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Figura 3 – JOGO DAS SEMELHANÇAS, 2008 (acrílico sobre tela , 150x150cm).

Fonte: Mário Vitória.

SEÇÕES COMPLEMENTARES DOSSIÊ – SOCIEDADE, DIREITOS E JUSTIÇA COGNITIVA II


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Cronos: R. Pós-Grad. Ci. Soc. UFRN, Natal, v. 16, n.2, jul./dez. 2015, ISSN 1982-5560
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MEMORIAL
Gilberto Felisberto Vasconcellos

Minha atividade acadêmica começa em e Durkheim quanto à concepção sobre


1968, como estudante de Ciências Sociais indivíduo e sociedade. Faço alusão a isso
na Universidade de São Paulo. Trata-se porque foi determinante na posterior
de uma atividade inseparável de escrita, escolha temática de minha tese de douto-
sobretudo a de natureza ensaística. O rado (1978), Ideologia curupira: análise
primeiro trabalho, intitulado “A concep- do discurso integralista, cuja orientação
ção de totalitarismo em Marcuse”, veio a coube ao professor Gabriel Cohn, poste-
lume na revista Revisão (1972), do Centro riormente publicada em livro e prefaciada
Acadêmico da Escola de Sociologia e por Florestan Fernandes.
Política de São Paulo. Essa Faculdade, A propósito do nexo entre univer-
situada na Rua General Jardim, teve sidade e escrita, vale mencionar o traba-
enorme importância na história das lho que redigi durante a pós-graduação
Ciências Sociais. Nela lecionaram profes- em Ciências Sociais para o curso da
sores estrangeiros e brasileiros de renome, professora de Letras Telê Ancona Lopes,
como Donald Pierson e Sérgio Buarque autora de vários livros sobre Mário de
de Holanda, cabendo ainda mencionar Andrade, que na época era diretora do
que aí também se formou o ilustre antro- Instituto de Estudos Brasileiros, locali-
pólogo Darcy Ribeiro. Na década de 1970 zado na Faculdade de História da USP,
destacou-se na escola de Sociologia e onde se encontram os textos e documen-
Política o professor José Chazin (marxista tos de Roger Bastide, o professor francês
e estudioso do filósofo húngaro György fundador do curso de Ciências Sociais da
Lukács), que investigava o pensamento Universidade de São Paulo e coautor, junto
autoritário no Brasil. Isso deve ter influen- com Florestan Fernandes, do livro Brancos
ciado meu trabalho acerca da noção de e negros em São Paulo (1955). O traba-
totalitarismo na obra de Hebert Marcuse lho a que me refiro e é um ensaio sobre a
sobre as sociedades afluentes e desenvol- Sociologia da Música, intitulado A propó-
vidas do Ocidente, de resto tidas como sito de geleia geral, a canção de Torquato
formalmente democráticas. Na escolha Neto e Gilberto Gil arranjada pelo maestro
desse tema certamente interferiu o maio concretista Rogério Duprat, um dos defla-
de 1968 e também a Escola de Frankfurt. gradores do movimento Tropicália, que
Lembro-me de um trabalho, quando fez a mediação entre a música séria, como
aluno de Ciências Sociais, que escrevi dizia Theodor Adorno, e a música popu-
para o curso de Sociologia de Gabriel lar. Isso para mim na época imprimiu
Cohn, buscando as analogias entre Freud um caráter especial à Tropicália, que me

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impressionou muito, mais do que suce- concretos (sobretudo o livro Balanço da


