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A CONSULTA MÉDICA

B Introdução: A abordagem inicial do paciente é fundamental para a obtenção


de dados relativos ao diagnóstico e, consequentemente, a adoção das medidas
terapêuticas adequadas para cada caso em particular.

B Consulta médica: A consulta médica consiste no ato de uma pessoa


(habitualmente designada por cliente ou paciente) apresentar a um médico queixas a
respeito de alguma alteração em seu organismo (sintoma ou sinal) que a tem feito sofrer
ou a preocupa. O paciente responde a questões formuladas pelo médico e submete seu
corpo para a realização do exame físico. A motivação do paciente é, obviamente, obter
do médico a explicação e a solução para seu sofrimento e/ou preocupações.
Considerando que o sintoma ou sinal que apresenta é da esfera digestiva (por exemplo,
vômitos, diarreia, icterícia), é natural que o cliente procure diretamente um
gastroenterologista. Se, porém, ele não reconhece nitidamente a origem digestiva de
seus sofrimentos ou preocupações (por exemplo, uma mulher com dores no
hemiabdome inferior), procura um clínico geral ou um especialista da área em que julga
ser a mais provável origem de suas queixas.
O objetivo do médico é estabelecer o correto diagnóstico da causa dos sofrimentos
e preocupações de seu paciente, uma vez que a eficácia do tratamento é diretamente
proporcional à precisão do diagnóstico.
O primeiro e mais importante instrumento médico para busca do objetivo é o
método clínico, o qual é executado por meio da chamada observação clínica
(anamnese e exame físico) e fornecerá as bases para a aplicação do raciocínio clínico
que conduzirá a um diagnóstico principal (o de mais alta probabilidade) ou a um elenco
de possíveis diagnósticos.
Frequentemente, são necessários recursos subsidiários, sempre solicitados com
base no raciocínio clínico. Os resultados dos exames complementares devem ser
confrontados com os achados clínicos a fim de verificar sua coerência com uma ou mais
das hipóteses diagnósticas levantadas. Se apenas com os dados de anamnese e exame
físico o médico chegar a um diagnóstico definitivo ou de alta probabilidade, pode, na
dependência de certas características do caso em questão, indicar as medidas
terapêuticas apropriadas para seu paciente (por exemplo, paciente de 20 anos de idade
com dor epigástrica iniciada após uso de anti-inflamatório). Nesses casos, entretanto, o
diagnóstico definitivo só será confirmado se o quadro clínico for totalmente revertido
com as medidas terapêuticas específicas adotadas.
Deve-se considerar a possibilidade de haver vários tipos de diagnóstico nas
diferentes etapas da investigação até que se chegue ao diagnóstico definitivo:
anatômico, funcional, bioquímico, imunológico, etiológico, radiológico,
anatomopatológico, terapêutico etc. O diagnóstico definitivo é comprovado
objetivamente e define e explica, racionalmente, as queixas e os demais dados clínicos
do paciente. Todas as etapas do processo de diagnóstico devem ser presididas pelo
raciocínio clínico que, por definição, deve ser lógico, seguro e competente, não se
admitindo adivinhações e conclusões infundadas. Deve-se ter em mente que um
diagnóstico errado pode significar maiores sofrimentos para o paciente, despesas
desnecessárias e, o mais importante, a diferença entre a vida e a morte.

B Método clínico de diagnóstico: O método clínico de diagnóstico, como já


dito, é constituído pela observação clínica, que, por sua vez, é a base para o raciocínio
clínico que conduzirá ao diagnóstico final ou de certeza. A observação clínica consiste
na coleta das informações consideradas de interesse para o diagnóstico e é realizada,
única e exclusivamente, pelo próprio médico e que se completa em duas ações técnicas:
a anamnese e o exame físico. Ambas devem ser bem descritas na ficha clínica ou
prontuário do paciente, de forma absolutamente legível. É preciso lembrar que a ficha
ou o prontuário dos pacientes é um documento que tem força jurídica, pois pode ser
requisitado em processos judiciais. A gravação da conversa com o paciente deve ser
evitada, por haver a possibilidade de constrangê-lo, e caso se utilize computador, não se
deve prestar mais atenção à máquina do que ao paciente.
As principais finalidades da observação clínica são:

 Identificar e caracterizar cada um dos sintomas apresentados, hierarquizá-


los de acordo com sua relevância clínica, descrever todo o transcurso da doença, suas
melhoras e seus agravamentos até o momento da consulta. Obter informações sobre as
condições gerais de vida do paciente, suas relações familiares e no trabalho; sobre o tipo
de trabalhos que realiza e em que condições, seus hábitos, a possibilidade de ter
contraído doenças infecciosas ou parasitárias, se procede de zona endêmica de alguma
doença, seus antecedentes pessoais e familiares mórbidos.
 Perceber pela visão, audição, tato ou até pelo olfato as alterações anatômicas
ou funcionais que poderão ter importância para o diagnóstico da condição responsável
pelas queixas apresentadas pelo paciente ou por outro quadro mórbido que o está
afetando. Em outras palavras, o exame físico, para o qual se requer a competência do
médico nas técnicas de semiologia.
 Encontrar elementos objetivos e subjetivos que permitam o conhecimento
global do paciente, tanto do ponto de vista somático quanto do psíquico.
 Ser um poderoso instrumento no sentido de estabelecer a indispensável boa
relação entre o médico e seu paciente. É preciso lembrar que a boa relação médico-
paciente não se dá apenas pelo tratamento afável obrigatório, mas, principalmente, pela
percepção por parte do paciente da competência de seu médico e de sua sincera intenção
de ajudá-lo.

O raciocínio clínico consiste na elaboração mental do diagnóstico clínico, que


analisa e integra, com razão e lógica, todo o conjunto dos dados obtidos pela anamnese
e pelo exame físico do paciente.
O diagnóstico final é a definição inequívoca ou de elevada probabilidade da
principal entidade clínica ou síndrome, bem como de outras afecções secundárias
responsáveis pelos padecimentos do paciente.

