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OS CRISTOS DE HOJE E O CRISTO REAL

Autor: Manuel Rainho


Data: 2012, Abril.

Apesar de já não vivermos numa sociedade cristã – longe disso – a atração por Jesus Cristo
continua bem viva. É provável que ninguém no final do século XX estivesse à espera que o virar do
século revelasse uma semelhante curiosidade para com o homem que haveria de alterar o mapa
religioso do mundo.

Mas esta nova atração por Cristo reveste-se de características peculiares: o que a alimenta é esta
fome imensa por teorias da conspiração. Por essa razão, os primeiros anos deste ainda novo século
trouxeram consigo uma série de conjeturas que colocam em causa os dados biográficos de Jesus
presentes nos Evangelhos bíblicos. As novas revelações vão desde o suposto relacionamento
amoroso entre Jesus e Maria Madalena (livro Código Da Vinci) até às louváveis intenções da traição
de Judas (documento Evangelho de Judas). Ou então teses ainda mais extraordinárias, como a
descoberta do túmulo de Jesus e sua família (documentário O Túmulo Perdido de Jesus) assim
como o segredo bem escondido de que afinal o Vaticano sempre soube que Jesus não foi
crucificado (livro A Mentira Sagrada). E por fim, aquele que teve maior impacto mediático no nosso
país, O Último Segredo, leva-nos à conclusão de que Jesus era um revolucionário judeu, nunca
alguém que tivesse tido a pretensão de se assumir como Deus na terra.

Estas são as teorias a que um público mais vasto acaba por ter acesso, principalmente pelo formato
escolhido para a sua divulgação: romance ou filme. Talvez a ironia da questão resida no facto das
informações transmitidas por estas obras, na vasta maioria dos casos, estarem já ultrapassadas ou
representarem uma extrapolação pouco “científica” dos dados existentes. Mas o público não sabe
disso. Inclusivamente o cristão. O público apenas sabe o que vai aparecendo nos meios mais
acessíveis, com informações aparentemente convincentes, principalmente se confundirmos
mediático com credível ou novidade com verdade.

Dois exemplos são o Código Da Vinci e O Evangelho de Judas. O primeiro recorre às informações
sobre Jesus presentes em dois evangelhos gnósticos – Evangelho de Maria e Evangelho de Filipe –
escritos que nos apresentam um Jesus possivelmente casado com Madalena e que lhe concedia
uma posição de destaque entre os discípulos. Já o Evangelho de Judas diz-nos que o discípulo
Judas apenas traiu Jesus porque este o havia solicitado, pretendendo morrer e libertar a sua alma
daquele corpo perecível. Qual o problema destas descrições? Provêm dos intitulados evangelhos
gnósticos, documentos escritos na melhor das hipóteses no século II. Quando ainda existiam
dúvidas nos meios académicos sobre as datas de composição dos evangelhos Mateus, Marcos,
Lucas e João, era razoável perguntar-se quais das informações seriam as mais credíveis, mas não
hoje quando é já inquestionável o facto de aqueles Evangelhos pertencerem todos ao primeiro
século, mesmo o de João, o último a ser escrito. No momento em que este problema deixava de o
ser nos círculos académicos, os diversos romances à volta da figura de Cristo divulgam os
evangelhos gnósticos como se de uma recente descoberta se tratasse.

Um outro caso exemplar foi o do túmulo de Talpiot. O canal Discovery e o realizador James
Cameron conseguiram passar a mensagem de que os especialistas tinham todas as indicações de
que se tratava do verdadeiro túmulo da família de Jesus, contendo inclusivamente os seus próprios
ossos. Todavia, o público, mais uma vez, não teve acesso à opinião dos restantes especialistas – a
vasta maioria – que era absolutamente oposta. Quando se demonstrou que afinal os nomes Maria
Madalena e Tiago não estavam inscritos nos ossários do túmulo (como suponha o documentário) e
que os nomes Jesus, José, Maria e até Judas eram dos mais comuns daquele tempo, a tese morreu
e nunca mais ninguém ouviu falar daquele local, a não ser recentemente entre os portugueses,
através do novo livro de José Rodrigues dos Santos, O Último Segredo.

É uma verdadeira tragédia que o público, regra geral, não consiga separar os dados relevantes dos
delírios fantasistas, pois existem alguns assuntos a que realmente vale a pena prestar atenção. E
se há mensagem a que devamos dar resposta no meio desta enxurrada de “Cristos” sem dúvida
que deverá ser aquela que mais tem sido consolidada em todas as obras populares, sejam elas
romances ou obras académicas de divulgação: a ideia de que o Jesus Cristo real não se apresentou
como Deus. Neste sentido, o último romance de José Rodrigues dos Santos, acima mencionado,
teve pelo menos a sensatez de trazer a público uma disputa real no meio académico, uma tese
contemporânea e que estará para ficar nos próximos tempos. Estarão os Evangelhos da Bíblia
equivocados quanto a este aspeto? Não será correto interpretar as palavras e ações de Jesus como
resultado da sua incarnação? Jesus era um mero judeu que nunca quis ser adorado como Deus?

