverno na baixitude, fêz-me
uma pergunta a que V. está obrigado a responder : quando a palavra
bandeira tomou o sentido histórico hoje tão conhecido ? Quando tornou - se
corrente o termo bandeirantes ?
Trabalho na revisão das provas das Denunciações da Bahia. O texto
pode ficar impresso até o fim do mês. Vou ver o que notarei no prólogo
obrigatório.
Respeitos à sr.a. Adeus, nova geração !
Ergebenst,
C.
Rio, 7 de junho de 1923.

dtonso amigo,
Rondon chegou e não trouxe o bacairi, que só virá com o genro
Amarante, no fim do ano , ou mais provavelmente em janeiro. É um
contratempo : desde setembro o xinguano saiu de sua terra. Chegando
aqui, ficará impaciente para voltar, como sucedeu ao que veio da vez
passada, e não poderei colher todo o proveito.
336 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Há dois anos disse m


- e Washington que, se eu preparasse os escritos
de Anchieta, ele os publicaria. Tratei de organizá-los, mas com surpresa
só encontrei indiferença da parte dos dignos inacianos, come dizia A. Comte
e diz V., e eles não devem gostar.
Pedi ao douto João Lúcio que se entendesse com Francisco Rodrigues,
autor da Formação Espiritual dos Jesuitas, para mandar fotografar as
reliquias anchietanas existentes nos arquivos da Ordem .
Acabo de receber uma carta de Francisco Rodrigues, escrita de Roma
ao douto amigo, dizendo que já tinha procedido às investigações e obtido
as autorizações, quando chegou a Roma um dignitário da Ordem , que faz
questão dêle próprio entregar tudo em minhas mãos, por ser muito meu
amigo. Creio tratar-se do Padre Antonio Pinto, que apresentei a Paulo,
e Paulo serviu. O importante é que abranja todos os manuscritos de
Anchieta ; as despesas serão por conta da Companhia. Haverá tempo ?
Não sei quando termina o mandato do Washington.
Aqui tem feito um calor de sítio. Felizmente posso usar do único
remédio eficaz : não sair de casa .
Sésamo, como V. melhor do que eu sabe, quer dizer gergelim . Se
você tiver de usar da palavra, ponha o português em primeiro lugar e
entre parênteses o francês.
Respeitos à sr.a.
Adeus, nova geração.
Ergebenst ,
Rio, 5 de novembro de 1923.

Esta carta perdeu -se no meio de papéis e só hoje segue.


No escrito de S. Leopoldo sobre Alexandre de Gusmão, vem a lista
dos irmãos, feita pelo inventário que ainda existia em Santos em 1839.
Bartolomeu aparece com o nome de Lourenço , apenas.
Deixo intacta a questão Teotônio. Talvez a tenha resolvido Severiano
da Fonseca, que deu à Bibl . Nacional uma cópia de Barbosa de Sá, acres
centada por Lara Ordonhes. A letra de Severiano não é cômoda de
ler-se. A cópia que serviu para os Anais da Biblioteca é diferente e não
traz os acréscimos. O que é um mau indice.
CARTAS A AFONSO TAUNAY 337

Afonso amigo,

Dormi segunda - feira em Machado, parti sábado de madrugada. O


município é rico, mas a cidade não podia ficar pior localizada : morros,
morros, morros separados por vales estreitíssimos.
Combinara para a volta falhar em Varginha e partir de lá na ma
drugada seguinte, com um jovem engenheiro amigo ; mas objeto de serviço
afastou-o da estação e prossegui para o Cruzeiro. Domingo tomei o trem
de carga, que sai às 6 e pára na Barra do Piraí às 16. As 10 horas, à
vista sempre do Paraíba, com paradas freqüentes e às vezes bem longas,
não me fatigaram. Este percurso já fizera em 21 , mas então não havia
tanta carga e cheguei aqui às 5 horas, se bem me lembra. Na Barra
do Piraí meti-me num trem paulista e às 6,20 apeava no Campo de Santana.
Meu genro , primo segundo de Jaguaribe, no Ceará diríamos sobrinho,
à la mode de Bretagne, tem uma clínica laboriosa, com dias de 10 léguas
a cavalo ; ganha o suficiente para viver folgadamente e ajunta algum
dinheiro. Naturalmente deseja vir para o Rio, perto dos hospitais e dos
laboratórios. Também , único filho, gostaria de vir para acompanhar os
últimos da avó, que em novembro completará 93 anos. Facilitaria a
vinda uma colocação na Saúde Pública ; promessas não faltam , mas
del dicho al hecho ay gran trecho, do prato à bôca se perde a sopa. Feliz
mente não estão de corda ao pescoço , e o que não se faz dia de Santa
Luzia, faz-se em outro qualquer dia. Ao chegar, encontrei sua amável
carta.

Meu trabalho sobre Minas está muito em embrião e sairá muito


imperfeito : precisaria de um ano e de um livro não pequeno para explanar
o assunto .

O primeiro artigo leva à fundação das comarcas, primeiro três, depois


quatro, o que se reuniu à de Paracatu , já no século XIX. Está pràtica
mente concluído, faltando apenas a opinião sobre D. Rodrigo de Castelo
Branco, emitida por pessoa que o conversou. Espero [ ilegível] amanhã
na Biblioteca, um documento inédito de F. Dias Pais formar algumas
particularidades. Depois tomarei cada uma das comarcas, a partir do
Sêrro. Espero concluir no mês próximo, mesmo porque estão clamando
a Bahia e Santa Catarina e Rio Grande do Sul .

São preparativos para tal Atlas. Gentil já me mostrou o mapa de


S. Paulo em 1719, quando foi separado de Minas Gerais. Ontem combi
namos sobre o de Minas em 1780, tomando por base o impresso na Rev. Tr .
25 — 1.º
338 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

de 1852, que não se encontra nas novas edições. Garcia ficou com a
Capitania de Pernambuco, de Carinhanha a Paraíba ; ainda está atrasado.
Entre os papéis do meu amigo Ramos Paz encontrei três artigos meus,
impressos no Jornal do Comércio de 99, sobre o povoamento do Brasil.
Estão naturalmente muito antiquados, pois 21 anos não passam debalde.
Apesar disto vou reimprimi-los no Anuário, ou cousa que valha, no
Colégio de Pedro II , acompanhando -os de uma nota em que exponha
as notificações em meu modo de pensar.
Creio que depois destes publiquei na Noticia dois artigos sobre o
povoamento de São Paulo. Vou procurá -los, ou antes, pedir a alguém
que os procure, porque sou incapaz destas pesquisas, e publicarei ao mesmo
tempo. Percorrendo o vol. 19.0 ( calendário juliano ) da Revista, encontrei
a págs. 143 e seguintes um escrito de Machado de Oliveira sobre o
arquivo da Câmara Municipal de São Vicente.
Não me lembrava de tê-lo lido. Depois verifiquei que não figurava
no indice o volume. No terceiro vol. dos Anais do Museu Paulista
seria bom reproduzi- lo.
Para facilitar citações:
Desde muito aboli a numeração romana para indicar volumes ; no
Varnhagen recorri a tipo mais grosso, o que já é melhor ; o mais simples
é acrescentar o n.º cardinal, como faz Lúcio de Azevedo e tenho feito.
De Lúcio de Azevedo recebi ontem a Critica dos Lusíadas de José
Agostinho de Macedo, que lhe encomendara. Comecei a leitura pelo ex .
da Bibl. Nac., há muitos anos, e não continuei. Agora irá tudo, já
estou no fim do 2.º canto . Tem razão o provérbio. Imitando a frase
admirável “ Feijó, semi-majestade, semi-abdicou”, tenho vontade de es
crever : “ Camões, semi-homero, bidormitou”.
Saudades ! Saudades !
C.
Rio, dia da Conceição ( 1923 ).

Afonso amigo,

Desejo ano próspero a você e a todos os seus; avancem e medrem nos


haveres materiais e morais.
Continuo à espera do bacairi prometido para antes do fim do mês.
Rondon tirou - o do Xingu e levou até o Rio dos Porrudos ( ubirajaras)
aonde o confiou ao genro . Este deve embarcar em Cuiabá a 12. Que tal
CARTAS A AFONSO TAUNAY 339

seria a escolha ? A nova língua é do Xingu ; do Paranatinga são os que


tenho conversado até agora. A lingua é a mesma, porém o segregamento
dos xinguanos e paranatinganos, só interrompido pela expedição do K.
von den Steinen, pode ter introduzido alterações que virão atrapalhar -me.
Estão mandando encadernar minhas Atas da Câmara de S. Paulo .
Ser-lhe-á possível arranjar um exemplar das Atas de S. André da Borda
do Campo ?
Respeitos à senhora.
Adeus, nova geração.
Ergebenst,
C.
Rio, oitava dos Reis, 1924 .

Afonso amigo,

Recebo o exemplar de Antonil que V. tinha anunciado por carta.


Ao abri-lo , vi logo a página em que tão amável se mostrou a meu
respeito. Não posso deixar de agradecer-lhe; mas, em 81 ou 82, Apulcro
de Castro , durante um ano inteiro, me seringou trissemanalmente no
Corsário, e desde então a primeira impressão sentida, ao ver meu nome em
letra de fôrma, é desagradável.
Passada a primeira impressão, não posso deixar de agradecer sua
bondade e sua amizade, que vem de longe.
Li com muita curiosidade e muito prazer sua erudita contribuição. Ai
vão ligeiros reparos :
Por que não fazer a Opulência no mesmo formato que Frei Vicente ?
Desde que a Biblioteca da Academia ( de S. Paulo) , possui a pri
meira edição, provavelmente exemplar pertencente a Ordonhes e doado
por Rondon, convirá fotografar a fôlha de rosto e dá-la na presente
edição, que, bem contada, é a quinta.
Ordonhes não deu à Biblioteca Nacional cartas autógrafas de Anchie
ta, mas um livro em que estão copiadas com as de outros ; no códice há
autógrafa só a carta de Nóbrega a Tomé de Sousa.
A Biblioteca Nacional só possuiu a primeira edição de Antonil, depois
da República : veio na livraria de Francisco Antônio Martins, conservador
da Biblioteca Fluminense, adquirida pelo Conde de Figueiredo e doada à
Biblioteca Nacional. Nela está também o exemplar que foi o meu.
340 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

A pessoa que acompanhou Artur de Sá a Minas chamava-se Perdigão.


Seu nome aparece nos documentos de Basílio, etc.
Se tivesse lido com mais vagar, poderia mandar mais alguma cousa.
Estou pensando em tomar o vapor para Santos a 9 : estarei na
Paulicéia, domingo, 10. Irei ver Jaguaribe em Osasco e voltarei sem
demora .
Tive a boa notícia que seu filho sofre apenas de banal amigdalite e
foi operado com êxito. Ainda bem .
A 24 chegou o bacairi. Estamos trabalhando.
Respeitos à senhora.
Adeus, nova geração.
Ergebenst,
C

Rio , 29 de janeiro de 1924 .

Afonso amigo,
Pretendo partir no próximo domingo pela Costeira para Santos.
Pensei na possibilidade de publicar na sua Revista os meus textos.
A obra é de tamanho da dos caxinauás, mas há conveniência em
dividi-la em três partes . A primeira pode ir já para o prelo e posso
levar os originais.
Tipos especiais : ö , n, %, n, ñ, a'. Fica mais chic imprimir - se tudo
de bacairi em itálico .
Respeitos à senhora.
Adeus, nova geração !
Ergebenst ,
C. A.
Rio, 9 de agosto de 1924.

Lúcio de Azevedo mora atualmente na Avenida de Berne n.° 21 ,


2.° andar. Escrevi - lhe ontem agradecendo o documento de Diogo Luis
de Oliveira, perguntando se recebeu o excerto de Capri que enviei em
envelope da Casa Briguiet.
Saudades.
Gigante de Pedra, equinócio ou quase, 1924.
CARTAS A AFONSO TAUNAY 341

Afonso ainigo ,

Para responder a uma pergunta do professor Jurandir de ( ilegível],


consultei José Carlos Rodrigues. Lá encontrei o que já sabia, isto é,
que a History de Southey teve o 1.º volume reimpresso em 1822, e
nêle foi aproveitada a carta de Caminha.
Achei, porém , uma novidade : um dos motivos por que Southey reedi
tou o volume impresso em 1810 foi ter encontrado os despachos do
governo português a D. Luís de Sousa, durante a sua administração no
Brasil.
Isto é grave : não será o exemplar adquirido no leilão de Eduardo
o próprio de que se servira o historiador ?
A segurda edição foi a que serviu para a versão brasileira — creio
eu poder afirmá- lo . Não poderia V. verificá-lo pela versão sua, o que
seria preferível, pelo original ?
Meu exemplar de Southey dei-o a Paulo : o primeiro volume era
de 1810. Já que lhe falei no mesmo, peço-lhe veja no fim um assento que
se tomou, em tempo de Diogo Luís de Oliveira , a propósito da guerra
contra os indios .
Se bem me lembro é curto ; uma cópia demandaria poucas horas e
talvez ainda chegasse a tempo de ser aproveitada.
Respeitos à senhora.
Adeus, nova geração !
Ergebenst,
C.

424 [ ilegível] da pátria 1 .

Afonso amigo,

Agradeço -lhe o 1.º volume da História e congratulo-me por ter V.


dado este primeiro passo num terreno a que ninguém se animara .
Apenas abri as páginas. Não me agradou Colúmbia para designar
o país da América Central. Quem ( ilegível ] ? os colombianos com
certeza não. Creio que na lingua inglêsa vai desaparecendo, reservando
se para a possessão da América Setentrional e para o distrito federal
dos Estados Unidos.

1. Provavelmente 424 anos do descobrimento do Brasil.


342 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Parece haver páginas de mais quanto aos espanhóis. Isso não chega
a
ser impressão. A leitura será vagarosa ; quando discordar de algo,
escreverei.
Já estão na tipografia os originais bacairis. Preciso andar depressa,
porque em setembro parte Rondon para Mato Grosso e quero que leve.
o indio.
Escrevi uma carta a Jaguaribe. Espero a resposta para decidir de
minha viagem para S. Vicente.
Respeitos às sr.as
Adeus, nova geração !
Ergebenst,
C.

Rio , 30 de maio de 1924 .

Afonso amigo ,
Esta é a segunda carta que lhe escrevo. A outra extraviou-se no
meio da papelada; procurá -la levaria mais tempo.
Contava encontrar no meu exemplar de l'arnhagen as indicações
sôbre Veloso. Não estavam ali. A Vida do Padre Vieira de J. Lúcio
de Azevedo e as folhas das Cartas do padre, que ele está reeditando,
Said Ali levou para Petrópolis. Vou pedir-lhe informações.
Hoje ou amanhã há quarenta e quatro anos que Jaguaribe levou -me
pela primeira vez. Dos amigos do tempo restam éle, Bulhões, Assis
Brasil .
Estou tratando da separata. Aborrecida e difícil cousa .
Não se bota remendo novo em pano velho.
Respeitos à senhora .
Adeus, nova geração !
Ergebenst,
C.
Gigante de Pedra, oitava de Santa Luzia, 1924.

Afonso amigo,
Só agora estou terminando a correção das provas para a separata
dos Caminhos. Modifiquei muita cousa ; pelo menos os erros da Amé
rica escoimei.
CARTAS A AFONSO TAUNAY 343

Tem V. encontrado alguma coisa mais do que contêm Taques e


Azevedo Marques sobre Domingos Jorge Velho ? O Instituto Histórico
do Rio Grande do Norte chamou - o doutor. O que Studart publicou é
importante, se bem me lembro, mas é pouco. Como se chama o régulo de
Jacareí que desceu à marinha e apossou - se de sal, distribuiu-o, etc. ?
Já está impresso o segundo volume dos Bandeirantes ?
Respeitos à senhora.
Adeus, nova geração ! Evoé ! Zé-pereira !
Gigante de Pedra, quarta -feira de cinzas, 1925.

Afonso amigo,

Um português, fuão Andrade, autor de obras não destituídas de valor,


encontrou uns manuscritos relativos ao Brasil, com os quais pensou des
cobrir a árvore das patacas.
Dos manuscritos publicou um catálogo, creio que na Revista da Fa
culdade Juridica de Lisboa . Não o terá V. ? Meu exemplar entreguei- o
a Manuel Cícero, mas, arredado da Bib. Nac. , não sei se poderá indicar
me aonde o deixou .
Se V. tiver o Catálogo, peço -lhe o obsequio de mandar copiar uma
carta de Melchior de Azevedo e de enviá-la a Paulo Prado. Se os alga
rismos ainda regulam , dentro de uma semana teremos o 2.º volume das
Bandeiras : Muito bem .
Respeitos à sr .
Adeus, nova geração !
Ergebenst,
Gig. de Pedra, 12 de março de 1925.

Afonso amigo ,
Camuflado, bem camuflado, chegou o 2.º volume das Bandeiras.
Enquanto não descasquei o invólucro , perdi-me em cogitações por este
mundo a fora.
Abraçando-o cordialmente pelo feito, espero o que há a fazer.
O bordão dos jesuítas para pouco prestará daqui por diante. · Se as
atas, os inventários e repertórios não ajudarem, chegaremos aos sujeitos
sem predicado.
344 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Comecei a cópia do documento de Pereira da Costa para enviar - lhe.


Consultei na Rev. do Inst, as duas monografias sõbre a Guerra dos Mas
cates, que podem dar-lhe alguns grãos dos que petit à petit engrossam
o papo.
Como vão os Anais ?
Respeitos à sr.a.
Adeus, nova geração !
Ergebenst,
JoÃO NINGUÉM
Gigante de Pedra, oitava das mentiras, 1925.

Afonso amigo,

Aqui estou desde segunda -feira, 14, fugido de congressos e sábios,


chamado pelo Jaguaribe para fazer-lhe companhia.
Ele foi bem sucedido na operação. Falta - lhe agora dar tempo a.
tempo.
Julgava poder ir entregando os originais bacairis. Faltam-me, po
rém , alguns cadernos do principio. Parece-me tê-los entregado ao Cícero ;
escrevo agora ao Aurélio que o substitua interinamente, reclamando -os.
No próximo sábado devemos subir a serra e na Paulicéia ficar
domingo e segunda : notícias nossas V. poderá ter na casa do Ekman,
D. Veridiana, 46, ou mais diretamente do outro genro de Jaguaribe, 38 na
mesma rua, creio, aonde ficaremos.
Respeitos à sr..
Adeus, nova geração !
Praia de S. Vicente, 82.
Bien à vous,
C.
Terça- feira, 22 de agosto.

Afonso amigo,

Ainda bem que a notícia do incômodo da senhora veio com a do com


pleto restabelecimento .
CARTAS A AFONSO TAUNAY 345

No dia 30 pretendo almoçar com D. Zél que faz anos . Como des
cerei no mesmo dia, gostaria que nos encontrássemos, nem que fosse de
passagem ,
Imprevista doença a de Haddock Lobo?! Quem tal diria ? Es

peremos que se restabeleça de todo e complete o compêndio em que traba


Ihava .
Lúcio de Azevedo deseja o seguinte, que talvez V. possa satisfazer.
Para serem entregues na Livraria J. Leite, foram confiadas a um
passageiro, que vinha para o Brasil, certos exemplares das Cartas de Antô
nio Vieira para serem distribuídos entre amigos. J. Leite não os rece
beu. Com dificuldade consegui as seguintes informações sõbre o porta
dor de nosso amigo L. de Azevedo :
Júlio Antunes de Abreu.
Rua Direita , 39
Caixa 77 S. Paulo.
Veja se pode fazer alguma cousa.
Nosso amigo Jaguaribe desde 19 — São Pedro de Alcântara, grande
gala no antigo regime, por ser o padroeiro do imperador começa os
banhos e está animado.
Eu pretendo voltar a meus pagos no primeiro Ita que paritr de
pois do dia de defuntos.
Respeitos à ex.ma família,
Ergebenst,
JCÃO NINGUÉM
S. Vicente, aniversário do nascimento de A. de Castro3 e con

cepção da República.

Afonso amigo,

Ontem , Berlinck, que aqui estêve, disse que o trabalho do Museu


estava muito adiantado, que lhe escreveu uma carta registrada e ia diri
gir-lhe uma expressa .

1. D. Úrsula de Andrade, mulher de Martim Francisco III.


2. Refere-se Capistrano ao Dr. Roberto Jorge Haddock Lobo Filho.
3. Apulcro de Castro, panfletário que durante largo tempo injuriou
a Capistrano.
346 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Lúcio de Azevedo mandou uns exemplares das Cartas de Vieira por


um Antunes de Abreu , que, segundo sou informado, é contratador de lo
terias. O nome e o endereço constavam de outras cartas minhas. Já
falou com o homem ? Que lhe respondeu ? Se não está para maçadas,
mande -me o nome e passarei a incumbência ao Paulo Prado. O carro
no toco e os bois na lama, é, no dizer cearense, o que expressa bem (o) caso
do meu bacairi . Dirigira a empresa algum tempo um reforçado etiope
que prometera fazer alguma coisa . Agora entendo-me com um melifluo
tipo: para desancá - lo seria precisa a terapêutica pavorosa do umbigo -de
boi .
Pretendo ir em abril às águas de São Lourenço. Em S. Paulo esta
rei para os aniversários de outubro e novembro, se as Parcas não inter
puserem veto.
Respeitos à senhora.
Adeus, nova geracão !
Ergebenst,
João NINGUÉM
Gigante de Pedra, Candelária , 1926 .

Afonso amigo,
Sempre me pareceu mal empregado o tempo gasto com Cândido de
Figueiredo e seu Dicionário.
A separatal não me mudou o sentir, ao contrário asanhou - o .
Não me parecia direito que você, como diretor de Museu, cercado
de enciclopédias, monografias e especialistas, atirasse com tais armas
de precisão contra um c ... tintas.
Mais de um arrepio causou-me o horroroso vocábulo túpico. Quem
o construiu ? O Imperador ? Varnhagen ? Fernandes Pinheiro ? Er
nesto Ferreira França na Crestomatia ? Acho - o horrível . Como se pro
nuncia : grave ou esdrúxulo ?
Estou lendo o livro de Alberto de Faria sobre Mauá. No terço
já percorrido acho-o de incontestável valor. É talvez um pouco dantesco
isto é, abrasador. Há uma discussão muito ( ilegivel ] de palavras do
Visconde.

1. Refere-se Capistrano ao trabalho de Taunay : A Terminologia Cientifica


e os Grandes Dicionários Portuguêses.
CARTAS A AFONSO TAUNAY 347

Apesar de todo o esforço de Eugênio de Castro, desde junho ou julho


do ano passado, a edição do Diário de Pero Lopes dificilmente sairá
antes da Páscoa. Dará umas quinhentas páginas, talvez; vem acompa
nhado de mapas. Será um marco para a época.
Nada tenho feito desde que cheguei de S. Paulo. A queimadura
diatérmica ainda não sarou . Espero esse livro para o carnaval.
Respeitos à senhora.
Adeus, nova geração !
Ergebenst,
João NINGUÉM
Túgurio , 17 de janeiro de 1927.

Afonso amigo,

Na série dos quadros genealógicos que você fez para Rangel, e


ele inseriu nos apensos ao seu livro, D. Pedro I e a Marquesa de Santos,
não vejo razão de ser nos que demonstram o parentesco da marquesa
com Frei Gaspar, Padre Pompeu e outros. Para que servem ? Que
importância têm ?
Muito mais interessante seria se você provasse que ela era

prima de José Bonifácio . Não pesquisou neste sentido ? Devia sê-lo.


Em S. Paulo outrora eram todos primos. Seria curiosa a descoberta . . .
Martim, este é primo de Domitila, mas, pelo lado da mãe. Não
tira grande satisfação de tal, como você sabe, inimigo como é dos que
com os avós andaram a jogar as cristas. Feijó que o dissesse ...
Quer você saber onde li a referência à ida de Domingos Jorge para
o Norte com Matias Cardoso ? Não posso dizer no momento, nem sei
que valor tenha semelhante lembrete, aliás muito ligeiro, se bem me re
cordo .
O documento de Pereira da Costa é formal na fixação da data da
entrada no Piauí do dr. Jorge Velho. Tem capital importância, mas,
como já a você aisse, o caso é ainda de cipnal . Festina lente.
Bien à vous ,
J. NINGUÉM
( s. d . ]
348 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Afonso amigo,

Deve você real serviço ao seu amigo de Alagoas ?. Proporcionou


lhe um achadão ! Realmente, com os dados que lhe forneceu e os que
você conhece, está feita a identificação de Domingos Jorge Velho , figura
de enorme importância, ainda muito mal apresentada.
Parabéns pela sua boa estrela . Assim lhe caibam outros achados
dêste gênero. Chamo muito a sua atenção para o documento de Pereira
da Costa. É de capital valor.
Não me sinto muito bem . Quase nada tenho feito senão conversar
e ler. Assim mesmo pouco.

Respeitos à sr.
Bien à vous,
Cap.
[s. d.)

Afonso amigo,

Apreciei as novidades bandeirantes que você me manda. Bravos!


Macte puer.
O documento de Pereira da Costa sobre o Piauí é um destes achados
que hoje não se repetem senão excepcionalmente. Leia - o você com todo
o cuidado e atenção. Tem cabal importância, escusado é repeti-lo.
A sua identificação genealógica de Domingos Jorge Velho corres
ponde a uma bela descoberta. Deve V. ser muito grato ao seu amigo
alagoano, que lhe proporcionou o fio da meada que V. aproveitou com
tamanha felicidade .
Penso que V. faz bem em dar na integra a carta de Antônio Vieira
sobre a expedição de Raposo. É um documento da mais alta curiosidade.
E João Lúcio prestou um serviço excelente, transcrevendo - o integral
Disseram-me que V. está para vir. É verdade ? Avise-me neste
sentido.
Respeitos à sr.
Bien à vous,
10 de maio de 1927 . CAP .

1. Dr. Wenceslau de Almeida.


CARTAS A AFONSO TAUNAY 349

Os seus capítulos sõbre Rapôso na guerra holandesa estão bem.


Sõbre Pais Florião há qualquer coisa no catálogo de Eduardo de C. de
Almeida. Talvez lhe sirva . Duvido que V. encontre muita cousa nova
por aqui, neste sentido .

Afonso amigo,

Ainda bem que a notícia de sua convalescença acompanhou a dos


seus incômodos.
Agora siga o conselho do Evangelho à adúltera : não reincida.
Folgo com os progressos dos Bandeirantes.
Se você conseguir libertar Domingos Jorge Velho dos cipoais de
Taques, Azevedo Marques, etc., terá metido uma lança em Africa.
Alguma cousa sobre os paulistas de Alagoas você encontrará na
Cúria de Pernambuco, se há tempo. Concluo que entre eles era usual
a lingua tupi. Debulhe e redebulhe isto.
Afinal está-se começando a imprimir o Pero Lopes, de Eugênio de
Castro, mais de 500 páginas, além de mapas.
Falta meu prólogo, e não sei como o farei : ando com a cabeça tão
Oca !
Respeitos à sr..
Adeus, nova geração !
Inútil
JcÃO NINGUÉM
Tugúrio, 19 de maio de 1927.