B Observação clínica:
 Anamnese:
 Aspectos gerais: Na maioria das doenças do aparelho digestivo, o
raciocínio diagnóstico depende dos dados obtidos na história clínica, que deve ser
bastante cuidadosa e a mais completa possível. A abordagem inicial requer um cuidado
muito especial, pois dela dependerá a obtenção da confiança do paciente, fundamental
não só para que dados importantes de caráter íntimo possam ser revelados, mas também
para o sucesso do tratamento, sempre dependente da colaboração do paciente, aquilo
que chamamos de empatia, ou seja, o bom relacionamento médico-paciente baseado na
confiança. Essa confiança é a base do sucesso na adesão aos esquemas terapêuticos que
serão propostos.
Neste capítulo será descrito como a história clínica e o exame físico devem ser
conduzidos no paciente que procura o serviço médico com queixa digestiva. Nunca é
demais lembrar que o paciente deve ser sempre visto como um todo, ou seja, não se
deve separar a emoção da parte orgânica propriamente dita. Portanto, é importante
sempre verificar como o paciente manipula as situações do dia a dia e como elas
interferem em seus sintomas. Embora a razão da consulta sejam queixas digestivas, o
exame físico não deve se restringir ao abdome; deve abranger os demais órgãos
também. Não queremos com isso dizer que, por exemplo, o exame neurológico seja
semelhante ao realizado pelo especialista, mas alguns itens, como a pesquisa de
reflexos, não poderão faltar.
 Como conduzir a anamnese: A anamnese inicia-se com a simples
anotação da queixa principal do paciente e de seu início (a queixa e sua duração –
QD). Em seguida, por meio da exposição verbal que o paciente faz acerca de sua
doença, auxiliado por criteriosas perguntas, o médico deve, sem induzir qualquer tipo de
resposta, caracterizar cada um dos sintomas apresentados, hierarquizá-los de acordo
com sua importância clínica, questionar há quanto tempo eles se instalaram, descrever
todo o transcurso da doença, suas melhoras, seus agravamentos, a intervenção de
tratamentos havidos, clínicos ou cirúrgicos, além de resultados de exames subsidiários,
até o momento da consulta. Descreve-se, com essas informações, a história da moléstia
atual (HMA). Dentro da história da moléstia atual, deve-se ainda verificar se as
manifestações da doença estão relacionadas temporalmente com algum acontecimento
vivido pelo paciente (por exemplo, traumas emocionais por problemas na vida afetiva
ou nas relações dentro da família ou no trabalho; mudanças nos hábitos de vida,
incluindo mudanças no tipo de alimentação; introdução de algum medicamento etc.). A
história da moléstia atual deve ser caracterizada pelas minúcias e o detalhamento das
informações.
Recomenda-se permitir que o paciente exponha livremente seus padecimentos,
facilitando seus relatos pelo silêncio, atitude corporal e olhar. O médico deve intervir
apenas para esclarecer os pontos que lhe pareçam obscuros ou para complementar os
detalhes importantes não relatados.
Na descrição dos diferentes sintomas relacionados ao aparelho digestivo que
faremos adiante, são indicados, além da definição, as respectivas características que
devem ser investigadas, uma vez que somente com elas cada sintoma adquire força para
o diagnóstico da causa que o está provocando.
Algumas características comuns a todos os sintomas, como duração, intensidade,
fatores que melhoram e fatores que pioram devem ser investigadas; outras, entretanto,
são bem particulares, como poderá ser observado nas descrições de cada um dos
sintomas. Ressaltamos que é de muito interesse para o diagnóstico o relacionamento dos
sintomas com fenômenos fisiológicos digestivos (deglutição, refeições, evacuação),
extradigestivos (movimentos do corpo, fenômenos urogenitais, respiração, sono, estado
emocional e situações estressantes) e com tipos específicos de alimento (por exemplo,
leite, alimentos gordurosos) ou de drogas (por exemplo, anti-inflamatórios,
medicamentos que interferem na atividade motora do tubo digestivo). Também é de
suma importância para o raciocínio diagnóstico a análise da associação entre os
diferentes sintomas digestivos entre si e com anormalidades subjetivas e objetivas
extradigestivas.

B Principais sintomas do aparelho digestivo: Didaticamente, as queixas do


paciente podem ser consideradas como do aparelho digestivo alto ou do aparelho
digestivo baixo. A queixa digestiva é considerada alta quando se refere a sintomas
provavelmente decorrentes de alteração esofagogastroduodenal. Como já foi ressaltado,
a anamnese deve ser a mais detalhada possível. Assim, se a queixa principal referir-se
ao aparelho digestivo alto, também é necessário obter dados quanto ao funcionamento
intestinal; por outro lado, se a queixa principal for baixa, deve-se perguntar sobre
possíveis sintomas altos.
 Queixas digestivas altas: Os sintomas digestivos altos são denominados
sintomas dispépticos. A palavra dispepsia se origina do grego e significa alteração
(dis) da digestão (pepsis). O termo dispepsia, ao longo do tempo, tem causado muita
confusão entre os médicos e, por outro lado, poucos pacientes dirigem-se ao médico
dizendo serem portadores desse sintoma. Há muito tempo, considera-se a dispepsia um
conjunto de sintomas induzidos pela ingestão de alimentos e que são expressos em
regiões que correspondem ao epigástrio expandido até, aproximadamente, o umbigo.
Dois são os tipos de sintomas dispépticos: a dor e os sintomas pós-prandiais.
O sintoma dor será discutido amplamente mais à frente. Os sintomas pós-
prandiais incluem plenitude pós-prandial (sensação desagradável de prolongada
permanência do alimento no estômago), saciedade precoce (sensação de que o estômago
é preenchido rapidamente, em desproporção ao volume de alimento ingerido, com o
desaparecimento do apetite), sensação de que o estômago está inchado, empanturrado
ou distendido na ausência de uma distensão visível, náuseas, vômitos e eructações. A
dispepsia pode estar associada a doenças orgânicas (úlceras pépticas, doença do refluxo,
câncer gástrico, doenças biliopancreáticas) ou como quadro isolado sem que se
identifique uma causa determinante (dispepsia funcional). A dispepsia configura-se,
portanto, como uma síndrome, com uma particularidade: os pacientes, em geral, não
apresentam todo o conjunto de sintomas mencionados anteriormente, apenas alguns
deles. É muito importante que se faça o diagnóstico diferencial entre dispepsia orgânica
e funcional para o que deve ser considerado: tempo de doença, idade do paciente,
antecedentes de câncer gástrico na família, presença de sintoma ou sinais de alarme
(perdas de sangue, anemia, inexplicável perda de peso, hipertrofias ganglionares,
massas palpáveis e outras evidências de doença orgânica); frequentemente, recorre-se a
investigações complementares.
Os sintomas relacionados com a deglutição e o transporte do alimento até o
estômago serão considerados separadamente. Dois deles são particularmente
importantes: a disfagia (dificuldade de deglutição do alimento) e a odinofagia (dor
retroesternal ao se alimentar).
 Dor: São comentadas separadamente a dor de localização torácica e a
de localização abdominal.
 Dor torácica: Doenças que afetam o esôfago são capazes de
produzir dores referidas no tórax, particularmente em sua face anterior. Podem assumir
forte intensidade e ser do tipo constritivo ou em queimação (pirose). São indicativos de
origem esofágica se acompanha - das de disfagia ou de regurgitação ácida ou, ainda, se
melhoram ou pioram com a deglutição.
 Pirose/azia: É definida como uma sensação de queimação ou
ardência. A origem da palavra é grega (piros = fogo). Segundo o dicionário Aurélio,
trata-se da sensação de queimação de localização retroesternal que se propaga até a
laringe. No entanto, do ponto de vista médico, devemos também considerar como pirose
a sensação de queimação de localização epigástrica. O termo “azia”, muito utilizado
por leigos e médicos, é considerado um sinônimo de pirose e tem o mesmo significado
clínico. Constitui a manifestação mais comum da doença do refluxo gastroesofágico,
com ou sem esofagite. Pode ter seu início no epigástrio, irradiando-se para a região
retroesternal, ou ter somente localização retroesternal. A pirose de localização
unicamente epigástrica é sugestiva de origem gástrica ou gastroduodenal. Surge
comumente em tempos variáveis após as refeições e desperta o paciente de seu sono,
mas não ocorre sistematicamente durante a deglutição. A melhora obtida com a ingestão
de antiácidos ou de antissecretores (bloqueadores dos receptores da histamina ou
inibidores de bomba de prótons) indica a ácido-dependência desse tipo de sintoma.

