Você está na página 1de 16

Ensaio .....

Entre a Ciência e a Não-Ciência


MériRosaneSantosdaSilva*

Resumo um código através do qual as relações sociais se


estruturam, código este que serve de base para definir
Com a consolidação da ciência como princípio
tanto as identidades sociais quanto as individuais que,
definidor da sociedade moderna, pensadores dis-
aomesmotempo,sãoconstruçõeshumanas,comob-
cutem os critérios delimitadores do saber científico
jetivosbemdefinidos.
em relação aos demais conhecimentos, ou seja,
busca-se estabelecer os critérios de cientificidade, Nestesentido,Maffesoli(1994)1 sustenta que todos os
de demarcação entre ciência e não-ciência, para a períodoshistóricosdahumanidadesãomarcadospela
partir daí, estabelecer quais saberes seriam signifi- existência de um “mito fundador”. Especificamente
cativos e quais deveriam ser desconsiderados pela comrelaçãoàIdadeModerna,estemitofundadorsão
sociedade. Para verificar a trajetória deste empre- a Ciência e aTecnologia. Ou seja, na sociedade mo-
endimento, o objetivo deste trabalho é analisar derna, a verdade científica é a base para que se possa
como é definido e estabelecido este critério de de- intervir nos fenômenos ou fatos e, fundamentalmen-
marcação do conhecimento científico, isto é, quais te, ela instrumentaliza o homem para que ele possa
são os limites de definição entre o conhecimento agir.Assim como a mitologia e a filosofia, a ciência
considerado científico e outras formas de saber. tem por objetivo buscar uma maneira de explicar o
real. Porém o que a diferencia é o modo como isso é
Palavras-chave:ciência,critériodecientificidade,co-
feito, visto que, a ciência estabelece os passos a serem
nhecimento.
seguidos,semumapreocupaçãomuitoexpressadese
adequar ao objeto a ser apreendido e ao homem. Ou-
Introdução traespecificidadeéqueosgrandespensadoresdaIda-
O processo de construção e de análise da sociedade de Moderna, que construíram o pensamento científi-
humana é marcado por duas perspectivas: a primeira co,nãoestavamnecessariamente,vinculadosanenhu-
éestabelecidaatravésdenarrativasedefinequeacons- mainstituiçãoetodossepreocupavamcomaquestão
trução do mundo é um ato divino, onde a ação huma- doconhecimentoecomométodo.
na tem pouca ou nenhuma participação. Na segunda, Emfunçãodaconsolidaçãodaciênciaenquantoprin-
o homem toma para si a responsabilidade de intervir cípio definidor da sociedade moderna, muitos pensa-
de forma mais contundente no processo de definição dores começaram a discutir quais os critérios
do mundo e esta tarefa é realizada, principalmente, delimitadores do saber científico em relação aos de-
através da ação humana. maisconhecimentos,ouseja,umadastarefascoloca-
Dentrodestasegundaperspectiva,omundo,talcomo das para aqueles que se dedicam à Filosofia da Ciên-
está estruturado, é uma construção onde a ação do cia,passouaseradefiniçãodocritériodecientificidade,
homemrepresentaumdosaspectosfundamentaisde de demarcação entre ciência e não-ciência, para a
sua existência. Cada período histórico é marcado por partir daí, estabelecer quais saberes seriam significati-

73 Movimento
Movimento, Porto Alegre, V. 18, n. , p. 73-88, setembro/dezembro 2002
vosequaisdeveriamserdesconsideradospelasocieda- lógica”comotambém“antropocêntrica”e,principal-
de.Paraverificaratrajetóriadesteempreendimento,o mente, a verdade sobre o mundo aparece como uma
objetivo deste trabalho é analisar como é definido e obra humana.Assim, a ciência moderna além de tor-
estabelecido este critério de demarcação do conheci- nar-se “centro dos valores” e das produções culturais,
mento científico, isto é, quais são os limites de defini- deixadesercosmológica,geocêntricaouteocêntrica.
ção entre o conhecimento considerado científico e Nosentidodemelhorentenderodesenvolvimentoda
outrasformasdesaber? ciência, segundo a concepção de Arendt (1983)3 , na
Para atender a este objetivo, buscaremos analisar, na era moderna há três grandes eventos que lhe determi-
primeirapartedestetrabalho,algumasperspectivasso- nam o desenvolvimento da ciência moderna: 1º) a
bre a natureza da ciência, discutindo qual tem sido o descobertadaAméricaeasubsequenteexploraçãode
papeleaimportânciaqueosabercientíficonasocieda- toda aTerra; 2º) a Reforma Luterana que, “expropri-
de moderna. No segundo momento, a análise se con- ando” as propriedades eclesiásticas e monásticas, de-
centraránasconcepçõesdoindutivismo,dofalsificacio- sencadeou o duplo processo de “expropriação indivi-
nismodePopper,do“falsificacionismosofisticado”de dual e acúmulo de riqueza social” e, 3º) a invenção
Lakatos,davisãoparadigmáticadeThomasKuhnedo do telescópio, ensejando o desenvolvimento de uma
“anarquismo”deFeyerabend,nosentidodedefinirmais nova ciência que passou a ver a natureza e aTerra, do
claramenteopensamentodecadaumadestascorren- ponto de vista do universo. Em outra perspectiva,
tes,destacandocomocadaumcaracterizaopensamen- Japiassú (1994), diz que “foi a partir da Revolução
toeofazercientífico,tentando,aofinaldecadaconcep- Francesa, que a Ciência se revelou como uma força
ção,estabelecerumdiálogoentreospensadoresanali- produtiva e passou a desempenhar um importante
sados,verificandoemquaisaspectoselesseaproximam papel no mundo da indústria e da economia. Hoje,
eemquaissãodiferenciados. nossas sociedades procuram implantar unidades e re-
desdeproduçãodeconhecimentoscientíficos”.4
O papel da Ciência Moderna Ainda na opinião de Foucault (1992), foram três as
Aciênciatemtidoapretensãodedefinireesclareceros condições fundamentais que determinaram a produ-
enigmas da natureza, para com isso, resolver os pro- çãocientíficanoséculopassado:condições econômi-
blemas da humanidade. Ou seja, a partir de um corpo cas– pois o desenvolvimento da sociedade industrial
deconhecimentos,produzidosapartirdeumprocesso produziu problemas novos, que necessitavam ser re-
que tem priorizado a teorização, busca a solução de solvidos –; condições políticas – porque se tornou in-
problemas – que em princípio advêm da relação do dispensável uma transformação das estruturas políti-
homem com a natureza –, produzindo uma série de cas nas quais se pudesse situar a produção da rique-
conceitosoperatórios,baseadosemprincípiospráticos, za –; e condições teóricas, – pois o modelo das ciên-
aplicáveis e com caráter de universalidade. cias naturais, passa a ser estabelecido como o lugar
De forma simplificada, podemos dizer que a história mesmodaverdade.5
daCiência,segundoJapiassú(1994)2 , divide-se em três Aconcepçãomodernadaciênciafoiinfluenciadapor
concepções: a clássica – ciência grega –, a cristã – correntes filosóficas importantes, tais como, o
teologia patrística e escolástica – e a moderna. Esta Iluminismo,quesurgiunoséculoXVIIIesecaracteri-
última, encontrou fundamento na revolução galli- zapelaperspectivadoracionalismoedomecanicismo
leana e se caracterizou por ser centrada na figura hu- científico.Nestesentido,oquesedevebuscaréopoder
mana e mais especificamente, no homem individua- teórico e prático da razão e finalidade é o domínio da
lizado, isto é, a análise do mundo é não só “antropo- natureza. Embora tenha sido considerado o grande