dera com a Bossa Nova. bossa, de Augusto de Campos). O meu
Sem incorrer em jactância autoral, artigo sobre “Geleia geral” de Torquato
meu livro ainda hoje é mencionado como Neto tentava amalgamar as duas tendên-
referência fundamental nos estudos de cias intelectuais de São Paulo, conhecidas
música popular, mas nele sou capaz de respectivamente pelos bairros Pinheiros
detectar uma grande lacuna: é que não fui (USP – Antonio Candido) e Perdizes (PUC-
atento o suficiente em relação à industria SP – Augusto e Haroldo Campos). Com a
cultural interferindo na Tropicália como indicação da pesquisadora mariodran-
mercadoria fonográfica, o que prejudi- dina Telê Ancona Lopes, o meu ensaio de
cou minha compreensão sobre a situação pós-graduação foi publicado na revista
social da música popular durante a década paulista Debate e Crítica, o qual não
de 1960. Enfim, posso hoje comprovar que deixou de alcançar repercussão nos cursos
Theodor Adorno estava certo: nenhuma de Letras e Ciências Sociais. Telê Ancona
teoria escapa inteiramente do mercado, Lopes transmitiu-me o recado para que eu
nem mesmo a teoria antimercado. Passou– procurasse o professor Antonio Candido,
me então desapercebido que na Tropicália que me indicou (a pedido do jornalista
havia condescendência do polo moderno Samuel Wainer) para escrever semanal-
vencedor (São Paulo) no desenvolvimento mente uma sessão de crítica cultural no
desigual do capitalismo dependente. jornal Última Hora de São Paulo. Então,
Era a imposição da indústria cultural, da nesse momento estreitou-se ainda mais
rotineira vitória da classe dominante. Eu o vínculo academia/escrita quando, estu-
ainda não tinha tomado conhecimento dando na pós-graduação (com bolsa da
da Teoria estética de Theodor Adorno, FAPESP) modernismo e integralismo (tendo
publicada em 1966, e por conseguinte como leitor Celso Lafer), ingressei no jorna-
não atinei que na Tropicália do espetá- lismo de São Paulo, no “periodismo”, como
culo conformista não havia conflito ou gostava de dizer Oswald de Andrade.
dissonância entre a canção e a realidade Entre 1974 e 1976 escrevi resenhas e
social. “Geleia geral” é a canção-mani- crítica cultural. Simultaneamente redigia
festo que trazia a aproximação da poesia o livro De olho na fresta, em cuja aborda-
concreta (Haroldo de Campos, Augusto de gem era notória a influência da estética
Campos, Décio Pignatari) com os compo- marxista de Lukács (sobretudo a categoria
sitores da música popular da década de de particularidade artística) e, ao mesmo
1960. Convém estender-me um pouco tempo, a crítica musical de Augusto
mais sobre esse ensaio decisivo na minha de Campos, que trazia a contribuição
vida acadêmica e autoral, pois foi uma linguística de Roman Jakobson, a teoria
das fontes intelectuais do meu primeiro do canto falado e a da metalinguagem de
livro, De olho na fresta (1977). O ensaio foi Erza Pound. O que muito me marcou na
influenciado pela crítica literária e socio- leitura de Balanço da bossa foi a aborda-
lógica de Antonio Candido, e também pela gem sobre o escritor Oswald de Andrade,
abordagem formal vanguardista dos poetas que desde sua morte em 1954 ficou quase

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dez anos no ostracismo, sendo resgatado a ausência do Cinema Novo em De olho


pela exegese linguística e semiológica dos na fresta. Não obstante os defeitos e limi-
críticos concretistas. tações, De olho na fresta municiou-me de
Oswald de Andrade foi, e continua um instrumental analítico na esfera da
sendo, um dos escritores mais determi- cultura, o que seria depois utilizado por
nantes na minha visão de mundo e no meu mim em Ideologia curupira, e que recebeu
estilo, a tal ponto que ensejou uma tese forte incentivo do meu orientador Gabriel
de mestrado em Letras da UFJF de auto- Cohn para defender a tese de doutorado
ria de Yago Euzébio Bueno de Paiva, inti- sem passar pelo estágio preliminar do
tulado Sociologia Pau Brasil. Um aspecto mestrado. Lembro-me com júbilo do dia
que merece ser posto em relevo em De de minha defesa, com a banca composta
olho na fresta é que não havia contrapo- pelos professores Helgio Trindade, Luiz
sição entre a abordagem conteudística da Pereira, Leôncio Martins Rodrigues,
sociologia e o “close reading” formal da Carlos Guilherme Mota e Maria do Carmo
linguística e da semiologia. Hoje, passa- Campello de Souza. Logo em seguida,
dos quase quarenta anos, posso afir- indicado pelo jornalista Cláudio Abramo,
mar que o Oswald de Andrade marxista o editor Caio Graco, da Brasiliense,
não figurava em meu livro de sociolo- publicou-a em livro.
gia da música popular. O que havia de Abro aqui um parêntese para evocar o
marxismo em De olho na fresta vinha de jornalista Cláudio Abramo, da Folha de São
Walter Benjamin e György Lukács, suas Paulo. Em 1977, ele estava encarregado de
análises das diferenças estéticas e socio- organizar o editorial que até então inexis-
lógicas entre símbolo e alegoria. Nele tia nesse jornal. Ainda nesse ano, por indi-
figurava o conceito de “indústria cultu- cação do professor Maurício Tragtenberg,
ral”, mas de maneira tênue, não apro- comecei a lecionar sociologia na Fundação
fundada pela crítica radical de Theodor Getúlio Vargas (FGV) em São Paulo, tendo
Adorno à música popular e ligeira como como colega Eduardo Suplicy, que um
signo de alienação no capitalismo mono- dia solicitou-me (a pedido de Cláudio
polista. É que, se aplicado com rigor o Abramo) um artigo sobre Plínio Salgado,
conceito adorniano de verdade musical, o chefe do integralismo, que falecera em 8
o objeto de análise do livro sofreria uma de dezembro de 1975. Escrevi o artigo que
mudança substantiva na apreciação. Eu foi publicado na página dois da Folha de
estava seguindo a diretriz de Augusto de São Paulo, com o título irônico e paródico
Campos, para quem a Tropicália signifi- “Última flor do Fascio?”. O título lembrava
cava um avanço formal na música popular Oswald de Andrade no jogo paranomásico
e uma expressão cultural tão importante com a passagem famosa de Olavo Bilac:
quanto o modernismo de 1922. Somente “A última flor do Lácio”, substituído por
me dei conta dessa hipérbole concre- “fascio”. Na FGV recebo, depois de publi-
tista na avaliação da Tropicália quando, cado o artigo, um telefonema de Cláudio
mais tarde, em 1978, entrei em contacto Abramo convidando-me para escrever
pessoal com Gláuber Rocha, que apontou editoriais no jornal A Folha de São Paulo.