Doenças digestivas abdominais, como úlcera péptica, colecistite e pancreatite,


também podem provocar dores torácicas. Se, entretanto, ela estiver relacionada com
movimentos respiratórios, deve ter origem em pulmões ou pleura; se for agravada ou
melhorada com mudanças de posição do corpo, a probabilidade maior é de que seja
decorrente de processos patológicos na parede osteomuscular do tórax, incluindo a
coluna; se for bem relacionada a esforços físicos ou irradiada para a região do pescoço
e/ou membro superior esquerdo, é forte a indicação de que seja o resultado de uma
isquemia miocárdica; essa probabilidade, por razões óbvias, deve ser a primeira a ser
investigada.
 Odinofagia: É a dor que é percebida em região retroesternal
durante a ingestão dos alimentos, portanto, induzida pelo fenômeno da deglutição.
Deve-se a processos inflamatórios orofaríngeos ou esofágicos ou a doenças motoras do
esôfago.
 Disfagia: É a designação que se dá à dificuldade para a
deglutição dos alimentos sólidos ou líquidos. A sensação é a de que o alimento para em
sua descida ao estômago, estacionando em algum ponto entre a boca e o apêndice
xifoide. Em geral, o local de sensação de interrupção da descida do alimento
corresponde ao ponto onde o trânsito esofágico está comprometido. Quando a
dificuldade é sentida ao nível da boca ou da faringe, denomina-se disfagia orofaríngea
ou alta; ela ocorre principalmente com líquidos, associando-se frequentemente a
engasgos em razão da passagem do material ingerido para as vias aéreas superiores e
inferiores. A disfagia esofágica ou baixa costuma ser referida sobre o esterno e estar
relacionada com processos obstrutivos (estenoses esofágicas) ou com alterações na
atividade motora que executa o ato da deglutição (por exemplo, megaesôfago chagásico,
acalasia idiopática, afecções neuromusculares que afetam a fase esofágica da
deglutição).
 Regurgitação: Consiste no retorno à boca de material contido
no esôfago ou no estômago, facilitado pela posição supina, sem a violência do vômito e
sem ser precedido por náuseas. É perceptível pelo retorno de um volume líquido ou
sólido de sabor, em geral, ácido ou amargo. Constitui-se em forte indicativo de doença
do refluxo gastroesofágico quando associada à pirose, e de megaesôfago, se
acompanhada de disfagia.
 Dor abdominal: É uma queixa frequente que leva o paciente a
consultar um gastroenterologista. Pode ser produzida por processos patológicos agudos
e crônicos. Uma dor abdominal pode ter sua origem em órgãos situados na cavidade
abdominal, no retroperitônio, no tórax, nas paredes musculoesqueléticas do abdome e,
ainda, pode ser produzida por doenças sistêmicas.
As características clínicas que devem ser investigadas são apresentadas e
comentadas a seguir:
 Localização: O local da dor sempre deverá ser mencionado nos
termos da divisão topográfica anatômica do abdome e de outras regiões do corpo, por
exemplo, hipocôndrio direito, fossa ilíaca direita, epigástrio, região lombar direita etc.