Afonso amigo,
Voltou você ao vômito ! Que pena ! Nem compreendo como insista
em gastar tanto e tão precioso tempo a discutir com o homem do chino.
Infeliz mania !
Basta ! Já V. lembrou os casos do florianista, da sirema, do guaxupé,
do aeroplano e quejandas asnices. Para que mais ?
Tantaene animis !
Convença-se de que matou e enterrou o sujeito e, assim , recuperando
a saúde mental, cuide de assuntos sérios.
350 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Você se meteu a escrever a História das Bandeiras e esquece - se de


que, no seu caso, a longa e o brevis do brocardo devem ser superlativados.
Há pano ali ! Há pano, imenso, para mangas, muitíssimo mais do
que você pensa.
Em todo o caso não me mande mais os seus artigos contra o homem
de peruca, que não os lerei . Só servem para me irritar.
Já tive até vontade de escrever a Martim recomendando - lhe que
procurasse convencer a você do erro que está cometendo, malbaratando
tanto tempo e trabalho com tão desastrado assunto.
Livre-nos Deus de que V. prossiga no espiolhamento de todo o di
cionário ! Será um acabar ! E quando tiver terminado, então
ai avaliará o prejuízo que teve em tempo e serviço.
Não gaste cêra com tão ruim defunto e deixe em paz o sujeito
dos postiços.
Em todo o caso está advertido : nunca me mande mais novas provas
da sua infeliz figueiredite.
Por que não convence você o seu amigo abade de S. Bento de mandar
imprimir a obra filosófica de Frei Gaspar, cujos manuscritos o Padre
Kretz descobriu no arquivo do convento ? Seria uma excelente contri
buição para a nossa história intelectual e ama bela coisa para a história
da sua Ordem .
Bien à vous,
Cap.
( s. d . )
A J. B. PANDIÁ CALOGERAS 1905-1927

Rio de Janeiro, 3 de abril de 1905.

Joanico,
Ocupei-me hoje com as provas da prata ( sic ). Não estou satisfeito ;
nem aproveitaste o material que te mandei, nem corrigiste certos erros
apontados.
Fiquei buridanado. Não sou o atuor, e o burro albarda -se à vontade
do dono. Chegando a certo ponto , perdi a paciência e emendei. Creio
que ainda emendarei mais. Mesmo assim, podia ficar melhor.
Li as provas do Jornal, que já estavam, aliás, bem corretas.
Houve um ponto em que pus na afirmativa o que o original tinha
na negativa ; pus tolerante, em vez de intolerante, lembrado, em vez de
esquecido.
Ainda não vi o capítulo anterior às Conclusões Gerais, tratando .
segundo penso, dos combustíveis.
Creio que conviria pôr a resposta a Osório, como apêndice, modifi
cando - a ligeiramente.
Não tenho visto Bulhões. Creio que não fará negócio com a Re
finadora — muito bom para o Banco, quando estiver autônomo – pensava
éle há dois meses ; além disso tem compromisso anterior com Álvaro de
Oliveira.
Esta semana, lá para 5.a ou 6.a, pretendo ir para S. Ana.
Vou jantar com Bobói na ilha. Trata do indice analítico. Para
dispensar a declaração do volume, estabelece uma notação qualquer, por
exemplo, os números relativos ao segundo, sempre grifados.
352 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Não te esqueças de trazer meus livros éste ano : Histoire Générale,


Pluto, Handworterbuch , Juristische Encyclopædie, etc.; deve haver ou
tros, mas não me lembro.
Peço-te que, logo que receberes esta, ponhas de parte teu trabalho
para fazer uma cousa de que preciso com urgência, e creio que no
máximo levarás um dia.
Auxiliado pelo Gorceix, que deve entender algum tanto de paleogra
fia francesa, decifra-me os dizeres do mapa de J. de Vaude Claye, que
figura no Atlas do Rio Branco . Alguns decifrei eu, mas manda-me a
decifração geral, que servirá de prova, e facilitará as outras.
Adeus, Sinhoca !
CAP.

Xara ,
Acabo de receber tua carta com a transcrição do Vaude Claye. Muito
obrigado. Vou agora compará -la com o original.
Li ontem no Jornal tua resposta. Está muito boa : poderia talvez
ser mais clara num certo ponto que já não me lembro. Quem quer
que a reviu, fê-lo com consciência. Ainda responderá o Osório ? Creio
que agora poderás te desinteressar da questão.
Pelo que me consta, ele dá-se como o agravado, e isto num li
vro ... Parece que ainda torna. Deixá - lo .
Entreguei a prata [ sic ] na Imprensa. Vou ver como está : é o que
estorva a conclusão . Por que não deixaste o malfadado Rodrigo de
Castelo Branco para o fim ?
Desci hoje definitivamente da Tijuca. Amanhã espero ficar livre
de uma vez . Pretendo ir para Sant'Ana na 5.a feira.
Adeus, Sinhoca !
CAP.
Rio , 10 de abril de 1905 .

Rio de Janeiro , 12 de abril de 1905.


Xará
Acabo de saber de duas cousas que não me deram o mínimo prazer.
Primeira : do capítulo sôbre combustíveis não me deram uma só
prova e já está quase todo impresso. Como sucedeu isto ?
CARTAS A J. B. PANDIÁ CALÓGERAS 353

Segunda : disse ao Pinheiro que me desse as provas do Prata, antes


de tas remeter. Pois sucedeu tudo pelo contrário, por causa do sr. Reis,
revisor, que não entendeu o quê, por não estar escrito.
Li o último artigo [ d ] o Osório. Triste caráter e pobre consciência !
Sigo amanhã para S. Ana passar uns 15 dias com Sá. Levo comigo
o capítulo Substâncias Diversas e Conclusões Gerais.
Estes não estão revistos desde muito tempo, por que não havia ur
gência, dado o encalhe da prata [ sic ] . Espero 2.a feira, se não antes,
mandar tudo de uma vez .
Vê o que decides sõbre o apêndice.
Se não será melhor dar nova forma, sem epítetos, dando as pro
posições do troglodita, opondo -lhe resposta muito seca.
Adeus, Sinhoca !
CAP.

Joanico,
Sá, que amanhã de madrugada vai à cidade, leva as conclusões finais.
Só hoje vi que eram segundas provas; por isso, e só por isso, não as
despachei antes.
Acabo de ter a prova no Varnhagen que D. Luís de Sousa esteve
em Pernambuco, antes de seguir para a Bahia. Não sei como me
escapou esta notícia . Também, aquilo é um matagal que até eu , vaqueano
velho de tais devesas, mais de uma vez fico areado. Sá leva uma nota
para ver se ainda é possível encaixá-la, modificando a que lá estava .
Tens razão em não fazeres o apêndice. Bastará uma nota pouco
mais ou menos neste sentido : O presente trabalho começou a ser
composto na Imprensa Nacional a ... do ano passado e já estava todo
escrito e apenas foi ligeiramente modificado na revisão das provas. As
páginas publicadas no Jornal do Comércio deram azo a respostas pouco
pertinentes ao assunto, do atual diretor da Estrada de Ferro Central.
Quem quiser acompanhar esta discussão recorra aos n.os... Aqui
cheguei no dia 13, e tenho passado uns dias deliciosos. Sexta-feira, 21 ,
pretendo seguir para Volta Redonda, fazenda do Dr. Peixoto, onde fi
carei até domingo.
A próxima semana passarei ainda no Rio : depois é possível vá
à fazenda do Virgilio assistir dois ou três dias.

26 – 1.0
354 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Estou aqui pegado no Varnhagen : trouxe alguns volumes da reim


pressão do Hakluyt para estudar os inglêses no Brasil. No Rio acaba
rei com o Purchas.
Adeus, Sinhoca !
Saudades.
Cap.
Ponte Alta, 17 de abril de 1905 .

Rio de Janeiro, 2 de junho de 1905.


Xará ,
Em tua última carta , dizias estar aqui no fim do outro ou prin
cipio deste mês. Agora informa Sá que não virás antes do dia 10.
Por causa de tua chegada próxima, depois de ter separado no Bri
guiet uma tese de doutorado de 1904 sôbre Le Droit de Recherches des
Mines disse que não a remetesse.
Teu segundo volume sei pelo Sá que já está distribuído pela Câmara .
Vou amanhã à Imprensa pedir um exemplar a Alfredo Rocha para dar
a notícia .
Ainda não vi provas do 3.º volume.
Estou às voltas com um concurso na Secretaria da Viação que só
estará terminado lá para 10 ou 12.
Saudades.
CAP..

Xará ,
Vai esta às carreiras, escrita da casa da Adelaide, numa rápida esca
pada da Tijuca.
A escritura deve ser assinada amanhã. A dona vai mandar pro
ceder a uma limpa geral, de modo a ficar tudo preparado lá para o dia.
8. Os pedidos chovem , mas ela já declarou que não pode decidir de
nada, enquanto não tiver tua resposta. Bobói não precisa de se apres
sar muito, porque diz ela que só depois dos consertos poderá se formar
uma idéia exata do conjunto.
Não tenho estado com o Bulhões, mas creio que não descansa. Cus
tódio disse-me hoje que o Pente Fino aderiu decisivamente e está traba
CARTAS A J. B. PANDJÁ CALÓGERAS 355

lhando com força. Murtinho, que a principio se revelara contrário, di


zem que está bambeando.
Pelas notícias, Assis Brasil entra no ministério do Pena ; será uma
esplendida nomeação, se não lhe derem a Pasta da Fazenda.
Rio Branco parece querer ficar. Já mandou os quatro relatórios para
a Imprensa Nacional .
Quero ver se neste resto de semana posso escrever a guerra holandesa.
Adeus, Sinhoca !
Saudades do
J.
Rio, 29 de março de 1906 .

Meu caro Calogeras,


Já lhe falei do portador, Francisco de Assis Bezerra Filho, preten
dente a um lugar aqui ou no Pará.
Aqui há duas vagas: creio que sua intervenção junto ao Campista
poderia dar resultado.
Bien à toi,
CAP.
Rio, 19 de outubro de 1907.

Xará,
Desci ontem a Pôrto Novo passar um telegrama de felicitações a
Sinhoca. Chegando à estação da estrada, tive a notícia da morte do
Pena. A curiosidade apossou - se de mim e ... Vão, pois, com toda
cordialidade, todos os meus bons desejos, e para não incorrer outra vez,
reserva uma quota para o dia 19, para não incorrer outra vez [ sic] na
pecha de pouco zeloso.
Morreu Pena, e mostrou bem que não era o acomodatício que denun
ciaram na Câmara e no Senado. Engoliu os casos de Goiás, a candida
tura do Davi, a candidatura do Hermes, mas não as digeriu . Fosse o
sem - vergonha que sabes, e teria ganho alguns quilos. Causa lástima
que o apaixonassem tanto cousas em que não tinha que ver e deixasse à
matroca aquilo para que fora eleito, mas foi um presidente respeitável ,
nomeou bons juízes e não considerou o pôsto como aposentadoria. Se
356 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

não possuía a inteligência que presumia , trouxe- a sempre em cultivo e


não enterrou o talento único, tal o mau servo da parábola.
E agora temos Nilo , o pudendo Nilo ! A propósito : recomenda ao
Sá que nunca mais lance tal palavra da imprensa ou da tribuna : na
imprensa éle, digo, em conversa ouvi- lho há anos referindo -se ao guano.
Deixa -me indiferente o désarroi do Jardim da Infância, mas tenho
pensado na hipótese de seres chamado à Pasta da Viação e não poderes
recusar.
ó comédia ! ó tragédia ! Ó Padre Eterno de borra ! Tenho passado
bem , e procuro demorar o mais possível. Trouxe apenas meia dúzia de li
vros e não quero tornar sem os ter lido. Aproveitarei o ensejo para dar um
empurrão no estudo de neerlandês.
Saudades a Sinhcca , Nenê, etc.
Bien à toi,
ABREU
Paraíso , 16 de junho de 1909.

Xara .

Adriano traduziu do inglês uma geografia elementar, muito boa, por


que desde o principio o autor coloca -se no ponto de vista antropogeográ
fico. Briguiei, que vai publicá -la, quer que eu faça um capítulo sobre
o Brasil, pelo mesmo método .
Peço-te penses sõbre o seguinte plano :
A : Rio Grande, S. Catarina, Paraná, Mato Grosso. Pensa bem
e verás que há uma porção de feições comuns que ligam estes estados
entre si , mais que com quaisquer outros;
B: Goiás, com os ribeirinhos do Tocantins, do S. Francisco e do
Parnaíba, a região do gado, e ao mesmo tempo a mais seca ;
C: A região cafeeira até o sul da Bahia , onde o café é vendido
pelo cacau ;
D: 0 litoral até Maranhão ;
E: Amazônia .
Meu primeiro plano, ontem concebido, foi seguir exatamente esta
ordem . Hoje tenho pensado se não convirá passar de E a A.
Peço -te que te informes a respeito do Paraná e S. Catarina — sõbre
a lavoura litorânea a região dos campos no planalto, a criação de gado.
CARTAS A J. B. PANDIÁ CALÓGERAS 357

O trabalho deve ter dez a doze páginas; naturalmente Briguiet gos


taria até que tivesse mais : eu é que não estou para isso.
Creio que meu trabalho extensivo sobre o caxinauá está concluído.
Estou acabando a cópia dos textos ; Vicente poderia naturalmente me
dar muito mais textos e sobre assuntos importantes, mas agora trata-se
de cousas íntimas; conhece-as certamente, mas duvido que desembuche.
Pois ele é lá capaz de dizer que os parentes assam defuntos e comem ?
Assim estou quase terminando e poderei entrar para o prelo em
janeiro com a obra toda completa, exceto a gramática, reservada para
a última hora, depois de impressos os textos.
Tuxunim tem sido muito útil ; se não dá grandes ditados e dispõe de
parco vocabulário, sente a língua própria intimamente e conhece bem a
nossa . É um verdadeiro cearense ; até chama português marinheiro.
Pretendo partir a 22 para Petrópolis.
Saudades a Sinhoca, Nenê, se ainda está.
Bien à toi,
CAP .
Paraíso, 15 de novembro de 1909.

Xara,
Não sei se na lufa-lufa em que revoluteias poderás ir segunda- feira
ao primeiro andar da Imprensa Nacional procurar Xavier Pires, dizer-lhe
que prepare minhas provas até quarta-feira, pô-las neste dia registradas
no correio, cedo, à hora de poderem chegar aqui na quinta -feira. Assim
terei quinta, sexta, sábado, domingo para corrigi-las, poderei sair daqui
2.2, 3, e 3.a, 4, almoçar contigo, se ainda estiveres por esses bairros ou
não emigrares para as Flôres.
Li discurso do Sá. Muito bom, esplêndido. Creio que ele tinha
preparado outra cousa, mas o temporal, a retórica de Castro Pinto ( foi
realmente muito cacete ? ) aconselharam - lhe proceder diferente. Mostrou
se assim homem de verdadeiro espírito.
E o Jornal, que não desarma ? E a Fôlha do Dia de ontem ? E o
Nuno com o Rui ? Se no Brasil houvesse propaganda, os artigos do
País deviam ser colecionados e distribuidos. O discurso de Bulhões, pro
358 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

nunciado em janeiro ou fevereiro de 19, creio que iria bem na série.


Conheces ? Gostaria bem de relê-lo agora, para ver se ele previu.
Respeitos a Sinhoca.
Bien à toi ,
CAP .
Paraiso . Natal, 1909. Como vai Boboi ?

Não recebi as provas que vim de propósito buscar. Ou não teria chegado lá
minha carta ?
Saudações,
C. A.
Porto Novo, 30 de dezembro de 1909 .

Xara,
Saindo sábado daí , combinei com Pires que mandaria entregar as
provas na Livraria Briguiet, donde me seriam remetidas pelo correio. Até
agora nada recebi . Peço-te que, depois de amanhã, segunda -feira, pas
ses na Imprensa, para apressar. Não creio que a demora seja do Bri
guiet .
Se os tipos especiais estivessem prontos, meu trabalho estaria adian
tado, pois quase todos os textos estão compostos ; na falta dêles, as se
gundas e terceiras provas saem tão sujas como as primeiras.
Tenho colhido mais textos, umas trezentas frases mais, devidas a
Tuxunim , principalmente. Acaba este de dizer que Vicente sabe his
tórias de almas, e outras cousas . Não as conta com mêdo. Qual o
meio de acoroçoá-lo ?
Vi a nomeação do Frontin .
Lembrou -me a segunda frase de Waldstein, ao princípio.
Depois refleti sobre a némesis.
Del Vecchio foi demitido porque protestou timidamente. Frontin
está movendo processo pelo mesmo motivo , e reclama o que lhe não
pagaram das obras do pôrto.
Em suma, como nos teatros da baixa classe, os figurantes entram
por uma porta, passam correndo pelo palco, e tornam a entrar pela mes
ma porta, para fingir multidão.
CARTAS A J. B. PANDIÁ CALÓGERAS 359

Há uns valores de circulação forçada, que só a força amortiza.


Se algum dia ines ministro, só te peço uma cousa : não esqueças
que milho verde vale mais que sabugo.
Infelizmente nosso Sá, tirada a exceção do Miguel, entende continuar
a política do sogro : o ideal é nomear gente mais ou menos Souto.
Até 1.° de fevereiro .
Bien à toi,
Cap .
Paraiso, 15 de janeiro de 1910.

Xará,
Em companhia das Notas, Bulhões teria também mandado o Koster
e o relatório de 1859 ?
Vou escrever - lhe.
Ele já falou ao Rio Branco e ao rio sujo sôbre o Pan -americano, e
encontrou toda a boa vontade. Faço questão de que vas ao Chile, para
poderes recitar com maior convicção o verso de Castro Alves sobre os
pequenos e os Andes.
Relativamente à moeda colonial pouco me lembra. Ao tempo dos
Filipes, abriu-se o comércio com o Prata e afluiu a prata dos peruleiros:
Fr. Vicente o diz, e Pyrard de Lavalle, que estêve na Bahia cerca de 1610,
o confirma.
Li em Simão de Vasconcelos que com dinheiro de São Vicente se
faziam umas moedas chamadas vicentinas. Nunca mais encontrei este
trecho, marcado no meu exemplar da Crônica, que se perdeu com a morte
de Cabral. Mandarei, porém , à Sinhoca a Crônica ; ela a lerá certamente
com prazer e achará a pepita.
Em Rocha Pita acha -se uma descrição precisa da lei de Gresham.
Como ficou com os papéis do tio, instalador, ou cousa que o valha, de
algumas casas de moeda, pode ser que através de sua obstusidade pala
vrosa haja filtrado algum raio. Ou Júlio Meili já o terá apurado ?
Um dos últimos números da Revista do Instituto publicou a corres
pondência de Câmara Coutinho com algumas referências à nova lei sobre
moeda : escreve à Fazenda.
Eu tive cópia de uma carta do mesmo sobre assunto análogo. Se
achar, reservar -te - ei.
360 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

A situação do Norte me aparece assim :


População muito escassa ; a Casa -Grande como uma espécie de celeiro,
de raio mais ou menos alongado ; na casa -grande, muita fartura, graças à
economia naturista ou caseira, em que o produto e o consumo se ultimam
no mesmo âmbito limitado ; pouco dinheiro. Como objeto de comércio
o gado vacum ou cavalar. Quando éste se vendia no Recife ou na Bahia,
o retorno era quase todo em gêneros. Dinheiro imobilizado em jóias :
varas de condão ! também escravos decorativos.
Pelos meados de 700 , a cultura sùbitamente desenvolvida do algodão
deve ter modificado as cousas ; não conheço particulares.
No Ceará fala-se muito em botijas de ouro enterradas.
Está empregado na Cantareira um meu parente que, mandaram dizer
a Abril, encontrou uma das tais botijas, tanto que inesperadamente sacudiu
se do Saco do Vento, perto da nossa casa, para Manaus.
Que de fato se enterrava dinheiro, tenho prova ao menos em um
caso . Durante a Guerra da Independência, conta Acioli, as tropas de
Labatut desenterraram um tesouro de mais de cem contos em um engenho.
A independência hispano -americana, desorganizando toda a mineração,
rareando os metais preciosos, e abaixando o valor das mercadorias, teve
de certo grande repercussão sôbre a crise regencial. Dizia Tautphoeus
que conheceu o Rio ainda uma cidade colonial. Só melhorou quando o
tráfico ficou realmente abolido, e o capital empregado nos navios negreiros
aplicou - se à metrópole fluminense.
Mauá seria impossível sem Eusébio .
Creio que estas duas circunstâncias, juntas à questão do Xenxém ,
explicam muita cousa. Ainda menino, conheci um velho muito pândego,
nosso vizinho (era de Trapia ) , dono de uma das tais casas-grandes: diziam
que a sua fortuna provinha do Xenxém . Muitas vezes tenho feito pro
pósito de estudar a questão ; nunca me chegou o tempo. Desejo bem que
levantes ao menos a ponta do véu. Pelo que apuro dos jornais, a recepção
do Rui tem sido estrondosa ; a fermentação em Minas tem alastrado muito
mais do que eu supunha ; inquieto -me por tua causa : Furtado de Me
neses está constituindo um centro de grande força. A candidatura do Rui
teve a vantagem de levá-lo a uma crítica da atualidade, veemente e in
juriosa, mas, ao cabo, muito verdadeira. À medida que se aproxima o
triunfo de Hermes, crescem minhas repugnâncias : Jangote, Zé Mariano,
CARTAS A J. B. PANDIÁ CALÓGERAS 361

Leite Borges, Nicanor !... Estarei no Rio a [ ? ] de março, mas definiti


vamente só em abril.
Saudades a Sinhoca .
Bien à toi,
CAP .
Paraíso, 22 de fevereiro de 1910.

Xará,

Estou achando a reportagem eleitoral mal feita. Creio que já se


poderia saber muito mais. Também creio que no próprio Rui a excitação
já terá passado. Agora o combate versará sôbre a não -elegibilidade de
Hermes. Creio que ele estará na brecha. Com certeza Tilden não é
santo de sua devoção.
Acabo de escrever a José Carlos, lembrando - lhe a conveniência de
publicar os nomes dos mesários nas secções em que não houve eleição,
apurar sua côr política, e dar o número de eleitores que deixaram de
votar. Ficar -se -ia assim sabendo quem impediu que reunissem as 69
secções.
Leio na Folha do Dia que foi Irineu, partindo de um cálculo que
falhou. Como a idéia é boa, duvido que adote- a nosso homem .
Vou amanhã dormir em Petrópolis, e de lá irei ao Rio. Minha
demora será pequena.
O Paraíso é o melhor dos lugares para ajuntar material. Desde,
porém , que o trabalho entra para o prelo, os inconvenientes aparecem .
Por isto estou decidido a, no fim do mês, ir embora. Assim, lá estarei
quando começares tua impressão.
Esta longa estada me convenceu cada vez mais que não sou homem
para cidade. Se não fôsse D. Adélia e Matilde ... Honorina já encon
trou seu destino.
Saudades a Sinhoca.
Bien à toi,
CAP .
Paraiso, 4 de março de 1910.
362 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Xará,

Estive ligeiramente no Rio, domingo, segunda e têrça . Quarta che


guei aqui, pouco depois do meio-dia. Ontem fui a Friburgo, e ontem
mesmo voltei . Espero, no fim do mês, ir de uma feita .
Minha estada no Rio não foi de todo inútil. Antônio deu uma batida
nos livros e com grande surpresa minha descobriu o Koster. Já o deves
ter recebido. Seria melhor, porém , que a Sinhoca se encarregasse da lei
tura. Sabe o que queres, do que precisas; encontrará fàcilmente a agulha
no palheiro. Depois lerias o livro com mais vagar ; só com vagar se pode
apreciá-lo em suas qualidades modestas, porém sólidas.
Bulhões tem Hiciatz Panthooz ( escreve - se assim mesmo ? ). O rela
tório de 1859 ainda não pôde encontrar. Horácio Say não aparece.
Recomendo -te que, chegando ao Rio, seja tua primeira visita ao Instituto,
onde Fazenda te mostrará um dos livros mais raros do Brasil -
a Biblio
teca Nacional não possui - se o achares por Baependi, apossa -te dele : a
Coleção Sistemática e Cronológica de Legislação da Fazenda por Figueroa
Nabuco de Araújo. Muito provavelmente encontrarás novidades. Creio
que ainda nenhum financeiro o leu. Tem quatro volumes.
E a política ?
Sempre fiz ao Rui a justiça de julgá-lo incapaz de conformar-se com
a sentença das urnas. Mas não é ele só. Chegaria o que sempre antevi :
uma apuração presidencial em que a guarnição do Rio represente de Breno ?
E a guarnição, a favor de quem se declarará ? Creio difícil responder.
Há um trabalho subterrâneo, que pressinto, mas não conheço. Ainda
hoje a Folha do Dia fala em falsificação de detalhes, etc.
E o discurso do Hermes respondendo ao Borges de Medeiros ? Pre
firo o que Cesário Alvim pôs na boca do Generalíssimo, ao abrir - se a
Constituinte. Sobretudo em alemão , traduzido pelo Barão Muniz de Ara
gão, é um capolavoro.
Tenho seguido com curiosidade e surpresa o movimento eleitoral em
Minas. Não tenho fé implícita nas apurações de um ou outro grupo,
mas vejo que o mar deixou de ser morto, pois noto correntes tem
caracterizadas, ou pelo menos redemoinhos locais muito curiosos.
Mandei a carta de Adriano só para veres o seu estilo. Ele se queixa
de não ter sido transferido para a Alfândega. Bulhões prometera- o mais
de uma vez . É verdade que este gosta sempre de fazer sua molecagem .

Além disso, como eu previra, a pretensão do Abril fêz mal ao irmão.


CARTAS A J. B. PANDIÁ CALÓGERAS 363

Estive com o Sá na segunda - feira. Disse-me que em hipótese alguma


continuaria com Hermes. Acho que fez bem. Os mineiros também não
andariam mal , agitando sua candidatura à senatoria na vaga do Feliciano.
Estou procedendo a novo cotejo do vocabulário sipibo com o caxinauá.
Encontro agora correspondências entre os dois idiomas, que me escaparam
às primeiras investidas esta é a quarta ou quinta. Creio que o
caxinauá é mais arcaico, porque conserva consoantes onde o sipibo emprega
já vogais e apresenta maior riqueza fonética.
Espero no fim do mês ter impressas umas cinco fôlhas ; ficarão
assim para o Rio as lendas que já estarão tôdas compostas e traduzidas,
a gramática, de que nunca me distraio, e o vocabulário que estou revendo,
e só preciso de harmonizar com o texto .
A propósito da casa -grande encontrarás uma notícia no Koster,
quando descreve a hospedagem de um Albuquerque, se bem me lembra
André, no Rio Grande do Norte.
Saudades,
CAP .

Paraiso , 12 de março de 1910 .