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Estávamos vivendo em plena ditadura. Mandel e pelo sociólogo egípcio Samir


Nas Ciências Sociais havia a discussão Amin, ambos marxistas. A conferência
levantada por Theotônio dos Santos, se a foi transformada em artigo, Trinta anos
ditadura brasileira de então era ou não um depois: Ideologia curupira, publicado em
regime fascista. O objeto de minha tese de Locus, Revista de História da UFJF em
doutorado trazia a questão do fascismo 2010, no qual ao fenômeno do decalque
dos anos 30, e como este, na versão inte- fascista na periferia capitalista acrescen-
gralista, teria emergido do modernismo tei os enfoques relacionados ao cotejo
com os grupos Anta e Verde-Amarelo, os entre o discurso integralista e a prática
grupos de direita, contrapostos aos de afetiva do fascismo com Hitler, Mussolini,
esquerda, Pau Brasil e Antropofagia, lide- Salazar e Franco. Permito-me citar um
rados por Oswald de Andrade. trecho que evoca a complexidade polí-
Havia em Ideologia curupira a teoria tica do fascismo e seu translado para o
do fascismo de Marcuse, mas o foco da contexto do capitalismo dependente: “É
análise incidia na questão da cultura em preciso dizer alguma coisa sobre o título
país dependente: o integralismo mimeti- Ideologia Curupira, com referência ao
zando os fascismos europeus. O integra- marxismo (ideologia como falsa cons-
lismo foi visto por mim como uma resposta ciência e discurso ocultador da realidade)
equivocada à heteronomia econômica na o vocábulo e o folclore, ou seja, Curupira
periferia capitalista, daí no título do livro a como o pai do Saci-Pererê, Curupira como
palavra “curupira”, que designa o primeiro o primeiro duende da floresta dos trópi-
duende do Novo Mundo registrado pelos cos. Claro que eu não tomei Curupira na
cronistas. Nos grupos literários de direita acepção ecológica, duende que protege a
de 1922, desdobrando-se na década de 30 floresta contra o invasor branco depreda-
no integralismo, configurou-se a ideologia dor da natureza, o capitalismo antimeio
do autoengendramento do Brasil, ou seja, ambiente. Eu o tomei como uma fantas-
o ideal integralista seria um país mônada magoria que recusa a ingerência do fator
e desvinculado do mundo. Trinta anos externo. Curupira é um corpo sem orifí-
depois de publicada minha tese, qual cio, sem nenhum buraco, sem nenhuma
não foi a surpresa do autor a homenagem fenda por onde pudesse ser penetrado, o
que lhe foi prestada na área de história que não deixa de ser um paradoxo para
pelos estudiosos de vários lugares do país. nomear o discurso integralista, que é
Minha tese foi evocada em um encontro uma doutrina baseada no decalque dos
realizado na Universidade Federal de Juiz fascismos europeus. O Curupira integra-
de Fora no antigo ICHL. Nessa ocasião lista recusava a influência estrangeira
proferi conferência acerca da teoria quando se tratava de oposição ao capital,
marxista do fascismo, lembrando o cará- mas não quando o lance era defender a
ter pioneiro da análise de Leon Trotsky propriedade privada, o lucro, a explora-
feita em 1930, quando estava exilado em ção do trabalho”. O que nesse artigo foi
Prinkipo, na Turquia, e que mais tarde foi lembrado, para completar a abordagem
retomado pelo economista belga Ernest de Ideologia curupira dizia respeito à