74 Movimento
Movimento, Porto Alegre, V. 8, n. 3, p. 73-88, setembro/dezembro 2002
responsável pela crise do pensamento filosófico, o ciência moderna, além do moderno ideal de reduzir
Iluminismo introduziu a idéia da ação humana em dados sensoriais e movimentos terrestres a símbolos
detrimento da contemplação, princípio norteador do matemáticos. Com isto, a física passou a ser a princi-
pensamentoteológico.Outroprincípioimportantecon- pal ciência da era moderna, que além de ampliar o
solidadonessemomentoéodacausalidade,quemos- seuconteúdo,deixoudesepreocuparcomaparências,
travaanecessidadedeseestabelecerascausasdascoi- que só serão preservadas se puderem ser reduzidas a
sas, as quais deveriam ser descobertas para poderem uma ordem matemática.
“explicareapreenderomundo”.Assim,arazãosubs- Nasociedademoderna,averdade“construída”apar-
titui o pensamento teológico na sua função de definir tir de princípios científicos é a base para que se possa
e conduzir o modo de ser do homem e é ela também, intervir nos fenômenos ou fatos e, fundamentalmen-
que deveria restaurar a natureza humana pura, visto te, ela instrumentaliza o homem para que ele possa
que, a razão era universal e destituída de preconceitos agir.Assim como a mitologia e a filosofia, a ciência,
religiosos. na modernidade, tem por objetivo buscar uma ma-
OpositivismoconstruídoporComte,tambémfoiou- neira de explicar o real. Porém, o que a diferencia tan-
trainspiraçãofundamental,queconsolidouaconcep- to da mitologia quanto da filosofia, é o modo como
ção científica, como pressuposto básico para a huma- isso tem sido feito, visto que, a ciência se caracteriza
nidade.SegundoJapiassú(1994),paraopositivismo, por estabelecer uma série de procedimentos que de-
a ciência e a técnica deveriam ser o centro de todas as vemserseguidosparasebuscarestaverdade.Aconse-
ações humanas, inclusive para o Estado, que não po- qüência disso, é que, em muitos momentos, preocu-
deria ser dirigido pela tradição jurídica, mas por téc- pa-semaiscomo“método”deobtençãodestaverda-
nicos e cientistas. Dentro desta perspectiva, o ideal de, do que com o produto de sua busca.
humanopassaaseroindivíduo“positivo”,aqueleque Nesta perspectiva, a ciência busca conhecimentos li-
respeita o rigor científico e que age baseando-se na vres de impressões, de segredos e do relativismo da-
análise dos fatos. quela linguagem que enuncia as qualidades. As prin-
Consolidandoestaperspectiva,amodernaconcepção cipais considerações a respeito da ciência, para Alves
astrofísica do mundo, que teve início com Galileu, e a (1986), são no sentido de que ela busca receitas, des-
dúvida que lançou quanto à capacidade dos sentidos crições claras e precisas de como se deve manipular a
de perceberem a realidade, construíram uma concep- natureza para se obter determinados resultados, ou
çãoondeasverdadeslegítimassãoaquelasqueforam seja,
captadas e apreendidas pelos instrumentos de medi-
as receitas científicas só serão aceitas como tais se pude-
ção. Para Arendt (1983), o problema é que as “verda- rem ser repetidas em série. Com a ciência moderna
des”davisãomodernademundo,emborapossamser desaparecem as propriedades estéticas e éticas do uni-
demonstradasemfórmulasmatemáticasecomprova- verso. Ele se reduz a um conjunto de relações formais e
daspelatecnologia,jánãoseprestamàexpressãonor- abstratas que podem ser manipuladas/conhecidas pelo
mal da fala e do raciocínio. Assim, segundo a autora, homem.(Alves, 1986, p. 34)6
ao invés de observar os fenômenos naturais tal como Segundooautor,opensamentopassa,assim,aternova
estesselhesapresentavam,colocouanatureza“sobas função,istoé,deveestabelecerdescriçõesminuciosas
condiçõesdecorrentesdeumpontodevistauniversal darealidadeobjetiva,enquantoqueopropósitodaação
eastrofísico,umpontodevistacósmicolocalizadofora consisteemmanipularestamesmarealidade.Estessão
da própria natureza”.Aobjetivação do universo tor- os “dogmas básicos” de nossa era científico-
nou-se e continua sendo até hoje, a característica da tecnológica. Graças à ciência, o poder busca se orga-

75 Movimento
Movimento, Porto Alegre, V. 8, n. 3, p. 73-88, setembro/dezembro 2002
nizardeformaasetornarquaseinvulnerávelesecon- A concepção indutivista, denominada por Chalmers
solida uma situação interessante: aqueles que têm (1993), como “ingênua por ser equivocada e, muitas
imaginaçãonãopossuempoder,eosqueodetêmnão vezes,enganadora”,estabeleceafirmações“verdadei-
possuem imaginação. A “ciência e a tecnologia colo- ras” sobre o mundo e a natureza, tendo como referên-
caramdemasiadopodernasmãosdospoderosos”7 . cia o uso dos sentidos de um “observador não
preconceituoso”.Asinformaçõesproduzidasporeste
As demarcações do processode produçãodeconhecimento, emborapar-
pensamento científico tam de observações de fenômenos singulares, esten-
demassuasconclusõesa“todososeventosespecíficos
Embora a ciência tenha adquirido papel tão impor- emtodososlugareseemtodosostempos”,atravésde
tante no mundo moderno, uma tarefa continua mui- “afirmaçõesuniversais”.10 A partir desta concepção,
topresenteparaaquelesquesededicamàFilosofiada desdequealgumascondiçõessejamrespeitas,é“legí-
Ciência, qual seja, a definição do critério de timo generalizar a partir de uma lista finita de propo-
cientificidade. Este critério seria o que definiria e deli- sições de observação singulares para uma lei univer-
mitaria o conhecimento científico e o que o diferenci- sal”. Neste sentido, para que haja generalização, cer-
ariadasdemaisformasdeconhecimento,ouseja,quais tas condições devem ser satisfeitas, qual seja: deve-se
são os critérios de demarcação entre o conhecimento realizarumnúmerograndedeobservações;queestas
consideradocientíficoeoutraformadesaber?Como devemserrepetidassobváriascondições;equenenhu-
o objetivo deste trabalho é analisar como é definido e ma“observaçãodeveconflitarcomaleiuniversalde-
estabelecido este critério de demarcação do conheci- rivada”.
mento científico, buscaremos analisar algumas pers-
Ao pensamento científico é dada a tarefa de não só
pectivas de análises sobre a natureza da ciência. Esta
explicar os fenômenos naturais e sociais, mas tam-
análise se concentrará na análise das concepções do
bém, prever novos acontecimentos e para cumprir tal
indutivismo, do falsificacionismo de Popper, do
pressuposto,oindutivismoutilizaoraciocíniológico-
“falsificacionsmo sofisticado” de Lakatos, da visão
dedutivo, considerando que se “as premissas de uma
paradigmática de Thomas Kuhn e para concluir, o
dedução logicamente válida são verdadeiras, então a
“anarquismo”deFeyerabend.
conclusãodeveserverdadeira”.11 Entretanto, não se
No que se refere ao indutivismo, segundo Chalmers poderecorreràmesmalógicaparadefinirseumapres-
(1993), é uma “concepção de senso comum, ampla- suposição é verdadeira ou não, ou seja, o pensamento
mente aceita, que parte de teorias derivadas da obten- lógico-dedutivo não funciona como uma “fonte de
çãode“dadosdaexperiênciaadquiridosporobserva-
afirmações verdadeiras sobre o mundo”, pois a dedu-
çãoeexperimentação”8 Segundo este mesmo autor,
ção estaria condicionada a outras afirmações “dadas”
esta compreensão de ciência é baseada no raciocínio
ouconstruídas.
indutivo, que parte de “uma lista finita de afirmações
singulares para justificação de uma afirmação uni- Assim,aobjetividadeindutivista,derivadadaobserva-
versal”9 , cuja construção do conhecimento científico ção,doraciocíniológico-dedutivoeda“inexistência”
se dá a partir daquilo que podemos ver, tocar, ouvir e devaloressubjetivosdeopinião,mostra-seequivoca-
aspreferênciaspessoaiseasespeculaçõesnãotêmlu- do e com pouca possibilidade de sustentação, pois as
gar. É o princípio da objetividade, que considera teoriascientíficasapoiadasnaexperiênciatemsemos-
confiávelapenasaqueleconhecimentoqueéprovado trado bastante duvidosas e afastadas do princípio que
objetivamente. tanto valoriza, qual seja, o primado da objetividade.