Xara ,
Prenes mon ours ! de acordo ; mas em História não pode ser esquecida
a perspectiva.
Dizer que X. S. V. destruiu o gâchis lucenesco não é exato : deve-se
atribuí- lo à reação que trouxe a resignação do Deodoro, e varreu o ditador
e sua obra .
Tenho dúvida se sua carta atualmente considerou ciclone crescendo
de tempête. Talvez fosse melhor vents e depois tempête, orage.
Pretendo não descer hoje à planície. Creio que não há provas urgen
tes, a que minha revisão seja necessária.
Respeitos a Sinhoca .
Um abraço no Boboi, de que andava saudoso .
САР..
24. Viva S. João ! 1910.
364 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Xará,
Li com toda atenção a carta de Fr. Serafim. Frade não é gente.
Condeno - o e protesto envidar todos os meios legais para dar execução à
sentença , condeno-o ao diabo que o carregue.
Ia-te escrever para dar a grata notícia de que amanhã ou depois
acabarei a cópia de todos os mitos recolhidos, em número de quarenta
e um ou quarenta e dois. Alguns há repetidos ; espero recolher ainda
outros durante a impressão e composição ; assim não ficarei longe de
cinqüenta.
Consegui finalmente apanhar o tipo sintático da lingua, um verdadeiro
ôvo de Colombo, e agora aparece-me em toda a sua unidade através de
todas as peculiaridades. Aos vaivéns da rêde, parece-me tudo simples e
harmônico. Não vá Said Ali , que também está estudando e a quem
consultei , deitar-me água na fervura.. Agora só me falta abordar os
sufixos, para ver se penetro na formação das palavras.
Pensei, e ia começar um artigo sobre Bulhões, mas está no ministério,
ficará para outra vez, se a idéia voltar.
Não estou satisfeito, nem quieto com o câmbio , tal como entrevejo
através do Jornal. Creio que o nosso amigo foi um pouco adiante, e
sacrificou um pouco à teoria . É a eterna questão : até que ponto uma
pessoa pode nos outros realizar as próprias idéias ? Ou, adaptando uma
imagem da grande Catarina, é licito escrever leis em pele alheia ?
A leitura de hoje me animou um pouco : talvez Bulhões não tenha
perdido o leme. No fundo ele só empurra o câmbio para cima de 18,
para afixá-lo em 17. Contanto que deixe as contas líquidas ao sucessor.
Para mim líquido é que ele não será ministro de Hermes. A adesão da
Bahia, negociada pelo Rosa e Silva, dará este resultado.
Sábado pretendo dar um pulo por aí , um verdadeiro pulo, pois em
meados do mês terei de ir ao aniversário de D. Olga e de Adriano, e ficar
para o de Said Ali. Já então a gramática deve estar pronta ; não pretendo
consagrar-lhe mais de una quinzena ; basia o melhor de ano e meio
passado às tontas, à sua procura.
Há notícias de Boboi ? e dos Albanas ?
Adeus, Sinhoca !
Saudades,
Cap.
Paraíso, 28 de setembro de 1910.
J. B. PANDIÁ CALÓGERAS
$
1
i
CARTAS A J. B. PANDIÁ CALÓGERAS 365

Xará,
Li na Fôlha do Dia a estralada da Bahia .
Seabra está furioso, e agora mais que nunca é impossível que te
perdoe ter conseguido que não fosses a Buenos Aires.
E ele não foi eleito deputado pelo próprio distrito e pela mesma
qualificação que agora procura anular ?
Daqui de longe parece-me que sai ganhando de tudo só Rosa e Silva.
Seabra vai mostrar a Hermes que Bulhões traiu-o, aventando a can
didatura do Nilo, depois da convenção ter escolhido candidato.
Pretendo partir 6.a feira, passar uma semana.
Adeus , Sinhoca !
Cap.
Paraíso, 9 de outubro de 1910.

Xará,
Lendo as notícias de Manaus, passou -me pelos olhos um cavalo árabe
ou quase, Bulhões a pé, P. Fino em exercícios de alta escala. Bittencourt
representou bem o seu papel. Nem tudo está perdido quando resta
La voix qui crie malheur! la bouche qui dit non !
É verdade que podes apontar o caso de Macaé. E agora ? Há três
soluções possíveis: não falo na solução direita, porque, sendo-a, ipso facto
fica excluída.
A : Há a solução mato-grossense : matar Bittencourt : talvez já o
tenham feito .
B : Há a solução amazonense : comprar o herói, que irá para a
Europa roer a cobreira ; nos jornais de ontem já se insinua isto.
C : Há a solução nilótica : Bittencourt será reposto, por que o
espanta -leão com o colega da marinha, etc., cometeram plus qu'un crime,
une faute, mas será deposto imediatamente, porque o Congresso declarou
vago o cargo. Se nada disso acontecer, terá Rosa e Silva mais uma alpon
dra para a ponte que está construindo, aliado à Bahia e, se não tomarem
a tempo as precauções, a S. Paulo.
Ouvi com indiferença a proclamação da república em Portugal,
porque não acredito em feitiçaria, nem em catálise sociológica . A resis
tência dos monarquistas encheu -me, depois, de inveja, quando lembrei-me
da epidemia que aqui grassou em 89 ; a camada político-burocrática é tão
366 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

ruim lá como cá, mas as camadas intermédias, creio mesmo que as infimas
camadas, são superiores.
O andaço anticlerical enojou -me como uma velharia perniciosa, mas
agora vou mudando de idéia.

Pois é lá possível que jesuíta enfrente autoridade, seja qual fôr, e


contra todas as tradições, contra os próprios interesses mais elementares,
recorra à espingarda e à bomba de dinamite ?
Desde que o fato é incontestável, cumpre explicá-lo.
E aqui deixa-me exprimir o pesar de não ter copiado em francês um
pensamento de Fontenelle, de uma graça única no original, muitas vezes
esfumado em minha memória. Reduzido à billon , diz pouco mais ou
menos : antes de explicar um fato, examina bem se realmente existe ;
poupas assim a humilhação de explicar o que não tem realidade.
O jesuíta não atira para salvar sua pessoa, que aliás não corria perigo
imediato, nem para garantir suas riquezas, pois conhece os meios de re
constituí- las, nem é gente para ceder a pânico.
Por que sua atitude estranha e desafinada ?
O infeliz Leo Taxil escreveu que sob a rocha de Gibraltar reúnem-se
diabos, mações, revolucionários, todos os inimigos da Igreja. Ele próprio
assistiu a uma sessão do infernal contubérnio , e como documento trouxe
o todo ou parte da cauda do diabo. Um cardeal, que leu a notícia,
escreveu-lhe, pedindo a preciosidade para suas coleções. O moleque arran
jou uma cauda de escorpião qualquer, remeteu - a à eminência : e lá está,
conclui, minha cauda de escorpião figurando como unicum em um museu
da Cidade Eterna !

Aplico el cuento : Portugal era o centro de toda a surda revolução


que se prepara contra a ordem moderna ; lá reuniam - se todos os fios, pla
nos, correspondências, valores; por isso, não para se defender, bateram-se
os jesuítas .

C'est la lutte finale ! Unissons , et demain


L'internationale sera le genre humain .

1. No texto da Internationale está “ Groupons-nous” aqui substituído por


“ Unissons" .
CARTAS A J. B. PANDIÁ CALÓGERAS 367

Se procurarem bem, encontrarão asas de anjo mais autênticas e nume


rosas do que o rabo do diabo.
Sigo sexta ; ficarei uma semana, jantarei um dia.
Adeus, Sinhoca !
Teu
Cap.
Paraíso, 12 de outubro de 1910 .
Viva Colombo !

Meu caro Calógeras,

Apresento -lhe o Sr. Luís Rocha, por quem muito me interesso. Ima
gine que veio me desencavar no Paraíso !
É preciso fazer honra ao nome e ao lugar.
Estêve empregado no serviço da defesa agrícola, mas, extintos os
gafanhotos, dispensaram -lhe os serviços.
Agora pretende um lugar de continuo na Câmara. Com as suas rela
ções com o Sabino, creio que V. poderá ser-lhe útil ; peço-lhe que o seja.
Estarei por ai no começo do mês. Hoje comecei a gramática, de cor,
deixando os exemplos para mais tarde.
E saudades do amigo velho
C. DE ABREU
Paraiso, 26 de outubro de 1910.

Xara,

Podes bem imaginar como fiquei furioso, lendo, ou antes vendo,


porque em certo ponto empaquei, trocado teu discurso. Felizmente a repa
ração foi completa.
O discurso está à altura do assunto, um pouco desconexo talvez, por
causa dos apartes; mas em outra discussão as falhas desaparecerão.
Notei uma nota egotistica perigosa. No duelo não se trata só de
atacar, cumpre cobrir-se. Para que dizer de si certas cousas ? Uma con
testação naturalmente é hipótese irrealizável, mas um sorrisozinho fugaz na
face do adversário como evitá -lo e como retorquir- lhe ? Monsieur Pas,
voyez mes poches ! Dizia Pompéia que o que tinha de ser já foi.
368 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

A tirada final podia ser mais tópica. Das expansões socialistas não
erat hic locus. Melhor seria insistir na analogia com a escravidão, mos
trar como se repete estùpidamente a história antiga para afinal atingir ao
mesmo resultado : o que se faz hoje reproduz o tráfego clandestino, o bill
Aberdeen ; a Caixa de Conversão foi a segunda lei de 28 de setembro.
Saraiva, Cotegipe ; Bulhões foi Dantas, etc. ( Cada vez me convenço
que a dispensa de Bulhões podia ser prejudicial ao Brasil; para ele foi
uma salvação ) .
Já estarão acabados os distúrbios a esta hora ? Eu não daria estado
de sítio, porque afinal o outorgado seria o Seabra. E que fosse Hermes ?
É a história de Mil e uma Noites noutra direção : o gênio vaporizado,
depois de desencantado consentiu em tornar-se novamente vapor para
mostrar que cabia na garrafa e dissipar as dúvidas do pescador; a reali
dade apresentará casos iguais ?
Estou profundamente cansado e aborrecido com a tal língua dos
caxinauás. Creio que muito breve a saturação chegará ao ponto de me
bestializar. Para me distrair, meto -me na lexicografia. Pretendo sair
daqui a 31 .
Adeus, Sinhoca
CAP .
Paraíso, 12 de dezembro de 1910.

Xará,

Pas de nouvelles, bonnes nouvelles ? nem sempre.


Escrevi-te, não recebi resposta e lembro -me o j'ai vécu , de Sieyès.
De longe acompanho o movimento e tenho apanhado algumas das
feições essenciais, que pelo menos reputo assim. O movimento da ilha
das Cobras foi a ruptura do abcesso .
Podia ter sido aproveitado de modo muito vantajoso e, a certos res
peitos, o foi ; mas gente houve que imitou os revoltosos e aproveitou a
confusão para arrombar os baús alheios.
Tenho seguido com curiosidade e surpresa a mutação à vista da
deputação mineira. Talvez esteja enganado, a fazer entes de razão.
Continuo com o meu índio : espero levar o resto das histórias quando
fôr. Já estou pela página 240 ; creio que com a gramática e o vocabulário
passarei de quatrocentas .
CARTAS A J. B. PANDIÁ CALÓGERAS 369

Hoje trabalho por simples obrigação. Foi- se o gosto. Os dois meses


de parada na Imprensa Nacional trouxeram-me o desencanto. E ainda
mais me aborreceu a falta do tal livro de Navarro, que nem o cunhado
de Miguel nem o Briguiet conseguiram ainda desencavar, apesar de ser
comum em Lima .
Já a esta hora devem ter chegado cartas de Sá, mais noticiosas que
os telegramas. Os meninos prometeram escrever-me, porém até hoje
nada recebi.

Irão mesmo a 3 ? Desejo assistir ao embarque, e espero ser mais


feliz que da outra vez.
Pretendo partir a 31 , passar o Ano-Bom em Petrópolis, descer sábado.
A minha demora no Rio será de uma semana mais ou menos menos

se vir que não adianto a impressão.


Bien à toi,
Cap.
Paraíso , 24 de dezembro de 1910 .

Xará,

Tua carta aquietou -me ; receava não te encontrar mais no Rio.


Acho boa a idéia de escreveres no Jornal.
Pourvu que :
1.0 os baixistas consideram Minas Gerais o discurso de Cincinato,
e torpedeira de primeira classe o parecer de João Para - Tudo. Deves co
meçar pelo déblaiement. Bom seria se tivesses guardado os artigos de
Augusto Ramos. O lutador deve fazer uso muito limitado do descaso.
2.º Um sujeito leva, sem testemunha, umas bofetadas de outro.
Nega o incidente e até acaba dizendo que foi ele quem deu. Artigo de
jornal da resultado semelhante. Por isso recomende ao Jornal que guarde
a composição para a tiragem à parte, que será posta à venda ou distribuída
pelos assinantes.
Na parte positiva deves insistir sobre o organismo colonial. Gêneros
coloniais, escravidão, monopólio, grande propriedade, valorização são as
características do Brasil antigo : o câmbio baixo é um sucedâneo . Devemos
nos bater por uma forma inferior de atividade econômica ? E, atendo -nos
aos gêneros coloniais, não é exato que o Brasil é um país essencialmente
inagrícola ?

27 - 1.0
370 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

E ainda dificulta a passagem da agricultura de bobagem para a


agricultura sólida a indústria de estufa, criada pelo protecionismo, verda
deira petição de principio, pois, em vez de acrescer a riqueza nacional ,
apenas a mobiliza ou esteriliza através de inúmeras peças do mesmo apa
relho, com todos os déchets, fricções, etc.
A respeito do socialismo, tenho modificado minhas idéias : acho que
a struggle for life nunca deve ser perdida de vista, mas não a considero
mais a lei suprema da Sociologia, embora a tenha como lei secundária de
primeira ordem, a que os políticos e estadistas devem estar sempre atentos.
O socialismo é sobretudo uma questão moral e reduz- se a não fazer
caso de dinheiro. Penso que Carnegie com seu desprendimento é mais
socialista que Jaurès com suas tiradas retumbantes.
o socialismo é a vitória do quarto estado. Garante-nos ao menos
contra a formação do quinto estado ? E este há de vir. Se serão os
mendigos, os aleijados, os criminosos, não sei. Tenho, porém , certeza que
depois do quinto virá o sexto, etc.
Talvez conviesse nos artigos tocar nas despesas do governo para
abaixar artificialmente o câmbio .
Sobre a atual administração não tenho juízo formado. Muita cousa
me desagrada : acho absurda e chocante a campanha de descrédito do
Aperiatur ; e agora vejo como foi bom que Auto partisse também .
Uma novidade já deu Hermes : Spoils system , haja vista a Casa da
Moeda e a Imprensa.
Desejo muito que a atitude contra a Escola de Medicina continue
intransigente. Sousa Lopes teve uma idéia que pode ser fecunda : o prazo
marcado para os exames servirá de limite ao número dos matriculandos.
Conviria juntar a idéia contida num regulamento do Cotegipe quando in
terinamente ministro do Império na era de 80 : fazer o concurso entre
os candidatos à matrícula.
Adeus. Sinhoca !
Bien à toi,
CAP .

Paraiso , 28 de dezembro de 1910.

Xara,
No dia 31 chegou um telegrama de Paris a Laffon , assinado pouco
mais ou menos Fra , falando em um milhão e empregando a palavra
CARTAS A J. B. PANDIÁ CALÓGERAS 371

parvenu. Vanerven, com um fiscal junto ao submarino, surripiou uma


cópia, decifrou como uma reclamação ab - ciato [ sic ] do Sá, levou - o exultante
a Seabra, que o mostrou ao Hermes ( ou Palerma ). Achando pouco , fez
o Jornal dar como de Paris o telegrama que conheces.
Miguel mostrou -me dois telegramas anteriores e o de 31 , decifrado
corretamente , e dêles se vê que Laffon é o conhecido velho com quem
fomos ao Bauru , que se refere tudo a negócios da Noroeste, explicados
pelos telegramas anteriores. Tais documentos levou hoje ao José Carlos,
para ver se obtém uma retificação espontânea do Jornal; amanhã Pente
Fino ou Bituca levá- los -á ao Hermes (ou Palerma) ; domingo ou segunda
levá- los-á Miguel ao Seabra. Irá com o pedido de demissão que apresentará
ou não , conforme a conferência se encaminhar.
Depois publicará tudo pela imprensa, de modo a cousa ficar liquidada
de uma vez .
Tens visto o País ?
Depois do artigo formidável do Lago, surgiu de ponto em branco o
Tobias. Sôbre -ministro há oito anos, sub -Gaffré hoje ! Hão de pagar -lhe,
principalmente o Jornal com que tem contas velhas a ajustar.
Creio que [ a ] cousa irá longe. O País fêz ontem uma saída falsa ,
para voltar mais lampeiro hoje .
Entretanto Seabra continua disposto a ir por diante.
diante . Sabendo
Clodomiro inimigo do Sá, mandou - o chamar para incumbi- lo de um inqué
rito sôbre os últimos atos ferroviários . Consta que Clodomiro declarará
que, tendo justas queixas de quem o demitiu do Correio, não pode aceitar
a incumbência.
Enfim Miguel só me deixaria causas de alegria na longa visita que
fêz hoje a éste pobre tugúrio , se não tivesse acrescentado : a infelicidade
do Sá foi ter servido com o Nilo , que é desonesto, e ter ao lado Tibério
e Auto .

Auto ? perguntei com o espanto que bem imaginas.


Sim , Auto também comeu . Sei por meu cunhado, interessado por
uma estrada de ferro.
No contrato da Bahia lê- se que foi lavrado à vista da certidão do
depósito de 200 contos no Tesouro ; disseram -me que a certidão do depó
sito é posterior à data da escritura : tal o escandalozinho novo que Seabra
prepara .
E vai reformar o contrato da Bahia , aumentando o número de qui
lômetros, encampando uma estrada estadual cuja construção já estava
372 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

contratada, atravessando matas e serras, etc., o diabo. Mas agora é pre


ciso que tenha sorte ; se não a pitada pode ser tão forte que os espirros
farão rir as galerias. Chut !
Honorina entrou para o convento de Santa Teresa no dia 10. Obe
deceu à sua consciência e é a única forma verdadeira de ser feliz .
Meu receio era o efeito sobre a pobre avó. Felizmente não sucumbira
às conseqüências imediatas. De nada sabia, de nada suspeitava, fui eu que
bruscamente dei-lhe a notícia depois do fato consumado. A brutalidade do
golpe, depois de aturdi-la, parece ter-lhe despertado a elasticidade que pode
restar aos 83.
Eu tenho ficado em casa para me concentrar todo. A violência do
incêndio desencadeado dispensará coivaras. A dor geral já passou, mas
sinto às vezes um frio íntimo que sobe pela espinha e termina nos olhos,
enchendo -os dágua. Contudo o frio vai diminuindo e os acessos se espa
çando : considero -me curado . Se não tivesse mêdo das perguntas e con
solações já poderia sair à rua. Se me escreveres, não toques nisso.
Adeus, Sinhoca, freira do convento de um frade só !
C.
Rio, 14 de janeiro de 1910 1 .

Miguel sai agora mesmo daqui. O resultado de sua intervenção


consta do Jornal de hoje, 8/2 da m.

Xara ,

Não sei onde está tua carta, por isso tenho ido adiando a resposta.
Interessou -me muito o que dizes sõbre a arte colonial em Minas Ge
rais. Conheces bem as manifestações de Ouro Preto, estudaste agora as
de Caethé ( escrevo assim por causa do correio ) , podes revisitar as de
Sabará. Tens assunto interessantíssimo para um artigo, principalmente se
colocares no meio o Aleijadinho, sobre o qual bastante há escrito, porém
muito pouco dito. Ou o Aleijadinho já pertence a outra corrente ?
Outro dia encontrei Ramalho Ortigão e disse que estavas escrevendo
sôbre a Caixa de Conversão. Recebeu a notícia com certa frieza ; pare
ce-lhe que o momento oportuno era quando se discutia na Câmara, aonde

1. Por equívoco Capistrano datou esta carta de 1910. Calógeras anotou - a como
recebida a 7/2/11 .
CARTAS A J. B. PANDIÁ CALÓGERAS 373

deviam usar de todos os meios para impedir a passagem da medida. Já


pensei assim ; como o câmbio tem baixado, penso agora que este ano a
taxa seria de doze.
Pelos jornais terás lido as ocorrências.
Hermes hesitou antes de desrespeitar o acórdão do Supremo Tribunal,
mas li que Rivadavia ameaçou - o de retirar - se. Fizera tudo de acordo e
por ordem dêle ; não se prestava ao papel indecente de engolir o vômito.
E assim vai o pobre homem , mera herma que nem para Sargentão
possui o estôfo !
Correu que está de cancro na laringe ; em todo caso anda abatido,
mas o abatimento é todo físico : quem sabe se não se equipara a Borges
de Medeiros e a Carlos Barbosa, seus ideais em matéria de Statemanship ?
Rio Branco está em Petrópolis, donde não desce, onde a ninguém
recebe, ocupado só com a moléstia do Raul.
Começou por uma congestão, em seguida a um almoço no City Club ;
manifestou-se depois sífilis cerebral, paralisia ora de um braço, ora de
outro, já ouvi falar até em epilepsia.
Disse -me Sena que o Barão passa o dia inteiro sentado, com a cabeça
encostada à mão, calado .
Chegou o grande Tibério. Ainda não o vi, nem desejo. Sei que
veio por ordem telegráfica do Sá, recebida em Paris. No mesmo tele
grama inteirava - o a que não procurasse gente envolvida em negócio da
Bahia. De suas conversas repete-me Gusteden um brocardo : “ Supo
nhamos que eu recebesse dinheiro ; que tem isto a ver com o Sá ” .
De Sá acabo de receber carta de Nice com data de 7 de fevereiro.
Responde as minhas do mês passado, em que lhe expunha o caso dos
telegramas. Já os conheces, que na mesma data tos comuniquei. Ainda
se acha abatido, mas já está melhor. Queixa-se de não ter recebido uma
só carta de amigo político, exceto Pedro Borges, que escreveu declarando - se
solidário , juntamente com a deputação cearense.
Já respondi que por minhas informações os amigos políticos não o
abandonaram ; antes das declarações de Pente Fino já tinham definido a
atitude ; se não recebeu cartas, deve-o à Notícia anunciar sua chegada
iminente.
1
A origem desta viagem imaginária não se pode apurar bem ; nao a
deram parentes, nem amigos ; toi portanto qualquer inimigo que a pôs
em circulação ; na Notícia disseram que foi um político.
374 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Desde 2 de janeiro ainda não arredei pé. ( ) calor não é estas cousas
que dizem ; como cearense , além disso, não poderia queixar -me, decente
mente queixar-me; queixo -me de outra cousa , da ausência dos amigos em
vilegiatura.
Quando chegas ? Como pouco saio , a falta é menos intolerável, mas
existe .

Adeus, Sinhoca !
Teu
C.
Rio, 26 de fevereiro de 1911 .

Xará ,
Recebi tua carta de ontem . Ainda bem que aproximas -te. Breve nos
encontraremos. Pretendo partir sábado de Judas. Domingo irei à tua casa.
Trouxe Matilde para iniciá - la na equitação. Já anda bastante, sem
receios nem nervos. Creio que em sua ignorância considera -se já grande
amazona .

Estou quase no fim dos textos caxinauás. As histórias estão todas


compostas, cinqüenta e oito ou cinqüenta e nove. Há mais um capitulo
final, enfeixando frases soltas, descrições, etc. : talvez trinta páginas.
Creio que os texios darão quatrocentas ; seis mil frases pouco mais ou
menos. Trato agora da revisão do vocabulário ; a gramática virá no fim
de tudo ; espero estar livre em junho.
Alegrou -me a notícia sõbre a Geografi . Assim as férias foram fe
cundas, para ti , obrigado a definir certas idéias , para o público, vendo
que é Geografia, tão diferente do que aqui cursa. Quase vinte e cinco
anos depois, repete-se em melhores condições a tentativa feita com a
tradução do Wappoeus.
Para teu estudo sobre a educação jesuítica, poderia servir -te a História
da l'niversidade de Coimbra de T. Braga. O virus positivista gafa -a de
um a outro extremo ; mas talvez no meio da ogòzada se extraisse alguma
pinta.
Da reforma ruiadavesca nada sei senão as “ nomeações feita sem
concurso .Há gente feliz . Curioso é cono todos os felizardos têm feições
comuns. Acodem -me agora ao bico da pena um pessoal que começa no
supremo, dispersa -se pelo ensino superior ou secundário, alastra - se pela
CARTAS A J. B. PANDÁ CALÓGERAS 375

administração: uns, menos felizes, estacam no começo da evolução ; todos


se parecem e se valem . E já viste maior felizardo do que Seabra ? Tudo
se preparava na Bahia para o morticínio ; de repente o pânico derrama- se ;
consegue -se pela maciota o que talvez o sangue baldasse. E, mais curioso
ainda : a união está fixa, irrevogável. Também os sabinos afeiçoaram -se
aos estupradores.
Creio que de perto tuas impressões sõbre as cousas não se modifi
caram . Há sobretudo um desbrio, que aterra. Há uma voluptuosidade
de lama, como não me lembra haver assistido a igual. Será a falta de
vergonha promulgada por Roscher para a geração que sucede a cada
movimento revolucionário ? Talvez cousa pior : já estamos no segundo
decênio da grande crise, e ainda faltam os primeiros rubores da alvorada.
Escrevi ao Sá , lembrando a conveniência de sua presença nos primeiros
dias de sessão. O reconhecimento de poderes este ano correu sem empe
cilhos. Mas ele precisa de repelir os ataques. Sua demora, mesmo a
mim que dêle não duvidei um instante, causará impressão penosa. De

tenda -se, esmague os caluniadores, corne depois ao Velho Mundo para


afinal desfrutar férias mais calmas ; primeiro venha para o lago dos
leões e a fogueira. Isto mesmo insinuei discretamente a D. Olga .
E a Herma 1 ?
Diz Virgilio que para o ano êle porá no Senado vinte e um amigos
certos. Ignoro se isto diz como mera opinião pessoal, ou apenas reper
cute segredos de confidentes. Teremos assim terminado a ditadura de
Pente Fino . À chaque jour suffit sa peine. Creio que lucraremos.
Encarreguei Abril de remeter -te uns livros para Caeté. Creio que
os terás recebido : um de Hurit sõbre Alemanha, dois sobre Ibéria e Bo
lívia , bem próprios para fazer pensar sobre as questões de raças .
Li aqui Farrère , o rival de Loti : vale a pena lê-lo, e não se parece
com o predecessor : talvez seja um pouco minucioso , se não pedantesco ;
isto passará com a idade.
Adeus , Sinhoca !
Teu
Cap .
Paraíso , 9 de abril de 1911 .

1. Hermes da Fonseca.
376 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Xará ,

Deve ir incluso o conhecimento de um objeto para o Sá. Dei ordem


que fosse despachado a domicilio, mas com o comodismo de nossas es
tradas de ferro, não sei se quererão tomar a si a maçada.
Por que não me dirijo diretamente a ele ? Pelo mais ridículo dos
motivos : só tenho aqui um uma [ sic ] envelope e preciso dela para ti.
O caso , portanto, é grave . É mesmo .