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análise de Leon Trotsky sobre o fascismo, Volto ao percurso bibliográfico, que


depois acrescido do ensaio Leon Trotsky e não está sendo apresentado de modo
as Ciências Sociais, publicado na Libertas, linear, mas sim pelas conexões estilísticas
Revista da Faculdade de Serviço Social, em e conceituais, evocando que, em seguida
2014. A teoria do fascismo elaborada por à defesa de minha tese, obtive bolsa de
Trotsky, a primeira análise marxista sobre pós-doutorado concedida pela FAPESP
o que estava acontecendo com Hitler na para estudar na França, onde frequentei
Alemanha, abriu-me a compreensão da com assiduidade a cinemateca de Paris,
história do Brasil com a contradição UDN enviando semanalmente artigos para o
e PTB, que resultaria em 1964 no golpe jornal A Folha de São Paulo no período de
de Estado. Trotsky distinguiu a existência 1978 a 1980.
de um fascismo totalitário (Alemanha, No meu regresso ao Brasil, 1980,
Itália) e de um fascismo democrático publiquei um artigo no Jornal da Tarde,
(Estados Unidos, Inglaterra e França), sem intitulado “USP e Apipucos: a diáspora
esquecer que em ambos havia o suporte da sociologia brasileira”, o qual era um
político de uma mesma classe social: a projeto de pesquisa que antecipava o divi-
burguesia. A verdadeira questão não era a sor de águas em minha reflexão na socio-
democracia, como afirmavam os liberais logia, confrontando Florestan Fernandes
que acusavam Getúlio Vargas de nazifas- (sua concepção acerca da estrutura de
cista. Valendo-me da teoria do fascismo classes) e Gilberto Freyre, com o seu
de Trotsky é que fiz a revisão sociológica conceito de meta-raça. Para efetivar
do trabalhismo, iniciado com a Revolução esse confronto metodológico fui agra-
de 30, no livro A jangada do Sul: Getúlio, ciado com as bolsas Fundação  Calouste
Jango e Brizola. Gulbenkian e Science Concil. Vivi então
O foco da análise em 1930 visava uns tempos no Nordeste-Pernambuco-
elucidar, do ponto de vista da interação Paraíba, com o objetivo de conversar com
entre partido político e classe social, os Gilberto Freyre, de que resultou o livro O
motivos da derrota do nacionalismo anti- xará de Apipucos (1987), o primeiro publi-
-imperialista e o triunfo do liberalismo cado sobre a vida e a obra do sociólogo
livre-cambista. O golpe de 64 também pernambucano, valendo-me do método
estava presente nesse livro como o acon- empático de sua própria lavra. Não queria
tecimento histórico que precisava ser aqui deixar de mencionar que a ideia da
desvendado em suas causas inter-regio- diáspora sociológica que orientou o meu
nais, porque nem Minas Gerais – a parti- ensaio foi inspirada por Gláuber Rocha
cipação decisiva do governador udenista em seu diálogo com Paulo Emílio Salles
Magalhães Pinto – se deu bem com a Gomes, objeto de artigo de minha autoria
deposição de João Goulart. Nesse livro A sobre a morte do cineasta, publicado no
jangada do Sul o objeto de análise era a Jornal da Tarde, em 1981.
gestação da hegemonia política e cultural Com o ensejo de reconstruir minha
de São Paulo. atividade intelectual, posso afirmar que o
conhecimento acerca da descolonização

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cinematográfica de Gláuber Rocha levou- de Holanda. No panorama das Ciências