76 Movimento
Movimento, Porto Alegre, V. 8, n. 3, p. 73-88, setembro/dezembro 2002
Portanto,oindutivismobaseadonaspremissasdeque Oautorconclui,afirmandoquepossíveisrespostasao
aciênciacomeçacomaobservação–sendoqueestas problema da indução podem ser encontradas através
observaçõesfornecemumabasesegurasobreaqualo deumapostura“cética”,semelhanteadeHume(apud
conhecimentocientíficopodeserconstruídoequeeste Chalmers, 1993) que sustentava que as “crenças em
conhecimento é obtido a partir de proposições de ob- leis e teorias nada mas são que hábitos psicológicos
servações –, não pode ser justificado puramente por que adquirimos como resultado de repetições das ob-
bases lógicas, pois um método não pode valer-se dele servaçõesrelevantes”,oquelevaaconclusãodequea
mesmoparasejustificar.Alémdisso,os“argumentos ciência não pode ser justificada racionalmente. Para
indutivosnãosãoargumentoslogicamenteválidos”12 , completar, o autor diz que “se o princípio de indução
porqueadefiniçãodequeumconhecimentoésignifi- deveserdefendidocomorazoável,algumargumento
cativocientificamenteouconsideradosupérfluo,éfei- maissofisticadodoqueumapeloàsuaobviedadedeve
totendocomobaseo“conhecimentoteóricodasitua- seroferecido”.
çãoeostiposdemecanismosfísicosemvigor”13 Partindo exatamente da crítica sobre a possibilidade
Para tentar superar as críticas que a concepção de, a partir de enunciados singulares – estabelecidos
indutivistarecebeuarespeitodailegitimidadedasafir- atravésdedescriçõesderesultadosouexperimentos–
maçõesqueproduz,ospensadoresbuscaramosrecur- ,poder-seestabelecerenunciadosuniversais–através
sos da probabilidade para sustentar suas produções de hipóteses ou teorias – é que Popper constrói sua
científicas,assim,segundoChalmers(1993)“embora teoria do Falsificacionismo, pois para ele estas con-
generalizações às quais se chega por induções legíti- clusõestendematornarem-sefalsas.Partindodosprin-
mas não possam ser garantidas como perfeitamente cípiosdométodohipotético-dedutivo,oautordizque
verdadeiras, elas são provavelmente verdadeiras”.14 a fragilidade do indutivismo está justamente no fato
Oprincípioprobabilísticosesustentatambém,nacom- dequesendoumenunciadouniversal,teremosdecon-
preensão de que quanto maior o número de observa- siderar sua verdade como decorrente da experiência,
ções,maiorseráaprobabilidadedeacertodeumapre- entretanto, para justificá-la teremos de recorrer a pró-
visão. pria inferência indutiva e, para que esta seja confiável,
No entanto, embora a versão probabilística tente dar novamenteteremosqueadmitirumprincípioindutivo
sustentabilidadeassuasafirmaçõesebusquesermais deordemmaiselevada,eassimpordiante,conduzin-
cautelosa em suas generalizações, permanece o prin- do a uma “regressão infinita”.
cípio de estabelecer afirmações universais, a partir de Diferentementedoindutivismo,Popperconsideraque
umnúmerofinitodeobservações.SegundoChalmers as mitologias são fundamentais para o processo de
(1993), este problema está vinculado à dificuldade de conhecimento,inclusiveocientífico,poisentendeque
“ser preciso a respeito justamente de quão provável é todaaciênciacomeçacomumproblemaquepartede
uma lei ou teoria à luz de evidência especificada”.15 umaquestãomítica.Dessemodo,noseuentendimen-
Alémdisso,produznovascríticasqueestãovinculadas to, o mecanismo propulsor da busca de um novo co-
principalmente, a uma prática anti-indutivista – pois nhecimento é puramente irracional, próximo portan-
a ciência produz um conjunto de previsões individu- to, do pensamento mitológico. No entanto, a resposta
ais ao invés de afirmações gerais – e a denúncia de aesteproblemaseexpressaatravésdeproposiçõesea
que as teorias científicas produzidas pelo indutivismo construção destas proposições precisam respeitar de-
probabilísticoestão“envolvidasnaestimativadapro- terminados critérios de cientificidade, sendo que isto
babilidadedeumaprevisãobemsucedida”. deve ser feito através da submissão desta resposta ou

77 Movimento
Movimento, Porto Alegre, V. 8, n. 3, p. 73-88, setembro/dezembro 2002
proposiçõesatestesempíricos,comoveremosdefor- provado pela experiência, seu critério de demarcação
ma detalhada, mais adiante. Popper também defende fordefinidonãoapenaspelaverificabilidade,maspela
que o processo de formulação de respostas a um pro- possível falseabilidade do sistema, ou seja, para que
blema, sempre inicia-se a partir de uma teorização e umenunciadosejaconsideradocientíficodeveserad-
que as teorias nada mais são do que aproximações da mitidocomopossíveis,tantoasuaverificaçãoecomo
realidade,sementretanto,termosgarantiasdequeesta sua falsificação. O objetivo deste método é selecionar
teorização efetivamente, explique a realidade. Para o o que se revele a melhor teoria, seguindo a direção
autor, a ciência não é um sistema de conceitos, mas, contrária ao método indutivo – pois parte da falsidade
de enunciados e que é fundamental que se estabeleça deenunciadosuniversaisedaverificabilidadedeenun-
critérios de demarcação entre uma teoria científica e ciados singulares –, e, para completar, a inferência
uma não científica. Para isto, estabelece os seguintes dedutiva se faz em direção indutiva, ou seja, de enun-
requisitosqueumateoriadeverespeitar:primeiramen- ciados singulares para universais.
te, deve ser sintética, de modo que possa representar Aexigênciadeobjetividadedaexperiênciatambém,é
um mundo não contraditório, isto é, um mundo pos- mantida por Popper, que baseado em Kant, defende
sível; em segundo lugar, deve ser não-metafísica, isto que o conhecimento científico deve ser justificável,
é, deve representar um mundo de experiências possí- submetidoaprovasecompreendidoportodos,portan-
veis; e, por último, deve ser diferente de outros siste- to, o autor sustenta que a objetividade dos enunciados
mas semelhantes, ser única no mundo de experiênci- científicos reside na sustentação de sua
as, além, é claro, deve ser submetida e admitida quan- intersubjetividade,desdequesubmetidaateste.Assim,
dodaaplicaçãodométododedutivo. Popper mantém o princípio kantiano que contrapõe
Popperdefendequeparaproduçãodeumnovoconhe- às atitudes dogmáticas, a necessidade de um procedi-
cimentonãoexisteummétodológico,poisesteproces- mento crítico em relação às proposições construídas
soencerraumnovoelementoirracionalouumaintui- para dar resposta a um determinado problema. O au-
çãocriadora.Segundooautor,alógicadoconhecimen- tor considera também, que a experiência subjetiva
toseestabelecequandoestasnovasidéiassãosubmeti- possuiumimportantepapelnoprocessodeprodução
das a uma série de provas sistemáticas, que buscam a doconhecimento,considerando-acomumobjetopró-
sualegitimidadeefidedignidade,ouseja,asnovascon- prio da investigação científica, que não deve ser
clusõessãocomparadascomoutrosenunciadosperti- desconsiderada.
nentes,demodoadescobrir-sequaisasrelaçõeslógicas Paraatenderaestespressupostos,Poppertrabalhacom
existementreelas.Casoacorrelaçãoforpositiva,ouseja, osconceitosdeconjecturaserefutações,construídosa
seasconclusõessemostraremaceitáveisoucompatí- partirdopensamentodeWittgenstein,HumeeKant,e
veis,ateoriaterásidoaprovadapelo“métododedutivo estabelecequestionamentossobreadelimitaçãoseuma
deprova,oudedutivismo”.Noentanto,seacorrelação teoria é científica ou pseudo-científica, mas mais no
for negativa ou não correspondente, ela será rejeitada. sentido de verificar se é possível estabelecer o caráter
Porém,oqueéprecisodeixarbemclaro,équeestacon- científico de uma teoria e não, se uma teoria é verda-
cepçãosalientaqueumateorianãosesustentapelaver- deira ou aceitável. De Wittgenstein, Popper admite a
dadedeseusenunciadossingulares,poisaverificaçãoe necessidadedeverificabilidade,designificânciaedos
aaprovaçãonométododedutivodeprova,nãosignifica princípiosqueestabelecemocarátercientíficodeuma
necessariamente,queateoriaéverdadeira. teoria. A partir de Hume, ele faz as principais críticas
Assim,umnovoconhecimentosópodeserreconheci- ao indutivismo, considerando-o como semelhante a
do como empírico ou científico se além de ser com- uma série de leis, que são respeitadas por hábito ou