Dr. Araújo Pena pretende o lugar de médico do hospital homeopático


da Marinha a ser inaugurado dentro de poucos dias. O lugar estava dado
a Nélson, antes das famosas incompatibilidades. Não há portanto compro
missos : se te esforçares deveras, meu pedido será satisfeito. Já escrevi a
outros amigos, mas se a cousa se conseguir, a ti atribuirei todo o mere
cimento e só a ti ficarei agradecido ( não passes adiante ) . Periculum in
mora !
Tenho adiantado bastante a lingua caxinaua : pràticamente o vocabu
lário está terminado, agora o maior trabalho consiste em passá-lo a limpo e
reduzi - lo a ordem a ordem [ sic] alfabética ; da gramática já tenho as pre
posições, os advérbios e os pronomes ; conheço exteriormente os tempos dos
verbos ; sem ter ainda aprofundado as questões de sujeito e objeto, que são
as mais importantes, pressinto a formação das palavras.
Tenho colhido poucos textos. Hoje Pena Sombra prometeu contar
a história do frio e do vento, obra, segundo parece, de uma grande aranha
que mora no fundo da terra . Quem sabe se esta explicação não é
preferível à teoria do calor central ?
Pretendo partir amanhã à tarde para Petrópolis, estar aí quinta e ir
no mesmo dia jantar com o Sá. O objeto despachado é uma paca, pre
parada segundo a culinária mineira.
Olha o Araújo Pena.
Saudades a Sinhoca e Nenê.
Bien à toi,
C.
Paraíso, 27 de junho. [ 1911 )
Achei uma env., embora estragada : mando o conhecimento diretamente
ao Sá . Não, está muito indecente.
CARTAS A J. B. PANDIÁ CALÓGERAS 377

Xará ,

Agradeço -te e a Sinhoca as boas palavras de teu cartão.


Em resposta ao outro, desejo que teu artigo sôbre Rio Branco saia
tal que não tivesse escrúpulo de fazê-lo, assiná -lo e publicá - lo mais
tarde, daqui a dez anos.
Meu trabalho marcha .

O vocabulário está em paginação e pode ser impresso esta semana.


Da gramática só está intacta a sintaxe ; da lexiologia o que falta é mais
trabalho de paciência, de dépouillement, a que estou procedendo.
Estará por aqui em princípio de abril ?
Pretendo, lá para 6 ou 7, ir pescar alguns dias com Sá em Santana.
O verão, salvo um ou outro dia, correu suave. Como sabes, calor
para mim é secundário, quando tenho o que fazer e não sou obrigado a
sair de casa . Mas ares do campo são sempre bons, são os da infância.
Lembrança ao Luca e família.
Adeus, Sinhoca !
Bien à toi,
C.
[ 1911 ]
E o Chico Sales ? e Junqueira ? e Bressane ? Abril foi promovido.

Xara,
Acabo de escrever um bilhete ao Felisberto, lamentando ter-te metido
na alhada de provas. Há compostas as suficientes para completar uma
fôlha, pelo menos até 448 ; nem isto o moveu.
Agora que li o que está impresso e vejo como emendas, feitas três,
quatro, cinco vezes, foram desprezadas, digo : desgraçado de quem se mete
a publicar um trabalho sôbre línguas indígenas na América do Sul, ou pelo
menos no Brasil, ou pelo menos na Imprensa Nacional . Sôbre um pro
cedimento racional : o do cidadão que, para fazer salada de pepinos,
mandou lavá -los diversas vezes e depois jogar fora por intragáveis .
378 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Li com muito prazer a noticia da próxima chegada do Sá . Recebi teu


opúsculo sobre os jesuítas, que tentarei ler antes de voltar. Pretendo sair
a 30, dormir em Petrópolis, e chegar a 31 .
Adeus, Sinhoca !
Bien à toi,
Cap.
Paraíso, 22 de agosto de 1911 .

Xará,

Diz-se que, na retirada do Seabra, que deve ser pelo menos até 27,
será chamado, para o Ministério da Viação, Sebastião de Lacerda.
Diz-se que Sebastião de Lacerda tomará para secretário Mário Belo,
muito amigo teu . Neste caso Adriano deseja muito ser chamado para
auxiliar de gabinete : ele está na Diretoria do Expediente, e não gosta.
Como sabes , virou trabalhador.
Por aqui duas novidades únicas são a carta de Rêgo Barros, digo
de Dantas Barreto ao Rêgo Barros. Publicou - a o Diário de Notícias,
transcreveu - a o Correio da Noite, dizem que também o da Manhã. Lès
te-a ? Estão dizendo que não é autêntica : juro -te que o é mais que a lei
escrita por Deus em tábuas de pedra.
Outra novidade: a descrição do bombardeio, publicada há três ou
quatro dias no País, na segunda ou terceira página : não deixes de ler.
Gordon estava na Bahia uma semana antes e assistiu a tudo. O
forte de S. Marcelo não foi nada, o de Barbalho sim . Se o vento estivesse
de feição, metade da cidade iria pelos ares .
Não sei se estás satisfeito com a campanha eleitoral de Minas. Creio
que o plano aqui é deixar que poucas eleições venham liquidas: assim em
vez de moderadores da situação, os mineiros baixarão a contestantes. Com
certeza o plano será bem sucedido.
Hoje saiu o último artigo do Jornal: vou tratar agora do folheto.
Entreguei os originais ao Leuzinger, os primeiros, bem entendido. Se
êle me ajudar, forcejarei por ter a obra tóda pronta em abril; esta semana
farei a gramática provisória que irá no principio ; no fim, em apêndice,
virá o que tiver apurado de mais : a grande dificuldade são as orações
incidentes.
CARTAS A J. B. PANDIÁ CALÓGERAS 379

Assim não sairei daqui antes de abril, a menos que o livro não
esteja acabado.
Adeus, Sinhoca !
Bien à toi ,
C.

Rio , 21 de janeiro de 1912 .

Xará ,
No Cairo ? em Malta ? em Nazaré ? no Egito ?
Escrevo-te para Caeté, mas não sei se a carta chegaria mais depressa
remetida para o pólo do Norte, to the cares of Dr. Cook .
Não compreendo este silêncio emperrado, só comparável ao do menino
malcriado de uma história de Tuxunim : por sinal que o menino foi trans
formado em peruinho do campo, por castigo.
Tua eleição me confunde. Ponho de parte os dois elementos pertur
badores, Irineu e Campolina, e não compreendo o resto .
Parece que de teus colegas cada qual acumulou em si o maior nú
mero de votos possível; mas parece também que certos lugares aonde as
simpatias eram gerais por ti , esfriaram . Não sei de nada ; não recebo
jornais de Minas, e as apurações parciais são falhas.
Continuo hoje, 19, esta carta começada a 17 .
Estive em Petrópolis, e conversei longamente com Bulhões.
Êle nada entende : está às tontas. Disse -me que estás em Ouro
Prêto : mando para lá o endereço.
Disseram -me não foi Bulhões que Lauro e Riva querem botar
Mena para fora , mas isto não será possível, pois os generais resolveram
apoiar Mena até contra o Hermes .
Disseram que Hermes foge déle.
Disseram mais que Sotero voltou para a Bahia por força de Calmon.
Talvez fosse por fôrça da etimologia : sabes bem que quer dizer
Soterópolis.
Fui à casa do Sá duas vezes apenas: não tenho voltado porque deve
estar um pandemônio, com tanta gente .
380 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Sei que ele não está satisfeito, que D. Olga espera criança em abril,
e por isso ele não vai para Ponte Alta.
Adeus, Sinhoca !
Bien à toi,
C.
Rio, 19 de fevereiro de 1912.

Xará,
As notícias de tua carta diferem pouco do que imaginei, mas o colo
rido é outro ; contentou-me muito a impressão final ; em vez de abatido
sentes-te mais forte : ainda bem .
Convém que desde já penses na próxima eleição. Irineu , ao que
corre, optará por aqui. Podes e deves influir sôbre a apresentação do
futuro candidato, se não, sairá salada.
Não sei , e haverá quem saiba ? o que se projeta quanto ao reconhe
cimento de poderes. Estão líquidas as eleições de Minas, S. Paulo e Rio
Grande do Sul, salvo a questão do sexto nos dois últimos estados. Pente
Fino pareceu permitir a entrada de Moacir, apenas. Em S. Paulo os
rodolfistas aspiram a mais do sexto.
Considero líquidas as eleições de Pernambuco : os rosistas limitando - se
à apresentação de candidatos pelo sexto, lavraram sua abdicação.
Em Petrópolis disseram Azevedo e Vitorino que seria contra todos
os princípios aprovar as eleições de Bahia e Ceará . Terão força para
levar a sua por diante ? Acioli considera - se vitorioso ; a anulação é -lhe
antipática ; espera o reconhecimento dos seus suspeito : ninguém me
disse .
Contra Goiás a Herma está furiosa : nos outros estados não tem
intervindo, neste intervirá ! O genro do Urbano foi demitido; um cunhado
do Bulhões, médico do Exército, removido para Mato Grosso ; uma carta
de Bulhões, escrita a conselho do Rivadavia, considerou a terceira luva de
desafio atirada a ela ; a inelegibilidade do Artur será apresentada como ca
valo de batalha ; Olegário há de entrar, seja como fôr : tudo está suspeito,
e induzo.
A posição de Urbano é difícil : quer largar a presidência, e isto equi
vale a entregar o poder aos inimigos ; Bulhões acha a solução desastrada,
mas não se anima a combatê - la , porque receia algum conflito armado e
sabe que Urbano não se encolherá e será sacrificado.
CARTAS A J. B. PANDIÁ CALÓGERAS 381

Marcelo, apesar de eleito, anda aborrecido, com ares de vítima ; li


que Urbano está dominado pela monomania de ser promovido a general e a
isto sacrifica tudo. Se de fato assim fôr, nosso amigo está absolutamente
iludido : verá a promoção promoção [ sic ] por um óculo, e será transferido
para o Acre ou para Mato Grosso.
Que será a nova Câmara ?
Duvido muito que dê cousa aproveitável. A tenentada que aí vem há
de dar água pela barba ; será uma seabrada potencializada ; triste do pre
sidente que tiver de enfrentá-la : para tanto não dará o Sabino .
Tua posição será pouco cômoda. O ano passado emudeceste ; agora
o silêncio ser-te-á lançado em rosto ; no Ministério da Viação estás proi
bido de meter o bico : por que esperaste para falar depois que Seabra não
fôr ( sic ] mais ministro ?
Em geral, creio que deves mudar de atitude : em vez de grande
discurso de três e quatro horas, deves fazê- los mais repetidos e curtos.
Fui à casa de Sá duas vezes e não voltei mais. Continua entulhada,
e lavra o impaludismo. O pajé cala -se, mas D. Maroca, ao que deduzo de
vagas palavras de Chiquito, insuportável. Junto a tudo isso a gravidez de
D. Olga, menos adiantada aliás do que supunha : só espera a libertação
em abril .
O famigerado Borges deixou a família no Ceará e mora numa pensão.
Por mágicas de um pocker domingueiro ele, que se imaginava odiado pelo
povo, tinha, ao contrário, grande simpatia da oposição. Um filho seu, que
encontrei, deu-me pouca vontade de conhecer o progenitor.
Miguel embarca na próxima semana ; está satisfeito e animado ; a
chave da orogenia oriental encontrou em Mato Grosso, onde as camadas
aqui revoltas aparecem horizontais. Deixa de parte apenas Goiás ; Derby,
que chegou até S. José do Tocantins, ainda não deu nada, e creio que
não dará. Diz êle que Miguel pensa que a Geologia do Brasil pode-se
liquidar com um tiro.
A política daí podes ver menos obscuramente que eu de cá.
A Herma continua baloucada entre a abulia e a violência.
Parece firme quanto à eleição do Bezerril para presidente do Ceará ;
mas o forte está do outro lado, e nada resiste à epilepsia do tenente.
Continuo firme na reimpressão do livro : creio que será realizável o
meu desejo de acabar até abril. Prendem-me agora sobretudo umas ques
382 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

tões de gramática, a que vou me consagrar exclusivamente, apenas a


composição chegar até certo ponto.
Adeus. Sinhoca !
Teu
C.
Rio , 25 de fevereiro de 1912 .

Aí vão livros antropogeográficos, suficientes para se não lastimar a


queima da biblioteca de Alexandria.
Mais deplorável foi o incêndio da biblioteca baiana.
Meu livro vai a passo acelerado.
Ainda não perdi as esperanças de acabar, se não realmente, pero
menes praticamente em abril .
Saudades.
15 / 3/XII .

Xará,

Quanto mais penso em teu discurso, tanto mais difícil acho concilia-13
com o pouco que sei de relações exteriores .
O bill Aberdeen , a Questão Christie podem não provar muito, mas
as convenções consulares ? Creio que só quantitativamente diferem das
capitulações que a Turquia trata de abolir.
Disse -me Félix que a comissão é contrária à tua emenda sõbre Rio
Branco .

Creio que no encaminhamento da votação poderias retirá -la, dizendo


que seu fim está alcançado, desde que o lembrete despertou ação do
governo. Conforme os fundamentos da rejeição , poderias acrescentar iró
nicamente ( glisses, Messieurs, n'appuyes pas ! ) sentir muita curiosidade
em ver como os motivos de impugnar a proposta do deputado por Minas
Gerais (não digas um ) se transformarão em fundamentos favoráveis à
mensagem do governo, ferindo o mesmo intuito, embora tardiamente.
Sigo hoje para a Gávea , aonde demorarei até sábado de manhã.
Adeus, Sinhoca !
C.
Rio , 22 de outubro de 1912 .
CARTAS A J. B. PANDIÁ CALÓGERAS 383

Xara,

A chuva prendeu -me no Bananal, domingo : só 2.a partimos e che


gamos aqui a Bocaina. A poucos metros da casa passa o Paca Pequeno,
afluente do Paca Grande , que forma as cachoeiras do Bracuí . Por aí terás
as nossas coordenadas .
O termômetro tem estado entre 5.0 e 9.º. Na primeira noite estra
nhamos o frio, mas hoje o sol apareceu francamente e fiz conhecimento
com as águas do Paca Pequeno.
O lugar tem fama de giboyeux, por ora a fama parece exagerada.
Estou lendo Rose : Pitt and the Great War, que historia o começo da
guerra com a França . Tenho encontrado muita novidade. Devemos che
gar aí 2.a , à noite.
Saudades
C.
Bocaina , 25 de junho de 1913.

Xará ,

Recebi tua carta ; não vou hoje a tua casa, como pretendia, por estar
com uma pontinha de reumatismo.
Branner está no Hotel Internacional em Santa Teresa. Deseja fa
lar-te ; telegrafa-lhe ou telefona-lhe, combinando o encontro. Parte a 16 ;
como quer deixar acabado o original da 2.a edição da Geologia, pouco sai,
Até um desses dias.
Adeus, Sinhoca !
CAP.

Rio, 4 de julho de 1913.

Xara,

No dia 8 jantei contigo, a 9 voltei para casa incomodado ; os mais


dias até ontem passei de rêde. Hoje sai ; fui ver Miguel e Bulhões : creio
que abusei: as dores voltaram com força .
Se amanhã estiver no caso de comparecer, irei .
Previno - te em tempo .
384 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Branner gosta de feijão com carne-seca, e gosta de farinha e pirão.


Adeus, Sinhoca !
Teu

C.
Rio, 14 de julho de 1913.

Xará,

Voltou -me o reumatismo, embora fraco ; agora no calcanhar.


Não posso ir ao embarque de Branner, como já lhe escrevi ; prova
velmente na despedida veria pessoas que tenho evitado : assim foi melhor.
Segundo colhi da conversa de Branner, terás de acertar com Percy
Martin o objeto das conferências.
É bom tratar do programa desde já.
Se fôr assunto Geografia Política, parece que o primeiro capítulo
deve ser a formação das fronteiras.
Se fores à conferência do João Ribeiro, dirás depois a impressão.
Adeus, Sinhoca !
C.
Rio, 16 de julho de 1913.

Xara,

Não sei se falaste a Osório : não era absolutamente necessário que


fosse a éle : bastava um deputado pelo Rio Grande do Sul, aquele com
quem mais te desses, e que tivesse melhores relações com o ministro.
Agora a situação é melhor : vagou o lugar de ajudante de pagador
da Inspetoria das Secas na Bahia, lugar de quadro e de fiança ; Jerô
nimo Mota tem fiança : move-te.
Mando seus n.os da Révue de Synthèse Historique com artigos de
Reinach e Meyer, e um sôbre Le Play, que não conheço .
CARTAS A J. B. PANDIÁ CALÓGERAS 385

Na esperança de seguir para Mato Grosso com A. Penido, quando


för entregar a S.T.N.O. ao governo, estou trabalhando a toda força, de
modo a terminar o livro antes do fim do mês.
Adeus, Sinhoca !
Teu
C.
Rio , 18 de novembro de 1913.

Xará ,

Zelo teus interesses como os próprios, melhor até, porque com os


meus às vezes não atino .
Vou contar-te uma história .
Neville ensinava inglês às Princesas, quando vagou um lugar de
cônego da Capela Imperial. Apareceram logo candidatos, todos, porém ,
timidamente : quem podia lá competir com um mestre do Paço, e tão
distinto e tão nobre ?

Indo dar a lição do costume, notou nas pupilas uma alacridade, uma
simpatia, uma benevolência extraordinárias. Padre, não tem alguma pre
tensão ? perguntaram . — Quem sou eu para pretender qualquer cousa ?
desfez- se em desculpas, em humildade, em modéstia ... as protetoras in
sistiram tanto, tanto, que ele aprumou - se, e com a morgue de lord que
tem nas veias o sangue de um companheiro de Guilherme, o Conquistador,
disse às Princesas : Já que Vossas Altezas tanto insistem, tenho uma
pretensão modesta e com seu auxílio conto ser bem sucedido : Quero
ser cardeal patriarca de Lisboa.
Pensando que Bernardo, Antônio Carlos e outros mais são candidatos
a cônegos, digo, ministros, lembrei-me que o cargo de diretor geral da
exposição seria o patriarcado de Lisboa para ti.
Errei o bote : é o caso de repetir a frase de João Brígido, quando
Meton operou seus mamilos hemorroidários e o paciente morreu : Quem
mandou Meton meter-se a oculista ?
Deves um grande favor a Irineu que te operou o abcesso prestes a
rebentar. Lembra -me, porém , que no tempo de Prudente a situação era
mais grave, o objeto mais digno, tu mais môço e entretanto mais calmo...

28 1.º
386 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Envio-te o primeiro volume da biografia de Huxley : lerás algumas


cousas com muito prazer ; não tas indico porque quero ver se temos o
mesmo gosto.
Ainda não li Rui-Elis ; só o conheço por ligeiro extrato que me
deu Abril ; parece que há ligeira bicada na comissão de finanças, isto é,
on Bulhões, que ele não pode tolerar. Cada vez me convenço que Bulhões
nunca deu passo tão acertado como filiando-se ao partido republicano
liberal. Revejo o amigo dos bons tempos, quando passávamos uma noite
inteira conversando e ele sem cobiças conegais olhava para o patriarcado.
Meu livro está terminado neste sentido que não tenho mais uma
linha a escrever, exceto umas provas, para tornar clara qualquer pro
posição ou inserir alguma idéia que amadureceu no intervalo.
Ainda tenho um bico de obra com os caxinauás, que é rever os
artigos do Jornal para serem reimpressos.
Já tomei uma chegada na história do Brasil : anteontem comecei a
ler o 1.º volume dos Tratados de Pereira Pinto, tenho à mão uma mono
grafia de Franz Hochsterter, que dizem importante, explicando os moti
vos por que o povo inglês tanto se apaixonou na questão do tráfego.
Espero que, ao voltares, em maio, encontres algum trabalho feito :
como te disse, pretendo publicar no Jornal o capítulo mais extenso que
puder desde S. João do rio abaixo .
Se tivesses telefone, inquiriria qualquer dia antes de ir a tua casa.
Poucas cousas me aborrecem como visage de bois.
Adeus, Sinhoca !
C.
Rio , 31 de dezembro de 1913 .

Xara,

Cheguei sábado passado aos Poços de Caldas, comecei os banhos


domingo, estou no décimo terceiro. O médico permitiu que tomasse dois
quotidianamente : só têrça e ontem tive de contentar-me com um .
Tenho freqüentado principalmente Pedro Botelho, mais próximo e
mais procurado, mas desde que experimentei o Macaco, minhas simpa
tias foram para este. Para quem precisa de altas temperaturas, não
serve, porque mal alcança a 39 : porém um químico mineiro, que analisou
as águas, encontrou mais enxofre e mais rádio .
CARTAS A J. B. PANDIÁ CALÓGERAS 387

Esta arrière -saison com a pouca gente e com os hotéis barateados


para atrair a freguesia, seria o ideal, se não chovesse tanto e a vila fosse
calçada. Para quem não tem medo de frio, melhores seriam junho e
julho : o termômetro já tem baixado a -6 . °
Abundam hotéis, pensões familiares e infamiliares, estas fáceis de
conhecer, por uns vasos de barro com flores, expostos nas janelas. O
hotel mais freqüentado é o da Empresa, com cento e tantos quartos,
divertimentos diversos, ligado ao estabelecimento balneário por uma galeria
coberta .

Preferi o de Oeste, porque um dos proprietários catequizou-me desde


Campinas, e Pedro Sanches, que vinha no trem , depois de não sei que
operação de pedra, abonou-o. A diária é de 6 $ , a comida em nada infe
rior à do hotel da Empresa, aonde almocei uma vez, e jantei duas por
convite de Bertino Miranda.
Fica na Avenida Francisco Sales, a maior, ou antes a mais larga de
tôdas. A janela de meu quarto dá para um dos morros que cercam
o povoado.
Ruas com o nome de pessoas há poucas : Pedro Sanches, que o
merece, pois aqui estabeleceu -se em 1873, quando os banhistas traziam
barracas ou levantavam palhoças; Barros Cassal [ ? ] D. Isabel e Junquei
ras : haverá algum lugar de Minas sem este juncal ? Há as praças de
Senador Godói e D. Pedro II . Cada estado tem sua rua : ontem per
corri a do Ceará de ponta a ponta. Daqui a pouco irei à de Pernam
buco, onde está Martim Francisco. Só ontem soube de sua presença
por uma carta de Fazenda, que, parece, comunicou também a minha,
pois já veio alguém procurar -me de sua parte.
Trouxe para ler Belgrano e San Martin de Mitre : ainda não acabei
o primeiro volume daquele. Se der conta da obra inteira, ficarei satis
feito. San Martin deixo para o Rio. Em Campinas, Antônio Penido, a
quem telegrafara, esperou-me na estação, e deu-me passe livre até 31 de
março. Daqui pretendo chegar a Araguari. Escrevi a Bulhões pedin
do licença para entrar em Goiás, ainda não me respondeu ; talvez ainda
não haja tempo .
Se não fôr a Goiás, talvez saia só depois do carnaval, e passe uns
quatro dias em S. Paulo, para recordar a topografia, já de todo obli
terada. Estarei em casa para o dia 6 futuro.
Escrevi a Matilde que guardasse toda a correspondência lá : antes,
Abril mandou -me uma carta de Carlos Peixoto, muito amável. Sõbre
388 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

meu livro saíram dois interessantes artigos, um de Laet, no último


domingo de janeiro do J. do Brasil ( 25 ? ) , outro de Oscar Lopes no
País de domingo, 8 do corrente. José Verissimo foi muito amável, mas
creio que não abriu o volume ; quando muito, leu o prefácio.
Adeus, Sinhoca !
C.
Poços de Caldas, 15 de fevereiro de 1914.

Xará,
De Poços de Caldas escrevi-te, dando noticias. De lá sai domingo
para Ribeirão Preto ; 2.a dormi na Franca, ontem cheguei aqui.
Na estrada de ferro goiana devia encontrar passes e recomendações
de Teixeira Soares, dadas a pedido do Bulhões. Dirigi-me depois do
almoço à estação e nada encontrei. Pensas que foi decepção ? Foi
alegrão ! Desde a noite de Franca, não encontrando amigos nem conhe
cidos, arrastando -me em nuvens de poeira pelos chapadões tumulares,
tenho sentido uma depressão difusa, uma tristeza aborrecida : não iria
estuar-se éste desconforto pelas terras goianas ?
Mas para não se dizer que cheguei a Araguari e não vi Goiás,
Posso sair às 6 horas, atravessar o Paranaíba, almo
consultei o horário .
çar em Goiandira e estar de volta às 3 horas da tarde. É o que pretendo
fazer amanhã.

Em minha quinzena de Caldas, li apenas o 1.º volume do Belgrano,


e o volume sõbre história contemporânea do compêndio de Gambon.
Relativamente mais já li aqui, pois dei conta do livro de Villanueva
sôbre a monarquia na América. É em suma um paralelo entre San Martin
e Bolívar, em que o argentino fica de pior, de péssimo partido. Abaa
dona a Argentina, quando ameaçada pela expedição temerosa de Fer
nando Sétimo, que só não veio porque revoltou -se em 1820 ; libertou o
Chile, sem dúvida, mas tratou os chilenos de modo a só deixar ódios ;
no Peru, aonde assumiu o título de Protetor, ganhou batalhas quando
poderia ter concluído a independência ; em vez de combinar sua ação
com a de Lord Cochrane, perturbou -a e incompatibilizou -se com ela.
A célebre entrevista de Guayaquil, entre Bolívar e San Martin , perde
muito de seu caráter enigmático, e são aduzidos documentos que Mitre
CARTAS A J. B. PANDIÁ CALÓGERAS 389

não aproveitou. Desejo muito ver alguma resposta da Argentina para


quem San Martin é o Washington sul-americano.
Pela primeira vez reconheci como a idéia monárquica tinha raízes
profundas no Prata . Creio que no estado em que a metrópole as deixou,
qualquer tentativa monárquica daria fracos frutos nas colônias, porque
não existe no Novo Mundo o espírito em que a monarquia cresce natu
ralmente e viceja ; mas quem sabe ? se em vez de ser uma como no
Brasil, aonde tudo correu normalmente durante oitenta anos, e entretan
to quatro gatos pingados puseram -na de pernas para o ar em poucos
minutos, as monarquias fossem muitas, não é possível que as cousas
tomassem outra feição e o espírito monárquico se refizesse e fortalecesse ?
Sõbre Bolívar o autor não dá opinião sintética : vê- se que admira - o
e aplaude muitos de seus atos, mas não faltam reservas. Desejo ver
algum trabalho de pessoa não castelhana que tratasse do assunto. Há
o de um americano, recentemente publicado, mas não sei se é estudo
de conjunto, ou se encara somente as campanhas.
Os negócios do Ceará, como vês, não vão bem : o ataque de Forta
leza pode dar lugar a cenas medonhas; creio que a força federal não se
prestará ao papel a que a destinam .
Salvo contratempo, estarei sábado no Ribeirão Preto, aonde conto
passar uns três dias e outros tantos em S. Paulo ; antes do dia 10 de
março recomeçarei a vida do Rio .
Adeus, Sinhoca !
Bien à toi,
C.
Araguari, 25 de fevereiro de 1914.