A dor visceral, tanto das afecções agudas como crônicas, tende a se localizar na
linha mediana do abdome e suas vizinhanças, em áreas que se localizam tanto mais para
baixo da linha que vai do apêndice xifoide ao púbis, quanto mais distalmente no tubo
digestivo se situar a lesão que a causou.
Na área correspondente ao epigástrio e suas imediações, localizam-se as dores
consequentes a úlceras gástricas e duodenais, dispepsias funcionais e orgânicas,
gastrites agudas (as gastrites crônicas não são consideradas causadoras de dor), tumores
gástricos, colecistites, pancreatites, obstruções no intestino delgado proximal,
apendicites (em fase inicial), hepatites e congestão aguda do fígado, abscessos
subfrênicos, pneumonias, angina e infarto do miocárdio.
Na área correspondente ao mesogástrio e suas imediações, situam-se as dores
produzidas por infecções, inflamações, obstrução, isquemia e distensões do intestino
delgado, apendicite (em fase inicial), pancreatites e tumores do pâncreas.
Na área correspondente ao hipogástrio e todo o baixo ventre, são apontadas as
dores produzidas pelas seguintes doenças: inflamações, obstrução, isquemia,
diverticulite e tumores do intestino distal, apendicite, salpingites, gravidez ectópica,
afecções do ovário e cistites. A dor da colecistite, em geral aguda, é inicialmente
referida no ponto vesicular (corresponde aproximadamente à junção dos 2/3 laterais
com o terço medial da borda costal direita). Na apendicite aguda clássica, a dor é
referida no ponto apendicular.
Dores na região dorsal podem ser decorrentes de úlceras pépticas penetrantes da
face posterior do duodeno ou do estômago. As dores produzidas por doenças da vesícula
ou das vias biliares podem ser referidas na região inferior da omoplata direita. As
pancreatites provocam dores epigástricas e mesogástricas que tendem, em cerca de 50%
dos casos, a também afetar a área em faixa até o dorso, à direita e/ou à esquerda.
Processos infecciosos subfrênicos provocam dor supraclavicular e na face lateral do
pescoço, territórios dos nervos frênicos. As dores das afecções do cólon esquerdo e reto
podem ser percebidas na fossa ilíaca esquerda e até na região sacral. As dores dos
cálculos ureterais costumam se manifestar nas faces laterais do abdome, obliquamente,
até a genitália.
A dor da variedade somática ocorrerá quando o peritônio parietal for atingido por
inflamação, infiltração ou isquemia. Sua característica é localizar-se exatamente na
região superficial correspondente à lesão. Quando um processo inflamatório evolui,
atingindo o peritônio parietal (por exemplo, na apendicite aguda), a dor, inicialmente do
tipo visceral, epigátrica ou mesogástrica, muda de localização para a fossa ilíaca direita,
no ponto apendicular ou em suas imediações, às vezes em poucas horas.
 Cronologia e periodicidade: Além de saber desde quando está
presente, deve-se conhecer o curso das dores abdominais ao longo do tempo, desde sua
instalação. Elas podem se instalar de forma aguda ou serem crônicas, intermitentes ou
contínuas.
 Dor abdominal aguda: A dor abdominal aguda e intensa
acompanhada de manifestações locais e gerais e iniciada dentro de 1 a 72 horas (para
alguns, 24 horas) caracteriza o que é conhecido como abdome agudo e pode prenunciar
grave doença aguda, que exige cuidados imediatos. Algumas dessas dores abdominais
agudas tendem a desaparecer espontaneamente, como nas gastroenterites agudas.
Outras vezes, as dores agudas são caracterizadas por sucessivas intensificações e
alívios definindo o tipo de dor “em cólica” da obstrução de víscera oca (intestinal, biliar
ou ureteral).
A dor das apendicites e diverticulites agudas tem intensidade continuamente
progressiva. Em afecções arteriais abdominais agudas, como no infarto mesentérico e na
ruptura de aneurisma da aorta, a dor pode alcançar intensidade elevada muito
rapidamente.
 Dor abdominal crônica: As dores abdominais crônicas
são provocadas por doenças orgânicas ou funcionais e podem ser contínuas ou
apresentar recidivas agudas com períodos de remissão que podem chegar a semanas,
meses ou até anos. Uma mesma doença, na dependência de fatores inerentes à sua
própria evolução ou ao quadro psíquico do paciente, pode assumir uma ou outra dessas
características, de forma temporária ou definitiva.
Um exemplo típico de dor periódica é o da úlcera péptica duodenal ou gástrica.
Nessas doenças, a dor abdominal tem período de duração variável de uma a algumas
semanas quando cessa espontaneamente: é o período em que a úlcera está aberta ou
ativa.
Em seguida, na chamada acalmia, período que varia de semanas a anos, a dor está
ausente, o que pode significar que a lesão está cicatrizada. Portanto, as úlceras
gastroduodenais têm como característica longos períodos de dor e de acalmia.
Se a dor abdominal de um paciente com úlcera péptica se tornar constante ou se
agravar, mudando suas características habituais, deve-se suspeitar de aprofundamento
da úlcera na parede do órgão comprometido (úlcera terebrante ou perfurante).
Outro exemplo de dor intermitente é o que acontece na evolução da doença
calculosa da vesícula biliar: se os cálculos migram para o ducto cístico e o colédoco,
ocorrem dores que duram de poucas horas a poucos dias. Passado o quadro agudo, há
períodos oligossintomáticos ou assintomáticos mais ou menos prolongados, que podem
persistir por anos. Assim, a dor biliar tem como característica períodos dolorosos curtos
(horas, poucos dias) e períodos de acalmia longos.
Outra doença que evolui por crises de dores, frequentemente intensas, intercaladas
por períodos de acalmia, é a pancreatite crônica calcificante, produzida pelo alcoolismo
crônico. A identificação da coincidência cronológica entre a dor abdominal e o período
da menstruação ou do meio do ciclo menstrual deve lembrar a possibilidade de
endometriose e da dor da ovulação, respectivamente.
 Intensidade e tipo: A intensidade da dor depende do grau de
sensibilidade do paciente, por sua vez, influenciada por experiências dolorosas prévias e
fatores relacionados ao psiquismo, a fatores culturais, à personalidade e à etnia. Por
isso, a intensidade da dor nem sempre guarda relação com o tipo e a gravidade da
doença subjacente, tendo, consequentemente, limitado valor diagnóstico, pois pode
refletir mais o estado psíquico do paciente do que a natureza da doença que a está
provocando.
As dores mais intensas costumam ser as que expressam o abdome agudo por
afecções inflamatórias, obstrutivas e isquêmicas. Entretanto, afecções funcionais, como
a síndrome do intestino irritável, eventualmente, podem produzir atrozes dores
abdominais. Alguns sintomas associados são indicativos da real intensidade da dor:
sudorese, palidez, bradicardia, hipotensão arterial, náuseas e vômitos, ou seja, os
sintomas deletérios induzidos pela própria dor.
O tipo da dor pode sugerir sua causa. A dor em “queimação” ou dor “funda” no
epigástrio é importante indicador da possibilidade de doença péptica. A dor tipo “peso”
sugere distensão de víscera oca ou parenquimatosa e pode ser a queixa do paciente com
dispepsia funcional. A dor em “cólica” ou “torcida”, revelada por sensação de
constrição da víscera durante curto intervalo de tempo, quando assume forte
intensidade, seguida por considerável abrandamento, é sugestiva de processo obstrutivo
dos órgãos tubulares e encontra exemplos nas litíases ureteral (cólica renal) e das vias
biliares (cólica biliar) e nas obstruções intestinais de qualquer etiologia. Pode,
entretanto, ocorrer em portadores de doenças funcionais, como síndrome do intestino
irritável e doenças inflamatórias (doença de Crohn e retocolite ulcerativa inespecífica) e
infecciosas (gastroenterites agudas).
A dor “contínua”, definida pela sua permanência prolongada que mantém a
mesma intensidade, é observada, por exemplo, nas neoplasias. Deve-se lembrar que,
frequentemente, os cálculos biliares, ao atravessarem as vias biliares, podem não
provocar a chamada “cólica” biliar, mas manifestar-se por dor contínua (dor biliar). A
dor em “pontada” ou “facada” apresenta-se em processos inflamatórios agudos que
envolvem o peritônio.

 OBS: As palavras que aparecem entre aspas neste parágrafo são comumente
pronunciadas pelos pacientes como designativas do caráter de sua dor. Muitas outras
podem ser ditas, quase sempre do tipo comparativo. Quando a palavra do paciente não
pode ser bem traduzida por um termo médico que a identifique e, por vezes, por ser
muito expressiva para a descrição do que o paciente está sentindo, o médico pode referi-
la na observação clínica entre aspas e seguida do termo sic (advérbio latino =
textualmente). Na verdade, o “sic” pode ser associado à contração de um termo do
latim, o “sicut”, que significa “assim como é, exatamente desta forma”. Essa
expressão encontra-se em textos antigos, dentre os quais podemos citar uma antífona
religiosa bastante conhecida: “... Sicut erat in principio et nunc et semper, et in
seculae seculorum...”, ou seja, “Assim como era no princípio, agora e sempre e
pelos séculos dos séculos...”. Na verdade, objetiva-se dizer que a expressão anterior é
afirmada “exatamente desta forma” hoje e em toda a eternidade.