78 Movimento
Movimento, Porto Alegre, V. 8, n. 3, p. 73-88, setembro/dezembro 2002
costume, e tem a sua origem na repetição ou na exis- çãodoconhecimentodeumlógicaformal,decorrente
tência de “uma série ordenada de eventos”.Também do pensamento kantiano, e o transfere para uma aná-
concordacomHumequandoestedizque“éimpossí- lisehistórica,maispróximaaopensamentohegeliano.
vel justificar uma lei por observação” e questiona o Critica as concepções do falsificacionismo, estabele-
indutivismo exatamente por este estar baseado na de- cendo uma gama de teorias que estão baseadas nesta
fesa e na utilização de leis e normatizações que são concepção e que ele as diferencia como: falsificacio-
consideradasuniversaisnotempoenoespaço. nismodogmático,falsificacionismometodológicoin-
Apartirdestesquestionamentossobreademarcaçãodo gênuoefalsificacionismometodológicosofisticado.No
queécientífico,Popperconcluiqueérelativamentefá- que refere ao primeiro, a principal critica está dirigida
cilobteraverificabilidadedequasetodasasteorias,prin- ao fato de que, embora haja o reconhecimento de que
cipalmentequandoseestábuscandosuaconfirmação. as teorias enquanto conjecturas, não podem ser pro-
Afirmaqueestassomenteseriamválidassehouvessea vadas, mas apenas refutadas por observações, isto faz
possibilidadedeocorrerumeventoquerefutariaateo- com que esta concepção mantenha-se vinculada ao
riaemquestão,equeestarefutaçãonãofossepossível empirismo, sem no entanto, ser indutivista.
deseresclarecidapelaprópriateoria.Assim,segundoo OutroaspectodacríticadeLakatosaofalsificacionismo
autor,apenasafalsidadedeumateoriapodeserinferida dogmáticoseconcentranaseparaçãoqueestefaz,entre
de uma evidência empírica, e essa inferência é pura- aquele que constrói uma proposição (teórico) e aque-
mentededutiva.Noseuentendimento,umateoriaque les que buscam a sua refutação (experimentador).
nãotempossibilidadedeserrefutadapornenhumevento Além disto, acrescenta que esta concepção apresenta
concebível,énão-científicaequea“irrefutabilidadenão um critério de delimitação científica muito restrito e
éumavirtudedateoria,massimumvício”,sendoque quesefundamentasobredoispressupostosequivoca-
todotestedeverificabilidadedeumateoriadeveseruma dos: um que afirma a existência de um limite “natu-
tentativa de falsificá-la ou refutá-la. Para tal, o autor ral, psicológico, entre as proposições teóricas ou
estabeleceinclusive,grausdetestabilidade,ondeuma especulativaseasproposiçõesfactuaisouobservacio-
teoriaémaisaceitaquandoelaémaisexpostaarefuta- nais”; e o outro, que é contestado pela lógica, ao de-
ções, e a confirmação de uma teoria só é considerada fenderqueumaproposiçãoestácorretaseatender“ao
válidasesuperarumasériatentativadefalsificaçãoda critério psicológico de ser factual ou observacional”.
teoria.
Quanto ao falsificacionismo ingênuo, que é baseado
Entretanto, caso uma teoria seja falseada por um teste no empirismo, este difere do primeiro, ao considerar
de verificabilidade, ela pode ser reconsiderada de sua que o valor de verdade das proposições não está nos
refutação,casoseusdefensoresestabeleçamumanova fatos, mas no acordo entre os cientistas e, portanto,
perspectiva de análise ou reinterpretem o “ponto fal- estas proposições não são universais, possuem legiti-
so”,tendocomoaspectonegativo,adestruição,ouno midade em determinado espaço e em determinado
mínimo diminuição, de seu caráter científico. tempo. Difere também, por propor um critério de de-
Outro autor fundamental para a análise dos critérios marcação científica que se baseia na possibilidade de
dedemarcaçãodoconhecimentocientíficoéLakatos, umfatopoderserrefutadoexperimentalmente,poristo
que na sua obra A Metodologia dos Programas de sua base é empírica. A critica de Lakatos a este tipo de
Investigação Científica, dá um enfoque novo ao uti- falsificacionismo, vai no sentido de que a história da
lizar a História para criticar os princípios que até en- ciêncianãoconfirmaestaconcepção,principalmente
tão, definiram o conhecimento científico. Assim, porque a maioria das experiências científicas, busca
Lakatosdeslocaaanálisesobreosprocessosdeprodu- confirmar ao invés de refutar determinadas teorias.

79 Movimento
Movimento, Porto Alegre, V. 8, n. 3, p. 73-88, setembro/dezembro 2002
Noqueserefereaoterceirotipodefalsificacionismo,o todecondiçõesiniciais,podesersubstituídoconforme
denominadoporLakatos,comosofisticado,sustenta- odesenvolvimentodoprograma.Paracompletar,sus-
se na perspectiva de que uma teoria é considerada ci- tenta que a seleção dos problemas é definida pela
entífica somente se possuir um consistente conteúdo heurística positiva e não pela negativa.
empírico e conduzir ao descobrimento de fenômeno Lakatos trabalha com dois conceitos principais: o pri-
novos.Nestesentido,oconteúdoempíricoéformado meiro ele chama de núcleo firme, que constituem
pela soma de teorias emergentes e as já consolidadas aquelas teorias ou pressupostos que são irrefutáveis,
anteriormente, e onde o progresso científico se dá por
cujoconhecimentotodaacomunidadecientíficaaceita
umprocessocumulativodeconhecimentoenãoape-
como verdadeiro e a partir do qual, todas as novas te-
nas pelo surgimento de uma teoria nova. No entendi-
orias são construídas. Relacionado a este, existe, se-
mento do autor, “se a nova teoria não traz acréscimo
gundo o autor, o cinturão protetor que é exatamente
empírico e nem teórico é considerada regressiva, e é
este conjunto de regras e modelos de procedimentos
excluída”eoprocessodefalsificaçãodeumateoriasó
quebuscamasimulaçãodarealidadeequeprotegem
se dá quando surge uma nova concepção que expli-
onúcleofirme.Arejeiçãodonúcleofirmesignificaria
quemelhorarealidade.Alémdisto,énecessárioquea
o abandono do programa e a construção de um novo.
teoria seja mais imune a críticas do que a primeira.
Ofalsificacionismosofisticadoébaseadoemummo- Para sustentar as suas idéias, Lakatos recorre à Histó-
delo “dedutivo pluralista”, onde o conflito não se es- ria da Ciência, para melhor analisar como se constrói
tabelece entre teorias e fatos, mas entre teorias – as asmetodologiadosprogramasdeinvestigaçãocientí-
interpretativas, que relatam os fatos, e as explicativas, fica.Nestesentido,afirmaquearivalidadeentreteori-
queelucidamestesmesmosfatos–.Assim,oconheci- aséumelementosemprepresentenahistóriadaciên-
mentocientíficoprogridepela“convivência”deteori- cia e que são equivocados aqueles que defendem que
as que aparentemente são contrastantes, mas é preci- uma nova teoria somente surge, com o esgotamento
so salientar que a experiência mantém-se como crité- doprogramametodológicovigente.Alémdisso,dizque
rio que estabelece o caráter de cientificidade de uma muitosprogramascientíficosadotamprocedimentos
teoria. de programas antigos, no sentido de aperfeiçoá-los,
principalmente naqueles pontos considerados incon-
ApósfazeresteresgatesobreaanálisedeLakatosares-
sistentes.
peito do falsificacionismo, é preciso salientar que o
autor centraliza o seu trabalho no entendimento de Elevaialém,dizendoqueascompetiçõesentreteorias
queademarcaçãodoconhecimentocientíficoestána rivais é muito positivo, pois é a alavanca do progresso
metodologia presente em programas de investigação científico. Propõe também, que um programa nunca
científica. Neste sentido, Lakatos lança mão da deve ser simplesmente excluído, pois sempre existe a
heurística, defendendo que a investigação científica possibilidadedereabilitá-loedefendequeumprogra-
estabelece uma série de regras e normas de procedi- masóserácompletamenterefutadoquandoosconfli-
mentos, que conduzem à descoberta, à invenção e à tosinternosdoprogramaforemtãofortes,queistoleve
resolução de problemas. Estas heurísticas podem ser a opção por um programa rival.
negativasoupositivas,asprimeirassereferemaospro- O pensamento de Lakatos é baseado no respeito à
cedimentosquedevemserevitadoseassegundasaque- racionalidade como um critério fundamental nas de-
las que devem ser respeitas.Aheurística positiva per- finiçõesmetodológicasdaciência,masalertaqueeste
mite a construção de modelos crescentemente com- processo é lento e que não está imune a falhas. Outra
plicados e simuladores da realidade, partindo-se do característicaespecíficadaconcepçãodeLakatosésua
princípiodequeomodelo,entendidocomooconjun- demarcação do conhecimento científico, se dá na di-