Xara,

Cheguei ontem. Fui a Goiandira, terceira estação da estrada de ferro


depois do Paranaíba, lá almocei; já não morro sem ver Goiás. Recebi
uma carta tua, devolvida de Ribeirão Preto ; nos Poços, nada.
Junto o Villanueva : a versão sobre Guayaquil, a entrevista misteriosa
entre o Protetor e o Libertador, estão pedindo comentários argentinos :
quem sabe se não os conterá a revista de Zéballos ?
Amanhã vou ver se Edwiges fica com um certo número de exem
plares, como prometeu a Virgilio.
390 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Lauro prometeu a Mendes da Rocha o mesmo, com a condição de


eu ir almoçar em casa dêle ; fui, ainda não se moveu .
Talvez para o mês vá a Campos -do - Jordão com Jaguaribe . Amanhã
começarei a trabalhar na Bibl. e no Inst.
Adeus , Sinhoca !
Teu
C.
Rio .

Xará,
Peço -te mandes pelo portador o livro sobre a monarquia na América,
e também , se aí está, o 4.° vol . da Hist. de la Mar. Fr.
Adeus, Sinhoca !
C.
Rio , 19 de maio de 1914.

Xará ,

A outra metade irá depois.


Manda -me a Polémique.
Manda -me também os artigos de Boiteux.
No sei se conhece e utilizou as Campañas Navales Argentinas de
Angel Carranza : encontrei -as citadas ontem : é natural que a biblioteca
da Marinha possua : tens o catálogo ?
Até para a semana.
Adeus , Sinhoca !
C.

Rio, 27 de junho de 1914.

Xara,

Procura no Inst. o livro de Nabuco sobre a Legislação da Fazenda : é


raríssimo, o único exemplar que conheço no Rio : o Fraude é capaz de
emprestá - lo ; eu não seria .
CARTAS A J. B. PANDIÁ CALÓGERAS 391

Na coleção Rodrigues, um manuscrito de Vilhena, que estou consul


tando para ver se escrevo uma memória sõbre a vinda da Côrte, tem
boas notícias relativas à Bahia.
Amanhã à noite Bertino quer ir lá. Manda -me Simão de Vascon
celos. Lêste a carta do Rui a M. S. ? Que toureador !
Adeus, Sinhoca !
C.
Rio, 28 de julho de 1914.

Xará,
Cheguei hoje em paz, com o atraso de hora e meia, o que é muito
conveniente, pois não se encontram mais as casas fechadas.
Depois de amanhã sigo para Ribeirão Preto : agradece a Raul, que
não se esqueceu de meu pedido : acabo de receber o passe. Para Campos
do-Jordão só partiremos na volta : lá para o dia 6 ou 7.
Estive ontem na B. Nac. vendo os últimos verbetes recebidos, que
se referem ao Rio e anexos. Muito interessantes : sobre a mineração do
Iguape e redondezas, grande material. O célebre ofício de Sebastião de
Castro Caldas é catalogado simplesmente, donde concluo que é curto e
não contém informações importantes. A data não combina com a de
Varnhagen quanto ao mês ; creio, porém , que não chegou a ver o do
cumento e cita-o na fé do Teixeira Coelho. Sobre a mineração das gerais
nada veio, provavelmente virá na continuação, pois o catálogo chega
apenas a 1699. Verdadeiras revelações sobre a colônia do Sacramento,
entre elas uma longa carta de D. Manuel Lobo, datada quatro dias antes
de morrer . Notícias geográficas de diversos pontos do litoral.
Fala com o Cícero, a ver se dá a precedência a éste sõbre o quarto
volume da Bahia. Lembrei-lhe que certos documentos, apenas enume
rados, ele poderia mandar vir a cópia completa : ficaria o volume mais
grosso que os precedentes, mas não seria grande o inconveniente.
Não sei quando voltarei : trouxe muito poucos livros — Bryce, Cal
derón, Ingegneros [sic, por Ingenieros ] sôbre a revolução sociológica
argentina, Fortoul sõbre sociologia venezuelana, Ayarraguaray. Pretendo
lê-los todos antes de ir, antes de 24, aniversário de minha senhora sogra.
Adeus, Sinhoca !
C.

S. Paulo , 1.º de novembro de 1914 .


392 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Xará,

Se não for a desoras o jantar, lá estarei.


Peço -te tomar notas de dois nomes : Joaquim Werneck e Dr. João
de Mesquita Barros.
Se puderes, manda -me Bourgeois, 2.° volume ; Soriano, e El-rei Junot;
preciso fazer o primeiro capítulo, seja como fôr.
Tenho trabalhado na Secretaria do Exterior, mas a documentação
falha não me deixa avançar .
Adeus, Sinhoca ! Quando fôr lá, não quero encontrá-lo mais com
cara de viúva precoce.
C.
Rio, 5 de dezembro de 1914.

Xará ,

Sei que estás desapropriado por utilidade pública ; não tenho pre
tensões contra um tempo que alienaste.
As informações da Secretaria sôbre Felício Brandão Júnior são me
diatas, indiretas, quase apriorísticas. Por que não completá -las pelas do
coletor da Circunscrição, com quem serviu ?
Durante larga convivência com Felicinho conheci- o sempre cumpridor
de seus deveres . Se as informações do coletor ou coletores provassem
o contrário, teremos um caso autêntico de arfama = cheval.
Sempre
C.
8 de junho de 1915 .

Informações diretas, imediatas, sõbre Felício Brandão Júnior só pode


dar o coletor de Rio Bonito : o papel junto as contém.
Sôbre o mesmo assunto teve de informar há cerca de um ano,
quando um pretendente começou a tecer intrigas : se o papel foi guar
dado, ver-se-á se existem ou não divergências. Talvez a isto se refira
vagamente a Secretaria, esquecendo que a trama não foi por diante por
falta de bases .
Além do coletor poderia também falar por experiência própria o
agente geral: este, desde que Felício Brandão foi nomeado, nunca mais
CARTAS A J. B. PANDIÁ CALÓGERAS 393

apareceu por aqueles lados. É fácil verificá -lo, pois sua presença seria
confirmada por um têrmo.
Rio, 9 de junho de 1915 .

Xará,

Subi domingo com Chiquito, pretendo descer a 12 ou 13. Sá ainda


precisa de cloral para conciliar o sono e de garrafas aquecidas para com
bater o frio dos pés, à noite ; mas come com apetite, conversa com desem
baraço, conforma-se mais ou menos à ausência da cidade. Anteontem
disse que desejaria vender a fazenda, porque as despesas são grandes
e não nasceu para fazendeiro. Yo lo credo. Quisera antes que se livras
se da malárica e mosquital fortaleza de Humaitá.
Os jornais chegam a meio-dia, mas ainda não lancei os olhos sõbre
as discussões do projeto salvador. Inflacionistas e espartilhistas haverá
enquanto o sol luzir sobre os primatas. Doctores ubique tradunt. A
questão só me interessa pelo teu lado pessoal. Poderias esposar uma causa
que sempre impugnaste ? Dir-me-ás que o balão para subir precisa de
descarregar o lastro. Dir-te-ia que sem lastro o navio não anda seguro .
Prefiro o mais minúsculo dos tico -ticos ao defunto Lusitânia ou ao mais
aperfeiçoado dos Zepelin. Se a emissão se impunha, realizasse-a Zé Be
zerra, ou qualquer outro que nunca viveu com a testa pensando nestes
mistérios. Contigo fica-se em dúvidas se te iluminaste no caminho de
Damasco ou te perdeste em alguma azinhaga de abricos.
Pelo que sei vagamente, a emissão não cura dos deficits, nem de
devedores presentes, que é a verdadeira sangria desatada, mas é toda
desvelos por São Paulo que, segundo o Hipócrates X. S. V., vende saúde,
e trata de reorganização futura , etc.
Compreende- se o quinhão leonino de S. Paulo. Durante um triênio,
Martim Francisco repetiu -nos que a falência era iminente. Da última
vez que aí estéve, já livre da cadeia velha, narrou -me que uma caftina
decretada de expulsão continuou em terra porque o advogado alegou não
poder ser deportada a credora de quarenta e cinco contos. Segundo Bu
lhões, a verdadeira situação paulista resume-se em não ter dinheiro para
as despesas e não se dignar fazer economias.
A reorganização financeira reproduz a impressão que já algumas
vezes me tens dado : há em tua inteligência uma tendência, nem sempre
394 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

vencida com felicidade, de alastrar como tiririca. Não tens talvez um


só trabalho que não ganhasse com a redução da superfície alastrada.
Por que atirar ao futuro, quando não há meio de atender sequer ao pre
sente imediato e aos casos mais urgentes ?
Do projeto apresentado na Câmara só conheço o que tresanda. O
que tresanda parece -me nascido do contubernio ( Saldanha da Gama não
me ouça do Campo -Osório aonde tombou ) do contubernio de Augusto
Ramos e P. Bandim .
Por que não lêste os artigos de Augusto Ramos, como tantas vezes
te pedi ?
Parece -me que em tudo isto há um affaire de Lupes ou une double
méprise, conforme o título de uma novela de Mérimée, lida em Pernam
buco, quando ainda não abaixaras dos intermundos de Epicuro.
Na cidade da Barreira os goianos impõem para cada rês o preço de
quarenta mil réis, e depois não regateiam nas compras, quaisquer que
sejam os preços. Passe -moi la casa, je vous passerai le sénél .
Na atmosfera pouco rósea em que respiro, só me desanuviam as derrotas
dos russos. Está enfim tomada Varsóvia e agora reina a paz em

Varsóvia . Comparando mal, lembra o caso de Zé Bezerra, cuja nomeação


pôs Wenceslau em frente a um muro ciclópico a galgar ou a arrombar.
Wenceslau não fez uma cousa nem outra, e continua no que em meu
tempo de colégio chamava -se cara para a parede, castigo a que os dire
tores dos colégios que cursei invariavelmente me condenavam algumas
vezes por semana .
Se eu cultivasse o gênero do espírito que floresce nos Diabos a
Quatro, Pingos e Respingos, etc., diria que o nome é fatídico : Bences
la o que, ó Brás ? Tu não obras.
Espero que os teuto-húngaros não ficarão de cara para a parede na
cidade do Vístula. Não estará, porém, a Polônia, depois de tantos anos
de moscovitismo, reduzida ao estado da Itália depois de Cannes ? Ainda
será possível ressuscitar o cadáver ?
Adeus, Sinhoca !
Bien d toi,
C.
Morro Azul, 7 de agosto de 1915 .

1. Paráfrase do provérbio : Passeg -inoi la rhubarbe, je vous passerai le séné.


CARTAS A J. B. PANDIÁ CALÓGERAS 395

Diz Roscher : quando se opera um membro gangrenado, é preciso


amputar acima dos tecidos decompostos um pedaço que esteja perfeito.
Que relação tem isto com o processo salvador ?

Xará,

Partimos a 5, amanhã dormiremos em Pelotas, sábado estarei em


Pedras Altas. A viagem tem corrido bem ; apenas em Cananéia e Iguape
a chuva, o escuro , a maré atrasaram-nos um dia. Deixei de desembarcar
em Angra, Parati ( passada a noite ) , Ubatuba, Caraguatatuba, Vila-Bela,
S. Sebastião, Cananéia, Iguape, Imbituba : de bordo via - se o suficiente
para formar idéia do existente, e a condução para terra não era fácil.
Em Santos não avisei nem encontrei conhecido. Andei nos bondes
de Paquetá, Macuco, São Vicente e fiquei assim conhecendo mais da
cidade do que todas as vezes que lá tenho estado.
Desembarquei em Itajaí, o pôrto mais importante a partir do Rio,
salvo Santos e talvez S. Francisco. Há ruas bastante extensas e largas.
No cemitério católico predominam os epitáfios portuguêses. Estava fe
chado o dos protestantes e não pude visitá-lo.
Aí desembarcou um companheiro vindo do Rio, filho de lombardos,
nascido em Campinas. Destina -se a frade franciscano. Em Blumenau,
cujo convento um livrete encontrado em Itajaí declara colossal, estudou
humanidades durante sete anos. Este mês tomará o hábito, fará um ano
de noviciado em Rodeio, a poucos quilômetros do convento, dois de filo
sofia em Curitiba, três de teologia em Petrópolis, para tomar ordens.
No convento o alemão é obrigatório um dia , o português, outro ; nos
domingos pode-se falar qualquer língua. A província franciscana alemã
vai de Santa Catarina ao Rio de Janeiro.
Em Itajaí embarcou um colono com a família , com destino a Imbi
tuba, de onde seguirá para Orléans. Disse-se brasileiro , embora de des
cendência alemã ; só aprendeu nossa língua depois de homem feito. Na
cidade de Blumenau fala - se bastante português, nas colônias não sabem
palavra nem procuram saber. Blumenau é muito quente, muito chuvoso :
prefere Orléans, aonde reside e o feijão dá admirávelmente.
Desembarquei em Destêrro quase à noite : dois meninos contratados
para isto mostraram -me a cidade. Ao passarmos por palácio, mostram
me o Governador na janela : gritei-lhe meu nome ; reconheceu-me, man
396 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

dou -me entrar. Viajamos juntos há trinta e um anos do Rio ao Ceará,


quando, simples alferes-tenente, ia para o Madeira, sob as ordens de Pina.
Conversamos. Tem esperanças de acabar com os bandidos do con
testado, havendo um pouco de boa vontade do governo geral. Está satis
feito com a própria administração ; se tivesse em mãos todos os recursos
do Brasil, então sim ...
Dei até Pedra Grande um passeio de bonde, um bonde de última
classe, puxado a burro. Não vi Praia de Fora, que parece a mais aris
tocrática . Há vários edifícios bem construídos, mas as ruas são estreitas
e diversos pontos dão a impressão de velhice. Um bairro chama- se
Mato Grosso, talvez lembrança de Passos.
Um jornal comprado acaso , deu -me a notícia da demissão de Enes
de Sousa. Enfim ! Chegará agora a vez de Luis Adolfo ocupar o cargo ?
Conheço desde muito, logo que chegou do Maranhão, Enes de Sousa.
Veio fazer concurso na Politécnica. Declarou - se logo republicano, abo
licionista, tomou a palavra em diversas reuniões, falando com desem
baraço. Referia - se com respeito ao Imperador, a quem chamava Chefe
do Estado. Que concurso fêz, ignoro : teve apenas quatro votos favorá
veis, um dos quais o de Alvaro de Oliveira . Foi nomeado : de seus dis
cípulos só um me falou bem dêle Gabaglia. De suas explorações só
conheço vagamente a que fez em Ilhéus, em terras de Gentil. Já neste
tempo insinuava-se nas relações de Ouro Prêto, moravam em S. Fran
cisco Xavier, e foi nomeado para substituir Sobragi, a quem tentou
detrair, e que, disse-me, tomava-o como bôbo alegre.
Repôsto na Casa da Moeda pela República, não sei que fêz tècnica
mente. Considera-se grande homem, um grande educador, um corte de
Benjamin Franklin, em outro tempo nome que andava -lhe na bôca, ou
escorrendo - lhe da pena. Em seu proveito julgo - o incapaz de distrair um
ceitil ; mas as suas idéias, o seu papel de B. Fr. são intangíveis, sobran
ceiros a ministros, orçamentos e leis. A terra lhe seja leve, e que não
volte.

Em Imbituba não encontrei meu velho amigo Pina : escrevi-lhe para


Tubarão, dizendo que na volta poderia demorar -me em sua companhia
no intervalo de um a outro vapor. Tenho curiosidade de ver esta estrada,
ideada pelo Visconde de Barbacena, incomparável como monumento de
incapacidade de nossa burocracia.
Tomei passagem de ida e volta, válida por três meses e depois reva
lidável ; só em Pedras Altas, mais tarde, poderei resolver definitivamente.
CARTAS A J. B. PANDIÁ CALÓGERAS 397

Minha sogra está sofrendo de hemorragia ; Mendonça não a exa


minou mas disse-me primeiro que se tratava -se [ sic] de úlcera ; na vés
pera de minha ( partida ] disse que a doença é cancro . Isto junto aos
88 já feitos, quer dizer que não pode durar muito. Prefiro não assistir
à sua morte.
Deixei com Abril o dinheiro para o entêrro e para a mudança para
uma casa em que possa morar com ele. Estando Matilde solteira, a
casa atual não é suficiente. É um exemplar superior do tipo humano,
não foi feliz, menos o seria ainda se não dispusesse de uma inteligência
extraordinária, que a levantava sobre as misérias da vida.
Adeus, Sinhoca !
Sempre
C.
Bordo do Itapaci, 13 de janeiro de 1916.

Xara,
O dia de hoje é raro . Não quero que passe sem marcá-lo com
um pedido. Encarrega Luís Adolfo de velar pelo nosso bom nome nos
selos. Já de França, Itália e Argentina começam a exportar Brasil com
a cangalha quebrada.
Recebi de Boboi uma carta interessante. Sabe que desfrutas de
mauvaise presse. Quer saber o motivo. Comecei a resposta, mas sus
pendi, porque o correio rio-grandense é fantástico. Para a semana, Ali
pio, do América Hotel, levá-la-á para pôr na caixa dai.
A temperatura, salvo dois ou três dias em mês e meio, tem estado
admirável : não é estio, porém princípio de outono. Para o equinócio
começarei a mover-me. Um sobrinho de Assis, filho do finado Barto
lomeu, de quem fui muito amigo, prometeu mostrar-me Pôrto Alegre,
aonde reside, sem que eu tenha de conhecer a gente. A promessa sedu
ziu-me ; farei a visita, que não entrava nos meus planos. Em princípio
de abril estarei no Rio. Muito gostaria, se te achasse livre do automa
tismo psicológico .
Adeus, Sinhoca !
Sempre
C.
P. A., 29 de fevereiro de 1916.
398 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Xará,
O correio daqui é inverossimil : aproveito a partida de Alipio, para
encarregá -lo de pôr esta carta numa caixa urbana.
Li com muito prazer a notícia do Congresso Financeiro em Buenos
Aires. Há de ir, não podes deixar de ir. Romperás assim o círculo
de automatismo em que labutas. Num bilhetinho que me escreveu, parti
cipando a partida para Goiás, Bulhões reflete a mesma impressão, dizen
do que continuas atordoado : que é isto senão automatismo psicológico ?
No Prata verás que um pouco de azeite não perturba o maquinismo,
guinchos e solavancos e atritos só julgam indispensáveis os maqui
nisias verdes.
Alipio leva procuração para receber meus vencimentos atrasados.
Fi-las com o maior cuidado, conformando -me com um modelo que Bran
dão me deu em tempo. Quem sabe se será suficiente ?
Vejo que os louros de Miltiades continuam a perturbar os Temis.
tocles. Diz um telegrama que o Jornal aponta como modelo o caso de
Portugal apoderando -se de vapores alemães, sem carga, sem maquinistas,
sem marinheiros, para, a três milhas da terra, ir entregá-los aos inglêses.
Se eu duvidar que no Brasil façam o mesmo...
Na próxima semana irei a Porto Alegre : espero chegar aí em pri
cípio de abril : até então.
Adeus, Sinhoca !
Bien à toi,
C.
P. Alias, 13 de março de 1916.

Pelotas, 22 de março de 1916.


Madame,
Escrevo -lhe de Pelotas, aonde vim tomar vapor para Porto Alegre.
Não tinha esta idéia quando sai do Rio, porém Abril, em janeiro, man
dou -me dinheiro para a excursão. Aproveito -o : éle há de estar arrepen
dido, porque a procuração que lhe deixei perdeu o valor em fevereiro.
Bem feito.
Quando ontem saí de Pedras Altas, esperava demorar aqui menos de
20 horas, se não, teria vindo hoje pela manhã, ou pelo noturno. O
Itajubá encalhou entre Rio Grande e Pelotas : tenho de ficar trinta
CARTAS A J. B. PANDIÁ CALÓGERAS 399

e seis horas. Se encalhar daqui para a Capital, pouco me importa :


passo de roda a cambota e não me incomodará dar a outrem a respon
sabilidade. Vou encantado do Rio Grande do Sul : ainda mais iria, se o
correio fosse melhor : não sei agora de que é capaz. Pedras Altas é
estação de grande movimento, mas não se conseguiu ainda uma agência
postal para lá. Nem mesmo se pode telegrafar diretamente : os tele
gramas têm de ir primeiro a Cerro Chato ou a Bagé e chegam quando
querem .
Imperfeitamente, porque nos últimos dias os jornais têm chegado
mais escassa e irregularmente que de costume, tenho seguido a comédia
do Congresso Financeiro de Buenos Aires. Enfim o bom senso triunfou
e Xará irá. Desejo que visite o Museu Mitre, aonde lhe darão publi
cações importantes para a História do Brasil e do Rio da Prata ; que
visite as Universidades de Buenos Aires e La Plata ; que não deixe de
inteirar-se da Prensa, que é talvez o triunfo da energia argentina, que
trata Zeballos sem se lembrar do Rio Branco. Visite a Argentina como
eu fiz ao Rio Grande : mera esponja, tratando de absorver a maior quan
tidade de líquido ; a filtração se fará melhor no Rio. Deixe os dados
que hão de entrar no relatório presidencial : ponha o coração à larga !
Em principio, o Itajubá deve sair domingo de Pôrto Alegre ; como
depois do Rio Grande não tocará em pôrto intermediário e seguirá direta
mente para a Muito Heróica e Leal Cidade, devo aí estar antes do fim
da próxima semana. Poderei, pois, estar aí antes da partida para B. A.:
desejo-o bem. Adeus, Xará.
Beija -lhe as mãos o amigo obr.
C. DE ABREU

Xara,
Acabava de ler uma transcrição do Correio da Manhã afirmando tua
hostilidade ao Exército quando recebi teu telegrama. Obrigado. Non
omnis moriar.
Chamou-me a S. Paulo especialmente o desejo de estudar um ma
nuscrito de Eduardo Prado , intitulado Livro 2.º do Brasil. Salvo um
ou outro avulso, é uma coleção de cartas régias dirigidas a D. Luis de
Sousa, de 1617 a 1621. Resistem ao confronto com tua prosa quotidiana
no Diário Oficial. Fixam alguns pontos minúsculos. Há regimentos
400 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

para Antônio de Albuquerque, Diogo da Costa Machado e Bento Maciel,


êste sobretudo interessante ; um assento tomado no governo de Diogo
Luís de Oliveira sôbre guerra aos indios da Bahia, no gênero de outro
publicado na Rev. Tr. de 45, porém não tão minucioso .
Um volume de capa de pergaminho contém cartas régias e consul
tas da era de 630, algumas relativas à guerra holandesa . Em outro
deparei duas cartas muito têsas de R. T. Pardinho a D. Luís de Almeida :
nêle vou examinar hoje os fundamentos prolixos de um projeto sobre
quintos, que considero inédito.
A repartição do Arquivo emprestou -me um manuscrito sobre a capi
tania de S. Paulo, terminado em 1797, comprado no espólio do Barão
de Rosário, oferecido ao futuro Balsemão, com quem o autor fez conhe
cimento em Mato Grosso. Diz o autor que teve de andar mendigando
de mão em mão as notícias reunidas, refere -se às dificuldades de ler
a escrita antiga dos cartórios, etc. Ora, o trabalho não passa de cópia
literal das Memórias de Fr. Gaspar, de extensos trechos da História de
Taques, ambos inéditos naquele tempo. E o pior é que o sujeito é meu
xará Manuel Cardoso de Abreu .
Pude trazer para casa a segunda remessa de documentos copiados
pelo Basílio de Magalhães, que chega a 1705.
A biblioteca de Eduardo ocupa -me das 12 às 16 : o resto do tempo
rico quase todo em casa, cercado de uma coleção do Instituto daqui e das
Publicações do Arquivo Público. Já apurei algumas cousas em que
Gentil Moura me tem auxiliado : até 1611 só havia comunicações fluviais
entre S. Paulo e Mogi das Cruzes ; Mogi tinha um caminho especial para
Santos e São Vicente , que em serra baixa acompanhava o rio Jeribatuba .
Até hoje tinha engrolado com outras a estrada de Atibaia : demanda
investigação especial. Assemelha- se até certo ponto à da Poaia em Mi
nas, que julgo ter sido o primeiro a salientar.
Para a semana devo ir com Gentil Moura a Santos, aonde tomaremos
automóvel para visitar Itanhaém : Benedito Calisto , o pintor, filho da
terra , deve servir -nos de cicerone.
Em começos de novembro poderei passear. Escrevi a D. Olga pe
dindo me arranjasse um passe para o noroeste, aonde quero visitar Uru
bupunga . Não tive ainda resposta.
Aqui tem chovido, ou antes, garoado bastante e a temperatura estado
muito agradável . Se o contrário se desse, não teria sentido muito, todo
absorvido nos estudos. Curei-me do vício dos jornais, leio apenas o
CARTAS A J. B. PANDIÁ CALÓGERAS 401

Estado : quando vou à cidade compro o Diário Alemão e tomo um


rega-bofe. Fernancia da Bulgária há de se convencer que fêz mal em
não casar com a poetisa romena, que andava pelas revistas francesas a
revelar sua viuvez platônica : chamava - se Vacaresco ?
Hão de fazer justiça a Constantino ... Senhor general Artur Oscar,
a Bahia é republicana porque quer ...
Até meados de novembro.
Adeus, Sinhoca !
C.
S. Paulo, 25 de outubro de 1916.

Xara ,

Uma carta de Miguel dá-me notícias tuas pouco agradáveis : gripa


do, aborrecido, neurastênico, não sei que mais. As notícias mandadas
para fora têm às vezes a vantagem de chegar quando já não são exatas :
esperemos que agora suceda isto.
Perfeitamente compreendo teu estado de espírito : omnia varia re
sume- o bem. Tanto esforço, tanto trabalho e tão pouco fruto , e às vezes
o fruto dependendo apenas de uma circunstância mínima : é a lei do mundo.
Para andar bem no mundo é preciso possuir alma de Bourgeois gentil
homme. Já a tiveste no tempo de mes poches. Seria impossível reevocá - la ?
Entre os livros de Jaguaribe encontrei os Pensamentos de Marco
Aurélio, que nunca abrira. Conheces ? Tenho - o saboreado a pequenas
doses : é um livro forte ; Taine lia diàriamente algumas páginas.
Amanhã desco a Santos, almoçar com uns amigos daqui, em casa
de Júlio Conceição. Sábado, 11 , pretendo partir para Ribeirão Preto e
pelo ramal de Igarapava chegar a Uberaba. Penido mandou-me passe
livre, até com leito : vou aproveitá -lo. Antes de 19 estarei ai : vou saben
do mais do que vim e fui a Itanhaém de automóvel pela praia, a célebre
praia asfaltada naturalmente, que me ensinaram as biografias de Anchieta ..
Adeus, Sinhoca !
C.
S. Paulo , 4 de novembro de 1916.

29 - 1.
402 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Xara,

Em Petrópolis, para onde subi sexta , li os discursos dos franceses.


Interessantes ambos, embora me deixassem uma impressão vaga da dis
tribuição de prêmios. Lá ganhaste teu accessit. Merecias mais ; talvez
a modéstia da recompensa traga começo de desarmamento.
Saraiva declarou uma vez que nunca sentiu grande entusiasmo por
governo algum, a começar pelos próprios. Também nunca senti grande
entusiasmo por ministro, nem mesmo curiosidade prolongada. Conhecida
a maior, pouco me preocupa a grampiola do silogismo.
No teu caso penso que eram evitáveis todos os ... como direi ?
procura os substantivos que melhor te souberem . Só um é incurável :
Quantas vezes brota-me no cérebro como uma ponta de fogo o verso
de Juvenal :
Dat veniam corvis, vexat censura columbas.
Mas não há mal que sempre dure. Wenceslau há de acabar ; ha
de sair da cafua, hás de respirar ar puro e reatarás a tradição, aspirando
ao patriarcado de Lisboa.
Ministro, dixit, Magister.
Adeus, Sinhoca !
C.
Rio, 23 de abril de 1917.