Por vezes, o paciente não identifica sua queixa como dor, mas como um
“desconforto” em uma determinada região do abdome; essa sensação pode ser
considerada como um equivalente da dor.
 Ritmo ou horário: São dados acerca das variações do sintoma
no decorrer das 24 horas do dia e, particularmente, com as atividades funcionais do
aparelho digestivo. A dor da úlcera duodenal costuma ocorrer cerca de 2 a 4 horas após
as refeições, mantendo certo paralelismo com os níveis de acidez do estômago. A
alimentação, em geral, determina o alívio da dor. Esse tipo de ritmo é chamado a três
tempos: dói-come-passa. Quando a acidez noturna é grande, o paciente pode ser
despertado de seu sono pela dor. Essa queixa é denominada clocking (do inglês clock =
despertador). Em geral, ao despertar pela manhã, em jejum, o ulceroso não apresenta
dor, pois está longe do período digestivo, dado pelas refeições. Nos portadores de
úlceras gástricas, a dor costuma acontecer logo após as refeições, em consequência da
distensão do órgão acometido por processo inflamatório em suas paredes. O mesmo
pode ocorrer nas gastrites agudas provocadas por agentes infecciosos ou por excessiva
ingestão de bebidas alcoólicas. Nas colecistites e pancreatites agudas, a solicitação
funcional desses órgãos também provocará dores pós-prandiais precoces. A angina
mesentérica, causada por isquemia das alças do intestino delgado em decorrência da
obstrução da artéria mesentérica superior, caracteriza-se pela dor, frequentemente
intensa, aproximadamente cerca de 15 a 30 minutos após uma refeição, quando há
maior demanda de sangue arterial para o processo de digestão e absorção. Por razões
desconhecidas, a dor biliar tende a ocorrer durante a noite, despertando o paciente. Na
diferenciação entre doença orgânica e doença funcional, deve ser considerado
excepcional que uma dor que desperta o paciente de seu sono tenha causa funcional.
 Fatores que agravam e fatores que aliviam : O conhecimento
de fatores que agravam e de fatores que aliviam a dor abdominal é de muita importância
para o diagnóstico. Os anti-inflamatórios, em geral, agravam as dores por afecções
gástricas e duodenais. Por sua vez, a ingestão de alimentos piora a dor de processos
inflamatórios gástricos (gastrite aguda, úlcera gástrica, neoplasias do estômago). Por
vezes, o desconforto determinado pela ingestão de alimentos é tão grande que o paciente
interrompe a refeição, preferindo passar um pouco de fome a sentir dor (sítio ou
sitofobia). Correlatamente, os vômitos e as eructações melhoram a dor ou o desconforto
causado por essas mesmas doenças. A ingestão de alimentos pode provocar o
agravamento das doenças biliares e pancreáticas e, também, desperta a dor da obstrução
mesentérica (angina abdominal). Quando a evacuação ou a eliminação de flatos alivia
temporariamente uma dor abdominal, a indicação é de que ela está sendo produzida no
intestino grosso por afecções funcionais ou orgânicas.
Nos processos patológicos que afetam o retroperitônio, como nas pancreatites,
apendicites agudas ou úlceras penetrantes, o paciente tende a manter a flexão do tronco
sobre os membros inferiores, em típicas atitudes ou decúbitos antálgicos (que melhoram
a dor). Quando o peritônio parietal for comprometido por um processo patológico,
particularmente nos agudos, a deambulação e a trepidação (no carro ou ambulância em
direção ao pronto-socorro) tendem a piorar a dor abdominal (popularmente chamada
“sinal do solavanco”).
A informação sobre medicamentos que melhoraram a dor pode trazer elementos
para o diagnóstico, como já referido acerca dos antiácidos e inibidores de bombas de
prótons. A melhora com analgésicos indica que a dor, provavelmente, é decorrente de
lesões inflamatórias ou de neoplasias; a melhora com antiespasmódicos indica o
comprometimento de vísceras ocas; os anti-inflamatórios podem melhorar dores de
origem neoplásica, cólicas renais, afecções musculares e esqueléticas, mas com
frequência induzem ou agravam dor decorrente da úlcera ou inflamação do estômago.
Traumas emocionais (ameaça ou perda real de bens ou de entes queridos,
desilusões amorosas, abusos físicos e sexuais, distúrbios familiares etc.), além de serem
fatores que favorecem a instalação de dores abdominais (somatização), são também seus
agravantes.
 Duração: É importante lembrar que as dores decorrentes da
úlcera gastroduodenal duram horas, e em geral são aliviadas por alimentação ou
alcalinos. As dores biliares apresentam curta duração (minutos) e são, em geral,
recorrentes (repetitivas). As dores pancreáticas apresentam horas de duração e
apresentam alívio em determinadas posições (flexão do tronco em direção dos membros
inferiores = posição de prece maometana).
 Irradiação: A irradiação da dor deve ser sempre pesquisada,
pois fornece subsídios importantes para diagnosticar o provável órgão comprometido e
possíveis complicações. A dor decorrente de doença gastroduodenal localiza-se no
epigástrio. A irradiação para as costas, com caráter transfixante, é indício de
complicação grave, sinal de que a úlcera perfurou e está bloqueada no pâncreas, o órgão
adjacente. Quando a dor passa a apresentar irradiação difusa, com sensibilidade
aumentada do abdome à pressão manual, e dor aguda quando a pressão manual é
bruscamente cessada (descompressão brusca), trata-se de provável perfuração em
abdome livre com comprometimento peritoneal.
A dor de origem vesicular costuma apresentar irradiação para a região dorsal
direita e, às vezes, para a região escapular direita.
A irradiação da dor em faixa (do hipocôndrio direito para o hipocôndrio esquerdo)
é sugestiva de comprometimento pancreático.
 Náuseas e vômitos: Náusea é uma sensação desagradável percebida no
epigástrio e na garganta, também definida como enjoo ou sensação de vômito iminente,
acompanhada de aversão à ingestão de alimento, mal-estar geral, sudorese e alterações
do ritmo cardíaco. Em casos específicos, associa-se à cefaleia em um dos hemicrânios
(enxaqueca) ou à sensação de vertigem (afecções do labirinto). Como sintoma isolado,
acontece por repugnância a algum alimento, a um odor desagradável ou à visão de uma
cena chocante e, também, como efeito colateral de medicamento.
Vômito é a expulsão abrupta do conteúdo gástrico para o exterior, geralmente
precedido por náuseas, e pode ocorrer de forma espontânea ou induzida
voluntariamente. Muitas causas estão relacionadas à presença de náuseas e vômitos,
incluindo doenças orgânicas e funcionais do aparelho digestivo, uso de medicamentos,
ação de tóxicos, além de várias doenças endócrinas, infecciosas, neurológicas e
psiquiátricas.
Esses dois sintomas podem ocorrer, conjuntamente, em doenças agudas (por
exemplo, gastrites e gastroenterites, por ação de medicamentos ou de tóxicos, presença
de sangue na luz gástrica) ou incidirem cronicamente de forma frequente ou episódica
(por exemplo, enxaqueca, cinetoses, doenças crônicas do trato digestivo alto, inclusive
das vias biliares e do pâncreas). Vômitos abruptos, em jato, não precedidos por náuseas,
são provocados por hipertensão intracraniana.
A informação sobre o material expelido pelo vômito é de importância para o
diagnóstico, destacando-se três condições especiais:

a. Presença de sangue em pequena quantidade (síndrome de Mallory-


Weiss em decorrência de lacerações na junção esofagogástrica, por vômitos repetidos)
ou em grande quantidade (decorrente de sangramentos abundantes por úlcera, erosões
ou neoplasias no estômago ou duodeno ou por ruptura de varizes esofágicas) caracteriza
a hematêmese.
b. Presença de restos alimentares ingeridos, pelo menos três ou mais
horas antes, em geral volumosos, indica dificuldade do esvaziamento gástrico (estenose
em região pilórica).
c. Odor e aspecto fecaloide indicam obstrução em porções proximais do
intestino delgado.