80 Movimento
Movimento, Porto Alegre, V. 8, n. 3, p. 73-88, setembro/dezembro 2002
ferenciação entre ciência madura – que se refere cas”, a partir de dois principais conceitos: o de ciência
aqueles programas de investigação consolidados –, e normal e o de paradigmas. No que se refere a ciência
ciência imatura – que seriam aqueles programas normal,o autor denomina aqueles períodos em que
baseados no princípio de tentativa e erros e que não as pesquisas são “firmemente baseadas em uma ou
possuem“idéiasunificadoras,poderheurísticooucon- maisrealizaçõescientíficaspassadas.Essasrealizações
tinuidade”. são reconhecidas durante algum tempo por uma co-
Produzindo uma verdadeira “revolução científica” a munidadecientíficaespecífica,comoproporcionando
análise de Thomas Kuhn passa a ser fundamental no osfundamentosparasuapráticaposterior”18 . Uma das
processodediscussãosobreodesenvolvimentodaci- principaiscaracterísticasdeumaciêncianormaléque
ência, pois este inicia seu trabalho tendo como foco, a eladeveabrangerumasériederealizaçõesqueatenda
discussão entre as ciências consideradas naturais e as atodaaespéciedeproblemasencontradospelacomu-
ciências sociais, que no seu entendimento, limita-se a nidade científica.
umadiferençananaturezadosmétodosutilizadospor Outra característica importante da ciência normal é
estas áreas do conhecimento. Na sua compreensão, a que, segundo o autor, ela não tem como objetivo “tra-
problematização deveria se concentrar no papel da zer à tona novas espécies de fenômeno; na verdade,
pesquisa científica seja em quaisquer fossem as ciên- aqueles que não se ajustam aos limites do paradigma
cias. freqüentemente nem são vistos”. Neste sentido, os ci-
Para Kuhn, assim como para Lakatos, a História tem entistas não estão preocupados em criar novas teorias
um papel fundamental no processo de compreensão e mostram-se “intolerantes com aquelas inventadas
de como se consolidou o pensamento científico. En- poroutros”19 . Assim, o que justifica a ação dos cien-
tretanto, no seu resgate histórico a respeito da ciência, tistas é a busca de resultados – que o autor compara a
destaca dois aspectos bastante importantes: o primei- resolução de um “quebra-cabeça” – no sentido de
ro se refere a dificuldade em definir claramente, as “aumentar o alcance e a precisão com os quais o
invençõesedescobertascomoatividadesindividuais;e paradigma pode ser aplicado”20 . Para completar a
a segunda, é que esta tentativa de resgate levou a pro- caracterização do que chama de ciência normal, diz
fundas dúvidas a respeito da ciência como processo que ela é uma atividade altamente determinada, mas
cumulativo.Contrariando,nestesentido,opensamento não necessariamente por regras, mas no seu entendi-
deLakatos. mento, pela noção de “paradigmas compartilhados”,
Kuhn caracteriza a história da ciência como “estrutu- comosendoafontequedácoerênciaaatividadecien-
ras”, em que a evolução e o progresso das principais tífica. Finalizando diz: “as regras, segundo minha su-
ciências, e mais particularmente da física e da quími- gestão, derivam de paradigmas, mas os paradigmas
ca, mostram uma certa organização, uma certa estru- podem dirigir a pesquisa mesmo na ausência de re-
tura, que segundo Chalmers (1993), não é captada gras”21 .
pelos relatos indutivistas e falsificacionistas.16 Além No que se refere ao conceito de paradigma, o autor o
disso, Kuhn diz que uma nova teoria, por mais parti- define como as “características e realizações científi-
cular que seja sua aplicação, “nunca é um mero in- cas universalmente reconhecidas, que durante algum
cremento ao que já é conhecido”, é, portanto, um ato tempo,fornecemproblemasesoluçõesmodelarespara
revolucionário pois “a nova teoria implica uma mu- umacomunidadedepraticantesdeumaciência”.Para
dança nas regras que governavam a prática anterior que uma teoria seja aceita como paradigma “deve
daciência”17. Oautorconstróiasuacompreensãoso- parecer melhor que suas competidoras, mas não pre-
bre as estruturas das chamadas “revoluções científi- cisa, e de fato isso nunca acontece, explicar todos os

81 Movimento
Movimento, Porto Alegre, V. 8, n. 3, p. 73-88, setembro/dezembro 2002
fatos com os quais pode ser confrontada”22 . O aban- cobertas de fatos e teorias, e estas novas descobertas
dono de um paradigma em detrimento de outro, é o sãoproduzidasexatamenteporanomaliasnestesmes-
quecaracterizaumaRevoluçãoCientífica,ondeocor- mos paradigmas que a orientam. Porém, estas desco-
re uma alteração dos compromissos científicos, com bertas não são processos simples. Requerem, primei-
ações “desintegradoras da tradição”, à qual a ativida- ramente, consciência prévia do que o autor chama de
de da ciência normal e conseqüentemente, do anomalia;emsegundolugar,estereconhecimentoda
paradigma,estavamligados. anomaliadevesedartantonoplanoconceitual,como
Assim, os paradigmas orientam e definem a ciência no plano de observação. Para completar, após a
normal, modelando-a, e a importância do paradigma conceituação e reconhecimento da anomalia, estabe-
existe exatamente, porque estabelecem segurança e lece-se mudança nas categorias e procedimentos
perenidade à ciência normal. O autor diz que os perí- paradigmáticos, ou seja, “quando a teoria do
odospré-paradigmáticossão“regularmentemarcados paradigma for ajustada, de tal forma que o anômalo
por debates freqüentes e profundo a respeito de méto- setenhaconvertidonoesperado”26 . Segundo o autor,
dos, problemas e padrões de solução legítimos”23 , e a maior precisão e alcance de um paradigma é sua
que os paradigmas dão segurança pois estabelecem capacidadedeindicaranomaliase,conseqüentemen-
como o empreendimento científico deve funcionar te, produzir mudanças de paradigma, que Kuhn de-
“sem que haja necessidade de um acordo sobre as ra- nominadeRevoluçãoCientífica.
zõesdeseuempregooumesmosemqualquertentati- Como foi dito anteriormente, Kuhn constrói sua teo-
va de racionalização”24. É preciso salientar que o au- ria a partir da análise história da estrutura das revolu-
tor deixa claro, que um novo paradigma não é uma çõescientíficas,eestasnoseuentendimento,nadamais
reinterpretaçãodarealidade,vistoque,comamudan- sãodoque“episódiosdedesenvolvimentonão-cumu-
ça de paradigmas os elementos estruturais e os senti- lativo, nos quais um paradigma mais antigo é total ou
dos dos conceitos mudam. Desta forma, ao optar-se parcialmente substituído por um novo, incompatível
por um paradigma, opta-se por teorias, métodos e pa- comoanterior”27.Normalmenteelassurgemquando
drões científicos, e quando este paradigma altera-se, uma comunidade científica começa a questionar o
modificam-seoscritérios,osproblemasesoluçõespro- paradigma vigente no sentido de ele não mais ser ca-
postas. paz de funcionar na exploração de um aspecto da na-
Para encerrar a caracterização do conceito e do papel tureza,queanteriormenteeleguiava.Assim,apósuma
dos paradigmas na teoria de Kuhn, o autor indica que revolução científica, o cientista olha o mesmo mun-
o uso do termo “paradigma”, na sua obra Estrutura do,usampartedasualinguagemedeseusinstrumen-
das Revoluções Científicas, tem dois sentidos: no pri- tos,entretanto,empregadosdiferentemente.Destafor-
meiro, “indica toda a constelação de crenças, valores, ma, a partir de um novo paradigma, os dados come-
técnicas etc., partilhadas pelos membros de uma co- çam a mudar e com eles, os cientistas começam a tra-
munidadedeterminada”.Nosegundosentido,define balhar em um mundo diferente.
“assoluçõesconcretasdequebra-cabeçasque,empre- A adesão por uma comunidade científica a um novo
gadas como modelos ou exemplos, podem substituir paradigma, está vinculado a sua melhor capacidade
regrasexplícitascomobaseparaasoluçãodosrestan- deresolverproblemasqueconduziramoantigoauma
tes quebra-cabeças da ciência normal”25. crise e sua habilidade de atender aspectos subjetivos e
Independentedossentidosestabelecidosparaotermo, estéticos,ouseja,apossuirpropriedadessubjetivastais
a segurança da ciência normal, estabelecida por como,clareza,adequaçãoousimplicidade.Alémdis-
paradigmas,normalmenteéquebradapornovasdes- so, em relação ao novo paradigma, o cientista precisa