Xará ,

Alfredo Pinto contou com muito segredo na Jacuí que o Jornal pre
para um movimento para atirar -te do ministério e a Miguel da diretoria.
Hoje encontrei um amigo de Miguel, muito aborrecido com a demora
deste, que, parece, de Bagé ainda tornou a Porto Alegre. A conspiração
continua ; talvez com sua ação ele pudesse continuar.
Botelho nada teme. No empréstimo do Banco houve qualquer irre
gularidade que o põe sobranceiro ao governo, que não sairia limpo da água
suja.
A Ceciliano pedira 40 contos e depois do cheque não passou do
cumento. De acórdo com ele trabalhara Müller de Reis ? Há quem o
afirme : neste caso prognostico para breve uma boa e espontânea e gene
ralizada greve.
CARTAS A J. B. PANDIÁ CALÓGERAS 403

Tal a situação como a antevejo . Não achas que seria oportuna uma
solução imprevista ?
Adeus, Sinhoca !
Bien à toi ,
C.

Rio, 22 de julho de 1917.

Xará ,

Não tenho o mínimo orgulho de ter dito desde o principio que os


representantes da justiça e da civilização não queriam armas nem solda
dos dos botocudos : limitavam-se ao incêndio e confisco dos bens dos
boches, se no alvorộto fosse morto um ou mesmo todos os boches, não
seria grande o mal, mas isto ficaria secundário.
Releio agora a revogação do edito de Nantes. Quanta gente chora,
lendo as desgraças imaginárias dos romances, e encara indiferente as
misérias reais !
Para depois da carnificina anuncia -se a Santa Aliança de São Boy
cott. Podes ler no livro de Stern , que remeto, os começos da história
da primeira tentativa.
O portador poderá trazer o Marquês de Pombal, o Simão de Vas
concelos e a biografia de Palmela .
Adeus, Sinhoca !
Bien à toi,
C.
4 de novembro de 1917 .

Xará ,

Creio que lucrarás muito mais em S. Lourenço, lendo os livros pla


tinos que junto.
Se concordas , ainda posso juntar uma história do Chile e outra
do Peru .
Assis Brasil parte só amanhã. Bem poderias vê-lo hoje. Convi
dou-me para ir com ele hoje a tua casa , mas hoje tenho muito que
fazer e prefiro não sair.
404 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Olha bem para a cara de Tuxunim . Casou haverá três meses.


Adeus, Sinhoca !
Bien à toi.
C.
Rio, 12 de dezembro de 1917.

Como se chama a viúva de Matias Cardoso ou cousa que valha ?


Está no Azevedo Marques ou no Taques ?
Não se esqueça de ver nos dois 1.98 volumes do Arquivo Mineiro
qual o lugar de Minas cujo aspecto muito se assemelha ao do Rio de
Janeiro.
C.
Rio, 3 de junho de 1918.

Frederico Clark, irmão de Oscar Clark, genro do nosso amigo José


de Mendonça, secretário da legação desde antes da guerra, deseja con
tinuar em Paris.
Falta -lhe uma condição importante : não é filho de deputado.
Por isso não fala na hipótese da promoção a ministro residente, que
aceitaria até para o inferno .
Passei ontem o dia muito sonolento e com grande fastio : à noite,
a julgar pelos sonhos, não tive febre.
Adeus, Sinhoca !
C.
Rio, 29 de dezembro de 1919.

Ministro,
1.9 : O Campo das Garças fica entre o rio Verde e a margem direita
do rio das Velhas; não me parece satisfazer qualquer destas condições o
homônimo do Curvelo ;
2.0 : Entre a Bahia e o Serro houve relações diretas desde os pri
meiros tempos ; devia haver uma estrada mais a este, que esgarraria em
ponto a determinar;
3.° : Tronqueira devia ficar adiante da barra do Una, no Paraguaçu,
porque antes não havia passagem , segundo um relatório publicado na
R. I. H. 5, cujo autor não posso agora verificar.
CARTAS A J. B. PANDIÁ CALÓGERAS 405

4.0 : D. Brás diz que a Tábua, fazenda de Manuel Nunes, ficava nos
confins de Minas e Bahia . Isto confirma Teixeira Coelho, 350 , narrando
que do Sêrro foi contra ela uma expedição, cujos excessos teve ordem de
sindicar o juiz-de- fora de São Romão. No Atlas Briguiet H. de Melo
encontro Tábua à esquerda do rio das Velhas, que não satisfaz. Em um
mapa antigo da B. N. encontro Tábua, no Pardo, af. do Paraúna. Não
seria antes este o antro de Manuel Nunes Viana, em que o filho continuou ?
Adeus, Sinhoca !
C.

Rio, 17 de janeiro de 1920.

Xará,

Um pouco de ciprianismo.
Tome conta das provas do padre, enquanto desaperto para a esquerda.
Mande -as diretamente.
Aceite o convite : vá aos exercícios de Santo Inácio em setembro.
Faça ato de presença amanhã, aniversário da morte do seu querido
imigo 1 .
Seu todo bacairi.
30 de junho. ( 1921]

Xara ,

Sôbre sua vinda têm circulado as notícias mais desencontradas. A


última trouxe ontem uma carta de Bulhões e creio será a verdadeira :
V. não irá. Novo Moisés, não penetrará na terra do leite e mel.
Se fôr, quero dissipar desde já um equívoco : não recomendo Alegrete
para Sinhoca. Acho o lugar muito desagradável ; a única vantagem seria
a morada de Diogo nas cercanias.
Muito preferível seria São Gabriel, ou talvez Santa Ana.
Estou disposto a voltar para o Rio depois de 1 de março : já a
atmosfera estará mais respirável .

1. Parece tratar-se de transcrição errada da abreviatura de Santo Inácio ( Iñigo) ,


cujo aniversário se comemora a 31 de julho e que, por equívoco , Capistrano indica
“ amanhã " depois de datar “ 30 de junho ” .
406 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Se a sua viagem se realizar, começá-la-emos do princípio.


São Vicente não compensa, com o banho de mar a portas, as visitas
domiciliares de moscas, mosquitos e pernilongos.
Adeus, Sinhoca !
Ergebenst,
C.
Praia de S. Vicente , 82.
17/1/101

Xará,

Magnífico o programa. A omissão do Jaguarão pode ser remediada.


De Basílio para lá há linha de diligência, viagem de poucas horas, segundo
me informaram .
Não posso deixar de ir ao Rio. Encomendei e depois do almoço
irei pegar uma passagem no Ita de 3.a feira de carnaval. Assim ai
estarei 4." feira de cinzas.
Adeus, Sinhoca !
Ergebenst,
C.
São Vicente , 22 de fevereiro.
101

Xará ,

Escreve Bulhões que a exposição não foi fiasco e os estrangeiros


muito a têm apreciado. Tanto melhor. Comparava -a à Retirada dos Dez
Mil, que pôs à vista os podres do império persa.
Não vi o nome de Ptolomeu entre os promovidos , talvez por pro
curá - lo mal. Em compensação os generais são-me desconhecidos. Sus
peito que o dono da casa quis provar que o dono da casa é quem manda
e não permite maire de palais. Tem razão. Apenas lastimo que ainda não
esteja resolvido o caso do Júlio, a menos que a solução imprevista não
consista em dominar o Hermes (ou a Nair ? ) .
Vi a organização do governo mineiro, a preocupação de acautelar os
lugares da Câmara e do Senado : é verdadeiramente dantesca : lasciate
CARTAS A J. B. PANDIÁ CALÓGERAS 407

ogni speranza. Por este começo pode antecipar -se o que será Bernardes.
Não estranho nada ; lembro -me das palavras do velho Thiers, quando
queriam botá - lo abaixo : il n'y aura plus de danger et la tâche sera pro
portionnée à leur courage et à leur capacité.
Espero estar aí pelo equinócio.
Adeus, Sinhoca !
Ergebenst,
C.
São Vicente, M. de Sul, 1922.
101

Xará,
Li com o maior cuidado sua carta .
Não há dúvida : da crônica poderiam ser tiradas as conseqüências que
V. aponta .
E com a mesma lógica poderiam tirar -se contrárias.
Ainda me lembro da surpresa sentida ao ler em Comte o truísmo de
que, sendo as ciências seis, podiam ser combinadas de 720 maneiras.
Monsieur Jourdan não ficou mais assombrado com seus quarenta anos de
prosa inconsciente.
Na idéia da crônica eu via sobretudo uma demonstração de que V.
não podia ser amordaçado por defunto lavado ou sujo (Hermenegildo será
destes ? ) .
Adeus, Sinhoca !
Ergebenst,
C.
15 de fevereiro de 1923.
CII

Segundo sou informado, trama - se para meu próximo aniversário uma


patuléia, poliantéia, ou cousa pior e mais ridícula, se fôr possível.
408 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Aos meus amigos previno que considero a tramoia como profunda


mente inamistosa . Não poderei manter relações com quem assim tenta
desmoralizar -me.
Custe o que custar.
J. CAPISTRANO DE ABREU
Rio, dia do Corpo de Deus, 1923 1 .

Xara,

Correu com bastante insistência a notícia de sua prisão. Não me


espantaria. O boato de que se tramava algo no exército a seu favor
partiu propositalmente criado para justificá-la.
Depois de telefonar para várias partes, recebi afinal resposta de Tasso,
que tudo reduzia-se a invencionice ridícula : foi isto a 24 ou 25. Ainda
bem para Sinhoca : nem quero pensar como ficaria, se fosse verdade.
Acredito seria muito útil à sua higiene escrever para uso próprio,
sem pensar em publicação próxima, um estudo sôbre Rui Barbosa .
Peço - lhe entregue ao portador Luis Gonzaga Sombra para casar
e arranjar documentos legais, antes mero Tuxunim a história de H.
van Loon e a de Seignobos para mandar a Assis Brasil, Avenida Atlântica,
682. Com a pressa da viagem , a família veio sem livros.
Adeus, Sinhoca !
Ergebenst,
C.

Rio, na terceira oitava da morte do maior dos brasileiros, [ 22/4 ] 1923.

Xará amigo,
Tenho passado em casa do Djalma para colher notícias frescas. Vol.
tarei ainda hoje : embarco amanhã.
Deixei no José alguns livros, entre os quais um Bulário, dois sobre
o tráfego dos espanhóis antes do Assiento, três de história oriental.
Penso no assunto e vejo-o carregado :
Navegação a vapor — começo da estrada de ferro.

1. O original está em impresso.


CARTAS A J. B. PANDIÁ CALOGERAS 402

Lei de terras. O crime de S. Paulo : a colonização por parceria.


Unidade, pluralidade bancária. Quebra de padrão.
Convenções consulares.
A comissão científica do Norte à luz do estudo de Capanema sõbre
terremotos.
Pedro II como Mecenas : poemas épicos de Magalhães, Gonçalves
Dias, Pôrto Alegre, tragédias de Magalhães, etc : isto obrigatório, porque
epopéia e a tragédia são as formas hierárquicamente superiores.
O Inst . Hist . como oráculo de S. M.
Itaboraí, Paraná, Caxias, Marquês de Olinda.
Viajantes. A estátua eqüestre.
Basta ! basta !
Embarco amanhã no Itajiba.
Jaguaribe mora : Praia de São Vicente , 82.
Adeus , Sinhoca !
Ergebenst,
1924
Véspera da véspera de S. João chegou o tão suspirado Bispo em 1552.
Está longe...
372

Xara,

Entregue ao portador, Cassius Berlinck, os cadernos 11-14 para reme


ter a Paulo.
A.
1.º de dezembro ( 1924 ]

Quarta-feira, 8, ajustei contas com Mogói.


Entreguei-lhe quatro peças de fazendas, roupas e outros objetos fáceis
de verificar na Casa Colombo, aonde foram comprados.
Deixei para as despesas miúdas 10$ em mãos do Dr. José Bezerra,
chefe do serviço de índios.
Ao Dr. José Bezerra pedi entregasse ao Capitão Estigarribia 500 $ réis
( quinhentos mil-réis ) que éste daria a Mogói quando chegasse a Cuiabá.
410 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Hoje soube que Mogói não seguiu viagem e anda à minha procura.
Como não temos mais negócios e não quero vê- lo , retiro-me da cidade.
J. CAPISTRANO DE ABREU
Rio, 5.a feira, 9 de abril de 1925.

( Escrito com outra letra :)


Sr. Capistrano está com o Sr. Bulhões em Petrópolis.

Xará ,

Devemos partir amanhã para a Prata, aonde será nossa maior demora .
São Paulo estaria muito agradável, se aqui encontrasse os amigos
do costume.
Estive com Martim : é o mesmo vulcão ativo e inextinguível. Se o
que ele diz é verdade, as cousas andam piores que no Rio. Procurei
chamar - lhe a atenção para outros assuntos e para o caso da Revista do
Supremo Tribunal. Será impossível achar solução legal ? Isto equiva
leria à falência da República e de todos os seus poderes.
Felizmente o crime é de ação pública : as pessoas que podem promover
a justiça andam por milhões.
Ontem, 29, foi quando o Príncipe Regente começou a santificar-se e
não a 7 de setembro, como Rangel pretende.
Tenho pensado no D. João VI, desde o tratado do Brasil em que não
pôde tomar parte, nos tratados que assinou em seguida, nos milhões que
pagou para obter a neutralidade, nas embaixadas de Lannes e Junot, nas
discussões que precederam o regifúgio, nas deliberações havidas no Rio
depois da revolução do Pôrto, e não me reputo infeliz por ter o queixo
duro .
Junto em cartão -postal com meu endereço. Geyes dirá onde convém
mais apresentá-lo, se na esquina da Rua de S. João, se na Rua Direita.
Adeus, Sinhoca !
Se ainda chegar a tempo, incluo um abraço para Silva.
E mando saudades a todos.
CA.

São Paulo, domingo, 30 de agosto de 1925.


CARTAS A J. B. PANDIÁ CALOGERAS 411

Um caso a estudar : por que Barbacena foi arredado das negociações ?


imposições de lá ? intrigas de cá ?
A estação da Prata é muito recente. Os proprietários pedem 20 mil
contos pelo terreno. Há apenas uma fonte, ou antes uma torneira. Dizem
que convém beber água quatro vezes por dia ; tenho-o feito assim até
agora .
Contava trazer o livro do Steinen sôbre as Marquesas, que lhe tomou
27 anos de trabalho e outro sobre geopsicologia. Na arrumação enga
nei-me : trouxe uma Tiergeographie. O livro parece extraordinário ; duas
têrças partes, porém , escapam à minha inteligência.
Folgo com o progresso do seu livro. Continuo a pensar que V. faria
melhor em escrever o capítulo para o livro do Instituto, em consagrar-se a
um revisão séria do primeiro, deixar o resto para o ano. O primeiro
volume precisa de ser expungido do que julgo ser chamado bavures pelos
franceses. É uma pena que tanto trabalho não dê o que podia.
Adeus , Sinhoca !
Ergebenst,
JoÃO NINGUÉM
Prata, 5 de setembro de 1925.

Cheguei ontem.
Devo permanecer em São Vicente durante o mês de outubro. Aonde
será o encontro : aqui ou lá ?
Respeitos à ex.ma.
C.

São Vicente, praia, 82,


27 de setembro de 1925 .

Xará amigo,
A melhor resposta à lembrança de Xató seria um não redondo.
Ando tão afastado de história e de jornais, particularmente do Jornal!
Há dois meses perdi-o de vista ; nem em Santos nem em São Vicente o
encontro à venda .
Tentemos, porém , uma aventura .
412 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

A V. ou a Tobias emprestei um livro descrevendo a viagem do Impe


rador às províncias do Norte em fins de 50.
Se, ao chegar ai, logo depois dos defuntos, encontrar o livro à mão,
é impossível que eu me atreva às mal traçadas linhas.
Adeus, Sinhoca !
Ergebenst,
JcÃO NINGUÉM
São Vicente, 27 de outubro de 1925.

Xará,

Chiquinho me disse que almoçara com Sinhoca no Terminus e acha


ra-a bem disposta. É o principal.
Soube que os sicilianos iam fundar uma fábrica no mesmo gênero da
sua .
É o que se vê todos os dias . Para poupar trabalho pagam melhor
os operários da fábrica existente.
Vejo que V. continua na mesma faina. Que suas opiniões não serão
improvisadas tenho certeza, mas precisamos de fundar uma ciência de va
lores latino-americanos, para 'ter base segura.
As revoluções trouxeram um resultado inesperado. Os confiantes,
até então hostis, tornaram -se cúmplices. Isto mesmo estamos vendo agora :
os Silvinos, os Lampiões, etc. , mantêm - se nas divisas interestaduais.
Não tenho passado bem : senectus, gripe, maleita, etc. Acredita que
entre a casa de Cecília, continuação de Irajá, numa vila de S. Clemente, e
a Travessa Honorina perdi-me há dois dias ?
Provas do bacairi, nada até agora. Continuo decidido a só ir para
São Lourenço depois de descalçada a bota . Terá isto a vantagem de
ainda estar aqui, quando V. chegar em abril .
Adeus, Sinhoca !
Ergebenst,
JoÃO NINGUÉM
Rio, 5 de março de 1926.
CARTAS A J. B. PANDIÁ CALÓGERAS 413

Xará,

Tinha combinado com Miguel subir quinta-feira no trem das 8,20.


Um recado mal transmitido do Bulhões, a respeito da chegada de Martim
Francisco, destruiu a combinação.
Com isto não perdi, antes ganhei, porque almocei com Bobói e con
versamos largamente. Doença da tia obrigou - o a transferir a viagem
para 8.
Mas o fim destas linhas é outro .
Na véspera tinha estado aqui Augusto de Lima.
Disse que Antônio Carlos pretendia ocupar- se seriamente da história
mineira durante seu quatriènio .
Comecara ressuscitando o Instituto Histórico e disto será sinal uma
conferência de Afonsinho Celso a 7 e sôbre 7 de abril.
Queria um elenco de 40 teses sôbre história de Minas, que devem
ser discutidas nos quatro anos.
Junto as notas das 1.as teses que me vieram à cabeça. Peço -te exa
mine-as, lembres outras; falarei também a Paulo.
Adeus, Sinhoca !
Ergebenst,
JoÃO NINGUÉM
Tugúrio, 26 de março [ 1926 ).

1 – Antropogeografia. A posição central.


O relevo do solo, as divisoras das águas e bacias, os terrenos
mineralizados. As formações vegetais.
2 Etnografia mineira : Os índios da língua geral. Os gualascos.
Os botocudos.

3 As entradas orientais : Espinoza, Martim Carvalho, Adôrno, Tou


rinho, Azeredo Coutinho, Salvador Correia, etc. Ciclo das esme
raldas.
4 - As entradas meridionais ; no Sapucaí: Fernão Dias, D. Rodrigo;
na Paraíba : Glimmer, João de Faria, etc.
5 — A casa de fundição em Taubaté. A anulação do caminho de Sa
pucaí. A prosperidade do caminho de Guuipacaré e ribeira do alto
Paraíba. Garcia Pais pelo Paraibuna, Proença pelo Piabanha pas
sara à divisora das águas de Guanabara.
6 - A entrada pelo São Francisco. Caeté, Ferro, Minas Novas.
414 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

7 – A comarca de S. João d’El-Rei . Ligações com a B. S. Paulo e o


Rio. Caminho para Goiás. Ocupação do território segundo as
sesmarias.
8 - A comarca de Sabará. Expansão pelas duas margens do São
Francisco , seguindo as sesmarias. Marcha para o Ocidente.
9- A comarca do ribeirão do Carmo. Sua ocupação segundo as ses
marias. Ligações com o Rio pelo Pomba. O avanço para o Es
pírito Santo .
10 – Descobrimento simultâneo do Sérro por paulistas e baianos. Sesma
rias. Caminho para a Bahia, paralelo à costa.
11 – História mineira antes de Antonio de Albuquerque : a Guerra dos
Emboabas.
12 - 0 quinto, direitos de entrada, contrabandos, moedas falsas.
13 O descobrimento dos diamantes. O distrito diamantino antes de
Pombal .
14 - O distrito diamantino depois de Pombal.

Xará amigo,
Se palavra de rei não torna atrás, espero vê-lo aqui na próxima
semana . Por poucos dias : pretendo partir para S. Lourenço a 19, de lá
visitar Matilde; só por fins de maio estarei aqui efetivo .
Sua conferência paulista é segredo mais impenetrável que os da
Esfinge e seu descendente Nilo. Xató tabuou - a no Jornal ; num suelto
de outra folha percebi o escândalo provocado pelo cotejo entre a valori
zação do café e as obras do Nordeste. Hoje fui com Moacir ao escritório
do Estado para ver se encontrávamos o número encantado que trouxe ou
deve ter trazido o verbo . Não o encontramos.
O primeiro volume do Tobias, que abarca a dissolução da Constituinte,
está concluído. Parece que Briguiet vai editá-lo. Ele pretende partir em
junho, para trabalhar com Bobói e Rangel em Eu. A obra é inédita,
deixa resolvidos muitos problemas. Acho-a fraca na parte narrativa.
Adeus, Sinhoca ! Abraço e beijo as mãos da saudosa amiga.
Idein , eadem, idem.
JoÃC NINGUÉM
Gigante de Pedra , 6 de abril de 1926 .
CARTAS A J. B. PANDIA CALÓGERAS 415

Xará amigo,
Escrevo-lhe do quarto aonde às 11 horas da noite deixou de existir
o bom Jaguaribe.
Ao chegar, achei - o bem disposto, estêve alegre no aniversário, que
reuniu toda a família , dias depois começou a tossir, era a bronco-pneumo
nia que se manifestava. A ela sucumbiu.
As relações de nossas famílias datam de quase cem anos. Eles são
de Icó, nós de Sobral : Maranguape nos reuniu. Jaguaribe podia deixar
uma fortuna enorme. Não a deixará, mas os dois filhos estão bem
encaminhados. Deixa uma chusma de maus livros . Uma vez disse-lhe :
vamos escolher dentre seus livros um , vamos revê -lo, consolidá -lo , será
sua mensagern . V. tem razão de se inquietar com suas provas.
Houve para isso dois motivos. O leitor comum nunca deixa de ler
o primeiro e o último capítulo. Li este com cuidados, mas não verifiquei
certas cousas. Segundo : uma operação diatérmica queimou-me por tal
modo que não posso escrever sentado. Estou melhor. Alvaro diz que
posso voltar para o Rio, mas só irei depois da missa de sétimo dia.
Acabo de ler sua entrevista sôbre a anistia. Acho - a acadêmica .
Você devia considerar em primeiro lugar se é estável , em outros têrmos :
se é possível obrigar o exército a bater-se pela legalidade.
Depois disto vem a parte prática, isto é, aplicada, de modo que não
seja uma recompensa nem um castigo.
Não sei que grego inventou a anistia : era um gênio e foi um benfeitor.
Admiro também os inventores da prescrição e do mandado.
Adeus, Sinhoca !
Ergebenst,
JOÃO NINGUÉM
São Paulo, 15/16 de novembro de 1926 .

Xara ,

Com sua carta de 2, incluindo outras, vieram um número do The Na


tion, outro do Catálogo de Magis. São as primeiras cousas recebidas do
Rio , desde que de la parti a 24 de agosto. Muito curtos são os raios da
civilização, que não ultrapassam o Largo dos Leões.
As 272 passa o trem, vindo da Paulicéia com os jornais. Tenho
comprado o Correio da Manhã e o Jornal. Li o caso do Supremo Tribunal,
416 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

o ostensivo ; imagino o resto. E nada se fará, e só fica de pé o atestado


de conduta passado pelo Afonso Pena Júnior aos felizardos. Beati
possidentes !
Parece não tardará o começo da débâcle. Café a 30 e tantos mil-réis !
E não é só isso . Com a valorização paulista, a plantação tornou-se pos
sível em outros países ... e teremos a repetição da borracha.
E o povo brasileiro gaba-se de inteligente... melhor lhe cabe o
epíteto de ladino.
Pelos sumários, vejo que no Jornal do Comércio vejo [ sic] que
Rangel publicou um ou mais artigos sobre a missão Stuart.
Já V. tem alguma cousa para ruminar. Parece-me, porém , que Rangel
é muito antipático aos inglêses e não se esforçará por psicologar.
[ s. d . 1926 ).

Xara,

Creio que na página 70 acabam as provas que tenho aqui.


Peço leia as provas do Eugênio de Castro, que devem figurar no
Diário de Pero Lopes.
O livro de Frederico deve ser lido do fim para o princípio, da última
secção para a primeira.
Vou à Gávea às 4 horas, para o aniversário do Brandão.
Se quiser mandar cartão, levarei.
Quinta, 3 de fevereiro de 1927 .

Xará,

Estou quase no fim da viagem .


Sem levar em conta os bendegós sempre possíveis e raras vezes ausen
tes, aí estarei sábado, 15 .
Bebi bastante água, e restitui- a com juros, fartei-me da comida
mineira.
Do Hotel da Estação, que tomei, é proprietário um amigo do Aprigio.
Resumirei tudo, dizendo que não me deixou saudades do Correia Nunes,
CARTAS A J. B. PANDIÁ CALÓGERAS 417

hóspedes burgueses desemproados, nem roleta, nem grandes uniformes, nem


subscrições, nem piqueniques marcados por moças pouco educadas, que
para as despesas não entram com um vintém. Também nestes fins de
estação já declinou o andaço.
Fui a Machado ver Matilde. Estrada de ferro até Pontalete, ajoujo
para passar o Sapucaí, cinqüenta e quatro quilômetros de automóvel.
Correu tudo bem : como desejava, sumiram-me paca e cotia ; pela primeira
vez vi e provei dourado : bem gostoso, mas dizem levam -lhe vantagem o
mandi e o piracanjuba. Ficarão para outra vez com o tatu, que desta es
capou depois de pêgo, como diz -se por lá.
Adeus, Sinhoca ! Abraço e beijo as mãos da saudosa amiga.
Abraços de
JoÃO NINGUÉM
S. Lourenço , 8 de maio ( 1927 ).

30 1.•
A ARROJADO LISBOA 1911-1924

Já está acabado quase o primeiro volume do Spencer.


Veja se me pode mandar o segundo. Não seria mau se me enviasse
também o vol. do Museu Paulista, com o artigo sobre Juruá.
Quando segue para a Terra da Luz o nosso Maneco ?
Meu trabalho marcha.
No dia 31 pretendo seguir para Petrópolis : na barca nos encon
traremos.
Saudades do seu
C. DE ABREU
Paraíso, 16 de janeiro de 1910.