Na maioria das causas determinantes do vômito, ele é constituído só de líquido


claro, hialino ou levemente tinto de bile. Deve ser ressaltado que a presença de bile no
material vomitado não tem significado especial, pois resulta de refluxo duodenogástrico
que, em geral, ocorre durante o próprio episódio de náuseas e vômitos,
independentemente de sua causa. Entretanto, se a presença de bile no material vomitado
for muito expressiva, deve ser lembrada a possibilidade de obstrução duodenal a jusante
da desembocadura do colédoco.
Em pelo menos duas eventualidades, o vômito é provocado pelo próprio paciente:
durante gastrites agudas, quando o esvaziamento do estômago alivia o mal-estar gástrico
(alcoolismo agudo), e em casos de bulimia, com o intuito de o paciente não engordar ou
de perder peso.
 Eructação e aerofagia: A eructação é um fenômeno considerado normal,
uma vez que, a cada vez que se ingere uma refeição ou líquido, uma pequena
quantidade de ar penetra também no estômago. Contudo, torna-se um sintoma quando é
excessiva ou quando causa desconforto ou sensação de distensão epigástrica. A
associação entre causa e efeito é estabelecida pela verificação de que a eructação alivia,
temporariamente, os sintomas. A anormalidade pode estar associada à salivação
excessiva (sialorreia) como pode ocorrer na doença do refluxo gastroesofágico, ou
reduzida (sialoquiese) ocasionada por pequena produção das glândulas salivares.
Desordens na esfera psíquica (ansiedade, depressão) que causam taquifagia com
excessiva ingestão de ar podem ocasionar aerofagia e eructações. Por vezes, entretanto,
não se consegue estabelecer uma explicação plausível para as excessivas eructações.
 Queixas digestivas baixas: Entre as queixas do aparelho digestivo baixo as
principais são:
 Diarreia/ esteatorreia/ tenesmo: A diarreia é definida pelo aumento do
teor hídrico das fezes, que as torna amolecidas. Frequentemente é acompanhada do
aumento no número de evacuações diárias. Assim, uma evacuação diária, desde que seja
líquida, pode ser considerada diarreia, ao passo que, se forem formadas, mesmo duas ou
mais evacuações por dia não caracterizam diarreia.
O aumento do teor de gorduras nas fezes define a esteatorreia. As diarreias
agudas (até quatro semanas de duração, no mais das vezes, menos de uma semana), em
geral, têm causas diferentes das diarreias crônicas. Na determinação da causa de uma
diarreia, devem ser procurados elementos para identificá-la como aquosa, inflamatória
ou esteatorreia.
Quando a parte comprometida é o intestino delgado e/ou hemicólon direito, a
tendência é o paciente apresentar evacuações volumosas, pois a maior parte da absorção
de água foi comprometida ou ativamente secretada (o intestino delgado absorve cerca de
9 a 10 litros de água por dia, incluindo a ingerida e a das secreções). Normalmente, não
excedem dez evacuações por dia. Quando a parte afetada for o segmento retossigmoide
(que atua como órgão de armazenamento), as evacuações tendem a ter pequenos
volumes.
Em geral, o número de evacuações diárias supera dez. Também é interessante
verificar se a diarreia aquosa é osmótica ou secretora.
A diarreia osmótica resulta da presença aumentada de solutos não eletrolíticos
ingeridos (por exemplo, lactose, sais de magnésio) que, por osmose, retêm água em
excesso na luz intestinal; tendem a cessar quando a ingestão é interrompida. A diarreia
secretora é devida à secreção de eletrólitos e água pelo intestino delgado (por exemplo,
por bactérias) ou cólon proximal (por exemplo, sais biliares não absorvidos no íleo);
tendem a não cessar quando a ingestão é interrompida.
A diarreia inflamatória pode reunir elementos dos tipos osmóticos e secretor, além
de sangue e pus nas fezes, particularmente quando a agressão ocorre na mucosa das
porções distais do intestino.
A esteatorreia caracteriza-se por evacuações volumosas e brilhantes, que podem
deixar aparentes pequenas gotas oleosas na superfície da água do vaso sanitário. A
simples flutuação de fezes não indica esteatorreia, mas, simplesmente, fezes de baixa
densidade pelo seu alto teor em gases.
Quando o processo de digestão e absorção no intestino delgado está alterado (por
exemplo, na insuficiência pancreática e na doença celíaca, respectivamente), o volume
de cada uma das evacuações, bem como o total diário, pode estar muito aumentado e o
paciente pode observar que as fezes emitidas deixam gotículas de gorduras
sobrenadando na água do vaso sanitário. Quando ocorre aumento da secreção intestinal
(diarreias secretoras), como acontece, por exemplo, na má absorção de sais biliares pelo
íleo terminal (diarreia coletérica) ou, principalmente, no cólera, também os volumes
evacuados são muito grandes. Evacuações em pequenos volumes ocorrem quando o reto
é afetado por um comprometimento inflamatório (retocolite ulcerativa inespecífica,
retites bacterianas, amebianas e outras, câncer de reto). Nesses casos, a diminuição do
limiar retal para o desencadeamento do reflexo da evacuação, provocada pela
inflamação, faz que os pequenos volumes que adentram o reto, exacerbem os reflexos
normais, provocando fortes movimentos para que sejam expelidos; a sensação
experimentada é a de uma desagradável e violenta expulsão do conteúdo retal – e isso é
denominado tenesmo ou puxo. Frequentemente, o material eliminado contém sangue,
muco ou pus, alterações que, associadas à presença do tenesmo, definem a síndrome
disentérica.
É de interesse saber o horário preferencial em que as evacuações diarreicas
acontecem: depois das refeições, na síndrome do intestino irritável; se noturnas, na
neuropatia visceral diabética; as diarreias funcionais não costumam despertar o paciente
de seu sono. É de grande valor diagnóstico identificar outros sintomas e sinais
acompanhantes das diarreias.
 Obstipação intestinal, constipação, ou prisão de ventre: Nomeiam o
quadro clínico caracterizado por evacuações dificultosas, seja por eliminação fecal
infrequente (menos de três vezes por semana ou a intervalos superiores a 48 horas) ou
incompleta, geralmente acompanhadas de sensação de desconforto e distensão
abdominal. É importante que se faça o diagnóstico diferencial entre as duas
modalidades básicas de constipação intestinal: a secundária, determinada por diferentes
causas de cunho orgânico, e a funcional, na qual não se consegue reconhecer uma causa
orgânica e que se associa a anormalidades no trânsito pelos cólons (lento ou normal, às
provas de investigação), à dissinergia nos mecanismos de evacuação (constipação
dissinérgica ou de saída) ou à hipossensibilidade retal no desencadeamento dos reflexos
para a evacuação. O diagnóstico de constipação funcional pode ser feito apenas com os
dados clínicos ou pode exigir investigação complementar.
Pela anamnese, deve-se verificar se a alteração no funcionamento intestinal
ocorreu recentemente (semanas, meses) ou se já existe há anos.
Deve-se obter informações sobre o grau de esforço para evacuar e se o paciente
tenta a remoção digital das fezes endurecidas. É indispensável inquirir se há ou não
obediência sistemática ao chamado fisiológico para a evacuação, se existem erros
alimentares (uso excessivo de alimentos constipantes ou baixa ingestão de fibras
vegetais e de água) ou sedentarismo excessivo. Também se deve verificar se há
sangramento ou dor à evacuação, indicativos da possibilidade de doença no intestino
terminal. A associação de constipação intestinal com dor abdominal, aliviada pela
evacuação, é um dos critérios para o diagnóstico da síndrome do intestino irritável, e
indica, tão somente, que ela é de origem cólica, não afastando doença orgânica.
 Meteorismo/ flatulência: Meteorismo é a distensão abdominal
decorrente do acúmulo de gases no interior das alças intestinais. Flatulência designa o
quadro de meteorismo acompanhado de desconforto e/ou dor abdominal e excessiva
eliminação de gases através do ânus, que aliviará temporariamente os sintomas; se o
acúmulo de gás (ar) estiver predominantemente no estômago (aerofagia), o alívio se
dará pela eructação. O acúmulo se dá por excessiva produção de gases por ação
bacteriana no intestino grosso (por exemplo, na deficiência de lactase) ou de ar
deglutido (aerofagia) e, ainda, por redução de sua eliminação, quando se associa à
constipação intestinal. É importante assinalar que o meteorismo com forte redução da
eliminação de flatos integra o quadro clínico da obstrução intestinal.
 Outros sintomas: Outros sintomas e sinais que devem ser avaliados na
história clínica e exame físico incluem a icterícia e o sangramento digestivo.
 Icterícia: É a coloração amarela que adquirem pele e mucosa, mais
perceptível nas escleróticas, quando impregnadas pela bilirrubina, em consequência do
acúmulo desse pigmento no sangue. O acúmulo resulta de uma ou mais anormalidades
no metabolismo da bilirrubina que determina, em condições agudas ou crônicas, uma
produção excessiva do pigmento ou uma incapacidade do fígado em eliminá-lo.
Dependendo de vários fatores, é detectada somente quando a concentração de
bilirrubinas plasmáticas supera 1,5 a 3,0 mg/dl. A deposição de caroteno nos tecidos
(hipercarotenemia) produz coloração amarelo-alaranjada na pele, principalmente na
palma das mãos, e pode induzir um falso diagnóstico de icterícia, da qual se diferencia
por não mudar a cor das escleróticas.
Na anamnese de um paciente com icterícia, sempre é preciso verificar se esta foi
precedida por outros sintomas (por exemplo, dores, febre, inapetência, adinamia). É
necessário investigar se houve alteração na cor da urina (comparável a chá forte ou
Coca-Cola®) em virtude da presença de bilirrubina conjugada em excesso (colúria), que
pode preceder o amarelamento das escleróticas. Também se deve investigar se as fezes
tornaram-se claras ou esbranquiçadas, indicando que o pigmento biliar não chegou ao
intestino (colestase), o que pode ocasionar prurido cutâneo. É importante estabelecer a
sequência com que se instalou a icterícia e os sintomas que lhe são associados (por
exemplo, a febre a precede nas hepatites, mas surge no paciente já ictérico nas
colangites), se é contínua e progressiva (como no câncer de pâncreas) ou intermitente
(como nas coledocolitíases).
É importante considerar a faixa etária do paciente, pois muitas das doenças que
produzem icterícia restringem-se ao período neonatal (por exemplo, hiper-hemólise,
hiperbilirrubinemias congênitas), outras são mais frequentes na infância ou adolescência
(hepatite A), ou na meia-idade (litíase biliar) e, ainda, outras afetam,
predominantemente, pessoas com mais de 40 anos de idade (por exemplo, neoplasias
malignas). Nos antecedentes pessoais deve-se investigar se o paciente foi exposto a
condições que transmitem as hepatites B e C (por exemplo, transfusões de sangue) ou a
leptospirose (águas de enchentes). Deve-se, também, verificar o uso atual ou recente de
medicamentos, pois, em princípio, todos são potencialmente capazes de produzir dano
hepático, embora alguns o façam com maior frequência do que outros; a prova da
retirada da droga nem sempre produz reversão imediata da icterícia. Outra importante
informação relaciona-se ao consumo excessivo de bebidas alcoólicas pelo paciente,
causa frequente de hepatopatias crônicas e agudas.
Uma classificação concisa das icterícias, que considera o tipo de bilirrubina
predominantemente aumentado no plasma e os locais e causas da anormalidade, está
descrita na tabela abaixo:

 Sangramento digestivo: Há muitas causas que provocam


hemorragia no tubo digestivo. A expressão clínica da hemorragia digestiva depende do
volume de sangue extravasado, do tempo durante o qual ocorre a perda de sangue, do
tempo em que o sangue extravasado permanece no interior do tubo digestivo e do local
do sangramento. Pequenas, mas constantes, perdas de sangue (por exemplo, casos de
câncer de estômago ou de cólon) exteriorizam-se por anemia crônica; a perda de sangue
pode ser inaparente, detectável somente por meios laboratoriais. Grandes hemorragias
costumam ser agudas e se manifestam por vômitos sanguinolentos (hematêmese) ou
por evacuações de fezes enegrecidas, com aspecto de borra de café (melena), de cheiro
pútrido, ou pela emissão de fezes com sangue vivo ou constituídas inteiramente por
sangue vivo (enterorragia). O sangue vertido para o interior do tubo intestinal torna-se
enegrecido pela ação das secreções digestivas, particularmente do ácido clorídrico, o
que exige um certo tempo de contato. A hematêmese indica que o local do sangramento
se situa em área proximal ao ângulo duodeno-jejunal (ângulo de Treitz). Sangramentos
que ocorrem em locais situados oral ou aboralmente a essa referência anatômica podem
provocar melena ou enterorragia, dependendo do tempo em que atravessam o tubo
digestivo. Hematêmese com sangue enegrecido é comum nos sangramentos por ruptura
de varizes esofágicas, uma vez que o sangue vai ao estômago antes de ser vomitado.
A mais grave consequência das grandes hemorragias digestivas é o desequilíbrio
hemodinâmico (hipotensão arterial, choque), que se manifesta por tonturas, sede
intensa, desmaio, taquicardia e sinais de lesão de órgãos nobres, em consequência do
sofrimento isquêmico. É particularmente grave no idoso.
Ao realizar a anamnese de um paciente com hemorragia digestiva deve-se ter em
mente as principais causas de hemorragias digestivas altas e baixas.