82 Movimento
Movimento, Porto Alegre, V. 8, n. 3, p. 73-88, setembro/dezembro 2002
ter fé, isto é, acreditar na capacidade da nova teoria Contrapondo-seamaiorpartedosprincípiosdefendi-
resolverosproblemasqueoanteriortinhafracassado. dospelospensadoresanteriormentecitados,noquese
Entretanto, Kuhn adverte que o triunfo de um refere não somente a demarcação do que é o pensa-
paradigmanãosedáporalgumaestéticamística,mas mento científico, mas também quanto ao papel na ci-
é necessário que ele “conquiste adeptos iniciais, que o ência na sociedade moderna, encontramos Paul
desenvolverãoatéopontoemqueargumentosobjeti- Feyerabend, que através de sua obra Contra o Méto-
vospossamserproduzidosemultiplicados”28. do,estabelece uma perspectiva nova à análise do pro-
Apartirdestapequenaanálisedateoriaparadigmática cedimentosconsiderados“científicos”.
deKuhnépossívelverificarqueelediferedosautores Feyerabend apresenta na sua obra, a concepção da ci-
anteriores no que se refere ao critério de demarcação ênciacomoumempreendimentoessencialmenteanár-
entre ciência e não-ciência, principalmente ao se con- quico, justificando tal princípio como o único capaz
trapor a concepção do falsificacionismo de Popper, de produzir progresso, da mesma forma que, na sua
quando este sustenta que uma teoria se sustenta e pro- opinião, somente através do anarquismo teorético é
gride quando ultrapassa o ideal da refutação. Para possível readquirir o caráter humanitário do fazer ci-
Kuhn, o paradigma serve para auxiliar os cientistas entífico.Questionaasconcepçõesqueentendemqueo
na resolução de seus problemas, e o progresso se faz pensamentocientíficoéoúnicosaberquedevesercon-
porumasucessãodedescobertas. siderado em detrimento dos demais, quais sejam, do
DiscordatambémdePopper,quantoaopapeldostes- sensocomum,dosaberreligiosoouideológico.
tes e das provas entre duas teorias rivais. Para Popper, Alémdisso,defendequesomentehaveráevoluçãodo
o teste tem a função de refutar uma teoria, verificar a pensamento humano se este romper com a ordem e
sua ineficácia para explicar determinado fato, já para comasregrascientíficashistoricamenteestabelecidas
Kuhn, o teste é um instrumento que auxilia o indiví- porsistemasepistemológicosrígidoseessencialmen-
duo ou uma comunidade científica a optar entre dois te, centrados nas metodologias. Muito pelo contrário,
paradigmascompetidores. para o autor, o avanço do conhecimento normalmen-
Difere não só de Popper, mas também de Lakatos no te acontece, quando se viola importantes regras
queserefereaopapeldosmétodos.Paraosprimeiros, estabelecidaspelos“métodoscientíficos”.Sustentasua
orespeitoasregraseosmétodoscientíficoséquedefi- tese,afirmandoque“aciênciamodernadesenvolveu-
nem o fazer da ciência, já para Kuhn, as regras tem secomrapidezeemdireção‘correta’(dopontodevis-
um papel secundário. O paradigma é que define uma ta dos atuais aficcionados da ciência), em razão dessa
prática científica e segundo ele, uma ciência normal negligência” e vai além, dizendo que “o respeito
pode se definir sem a existência de um conjunto de irrestrito às normas científicas, haveria conduzido a
regras,masseriaimpensadasemasustentaçãodeum uma estagnação”.29
paradigmaqueestabeleçaseuspressupostos. Argumentaquemuitosprogressoscientíficosaconte-
No entanto, aproxima-se de Lakatos quando ambos ceramexatamentepelapersistênciadealgunsestudio-
recorrem à História para analisar o papel da ciência e sos, em contrariar a racionalidade e os pressupostos
construirumaanálisesobreseudesenvolvimento,mas teóricosvigentes,emesmocontratodasasevidências,
diferem quando Kuhn dá uma importância relevante continuaram sustentando teses que aparentemente
a aspectos subjetivos na escolha de uma teoria cientí- podiam ser consideradas, inclusive, ridículas. Neste
fica em detrimento de outra. Neste aspecto, tanto sentido, questiona a educação científica que na sua
LakatosquantoPopperdiscordamdeKuhn. concepçãoésimplificadora,poisreduzosconhecimen-

83 Movimento
Movimento, Porto Alegre, V. 8, n. 3, p. 73-88, setembro/dezembro 2002
tos a respeito da natureza, a conceitos simplicadores e maisóbvias,têmlimitações”,sãomuitasvezes,irraci-
limitantes,edizqueograndeméritodestetipodeedu- onais e que além disso, determinadas demonstrações
cação é sufocar a intuição e a criatividade humana. e argumentações consideradas “racionais”, são ilusó-
Contraria e revoluciona os conceitos daqueles defen- rias e tão ideologizadas quanto a política e a religião.
soresdospoderesilimitadosdaciência,quandodizque Denunciatambém,apráticadaciênciadeestabelecer
a história da ciência moderna é permeada de desres- umpadrãoúnicodeanálisedarealidade,sejaelasocial
peitos metodológicos, de usos políticos e ideológicos ou da natureza. Como foi dito anteriormente, além da
doconhecimentocientífico,de“maususosdalingua- educação científica ser limitante e reducionista, busca
gem”,deusosindevidose“desarrazoados”deexperi- semprea“uniformizaçãodasteorias”.Esteprocedimen-
ênciaserelatosdeobservação,eque,alémdisso,uma to,noentenderdoautor,empobreceopensamentoci-
ciência só alcançará resultados se admitir, ocasional- entíficomoderno,poisaproliferaçãodeteoriasébenéfi-
mente, procedimentos anárquicos. Feyerabend resu- ca para a ciência, ao passo que a “uniformidade lhe
mesuatese,dizendoque“sóháumprincípioquepode debilitaopodercrítico”.Resume,dizendo:
ser defendido em todas as circunstâncias e em todos unanimidadedeopiniãopodeseradequadoparauma
os estágios do desenvolvimento humano. É o princí- igreja, para as vítimas temerosas ou ambiciosas de al-
pio:tudo vale.”30 gum mito (antigo ou moderno) ou para os fracos e
Osucessodoprincípiodovale-tudo,segundooautor, conformadosseguidoresdealgumtirano.Avariedade
só será possível se o cientista agir contra- de opiniões é necessária para o conhecimento objeti-
indutivamente,ouseja,éagirnosentidodedesrespei- vo. E um método que estimule a variedade é o único
taralgumasregrascomunsdoempreendimentocien- método compatível com a concepção humanitarista.
tífico, é “introduzir e elaborar hipóteses que não se (Feyerabend,1989,p.57)
ajustam a teorias firmadas ou a fatos bem estabeleci- Feyerabend revoluciona novamente, quanto diz que
dos”, é entender que nada é definitivo. Para agir a par- nenhuma teoria deve ter a pretensão de abarcar todos
tir da contra-indução, Feyerabend defende a utiliza- osfatos,poisistoéimpossível.Alémdisso,alertapara
ção de uma “metodologia pluralista”, pois “não há o fato de que “a exigência de tão-somente admitir te-
uma única teoria digna de interesse que esteja em oriasquedecorramdosfatosdeixam-nossemteoria”.
harmonia com todos os fatos conhecidos que se situ- Apartir disto, questiona autores como Popper, por
am em seu domínio”. Este procedimento se justifica exemplo,quesebaseiamemfalseamentos,porqueem
principalmente,porque sua opinião, estas idéias são inúteis, pois na prática,
temos de inventar um sistema conceptual novo que estasexigênciaseteoriasnãosãoobedecidas.Salienta
ponhaemcausaosresultadosdeobservaçãomaiscui- que no atual estágio de desenvolvimento da ciência,
dadosamente obtidos ou com eles entre em conflito, “teoria alguma é coerente com os fatos”31 e que o
quefrustreosmaisplausíveisteóricosequeintroduza caráter“histórico-fisiológico”deumevidência,expres-
percepções que não integrem o existente mundo per- sa não apenas aspectos objetivos do fato, mas “certas
ceptível. Esse passo é também de caráter contra- concepçõessubjetivas,míticasehámuito,ultrapassa-
indutivo.Acontra-indução,portanto,ésemprerazoá- das”. Por isso, a evidência não pode ter a pretensão de
veleabresempreapossibilidadedeêxito.(Feyerabend, ser um “árbitro de nossas teorias”.
1989,p.43) Reforçando a idéia de que uma evidência não pode
É preciso salientar no entanto, que o autor não pre- sustentar ou refutar uma teoria, ele lembra que a con-
tende substituir um conjunto de regras por outro, mas firmação de uma realidade ou sua rejeição, normal-
mostrar como “todas as metodologias, inclusive as mente é feita através da percepção sensorial e que “os