Caro Miguel,
Muita curiosidade sinto de conhecer o que se trama contra o Sá.
Mas não irei amanhã à Inspetoria. Preciso de passar alguns dias só .
Ontem só sai para evitar um encontro que nunca me agradou e agora
me exacerba.
Estou deixando que o incêndio lavre com toda a fôrça, para não ter
depois de encoivarar. Creio que o escândalo levantado à roda do nosso
amigo é uma diversão para os horrores da Ilha das Cobras. E conseguirão
com certeza. O termômetro da dignidade poucos graus vai acima de
zero ; mas abaixo a graduação não tem fim .
Falaste com Bulhões ? Escrevi -lhe, não sei se terá recebido a carta.
CAP.
Rio, 13 de janeiro de 1911 .
CARTAS A ARROJADO LISBOA 419

Miguel,
Soube ontem alguma cousa de sólido a respeito do Sá sólido no
sentido de ser bem informada a pessoa com quem falei. Houve um tele
grama da Europa , mandado não sei por quem a quem .
Vanerven, diretor do Telégrafo, e hoje inimigo rancoroso do Sá,
comunicou - o a Seabra. Será o mesmo do Jornal ? Ignoro : em todo caso
parece certo que o Jornal, da Europa nada recebeu de seu correspondente;
e a recusa de apresentar o autógrafo é pelo menos suspeita.
Outro escândalo preparado : na minuta do contrato baiano, lê-se que
foi lavrado à vista da certidão do Tesouro de ter sido feito o depósito de
200 contos . Entretanto prova -se por documento que a entrada foi poste
rior à assinatura.
Peço-te que com Bulhões e o cunhado dês um corte à meada do
Navarro.
Ando aborrecido da rua, só me sinto bem em casa, donde saio apenas
para evitar certos encontros desagradáveis em casa de minha sogra.
O livro viria bem , agora , a propósito, coma diversão ; pois o caxinauá
está -me entediando e preciso de me interessar por uma cousa qualquer.
CAP.
Rio, 13 de janeiro de 1911 .

Miguel,
Peço indagues de teu cunhado quem é o autor do Vocabulário Piro
- se é um volume grande, ou pequeno, como de Allemani sôbre a lingua
de sipibo bolsillo .
Procurei-te há dois dias. Visage de bois ?
Tens um dia certo para ficar em Petrópolis ? Assim pouparia o tra
balho da ascensão.
Respeitos à Madame.
C.
Rio, 4 de fevereiro de 1911 .

Caro Miguel,
Li no Jornal a notícia da não -demissão do Pinto.
Tem-me dado que pensar. Será o começo da traição anunciada pelo
José Carlos ? Será o primeiro toque, antes da investida do Piquet ?
420 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Depois lembrei-me que bem poderia ter sido feito de acordo contigo,
fiquei mais consolado. Neste caso será antes um obstáculo que Piquet
teria de arredar.
Tenho, passado bem . A temperatura se conservou agradável até
5.a ; 6.2 houve um pouco de calor e trovoadas à distância ; ontem choveu,
hoje está nublado e frio. Sentiu-se com isto Matilde, que assim não pôde
fazer seu exercício de equitação. Vai bem encaminhada. Desta vez os
nervos deixaram -na sossegada. O sangue cearense afirmou-se.
Não pude, como desejava, procurar teu cunhado no domingo. Quando
é a partida ? Desejo algumas informações. E como vai para Viena,
preciso de falar com Manuel Cícero , para ver se o encarrega de obter
cópia da correspondência do Barão de Mareshall, diplomata austríaco que
aqui estêve muitos anos com o rei e com o primeiro imperador. Segundo
Varnhagen , é documento capital para a história do tempo.
Pretendo partir sábado e, se tomar a Leopoldina, pernoitarei em Pe
trópolis, e descerei no trem de 7 72 : assim nosso próximo encontro será
no Rio .
Dirijo-te esta carta para a repartição. Se puderes, manda pedir
provas na Imprensa Nacional, e manda- as no envelope em que vierem, mas
não fechadas , para aqui.
Respeitos à Madame.
Teu,
C.
Paraiso , 9 de abril de 1911 .

Miguel,
Soube por uma carta de Abril que chegaste no mesmo dia de minha
partida.
Não podia te esperar, porque Vicente, o indio que está nos Bombeiros,
queria assistir à festa de Santana, a 30, e a maior licença concedida foi
de um mês.
Estou trabalhando na revisão dos textos impressos e na correção do
vocabulário. Duvido que leve tudo terminado.
Tenho curiosidade de saber as cousas da Bahia, conquanto não possam
diferir muito do que me disse quem lá não estêve, mas dispõe de bons
meios de informação: recepção, se não entusiasta, cordial e unânime do
Hermes, reserva da maioria quanto ao Aperiatur. Este, repito, devia ser
CARTAS A ARROJADO LISBOA 421

engenheiro, porque conhece a resistência dos materiais : não sairá eleito,


mas entrará governador.
Obrigado pela manta de carne. E as petitingas ?
Respeitos à M.me ; lembrança a Maneco. Até o fim do corrente.
Bien à toi,
Cap.
Paraíso, 11 de agosto de 1911 .

Caro Miguel ,
Tive uma surpresa das mais agradáveis, lendo agora que chegaste,
ontem, no inglês. Tendo saído do Ceará a 4, chegado a Natal a 6, imagi
nava que demorarias mais uns cinco ou seis dias.
Meu prazer é diminuído pelo reumatismo que me prende a casa :
um reumatismozinho manso, que só dói quando me movo, e está localizado
no pé esquerdo, mas suficiente para imobilizar-me.
Quando tiver habeas-corpus, aparecerei.
Desejo que tenhas feito boa viagem, achado bem encaminhadas as
cousas, de modo a ter confiança no êxito de teus planos, e adiantado o
Inagnum opus.
Respeitos à Madame.
Teu,
CAP.
Rio, 13 de novembro de 1911 .

Miguel,
O homem está pronto a seguir ao primeiro aceno.
É preciso que dês instruções minuciosas : o número de animais, e
se queres cavalos ou burros ; se nos arreios encomendados em S. Paulo
entram cangalhas e cabrestos e caçuas ou jacás ; se convém preparar a
carne logo em Juazeiro ; creio que café, sal, feijão, farinha, melhor iriam
daqui do que comprados lá, e em todo caso isto não é da conta dele.
Nunca te julgues incapaz de roubar : roubei -te uma faca de marfim
para cortar papel: entreguei-a ao Aires, que a mandará pelo primeiro
portador.
422 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Vim agora da Agricultura, onde fui procurar Derby. Diz ele que
precisa de uma conferência longa, não sei sobre quê. Marquei o encontro
para amanhã ao almoço, no Hotel dos Estrangeiros.
Bien à toi,

Rio, 19 de fevereiro de 1912 .

Nome do meu parente : Jerônimo de Abreu Mota .

Meu caro Miguel,

Que tenhas feito ótima viagem com a ex.ma família é o meu desejo.
Que tenhas encontrado meio simpático e te sintas bem , é o meu
desejo e a minha esperança.
Por aqui, a única novidade já conheces pelo telégrafo.
Pente Fino sujeitou H. a injeções de cantárida durante cinco dias,
em sua fazenda da Boavista, depois despachou -lhe dois ministros como
apalpadeiras, para usar a expressão das fidalgas portuguêsas do tempo de
D. Carlos, e o homem teve coragem , e o detestado Mena lá se foi.
Ainda desta vez nada te mando ; não é só a impenetrabilidade da
matéria que me estorva, é também a dificuldade da questão : repetir
Ehrenreich, quando tem havido não poucas cousas depois, é desagradável ;
incorporar as novidades, aqui , é impossível. Tenho de ficar em posição
média, isto é, falsa.
No próximo vapor irá cópia de meu artigo sobre os bacairis, que
Valfrido receberá hoje. Mandarei então o que puder.
O livro que te encomendei é :
J. Amich , Compendio Histórico de los Trabajos, Fatigas, Sudores
y Muertes que los Ministros de la Seráfica Religión han padecido por
la Conversión de las Almas de los Gentiles, en las Montañas de los Andes,
Paris , 1854.
Não deve ser raro ; a questão é encontrar o nome do editor. Na Bib.
Nat., para onde vão todos os livros impressos em França, no Dufossé ou
Chadenat, terás informação.
CARTAS A ARROJADO LISBOA 423

Meu trabalho caminha rápido, espero ainda terminá -lo com o mês,
porém , às vezes, desanimo : durante mais de três horas não revi hoje
mais de quatro páginas.
Meus respeitos à ex.ma família .
Bien à toi ,
C.
Rio, 2 de abril de 1912.

Caro Miguel ,

Deliciava-me na esperança de abraçar-te dentro de mês e meio,


quando, haverá meia hora, Aires desenganou -me: não estarás aqui senão
lá para novembro .
Penso como ele que não refletiste bem . A Inspetoria conta bastantes
inimigos Piquet, Gastão, Pinto, Baeta e outros referidos no Novo
Método, sem falar no velho Moura, que queria decapitá - la com o ascenso
do incorrigível maréchal-ferrant. Junta a isto que não conheces o mi
nistro, nem o ministro te conhece. Um jornal já disse que a repartição
está acéfala. Sei que tens outros meios de vida, mas não se trata de ti,
trata - se da obra que criaste, que bem pode periclitar.
Se curtires bem o caso , bem poderás achar uma solução capaz de
satisfazer às exigência do Azeredo no incidente dos treze generais
inesperadas.
Queres notícias da política do Ceará ? Os Borges, Bezerril, julgaram
Acioli morto, enterrado, e escoucearam -no a valer. O maréchal-ferrant
lembrou Moura Brasil, os dois presidentes soi- disant eleitos renunciaram ,
e Franco Rabelo concentrou em si toda a indignação disponível ainda na
terra dos verdes mares bravios : queimaram-lhe os retratos, etc. Moura,
por fim, recusou o presente grego, e o homem de espada virgem , mas de
farda suja, deu-se ares de Pilatos e declarou -se indiferente a qualquer
desfecho .
Com a desistência, Franco Rabelo ficará de proa bem amolgada entre
seus adeptos. Onça procurou Sá, começaram as conversas; resultado : um
codilho em Bezerril e seqüela. A assembléia estadual reconheceu o Rabelo
com falta de número e os matadores do costume. Muitos dos amigos de
Acioli, e da gente mais séria, recusaram o conchavo, mas seu Rabelo lá
está governando, e os refratários vão cedendo e diminuindo.
424 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRÁNO DE ABREU

Dizes que Pierre Dénis tem o dom da adivinhação. Seria o caso de


pores em atividade o telefunken e perguntar -lhe com urgência o que o
Babaquara comprou e vendeu afinal.
Meu trabalho continua : recebi hoje impressa a pág. 256 , um têrço
aproximadamente. Estava trabalhando desesperadamente para acompa
nhar-te ao Norte, em setembro. Não sei se então estará concluído ; se não
estiver, desisto de acompanhar-te : preciso, antes de tudo, de atirar fora
esta brasa da mão.
Sabes como o Flauta estragou os colis postais. Um juiz acaba de
condenar todos os empregados do correio ; deixou livre só a ele, por
prescritas as acusações de que foi objeto. Acabo de ler nos jornais da
tarde que pediu garantias à polícia, porque os antigos colegas querem
matá - lo. Bem feito.
Mas não é para te dar notícias do Secretário Perpétuo que estou
tomando teu tempo.
0
Não há meio de receber no correio livro que não venha com
endereço no subscrito. Quanto a encomendas...
Por isso peço -te que com toda a urgência mandes aqui, para a Rua
D. Luísa, 145 :
W. Wundt, Elemente der Völkerpsychologie, Leipzig, Alfred Kröner.
Naturalmente seria melhor que viesse já encadernado, mas se isto
importar demora, venha mesmo em brochura. Antes do consulado do
Flauta, recebiam - se aqui livros da Alemanha com quarenta dias : experi
menta se só Briguiet é capaz de tais áfricas.
Mandei pôr no correio um livro de um patrício sobre cousas do Ceará.
Guarda para lê-lo a bordo, lentamente, aos goles : lucrarás.
Respeitos à Madame, cafunés na meninada, rasgados cumprimentos ao
Conselheiro .
Bien à toi,
C.
Rio, 29 de junho de 1912.

Feital, um dos renitentes ao conchavo, acaba de ser demitido das águas.

Caro Miguel ,
Os apedidos do Jornal de hoje trazem uma transcrição da folha
mineira, dizendo que fizeste operações vantajosas para as Docas da Bahia .
Podes adivinhar de onde partiu a pedrada.
CARTAS A ARROJADO LISBOA 425

Senti muito tua resolução, tanto mais quanto, dias antes, ontem [ ?]
Elói assegurou -me achar- se tudo sanado.
Consta-me que prestou um bom serviço : arredou a candidatura de
Piquet, mais uma levantada bem sabes por quem .
De teu telegrama concluo que só voltarás depois de ir ao Egito, isto
é, em novembro.
Meu trabalho caminha : amanhã darei os originais do penúltimo capi
tulo. Vou agora rever e acrescentar o vocabulário : espero acabar dentro
de poucos dias .
A gramática me esmorece, e ainda não me animei a arrostá-la, mas
tomei contra ela as necessárias precauções: há de caber no leito procústeo
de trinta e duas páginas : em começo de outubro tenciono ir ao Paraíso,
aonde ficarei até chegares.
Respeitos à Madame.
Teu,
C.
Rio, 20 de agosto de 1912.

Caro Miguel,

Ontem, pela primeira vez depois de tua partida, conversei um pouco


mais demoradamente na Inspetoria.
Hermes disse a Aires: tu procuraste - o uma vez, a negócio da repar
tição, prometeste um relatório ou uma conferência ; não fizeste uma cousa
nem outra ; só lhe apareceste de novo para sair do Brasil ; estranhou, não
podia deixar de estranhar teu procedimento. A grande acusação levantada
contra ti consiste no excesso do pessoal. Veio do Ceará uma lista , orga
nizada pelo Camocim , que foi dar a palácio e pareceu escandalosa. Aires
explicou que o aumento do pessoal decorria do aumento da verba :
explicou como os diferentes empregados estavam em lugares diversos,
com incumbências discriminadas e levou uma lista com 0
nome, a
residência, a incumbência, o ordenado de cada um. Se a verba fosse
maior, acrescentou, o pessoal ( seria ] ainda maior ; podiamos fazer mais
serviço, em menos tempo. Uma ou outra vez tem-se de fraquear. Veja
V. Ex.a esta carta do Dr. Moura Brasil, pedindo lugar para um protegido
e fazendo questão de que seja em Fortaleza ; não podíamos deixar de
servi- lo .
426 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

A demonstração calhou no bestunto presidencial; referindo-se a ela,


parece disse a Ferreira Chaves que a lista fôra organizada com má-fé.
Moura parece bater-se denodadamente por Piquet.
A Virgilio Brígido perguntou por que se atravessava no caminho.
Virgilio respondeu : Piquet é ignorante, neurastenico, incapaz de qualquer
trabalho mais prolongado. O verdadeiro motivo ele calou : Piquet está
inteiramente a serviço de Belisário Távora : como é o perito da Inspetoria,
João Brígido não poderia arranjar nenhum jornaleiro. Tenho ouvido que
o grande adversário de Piquet e Moura foi Elói. Obteve que as represen
tações dos Estados interessados se mantivessem unas do Piauí à Bahia e
até, ouvi dizer, parte de Minas.
Auxiliou-o neste empenho Félix Pacheco, de quem não sei bem o
papel. Nós somos setenta e dois, disse êle a alguém, e não transigimos :
como último recurso dividiremos os sete mil contos pelos estados : às
mãos de Piquet é que não irão.
Vi uma carta a Hermes, ' transmitida ao ministro da Viação, que
Valfrido me mostrou . O autor, Fuão Guimarães, muito teu conhecido,
recusa tais esbanjamentos: o Jornal do Comércio te defende por causa
dos milhares de contos que lhe deste a ganhar ; impõe-se a supressão da
terceira secção, etc.

O ministro continua a achar incompatível a Diretoria das Docas com


a Inspetoria das Secas.
Disse-me Aires que seu desejo e sua esperança consistem em continuar
interinamente até que possas reassumir o cargo .
Que esperanças há disto ?
Disse-me alguém, ao parecer bem informado, que o próximo 15 de
novembro verá grandes cousas. A atitude da carneirada mineira, onde
apenas Calógeras se insurge, será modificada ; as cousas tomarão forço
samente outro rumo.

Por um cartão de teu cunhado sei que devias ter embarcado em


Brindisi para Alexandria ; disse-me não sei quem que fizeste amizade em
Paris com um landlord egipcio, e que demorarias mais tempo pelas terras
nilóticas .

Esperava-te, pelo Arlanza, em princípios de novembro ; parece que só


então partirás, chegando pelo Araguaia.
CARTAS A ARROJADO LISBOA 427

Lastimo muito não ter informações de teu livro. Um telegrama do


Jornal parece implicar que já está impresso : por que não mandaste as
fôlhas [ ?] E a edição brasileira, por que não a propuseste a Rodrigues
para o Jornal?
Respeitos à ex.ma família.
Bien à toi,
CAP.
Rio , 1 de setembro de 1912.

Caro Miguel,
O livro chegou no prazo marcado e fico-te muito agradecido.
Não chegou a carta anunciada, o que deveras sinto. Desde que
saiste, tens sido verdadeiro Shylock quanto a notícias.
Pas de nouvelles, bonnes nouvelles só é verdade quanto a saúdes.
Quanto à obra que ias publicar, é falso : do teu silêncio só posso tirar
conclusões trisies.
Umas referências feitas no Jornal, quando se tratou da tua demissão,
mostram-se tão vagas que por elas não se pode fazer obra.
Vi há poucos dias Waring pela primeira vez . O trabalho dele não
está findo. Leuzinger disse que não podia começar, antes de acabar uma
encomenda do Ministério da Guerra, de grande urgência. Além disso,
tratando - se apenas de setenta e tantas páginas, em pouco daria conta.
Semana passada recebo uma nota de Valfrido dizendo que o homem
estava ansioso pelos originais. Mandei-o no dia seguinte, dizendo ao
mesmo tempo que, se quisesse confiá - lo a outro, não se incomodasse,
porque não me incomodava. Com tua saída perdera o gôsto.
Novo bilhete. Como já começara, devia acabar, mesmo porque a tra
dução estava magnífica. Mandasse o que estava feito. Com tua saída,
a amizade à minha pessoa era a mesma, na Inspetoria.
Respondi mandando o que tinha feito. Como deixara em branco
alguns têrmos, cuja significação não perguntara a Derby, não pusera as
notas de citações, não fizera a revisão final, e os originais não podiam
ir assim para a tipografia, e ficava provada a sua existência, pedi-lhe
devolvesse - os quando lhe parecesse .
É o estado da correspondência.
428 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Como creio outra carta não te alcançará mais, farei uma encomenda :
descobre-me o último porrete para ácido úrico. Ainda semana passada
o reumatismo no pé prendeu-me em casa . Creio que na próxima se
localizará no joelho.
Meu livro vai indo : para a semana, talvez mesmo esta, irão os últimos
originais.
Estão chamando para almoçar.
Respeitos à ex.ma.
Bien à toi,
Cap.
Rio, 17 de setembro de 1912.

Caro Miguel,
Ainda serás encontrado ? Parece que partirás para o fim do mês,
no mesmo vapor que Rodrigues: não estarás por aqui antes de mcado de
dezembro .
Conversei ontem com meu parente, que acompanhou a comissão de
Osvaldo Cruz .
Sairam de Petrolina, foram a S. Raimundo Nonato, estiveram em
Paranaguá. A água da lagoa é imprestável para a bebida. Havia uma
cacimba miserável, em que encher um pote exigia horas: ele fez uma
grande escavação, aprofundou -a, e deixou água em abundância. Entraram
em Goiás pelo Duro, foram a Amaro Leite, saíram na capital, donde
chegaram a Anhangüera.
Os burros foram comprados em Queimados, barato, trinta e tantos
burros por 7 contos, que resistiram a toda a viagem e ainda foram
vendidos em Goiás por 2 contos. Em Goiás contrataram uma tropa.
No princípio, ainda dêste lado do S. Francisco, houve um ligeiro
atrito com Belisário Pena, que chegou a dispensar-lhe os serviços. Neiva
ponderou que não podiam fazer isto, porque Jerônimo ia por parte da
inspetoria. Daí por diante puseram-no à margem, tomaram um capataz,
a quem tudo confiaram , até pegá-lo em ladroeira. Depois disto entre
garam -lhe a direção, e tudo correu pacificamente até o fim .
Da excursão veio grande material. Mataram muitas caças e a cata
gem cuidadosa revelou numerosos parasitas. No Piauí encontraram uma
água venenosa, conhecida como tal, tanto que está cercada : vieram gar
rafas para ser estudadas.
ARROJADO LISBOA
+

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CARTAS A ARROJADO LISBOA 429

Pena era sobretudo caçador e, como sobrinho de um ex-presidente,


parece possuía algumas das qualidades mais desagradáveis do tio. Por
fim chegou -se às boas.
Neiva, um grande trabalhador : não se limitou a colecionar ; mesmo
in loco procedia a estudos e perdia noites e dias no microscópio. Não se
preocupou em avolumar coleções : só trouxe cousas úteis, que lhe darão
trabalho para muito tempo.
Em suma, parece que o êxito foi completo.
Espero, antes do almoço, acabar a primeira revisão dos últimos textos
caxinauás : termino na frase 5804 ; tenho mais umas mil, mas é preciso
acabar : dá -las -ei só em português ; vou ativar a impressão e posso ficar
livre para a semana. Falta a revisão do vocabulário, que está a meio, e
a gramática, ainda por começar.
É a parte de maior responsabilidade ; para o fenômeno da incorporação
não disponho de subsídios ; um livro de Brinton, encomendado há tempos,
nunca chegou ; o American Anthropologist deste ano, que traz um artigo
sôbre o assunto, creio não existir no Rio ; terei assim de meter-me em
camisa de onze varas.
Lembra -te de meus Dois Depoimentos, no Jornal ?
Rodrigues, a quem falei a tiragem em separado, deu ordem para
cobrarem só o papel. Na esperança, felizmente realizada, de colher mais
material, deixei de parte a impressão. Há dias, procurando Rios, soube
que a composição fôra desmanchada.
À vista disto, tomei uma resolução enérgica. Pelo orçamento passado
fiquei com direito à gratificação adicional que o regulamento me negava.
Requeri-a, obtive -a, e tenho cinco contos de réis recolhidos no British !
Destinava parte desta quantia para nossa viagem ao norte, mas, sendo
ela impossível, à vista das ocorrências, vou ser meu editor. Darei um
volume com os artigos, mais o vocabulário, e uns desenhos originais do
Vicente, que ele fez em papel apropriado para a transposição litográfica.
Vou ver se obterei uns cantos fonografados que Alberto Nepomuceno
certamente não terá dúvida em musicar. Aproveitando a composição do
livro maior, darei também o vocabulário . Assim o volume terá pouco
mais ou menos duzentas páginas : farei uma edição de cinco mil exemplares,
vendidos a 3$. Que perspectiva ! Como vês, não se extinguiu a raça de
Perrete e de la laitière et le pot au lait.
Há dois dias, estando com Elpídio, contou-me que Derby anda em
novas dificuldades com seu ministério. Um Otaviano Barreto, a quem
430 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

suspendera, deu queixa contra ele. O ministro nomeou uma comissão de


inquérito, composta, ao que parece, de gente imparcial.
Disse-me Elpidio que as acusações são fúteis ou falsas.
O ministro declarou que demitiria quem o inquérito provasse cul
pado. Ele não tem dúvida quanto ao resultado.
No mesmo vapor que esta, seguem alguns médicos que vão estudar
na Europa.
Um deles é David, sobrinho do Sá : creio que o conheces. À inte
ligência comum aos Sá reúne qualidades que o tornam muito estimável.
Moramos juntos, muito tempo, e conheço-o bem .
Como vão para uma pensão já tomada, enviar-te-ei o endereço em
cartão -postal. Como tens relações em rodas científicas, poderás talvez ser
lhe útil . Procura - o, se puderes : manda - lhe um petit-bleu.
A inauguração da E. F. Goiás, marcada para 15 de novembro, foi
adiada para fevereiro : assim não irei agora a S. Paulo.
Passei três dias deliciosos na Gávea, na ex - chácara Ferreira Viana.
Gostei tanto que estou decidido a lá fazer uma novena mensalmente : a
despesa, que calculo em 100 $ , quero ver se a custeio com o Jornal.
Respeitos à ex.ma sr.a, cafunés na pequenada.
Bien à toi,
C.
Rio , 28 de outubro de 1912.

Caro Miguel,

Estive há dias com Calógeras. Disse-lhe parecia que Lira, Wen


ceslau et reliqua não andam muito corretos contigo : a chamada carta
branca parece está perdendo as cores.
Assegurou -me do contrário ; continuas com a mesma força e disto
terás prova quando fôr necessário. Ainda bem .
Fui ontem à Germânia e o bibliotecário reclama o livro de Hayd,
por ter passado o prazo. Peço -te o remetas diretamente para a Praia
do Flamengo, 132 : a melhor hora é de 3 às 6.
Quando é a excursão a S. Paulo ?
Ontem telefonou -se para a casa do Sá, e D. Olga respondeu que
ainda não sabem para onde irão : só ficará decidido depois da visita
a uma fazenda, na próxima semana .
CARTAS A ARROJADO LISBOA 431

Estou à espera da carta do Jaguaribe, para ver se vale a pena


tornar aos Campos-do -Jordão.
Respeitos à ex.ma.
Bien à toi,
C.
Rio , 2 de fevereiro de 1915.

Miguel ,
Encontrei-me ontem com Pires do Rio, e ficou de combinar um
almoço. Ontem, porém , não desceste, e como só tenho o tempo disponi
vel até sábado, é provável que não nos encontremos antes da partida.
Vou com Calógeras. A viagem está combinada de modo a chegar
mos de volta no dia 29. Quem sabe lá ?
E quando é a tão falada excursão de Minas, até além -Pirapora ?
Se fôr no princípio do mês, sou candidato. Não tenho pressa em par
tir para o Rio Grande do Sul, aonde, segundo dizem, o melhor tempo
é o veranico de maio.
Tenho dois pedidos, que repito : um é o de meu cunhado Joaquim
de Castro Fonseca ; o outro é de Luís A. de Portela.
Não os esqueças.
Respeitos à ex.ma família .
Bien à toi,
C.
Rio, 18 de março de 1915.

Miguel,

Felício Brandão Júnior, agente do consumo em Rio Bonito e Ca


pivari, poucos dias depois de casado, foi demitido do emprego, por não
ter apresentado relatório em tempo. O relatório entrou para o Tesouro
no mesmo dia em que a demissão saiu no Diário Oficial.
Virgilio Brígido, cunhado dêle, procurou Sabino e mostrou que,
pelo regulamento, o caso era de multa, não de demissão. Sabino ouviu - o
benévolamente, e contávamos como certo que o despacho seria favorável.
Infelizmente a moléstia atrapalhou tudo. Exercendo Calogeras interi
432 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

namente o lugar, mostrei-lhe, com documentos, que Felício Brandão fóra


bom empregado ; quanto a suas qualidades, poderia atestá-las eu, porque,
quase todo o tempo que gastei no estudo da uma lingua de bugres, passei
na fazenda do Paraíso, de que ele era administrador, e esta larga con
vivência mostrou-me o muito que vale. Bom ou ruim , o livro deve-se
a ele. Calogeras estudou e viu que não projeto contrabando ; mas não
quer desfazer ato do proprietáiro da pasta.
À vista disto, foi ontem mandado um portador a Sabino com uma
carta de Virgilio, naturalmente repetindo o que ai fica. Acabo de ler
a resposta : o ministro diz que, se estiver com Calógeras, tratará do
assunto.
Como és amigo de Sabino, peço lhe escrevas, pedindo -lhe que te
autorize a dizer a Calógeras que não se opõe a que a demissão seja trans
formada em multa e se faça a reintegração.
O caso é simples, e é urgente : trata -se de modificar o serviço e,
não estando reintegrado Felicinho, não poderá continuar.
Dize a Sabino que abra mão do triste presente de noivado !
Respeitos à senhora, cafunés na meninada.
Bien à toi,
CAP.