B Exame físico: Quando o médico utiliza seus órgãos dos sentidos para perceber
manifestações da doença que afeta seu paciente, ele está realizando o exame físico, tão
importante para o diagnóstico como a anamnese. Informalmente, o exame físico começa
quando o médico lança seu primeiro olhar para o paciente. Formalmente, segue-se à
anamnese, empregam-se os sentidos da visão, tato e audição para realizar a inspeção,
palpação, percussão e ausculta, dentro de regras e técnicas especiais para ser realizado.
Para que ganhe força diagnóstica, todos os sinais observados devem ser
individualizados para cada paciente, isto é, devem ser conhecidos em todas as suas
características particulares para que sejam discutidos e criticados dentro da lógica
clínica, a fim de fornecer elementos significativos para a elaboração das hipóteses
diagnósticas.
O gastroenterologista deve proceder ao exame completo do paciente e não se
restringir ao exame do abdome. Os pacientes não podem ser estudados nem
compreendidos corretamente se o todo orgânico não for considerado. O médico não
pode se esquecer de que o ser humano é um conjunto harmônico, e não um grupamento
de órgãos isolados entre si. Por essas razões, desde quando a especialidade foi se
consolidando, insiste- se que é preciso que o gastroenterologista tenha boa base de
conhecimentos gerais de medicina.
Ressalta-se que o exame do períneo e o toque retal se constituem em
procedimentos importantes para o diagnóstico de várias afecções que atingem o tubo
digestivo, particularmente as de sua parte terminal. Muitas vezes, achados físicos em
terreno extra-abdominal constituem poderoso auxiliar no diagnóstico de doenças
digestivas. Nas tabelas abaixo são apresentados, respectivamente, alguns exemplos de
achados do exame físico extra-abdominal que podem indicar a causa de dor abdominal e
de achados físicos extra-abdominais ou sistêmicos relacionados a algumas doenças
digestivas.
B Raciocínio diagnóstico: A elaboração do diagnóstico é feita por meio de um
processo mental que é chamado de raciocínio diagnóstico, em que são considerados e
analisados os dados obtidos na anamnese e no exame físico, tendo por base o
conhecimento que o médico (gastroenterologista, neste contexto) tem das doenças que
podem apresentar manifestações digestivas; além disso, os conhecimentos de anatomia,
anatomia patológica, fisiologia e fisiopatologia são de grande utilidade. Salientando a
importância dos conhecimentos anatômicos básicos, Fritz Koeberle, primeiro professor
de patologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, dizia que, muitas vezes, basta
ao médico pensar, tão somente, como um encanador (deve conhecer a anatomia dos
“encanamentos” do corpo humano) para chegar a um diagnóstico. A fim de ilustrar o
fato de que o raciocínio diagnóstico deve ser baseado em dados concretos obtidos no
próprio paciente que se está examinando, e não em suposições e imaginações,
evidencia-se neste capítulo a pintura A Visita Médica, que une medicina e arte, feita
pelo holandês Frans van Mieris (1635-1681), na qual o médico palpa o pulso de uma
paciente, enquanto, com a outra mão, aponta para a própria cabeça. Pode-se interpretar
que nessa tela o artista quis expressar que o médico deve desenvolver o processo mental
do raciocínio clínico a partir de dados encontrados objetiva e especificamente naquela
paciente (o grande clínico Thomas Sydenhan, contemporâneo do artista e considerado
o Hipócrates inglês, ensinava que a doença era uma entidade dinâmica e, por isso, suas
expressões podiam variar de uma pessoa para outra) e que ele deve ser elaborado
mesmo durante o exame do doente.
O desenvolvimento do raciocínio clínico só é feito por meio de estudos
persistentes, realização de boas observações clínicas, exercícios de diagnóstico
diferencial e pela experiência pessoal prática que o médico vai adquirindo ao longo do
tempo. É importante que esse desenvolvimento seja iniciado ainda nos bancos
acadêmicos pelo exemplo dos bons mestres e pela dedicação dos alunos. Deve ser
lembrado, entretanto, que a prática médica não se conquista simplesmente com o
número e a banalidade das experiências vividas, mas por relembrar, meditar e estudar os
casos observados. Sem essa prática, a tendência é para o relaxamento no exercício
profissional e, cada vez mais, a perda da capacidade de realizar diagnósticos clínicos,
deixando os clientes à mercê das máquinas e dos relatórios de exames.
Em uma primeira etapa de sua formação, quando ainda não conhece bem as
doenças, o estudante (ou o médico) faz toda a coleta dos achados clínicos para depois
analisá-los com vistas ao diagnóstico. Com o avançar de seus conhecimentos, pelo
estudo e pela experiência, o processo de diagnóstico corre passo a passo com a obtenção
dos dados clínicos.
As hipóteses diagnósticas vão surgindo desde o início da consulta e se fortalecem
ou enfraquecem na mente, na medida em que se conhece melhor o quadro clínico do
paciente.
Adverte-se que é sempre necessário o cuidado para que não se elabore uma
hipótese diagnóstica sem solidez, de modo a se entusiasmar excessivamente com ela e
forçar as ideias em sua direção, desembocando em diagnósticos errôneos.

B Diagnóstico definitivo: Ao fim de uma consulta, chega-se ao diagnóstico final


ao definir qual a doença ou síndrome que, com certeza ou com maior probabilidade, é a
responsável pelos sofrimentos do paciente e que deve ser o alvo das medidas
terapêuticas. Muitas vezes, entretanto, chega-se a indicar várias doenças, algumas com
maiores, outras com menores chances de serem incriminadas como responsável pelo
quadro clínico apresentado pelo paciente. Sempre que possível, é interessante saber a
hierarquia das probabilidades e procurar confirmá-las ou afastá-las dentro do melhor
juízo clínico, levando-se em conta a gravidade e a frequência das doenças consideradas.
Não raro, são necessárias várias consultas e investigações laboratoriais e de imagem até
chegar ao diagnóstico definitivo.
Como receita para obterem sucesso, relembra-se aos gastroenterologistas,
formados ou em formação, uma frase de Pedro Pezzuti, médico italiano que atuou
durante muitos anos no interior de Minas Gerais (Araxá) em meados do século passado:
“O sustentáculo de toda prática médica é o diagnóstico preciso; o que pode
acontecer depois é a consequência lógica de uma premissa”.

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