84 Movimento
Movimento, Porto Alegre, V. 8, n. 3, p. 73-88, setembro/dezembro 2002
sentidos podem nos enganar”. E mais, que esta per- muitos aspectos e principalmente, porque ela foi
cepção sensorial sempre vem acompanhada de um estruturada exatamente, para se contrapor ao que es-
enunciado e que este enunciado “delineia o fenôme- tesmesmosautoresvinhamdefendendoemtermosde
no”, estabelecendo forte conexão a priori, entre o fe- conhecimentocientífico.Maspontualmente,podemos
nômeno e as palavras, ou seja, “os fenômenos são o dizerqueFeyerabendcontrariaaosdemaisquandodiz
que os anunciados associados asseveram que eles se- queapesquisacientíficasempreviolaimportantesre-
jam”32. É preciso, no entanto, salientar que o autor gras metodológicas, enquanto que o indutivismo,
nãodesconsideraasinterpretaçõesadvindasdapercep- Popper e Lakatos defendem exatamente o contrário,
ção sensorial, que ele denomina de interpretações na- ouseja,quesóhaveráproduçãodeconhecimentosci-
turais, muito antes pelo contrário. Concorda com entíficosseforemrespeitadasregrasemétodosquesão
Galileu quando este diz que o cientista não deve con- estabelecidospelaprópriaciência.
servarindefinidamenteasinterpretaçõesnaturais,nem
DiscordadePopperquandoesteseparaainvestigação
tampoucoeliminá-lasinteiramente,masquedevees-
em dois momentos: o primeiro, que tem início com
tabelecerumadiscussãocríticaarespeitodasmesmas.
um problema, com uma idéia; para em um segundo
Entende que a interpretação natural é um componen-
momento,haveraaçãoinvestigativa.ParaFeyerabend,
te orientador, a partir do qual se inicia o empreendi-
a criação e a geração, “associada à compreensão de
mento da ciência e é o balizador para a formulação de
conceitos. umaidéiacorretadessacoisasão,muitasvezes,partes
deumúnicoeindivisívelprocesso,partesquenãopo-
Com certeza, a maior controvérsia engendrada pelas demseparar-se,sobpenadeinterromperoprocesso”.
tesesdeFeyerabendserefereaoqueelechamaartifíci-
os psicológicos que muitos cientistas utilizam para Aproxima-sedeLakatos,quandoambosdefendema
sustentar e consolidar suas teorias. Neste sentido, ele importância das hipóteses ad hoc, ou seja, aquelas
se aproxima de Kuhn, pois argumenta que uma con- surgidas durante o processo de investigação. Na con-
cepção é aceita pela comunidade científica, não ape- cepção de ambos, o caráter ad hoc nem é desprezível
nasporresponderosproblemasinvestigados,mastam- nem está ausente do corpo da ciência e salientam que
bém,pormecanismossubjetivosquevãodesdeares- as “idéias novas são quase inteiramente ad hoc e não
peitabilidade do cientista ou do grupo de pesquisado- podem ser senão assim”. Neste sentido, contrariam
res que apresentaram a nova teoria, até os recursos de Popper, quando este diz que os bons cientistas devem
“propaganda” por eles utilizados. E salienta, que se recusar a utilização de hipóteses ad hoce que quando
estes recursos forem corretamente utilizados, passam estas, eventualmente se insinuem no processo, preci-
afuncionarcomoverdadeiras“muletaspsicológicas”, samserdesprezadas34.
criando“aimpressãodequeessatendênciaexistiaem ConcordacomKuhnemaisumavez,diferedePopper
nósdesdesempre,emborafossenecessárioalgumes- eLakatos,quandodefendequeaciênciaéumamistu-
forço para torná-la consciente”33. Isto inclusive, esta- ra inextricável de intuição, lógica, carisma e propa-
belece uma alteração na percepção e os indivíduos ganda;ouquandodizqueexaminandoasciênciasnão
passam a olhar o fenômeno de acordo com as “idéias mais do ponto de vista teórico, mas a partir de sua prá-
manipuladas”. tica, descobriremos que não existe diferença entre ci-
Estabelecer um diálogo entre as concepções de ência e outra ideologias, ou entre ciência e mito, ou
Feyerabend e os demais autores, anteriormente cita- quandoelecitaLévy-Leblondquediz;“arazãoganha
dos, pela breve análise de suas idéias, torna-se uma graças a maus argumentos, e a ciência, para se opor à
tarefa bastante difícil, visto que, elas divergem em fé, recorre à má-fé”35.

85 Movimento
Movimento, Porto Alegre, V. 8, n. 3, p. 73-88, setembro/dezembro 2002
Conclusão Talvezacríticamaiscontundentesobreaspossibilida-
des da ciência moderna de ler a realidade é feita por
Através destapequenaanálisesobreanecessidade de
autoresquevãoalémdeFeyerabend,aodizeremqueo
algunspensadores,deestabeleceroscritériosquedeli-
métodoexperimentalcientíficonoseuprocessodede-
mitasseopensamentocientíficoemrelaçãoasdemais
finir os objetos, acabou isolando-os de tudo o que não
formasdeconhecimento,épossívelperceberqueeste
osrepresentem,demodoqueserãolegítimosdesdeque
momento é ímpar, pois reflete um instante de análise
sirvam a uma “experimentação reprodutível em di-
e de questionamento sobre o papel da ciência na soci-
versoslaboratóriosdomundo”.PensadorescomoAlan
edadehumana.
(1993)38 , sustentam que a ciência evoluiu de tal ma-
Aconcepçãocientíficamodernadeanálisedarealida- neiraque,aospoucos,elaseafastoudomundovivido;
de, desde o seu processo de emergência e consolida- desenvolveu-sebaseadaemumainvestigaçãoexperi-
ção, vem sofrendo diferentes críticas que acabaram mental,cujocampodeaplicaçãosedefinecomoobje-
culminandocomoquechamamoshoje,demovimen- tivo avesso à subjetividade. Na medida em que nosso
topós-moderno.Asprincipaiscríticasàciênciaacom- cotidianoéplenodesubjetividade,nãocausasurpresa
panham Thom (1993)36, segundo o qual, a que o saber científico soe como falso frente a ele. A
racionalidadedosdiscursosdaciênciaparece,comfre- objetividade científica só é bem-sucedida se limitada
qüência,resultardedifíceisreconstruçõesaposteriori, aos fenômenos objetivos, “excluindo o singular”, o
onde “métodos de validação irracionais se tornam “não-reprodutível”,eessedomíniodavidainteriorque
necessáriospelodesenvolvimentodesigualdasdiferen- nãopodeserdito,somentesugerido,fica“encoberto”.
tespartesdaciência”.Nestesentido,opensamentopós- Asciênciaseastécnicasinstituemumaordemquesão
modernoseaproximamaisdasconcepçõesdeKuhne ao mesmo tempo: libertadoras — protegida dos im-
maisespecialmente,deFeyerabendquandosepercebe previstos e da escravidão da natureza, na qual o pen-
que a ciência, cujos resultados muitas vezes escapam samento não poderia se exercer, a ciência livrou o ho-
aos seus produtores, é também um instrumento de memdoimprevisível,organizandoseuambiente—e
poder instrumental, militar, financeiro ou espiritual, alienantes — porque a ausência de incerteza, de
do qual se pode lançar mão na luta pelo poderio e pela imprevisibilidade, implica também a “supressão da
dominação.Alémdisso,oprimadodoimaginárioeda novidade e da criatividade”—.
“teoria”, como descrição real do mundo físico, mui-
Oobjetivodoconhecimentonãoédescobrirosegredo
tas vezes, não pode ser apreendido em sua totalidade
do mundo numa palavra-chave, é dialogar com o
pela prática experimental.
“mistériodomundo”eMorin(1993)39 , concordando
Do alto de seu “saber onisciente”, a ciência, para também com Feyerabend, diz que as teorias científi-
Prigogine (1993), reduziu a natureza à figura de um cas não são o reflexo do real, mas as “projeções do
meroautônomo,ondeopensamentocientíficoinsiste homemsobreessereal”.Afirmaquesedeveadmirara
na “estabilidade” e no “determinismo”. Porém, o que capacidade das teorias científicas de unificarem em
se pode perceber é que se vive rodeado de instabilida- um mesmo princípio, fenômenos extremamente di-
des, “flutuações” e “bifurcações”. Assim, o autor diz versos.Comisso,asimplificaçãodoUniversofoiomito
que o objetivo da ciência contemporânea deveria ser da ciência clássica, buscando a “unidade elementar e
outro: reforçar as relações entre o homem e o Univer- a lei suprema do Universo”. Essa busca foi extrema-
so,ondeotempodohomemtornar-se-áexpressãosu- mente fecunda, contudo ela acabou descobrindo a
prema das leis da natureza e esta deverá “reintegrar o complexidade.Entretanto,oquedevesercombatido,
homemaoUniversoqueeleobserva”37. na opinião de Morin (1993), é a “simplificação arro-