Rio, 12 de junho de 1915 .


Se possível, escreve hoje mesmo.

Miguel,
Resolvi partir para o Rio Grande, fazer a Assis Brasil a viagem
prometida em 80 , há mais de trinta e cinco anos. Já encomendei passa
gem no Itapaci, que parte a 5 e chega a Pelotas a 14. Irei tocando nos
portos intermediários, fazendo école buissonnière, como verdadeiro estu
dante cábula. Levo passagem de ida e volta ; vou portanto habilitado a
demorar, se me aprouver, ou vir no primeiro vapor, se a música não
me agradar.
Será possível arranjar com Teixeira Soares um passe para as estra
das em que ele manda ? Gostaria, se pudesse, ver mais do estado do
que Rio Grande, Pelotas, Pedras Altas e Bagé. O passe poderia ser
para o 1.º semestre, porque antes de julho aqui estarei com certeza .
CARTAS A ARROJADO LISBOA 433

Se não nos virmos mais, aí vai o abraço de despedida.


Respeitos à sr.a
Bien à toi,
C.
Rio, 1 de janeiro de 1916.
Boas saídas, melhores entradas.

Miguel,
Parti a 5 e ainda vou navegando. Não me queixo; passo em terra
melhor que no mar, mas não enjôo, não me aborreço e não tenho
pressa de chegar.
Das vilas e cidades que passamos, apenas visitei Santos, Itaguaí, Des
têrro ; das outras contentei-me com avistar o renque de casas que acom
panham a praia.
Não sei se encontrarei, depois de amanhã, em Pedras Altas, o passe
que te pedi. Bulhões, não encontrando Soares, arranjou uma carta de
Oliveira Castro, tratando -me por Conselheiro, e pedindo-me concedesse
passagem de Pelotas para Pedras Altas : tem graça ; deixei-a em casa.
Minha passagem é válida por três meses e pode ser revalidada. Meu
desejo é demorar o mais possível, sobretudo se o passe chegar e puder
viajar pelo Estado .
Desembarcando em Desterro comprei um jornal e li a demissão
de Enes de Sousa. Calógeras é homem de coragem.
Respeitos à senhora.
Um abraço do amigo,
C.
Bordo do Itapaci, 13 de janeiro de 1916.

Miguel amigo,
Desde segunda- feira, 28, estou no Rio Novo, fazenda próxima de
Paraíba, aonde vim descansar alguns dias em casa de um amigo. Amanhã
pretendo dormir em Petrópolis, e 6.a chegar ao Rio.
Aqui apenas penetra o Correio da Manhã , e não todos os dias. Do
número de domingo, último recebido, concluo que não produziu grande
efeito o relatório da Comissão. Será efeito de leitura ligeira ? haverá
ainda outro relatório ?

31 - 1.0
434 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Pensando sobre teu caso : entendo que a tudo deves preferir a confec
ção de teu relatório : disseste-me que podias ultimá - lo em poucos dias :
houve tempo de sobra. Em seguida, apenas chegar Silva Freire, exige
as informações oficiais e publica -as sem demora. Parte em seguida para
Belo Horizonte : se Delfim te der alguma prova especial de apreço, conso
lidará tua posição. Rio Grande pode esperar.
Já pensaste no Carlos José Veríssimo ? Abril pede para lembrar- te
Diocleciano Fernando dos Santos, candidato, digo, pretendente a escritu
rário, que foi dispensado de telegrafista por falta de verba e está pre
parado a entrar em concurso , caso haja , no antigo feudo do Antunes.
Respeitos à senhora.
Teu ,
C.
Rio Novo, 5 de setembro de 1916.

Caro Miguel,

Cheguei têrça, comecei quarta a freqüentar a biblioteca de Eduardo


Prado, diàriamente, das 12 às 4. Vou a pé, porque a distância da Rua
Jaguaribe à do Visconde do Rio Branco é pequena e com bondes não
me entendo .

O livro que principalmente moveu -me à viagem documenta um pe


ríodo inteiramente desconhecido. É interessante, contém muitas novidades
de pouco vulto ; consta de cartas régias, em resposta às do governador :
naturalmente eu preferiria estas, mas lorsqu'on [ n '] a pas ce qu'on aime,
il faut aimer ce qu'on a.
Pretendo este mês ler só cousas paulistas ou conexas. Ontem en
contrei o seguinte, sõbre dragas pré-históricas:
A pouca distância desta vila corre o rio das Mortes, cujo fundo
se sabe que em muitas paragens é empedrado de ouro e dêle se tirava
o que a boamente podia trazer um negro de mergulho, arranhando com
um almocafre enquanto lhe durava o fôlego ; agora, com novo artificio,
se tira em canoas, com umas grandes colheres de ferro, quase de forma
de um murrião, com um saco de pano pendente da parte convexa, e inse
ridas em uma hástea comprida de pau , e com sarilhos em terra, para
CARTAS A ARROJADO LISBOA 435

puxarem pelas colheres, que se cravam no fundo e tiram lôdo, areia


e pedras, as que possivelmente sofrem os cabos com que se puxam .
Jaguaribe faz anos no dia 2 de novembro : não sairei antes.
Se arranjar passe, pretendo visitar o salto de Urubupungá.
Respeitos à ex.ma família..
Saudades a Maneco ; se vier aqui, procure -me aqui , Rua Jaguaribe,
27, antes das 11 e depois das 5 , ou na Rua Visconde do Rio Branco,
96, de meio - dia às 4.
Bien à toi,
Cap.
S. Paulo, 10 de outubro de 1916.

Caro Miguel,
Foi para mim surpresa dolorosa o telegrama da morte da tua
boa mãe.
Julgava-a apenas doente dos olhos.
Peço-te aceites minhas sinceras condolências com tuas irmãs e o
querido Maneco.
Bien à toi,
C.
S. Paulo, 20 de outubro de 1916.

Miguel,
Pus ontem as provas registradas no Correio. Algumas emendas vi
sam apenas provocar- te a dar expressão mais clara às idéias. No prin
cípio há um trecho que me pareceu deslocado ; no fim acho melhor que
comeces as conclusões em página nova. Apresentei um título ligeiramente
diferente. Estando teu nome na fôlha de rosto, não precisa voltar como
assinatura .
Jaguaribe vai escrever-te sobre a venda das terras. Lembrei - lhe o
nome de Maneco, menos ocupado, e que poderá fazer muito para se al
cançar uma boa solução.
Tenho ainda esta semana para estudar. Para depois de amanhã
está marcada uma excursão a Itanhaém , mas receio que não se realize,
porque a chuva está começando e pode durar até lá.
436 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Acabo de escrever a Antônio Penido, pedindo passe ; se vier, irei a


Ribeirão Preto e Igarapava. Pretendo sair para o Rio sábado, 11 ,
no noturno ; talvez vá no de luxo, para acompanhar uma sobrinha do
Jaguaribe e do Eduardo Ramos.
Agradeço a D. Herminia o amável cartão ; quis telegrafar-lhe, mas
faltou - me a coragem .
Li , reli tua dolorosa carta : ao menos o passado não nos pode ser
roubado .
Bien à toi,
C.
S. Paulo, 30 de outubro de 1916.

Miguel,
Vou pôr as provas no correio.
Pág. 11 : o primeiro período é de conserto difícil. O segundo pode
ria ser eliminado. Talvez o melhor fosse suprimir as doze linhas, se dai
não resultasse hiato .

Poderia ser transformado assim o primeiro. Nem sempre a von


tade ou o desejo resolvem as dificuldades : o efeito aparente pode lison
jear a fantasia, mas a realidade, em vez de resultados práticos, só apura
desenganos.
No dia 1 fomos de automóvel desde Santos até Itanhaém . Fiquei
assim conhecendo as famosas dez léguas de praia , tão dura hoje como
há quatrocentos anos e que dir-se- ia idealmente asfaltada.
Depois de amanhã voltaremos a Santos, aonde Júlio Conceição quer
oferecer-nos um almoço de peixe na praia : o cozinheiro e a adega são
famosos. Eu já o conhecia por intermédio do Martim Francisco e de
correspondência : deixou -me impressão muito agradável.
Ao chegar, encontrei um passe da Mogiana, válido até 31 de dezembro,
com direito a cama. O Penido sabe fazer as cousas. Em carta lembra
nie
a conveniência de ir até Catatalão [ sic, por Catalão ). Nesta não
caio eu : há lá um tutu formidável. Em todo caso distribuí meu tempo
de outro modo.
No dia 11 parto para Ribeirão Preto . Lá verei o melhor meio de
chegar a Uberaba pelo ramal de Igarapava, que não conheço. Pretendo
passar o dia 15 em Ribeirão Preto. Assim tens os dados para calcular
437
CARTAS A ARROJADO LISBOA

teu programa. Em Uberaba só dormirei se encontrar Alexandre Barbosa


e não houver noturno. Em Ribeirão Prêto posso demorar tanto um dia
como dois ou três . Posso até dar um pulo a Caldas para ao menos
uma vez renovar conhecimento com o Macaco.
Respeitos a sr.4, saudades a Maneco .
Bien à toi,
C.
S. Paulo, 3 de novembro de 1916.

Miguel ,
Amanhã pretendo tomar o noturno para Ribeirão Preto, aonde vou
visitar um aparentado. Segunda -feira devo estar de volta. No dia 16
espero chegar ao Rio. Poderá tua inspeção caber nestes limites ? Dese
jaria muito .
Todo o tempo passado aqui consagrei a S. Paulo. Agora preciso
de ver outras cousas .
Respeitos à senhora, saudades a Maneco.
Bien à toi,
Cap .
S. Paulo , 9 de novembro de 1916.
A sobrinha do Jaguaribe voltou no dia 6.

Miguel,
A princesa alemã teve um acesso de hilaridade, ouvindo a história de
uma família que morrera à fome. Que gente tôla ! disse, às gargalhadas ;
pois há cousa mais fácil que comer ?
O caso vem a propósito da promessa feita a Jerônimo de manjá -lo
2.a feira, 18 do corrente : 2.a feira, 18 de dezembro ! 18 ! 18 !
Até para o Natal , talvez.

Rio , 16 de dezembro de 1916.

Miguel,
Roeste -me a corda ? Hoje, quando julgava Jerônimo velho em Mi
nas, soube que ainda não adiantara do amanhã ,
438 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Pretendia ir a Petrópolis passar dia de sábado e domingo, mas,


à vista disto, mudei de resolução. Freio morde- se em casa ; é o único
meio dos estranhos não se rirem das caretas.
Gostei muito do relatório do Calogeras.
O teu quando vira à luz ?
Respeitos à ex.ma.
Bien à toi,
C.

Rio, 4 de janeiro de 1917.

Miguel amigo,
Teu silêncio trazia -me inquieto ; receava que qualquer cousa de mi
nha carta te houvesse desagradado.
Sobre os motivos de tua saída interroguei Calogeras. Respondeu que
ultimamente não conversara contigo e não estava bem a par dos porme
nores . Ontem Chiquito me afirmou o contrário. Não é à toa que mi
nistro começa por minus; eu felizmente sou magister. Sinhoca disse-me
anteontem que bem podias ter esperado alguns dias.
Quando correu a notícia da nomeação de Aguiar, a primeira mani
festação que tive foi um abraço efusivo de Antunes, meu discípulo há
quarenta anos. Achei isto humano e, além do contentamento, nada notei
de odioso ou triunfante.
Fui à Central procurar Batista para falar sôbre meu parente e, sem
esperar, deparei com Aguiar. Abracei - o, dei-lhe os parabéns. Você tam
bém ? disse -me: Lulu tem dúvidas se o caso é para tanto . Quis levar -me
para Petrópolis para dormir no fresco e jantarmos juntos. Escusei-me;
nestes primeiros tempos prefiro não estar nem contigo nem com ele.
Calógeras e Chiquito falam na reação que estão fazendo contra ti . Ainda
ontem Chiquito referiu -se ao balanço a que se vai proceder. Protestei :
o balanço é a melhor garantia para ambos. Sabes como os jornais espe
culam e intrigam . Teus atos mais inocentes, contra tuas intenções, eram
apresentados como bofetadas a Frontin . Tens ainda de apresentar rela
tório ; agora é preciso amortecer as côres e não demorar muito.
Se para tua demissão concorreu a multa do Zozimo, dá-se um caso
interessante. Calogeras quer resgatar as Sabinas e, para a operação,
Zozimo é peca essencial, e mostrou -se irredutível. Calógeras apelou para
Frontin , que lhe disse ter contra ele grandes queixas, por tua causa,
CARTAS A ARROJADO LISBOA 439

mas desde logo começou a agir patriótica e eficazmente. Chiquito infor


mou -me que oitenta por cento dos sabineiros estão dispostos a satisfazer,
digo, a aceitar o acórdo, em que o ministro está muito empenhado, con
siderando - o verdadeira vitória, que há de impressionar favorávelmente a
opinião e a Câmara.
Se isto consolidará a posição de Calógeras junto ao Wenceslau, igno
ro ; ignoro mesmo se isto é conveniente ; estou achando - o muito intoxicado.
Uma versão que correu sõbre o motivo de tua saída : Bias escreveu-te
pedindo qualquer cousa. Respondeste que o caso era político e não fazias
política. Minas retirou -te o apoio e caíste.
Creio que não desceste ontem . Tua carta só recebi à noite, mas
estive no Briguiet e depois na venda da esquina tomando limonada com
Said Ali até 412
Desde o começo do ano ando ocupado com uma questão de moeda
antiga de S. Paulo : esta semana espero concluir as pesquisas e começar
o artigo que destino à Revista do Brasil.
Sexta-feira, 23, pretendo tomar o trem para Morro Azul. Por que
não faremos a viagem de companhia ?
Respeitos à ex.ma familia .
Bien à toi,
CAP.
Rio , 18 de fevereiro de 1917.

Saborcaste o telegrama de João l'enido ?

Miguel,
Contava subir hoje e ficar em Petrópolis até 2.a feira . Tive de adiar
para 20 : sábado, 21 , é feriado.
Tenho rondado o Briguiet, à tua espera, para colher noticias de
S. Paulo . Se, agora que desces quase diáriamente, escolhesses escritório ...
As fundações para a pulverização seriam mesmo transferidas para
lugar mais conveniente ? e a geologia não indicará isto ?
Já respondeste ao despacho do Lira sobre o montepio ? Deves sa

tisfazer pacientemente a todas as exigências. Podes ierminar, que tudo


isto consta dos livros do Tesouro desde 914.
Sei que ele anda com as mãos na cabeça : o Sr. Arrojado gastou
setenta contos com a imprensa !!! Avisei -te ; não fizeste caso ; devias
440 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

limitar -te ao Jornal, única tabuleta que todo o mundo lê ; podias antes
ter pago o ABC, que seria um defensor como não tiveste.
Não me faltou desejo de assistir à conferência do P. do Rio, mas
dependia de convite. Não senti ; de sua longa peregrinação veio com a
descoberta de que Júlio de Castilho e Borges de Medeiros são grandes
homens. Não preciso de sair de minha rêde para conhecer como isto
é falso .
Talvez conclua amanhã o meu encantado artigo.
C.
Sexta- feira da paixão, 1917.

Alberto Rangel sobe amanhã, no trem das 8,20. Almoçará com Bu


lhões. A demora será pequena, porque precisa de estar aqui, de volta ,
às 5 da tarde .
Deseja conhecer -te pelo muito bem que ouviu a teu respeito em
viagem da Central até S. Paulo.
Gostaria bem de fazer -lhe companhia, mas não sei se poderei.
Saudades,
Cap.
Rio, 10 de março de 1917.

Sabia que estavas na cidade, mas como não me telefonaste nem por
outro modo o deste a conhecer, não te procurei.
Jequitinhonha foi uma vez ao teatro com uma mulher, que não a
Viscondessa . - Ex.mo Sr. Visconde cumprimentou - o um toma-lar
gura qualquer. – Sr. malcriado, não vê que estou incógnito [ ? ]
O portador leva uma rede para entregares nas Pedras Altas.
CAPISTRANO
Rio, 19 de março de 1917.

Miguel
Se tivesses encomendado, não poderias achar melhor auxiliar que
meu cunhado : inteligente, instruido, bem preparado na especialidade de
CARTAS A ARROJADO LISBOA 441

engenheiro, que já praticou em estraclas de ferro , tendo além disso cul


tura geral, bom desenhista, gosto artístico.
Moralmente é integro, de fino trato : com ele e Maneco ficarias com
pletamente aparelhado e não precisarias de mais ninguém . Dizia Spencer
que em ciência uma hipótese é boa quando, além do fato que se quer
explicar, explica outros que não se conhecia [ m ].
Castro Fonseca é uma hipótese spenceriana : trabalharia aqui con
tigo, mas serviria para qualquer inspeção fora, porque é um dos melho
res observadores que conheço.
Escrevo isto menos como cunhado do que como teu amigo, que
todas as venturas acha pouco para ti .
Bien à toi,
Cap.
Rio , 20 de maio de 1917.

Miguel,
Ontem de Pedras Altas saí no mesmo dia e na mesma hora em que
lá chegara a primeira vez, três anos antes. Vim a Bagé saber noticias
de meu procurador, que não há meio de me escrever e mandar dinheiro,
e passar-lhe nova procuração para o ano corrente. Como se traia do
Caminha da Casa Colombo, amigo velho e honrado, éste silencio só pode
explicar -se por moléstia ou diabrura do correio. Um telegrama com res
posta paga, que vou transmitir, esclarecerá o mistério.
A morte de Werneck produziu -me grande tristeza. Com ele e a
família passei três verões na Tijuca e sei quanto valia. Uma carta do
filho, recebida pouco antes, apenas dizia que ele ficara mais abatido do
que poderia imaginá- lo quem apenas o tivesse visto uma vez depois do
ataque .
E lá se foi o Sr. Francisco de Paula. A política não tem entranhas.
Impediu -lhe a única saída digna : renunciar a tempo. Quem virá agora ?
Apostaria pelo Chico Sales. Tuas simpatias vão antes para o Nilo : as
minhas não : sou pouco amante de lama e de crocodilos . Venha quem
vier. Não poderá endireitar nem entortar para sempre o Brasil .
Nos textos bacairis tenho trabalhado constante : estão copiadas umas
trezentas e quarenta páginas, faltam umas dez ou vinte. Na volta para
P. A. entrarei pela gramática, para abordar certas questões importantes,
442 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

nunca estudadas até hoje, que espero resolver. Pegarei depois no voca
bulário, que apresentará forçosamente grandes lacunas. No cometimento
destino -te um papel importante, de que falaremos quando nos encon
trarmos.

Se vieres em março , ainda poderemos encontrar -nos; não desejo estar


no Rio antes do começo de abril. Ainda não recebi o prometido passe,
nem o espero mais. Só poderia servir-me para ir a Alegrete e Uru
guaiana, porque estou resolvido a voltar por mar. Não enjôo e a via
gem é mais cômoda.
Tens boas relações com o Afrânio ? Está autorizado a reformar a
Secretaria ; nestas reformas podem ser aproveitadas pessoas de fora, por
isso não é absurdo que meu filho Adriano, já promovido pelo Lira,
passe agora a primeiro oficial , apesar de não contar intersticio.
Se estiver em tuas mãos, peço-te trabalhes por ele .
Então Rui está mesmo morto ? é bom desconfiar destas mortes até
a missa de corpo presente e a inumação. Lembra-te da história da onça
e da raposa.
Adeus, D. Hermínia ! basta de macacoas, lembre -se de que querer
é poder. Adeus, nova geração !
Já recebeste o Fr. Vicente ? O editor apavonou -se , remetendo - o em
seu nome : devia mandá -lo no meu . Enfim o importante é leres, não
os meus prolegômenos, que só interessam a especialistas, mas o frade
baiano.
Bien à toi,
C.
Bagé, 19 de janeiro de 1919.

Miguel amigo,
Armando Fernandes, cunhado de Tuxunim , trabalhava na fundição
de Hime & Cia ., Rua do Senado.
Foi dispensado por falta de servico : deseja empregar- se no Engenho
de Dentro ou alhures.
Peco te interesses pelo caso.
C.

Rio , 23 de dezembro de 1921 .


CARTAS A ARROJADO LISBOA 443

À boa e respeitável amiga D. Herminia apresento, com os mais sin


ceros cumprimentos, ardentes felicitações pelo aniversário, que desejo
repetido in ... : nidamente .
C. DE ABREU
Caxambu , 22 de outubro de 1922.
101

Miguel amigo,
Há oito anos, pouco mais ou menos por este tempo, nos Campos
do - Jordão, recebia tua carta explicando o ministério do Wenceslau . Im
pressionava -me sobretudo a entrada de Calógeras. Soube que foi um
remédio de última hora, uma operação heróica para evitar o colapso.
Agora no de Bernardes o papel do Sá é o contrário de tudo isto.
Foi chamado com antecedência a Belo Horizonte, lá esteve não sei quan
tos dias, naturalmente discutiu , calculou , combinou . O resultado é o
monstrengo que está rompendo o sono das águas. Se seus conselhos
foram seguidos, ele entrou numa decomposição cerebral lastimosa. Se
suas palavras forem desatendidas, ele entra de rôjo por uma porta muito
baixa .
Um de seus propósitos era desarmar a política mineira contra Caló
geras . Triste cálculo . Pensar naturalmente em invocar as circunstâncias
atenuantes e trazer o filho pródigo à casa paterna defesa análoga à
dos rábulas que invocam a turbação dos sentidos para os clientes. O que
êle devia era mostrar aquela gente a atitude miserável que assumira
com o nosso amigo e obrigá -la a pedir perdão de joelhos, batendo nos
peitos.
Quando vejo Sá ao lado de Pacheco, revejo aquêle triste janeiro de
Hermes e Saraiva , que tão tristes impressões nos causou . Pensei que
Epitácio deixasse Calógeras em Roma.
Acho mais provável preferir Azevedo Marques, Pedro de Toledo,
o 2.º. Para Epitácio ninguém tem valor próprio. Uma pessoa só vale
pela escolha que ele faz : Midas, transforma em ouro quanto toca ; rei
de França, com o simples contato cura de écrouelles.
No meio de tudo isto consola que Bernardes tenha sido votado, reco
nhecido e tenha chegado ao Rio . Significa pelo menos que no Brasil
pode fazer-se revolução com espada ; com bainha, não e não. E nosso
444 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

amigo Assis ! Vencerá ? Não espero ; mas o importante não é o triunfo,


é o combate. Que belo modo de celebrar o centenário !
Pretendo partir domingo, 12.
Adeus, D. Herminia ! abraço e beijo as mãos da venerada amiga.
Adeus, nova geração !
Ergebenst,
C.
Caxambu , 8 de novembro de 1922.

Miguel amigo,
Não sei se nosso pobre Maneco ainda não nutria esperanças de res
tabelecimento e formava planos de futuro. Talvez a vida já lhe fosse
carga dolorosa ; mas quem sabe quanto se perdeu de bondade, de talento,
de ciência, não pode deixar de sentir dolorosamente a perda irreparável.
Um parente, sem que eu lhe pedisse, meteu - se a arrumar meus
papéis e jogou fora tudo quanto no seu analfabetismo quase completo
pareceu - lhe papel velho.
Não posso, portanto, fazer nada para o nosso Calógeras. Posso,
porém , auxiliar na revisão das provas. Se quiseres mandar datilografar
os originais e remetê-los, lê - los-ei com cuidado e devolverei sem demora .
Adeus, D. Hermínia ! abraço e beijo as mãos da venerada amiga.
Adeus, nova geração !
Ergebenst,
C.
São Vicente, 17 de agosto de 1923.

Miguel amigo,
Vim para São Vicente muito mais cedo do que costumo e do que
desejava.
O motivo foi o bacairi trazido pelo Amarante , a meu pedido. Acos
tumado à vida do campo , o indio dá -se mal na cidade. Aqui tem a pou
cos passos o mar, aonde se banlia à vontade. Há muito onde andar. Ma
triculou-se numa aula noturna de São Vicente e está fazendo progresso.
CARTAS A ARROJADO LISBOA 445

O melhor é que, poucos dias depois da nossa chegada, despediu-se


o criado - enfermeiro de Jaguaribe. Mogói substituiu-o com vantagem e
soube captar as simpatias da família .
Meus trabalhos lingüísticos marcham . Este ano espero alcançar mi
nha carta de alforria. Trabalho duas horas por dia, mas, apenas concluir
um trabalho atrasado, consagrar -me-ei sòmente à lingua do indio.
Recebi de Pons uma carta recomendando o Sr. Cabin de Mangoux,
que veio ao Brasil em viagem de estudos e quer relações. Dar-lhe-ei um
cartão-postal para procurar -te. Peço-lhe [ sic] o auxilies. Last, not
least.
Esta carta deve chegar no dia de teus anos. Incluo um abraço de
quebra-costela .
Respeitos à sr.a.
Festinhas à prole esperançosa .
Ergebenst,
C.

São Vicente, 16 de agosto de 1924.

Miguel,
Manda pelo portador a Sentença de Berna e o 1.0 vol. ( enc. fran
cesa) da 1.2 Exposição do Rio Branco. Quero aproveitar os dois dias
em que as bibliotecas não trabalham , para adiantar o serviço.
Por que não mandas as provas da conferência ?
Consta que vais a Minas. Quando ?
C.

Rio, 22 de junho.
Rache, racha ou não racha ?

Miguel amigo,
Cheguei domingo a S. Paulo, e como Jaguaribe só parte para Cam
pos-do-Jordão no fim da semana, vim dar um pulo a Ribeirão Preto.
Cheguei ontem , volto depois de amanhã.
446 CORRESPONDÊNCIA DE CAPISTRANO DE ABREU

Escrevo-te para pedir que procures em mão de Adão o exemplar


de D. João VI que me prometeu : guarda -o e, se fores capaz, leva a
leitura ao fim .
Fala também com ele para dirigir-me o Jornal do Comécio : Pinda
monhanga [ va ] Vila Jaguaribe.
Pretendo estar no Rio antes de 24, provavelmente a 23, pela manhã.
Respeitos à madame.
Bien à toi,
Cap .
ACABOU DE SE IMPRIMIR
NAS OFICINAS DA EMPRESA GRAFICA
DA " REVISTA DOS TRIBUNAIS ” LTDA.,
SÃO PAULO

PARA O INSTITUTO NACIONAL DO LIVRO


EM JULHO DE 1954
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