Uma série de indicações nos evangelhos apontam num sentido diferente: Jesus Cristo apresenta-se
como capaz de perdoar pecados baseando-se somente na sua vontade em fazê-lo (Mc 2:8-11)
quando, entre os judeus, só Deus poderia perdoar pecados; exige um seguimento incondicional aos
seus discípulos mesmo que isso implique abandonar a família (Mt 10:37, Mc 10:29) quando tal era
apenas permitido temporariamente aos que estudavam a Lei de Deus; ensina não só a partir das
Escrituras Sagradas mas também a partir da sua própria autoridade intrínseca, ao contrário dos
rabis do seu tempo que não ousariam sequer pensar em algo semelhante, e quando está sozinho
com o núcleo de discípulos mais próximos insiste em transmitir-lhes as suas palavras pessoais;
ousa aprofundar a Lei de Deus e parece pretender conduzi-la a caminhos nunca antes percorridos
nas questões relativas ao Sábado, às leis de talião, à impureza dos alimentos ou ao divórcio, mas
sempre assumindo que a Lei foi, de facto, divinamente inspirada; contacta com os pecadores e
impuros sem proceder de seguida a nenhum ritual de purificação, como a Lei de Deus exigia;
solicita aos seus seguidores que estejam dispostos a morrer por ele (Mc 8:34-35); compara as
tarefas dos seus discípulos em prol de si mesmo com o trabalho dos sacerdotes no interior do
Templo de Jerusalém, onde habitava a presença de Deus (Mt 12:8); defende que o resultado do
juízo final após a morte dependerá de o terem ou não negado diante dos homens (Mt 10:26-33) e
que qualquer atitude para com os desfavorecidos (dando-lhes de beber ou comer) será,
misteriosamente, uma atitude em prol dele mesmo (Mt 25:31-46). Estes ensinamentos de Jesus são
muito claros: Jesus Cristo agia como incarnação de Deus na terra, como presença de Deus fora do
Templo. Para chegarmos a estas conclusões não precisamos sequer de nos basear no evangelho
de João, o último a ser escrito e que apresenta de uma forma bastante direta Jesus como ser
divino. Basta ler os evangelhos sinópticos ou mesmo apenas o mais antigo de todos os evangelhos,
o de Marcos. Em O Último Segredo encontramos Tomás de Noronha, o personagem principal,
defendendo que nem Marcos, nem Mateus, nem Lucas mostram Jesus a declarar-se Deus, mas
esta afirmação decorre de uma expectativa infundada e que consiste em esperar encontrar nos
evangelhos mais antigos afirmações diretas semelhantes àquelas presentes no evangelho de João.
Para um judeu do século I isso não era necessário: bastava ver o que Jesus fazia e dizia
relativamente à sua relação com a Lei e com o Templo para perceber o que estava ali em causa -
“Como é que este homem se atreve a falar assim? Ele ofende a Deus! Quem pode perdoar pecados
a não ser Deus?” (Mc 2:5). Não devemos estranhar, portanto, que no final tenha sido crucificado.

A razão pela qual continuam a surgir inúmeras obras, inclusive de muitos académicos, tentando de
alguma forma “normalizar” Jesus, tornando-o compreensível como um simples judeu, encontra-se
no facto de ser difícil aceitar a conclusão óbvia: Jesus Cristo, essa pessoa extraordinária e com uma
ética revolucionária ainda hoje inspiradora, apresentou-se não só como mensageiro de Deus, mas
como a Sua própria incarnação, para nos chamar a si. Ele não apresentou uma nova doutrina,
filosofia ou revelação, mas antes apontou para si mesmo. E esta conclusão desconfortável leva-nos
ao dilema de reconhecer em Jesus não só um mestre da vida imenso e extraordinário mas
simultaneamente alguém que se assume como Deus entre nós. Para muitos escritores ou
investigadores este é um dilema a evitar a todo o custo. Como assumir a relevância ética e moral de
quem se apresenta como Deus? Para o autor destas linhas a única resposta a esta pergunta só
poderá ser predispor o coração a recebê-Lo mediante a fé, celebrando a Páscoa como o momento
em que o próprio Deus-Jesus morreu por todos os homens, inclusivamente por mim, perguntando-
me se também eu estou disposto a segui-Lo incondicionalmente.

Manuel Rainho

Assessor
mpiresrainho@gmail.com

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