86 Movimento
Movimento, Porto Alegre, V. 8, n. 3, p. 73-88, setembro/dezembro 2002
gante”, que oculta o ser e a existência em prol da FEYERABEND,P.ContraoMétodo.3.ed.RiodeJaneiro:Fran-
formalização, que reduz as entidades globais a seus ciscoAlves,1989.
elementosconstitutivos,quepensaterisoladoumob- FOUCAULT,M.AsPalavraseasCoisas.6.ed.SãoPaulo:Martins
jeto de seu meio e de seu observador, enquanto isso é Fontes,1992.
impossível. KUHN,T.S. AEstruturadasRevoluçõesCientíficas.5.ed.São
Aconcordânciaentreas“observaçõeseosexperimentos Paulo:Perspectiva,1962.
éagarantiaclássicadaobjetividadecientífica”.Issonão JAPIASSÚ,H. IntroduçãoàsCiênciasHumanas:análisesde
quer dizer que as teorias científicas sejam intrinseca- epistemologia histórica.SãoPaulo:Letras&Letras,1994.
menteobjetivas.Oqueapreendemosdomundonãoé LAKATOS, I. The Methodology of Scientific Research
objetoabstraídodenós,masoobjetovisto,observadoe Programmes.Cambridge:CambridgeUniversity,1992.
“co-produzido”pornós.Oconhecimentodoobjetonão MAFFESOLI,M.ARuínadoPresenteeaInvençãodoFuturo.
podeestardissociadodeumsujeitoqueconhece,enrai- In:RevistadoGEEMPA.PortoAlegre:GEEMPA,n.3,p.09-21,
zado em uma cultura, uma história. Fundamentar a mar.1994.
produçãodosabercientíficonaproduçãoculturalnão PESSIS-PASTERNAK,G.DoCaosàInteligênciaArtificial.São
significa reduzir a ciência a uma ideologia, significa Paulo:UNESP,1993.
tornar“maiscomplexaanossaconcepçãodoconheci- POPPER,K.ALógicadaPesquisaCientífica.SãoPaulo:Cultrix,
mento científico”, com duas ramificações: “uma ine- 1974.
rente à práxis histórico-social e a outra inerente à reali-
dadeempírica”.Anossavisãocientíficadomundofica
comprometidasenãoincluioobservador-criadore,com Notas
ele, a sua cultura e a sua história. * ProfessoraAssistentedoDepartamentodeEducaçãoeCi-
ênciadoComportamentodaUniversidadeFederaldoRio
Para concluir, é importante recorrer ao entendimento Grande(FURG)edoutorandadoProgramadeCiênciasdo
de Pessis-Pasternak (1993), que situa e coloca hoje, a MovimentoHumanodaESEF/UFRGS.Endereçoeletrôni-
ciência, como a que trilha as seguintes perspectivas: co:meri.sul@terra.com.br
alguns crêem em seu futuro; outros a consideram um 1
MichelMaffesoli,ARuínadoPresenteeaInvençãodoFu-
mito;algunsabordam-nacomumaconcepçãomate- turo,in:RevistadoGEEMPA.
máticaeseqüencialdaracionalidade(oscognitivistas) 2
VerHiltonJapiassú,IntroduçãoàsCiênciasHumanas,p.19.
e outros, enfim, confiam-na ao modelo de funciona-
mento em paralelo, próprio da rede neuronal (os
3
Ver HannahArendt, ACondição Humana, p. 260.
conexionistas).40 Para o autor, a ciência clássica reve- 4
Hilton Japiassú, Introdução às Ciências Humanas, p. 10.
la seus limites, confessando-se mecanicista, reducio- 5
Michel Foucault, in: As palavras e as Coisas, p. 362.
nista e tendendo a linearidade. 6
RubemAlves,AGestaçãodoFuturo,p.34.
7
Ibid.
Referências
8
In Alan Chalmers, O que é ciência, afinal? São Paulo:
ALVES,R.A.AGestaçãodoFuturo.Campinas:Papirus,1989. Brasiliense,p.23.
ARENDT, H. ACondição Humana.Rio de Janeiro: Forense- 9
Ibid, p. 27.
Universitária,1983.
10
Ibid, p. 26.
CHALMERS,A.F.Oqueéciência,afinal?SãoPaulo:Brasiliense,
1993. 11
Ibid. p. 29.

87 Movimento
Movimento, Porto Alegre, V. 8, n. 3, p. 73-88, setembro/dezembro 2002
12
Ibid, p. 37. 29
In: Paul Feyerabend, Contra o Método, p. 177.
13
Ibid, p. 40. 30
Ibid, p. 34, grifo do autor.
14
Ibid, p. 41. 31
Ibid, p. 87, grifo do autor.
15
Ibid, p. 41 32
Ibid, p. 106-7.
16
In Alan Chalmers, O que é ciência, afinal?, 109. 33
Ibid, p. 129.
17
In Thomas Kuhn, A Estrutura das Revoluções Científi- 34
Ibid, p. 142.
cas, p. 26. 35
Paul Feyerabend, in: Do Caos à Inteligência Artificial, p.
18
Ibid, p. 29. 95-104.
19
Ibid, p. 45.
36
René Thom, Matemático das “catástrofes”, in, p. 23-27.
20
Ibid, p. 58.
37
Ilya Prigogine, arquiteto da “estruturas dissipativas”, in
Do Caos à Inteligência Artificial, p. 35-39.
21
Ibid, p. 66.
38
Henri Atlan, teórico da auto-organização, in Do Caos à
22
Ibid.,p.30. Inteligência Artificial, p. 53-80.
23
Ibid,p.72-73. 39
Edgar Morin, contrabandista dos saberes, in Do Caos à
24
Ibid, p. 74. Inteligência Artificial, p. 84-89.
25
Ibid, p. 218.
40
Guitta Pessis-Pasternak, Do Caos à Inteligência Artificial,
p.20.
26
Ibid, p. 28.
27
Ibid, p. 125.
Recebido:23/09/02
28
Ibid,p.199. Aceito:27/11/02

88 Movimento
Movimento, Porto Alegre, V. 8, n. 3, p. 73-88, setembro/dezembro 2002

Você também pode gostar