-me ao estudo de Gilberto Freyre, real- Sociais no século XX, o antropólogo Darcy
çando a questão da transregionalidade, o Ribeiro destaca-se por ter concebido
que não significa, contudo, que o tivesse abrangente taxonomia com rigorosos
considerado um autor regionalista. esquemas conceituais sobre as configura-
Retomava o binômio estética e sociologia, ções histórico-sociais de todos os países
assimilado em minha convivência uspiana da América. Segundo Darcy Ribeiro, não
com Gabriel Cohn (expresso em De olho na obstante a origem em comum, os povos
fresta e Ideologia curupira). Todavia o que da América teriam se diferenciado pelo
estava delineado em O xará de Apipucos modo através do qual suas respectivas
era a problemática do colonialismo, sem populações indígenas, em condições de
que houvesse na obra de Gilberto Freyre a existência diversas, entraram em contato
crítica colonialista, como se observa, por com o colonialismo na sua fase mercantil
exemplo, em Oswald de Andrade, Florestan da expansão capitalista europeia durante
Fernandes e Caio Prado Jr. O que me intri- o século XVI. Valendo-se de critérios étni-
gava em Gilberto Freyre era o fato de ter ele cos, econômicos e tecnológicos, explicou
alcançado um conhecimento da totalidade as causas do desenvolvimento desigual de
da sociedade brasileira sem utilizar-se da tais povos, o que o levou a elaborar cate-
categoria colonialismo (ou imperialismo) gorias novas acerca da evolução sócio-cul-
para designar a conexão centro e periferia tural da humanidade. Essa preocupação
do sistema capitalista. Por esse aspecto é é observável desde o seu livro O processo
que era percebida a questão da ausên- civilizatório (1968), no qual opera com
cia da luta de classes em sua obra, a qual as categorias de “transfiguração-étnica”,
não tematizava os obstáculos externos ao “aceleração evolutiva”, “atualização histó-
desenvolvimento. Quanto a isso, não deixei rica” e “modernização reflexa”.
de registrar minha perplexidade, o que O livro A razão iracunda retoma
coincidiu com a mesma observação feita todos os outros, de modo que o presente
por Darcy Ribeiro em seu prefácio à Casa deve iluminar para o passado minha ativi-
Grande & Senzala na edição venezuelana. dade intelectual, naqueles pontos em que
Em Apipucos, Recife, tive a oportu- meu interesse ora incide na política, ora
nidade de conversar sobre esse prefácio na estética. Nunca senti a Universidade
com Gilberto Freyre, conversa cujo teor é como uma peia, ou obstáculo às minhas
evocado em meu livro sobre Darcy Ribeiro, elucubrações intelectuais, nunca senti
A razão iracunda, o qual está atual- a Universidade como uma presença a
mente no prelo da Universidade Federal inibir-me naquilo que acho fundamental
de Santa Catarina. É que Darcy Ribeiro, para o país e o povo.
trabalhista histórico e companheiro Nesse livro inédito sobre a vida e
de Leonel Brizola, discípulo de Manoel a obra de Darcy Ribeiro, o subversivo
Bonfim, apresenta uma visão sobre a da antropologia, centrado na dialética
sociedade brasileira antípoda tanto de marxista quanto à crítica indignada e
Gilberto Freyre quanto de Sérgio Buarque implacável da ordem social existente, a

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categoria do imperialismo é onipresente respeito à morte e vida de um partido


na análise do subdesenvolvimento. Darcy político, o PDT, ao qual filiei-me convi-
Ribeiro conceitua o povo novo como a dado por Leonel Brizola. Lembro-me que
sua descoberta etnológica fundamental. um dia em minha casa, Petrópolis, soou
O povo novo é o mais característico das o telefone. O meu enteado o atendeu. Na
Américas, amálgama de etnias original- linha ouviu-se uma voz: aqui é o Leonel
mente diferentes, sob o domínio despó- Brizola. O guri revidou: deixe de trote!
tico de sociedades que promoveram aqui Brizola insistiu: não, meu filho, é o Leonel
a deculturação compulsória. A coloni- Brizola mesmo. No que atendi o telefone,
zação europeia no Novo Mundo utilizou certifiquei-me de que era o próprio. Aí
mão-de-obra indígena e africana para ele me convidou para fazer uma palestra
a produção agrária e exploração mine- no Instituto Pasqualini, Rio de Janeiro,
ral. Foi implantada a instituição fazenda Praça Tiradentes, cujo tema não era nada
como empresa capitalista para exportar simples: explicar por que o Brasil se afun-
matérias-primas e obter lucros pecuniá- dava, e o PDT não se alevantava. Leonel
rios; açúcar, algodão, cacau, café, tabaco, Brizola queria que eu explicasse essa
banana, abacaxi. Primeiro com regime situação complicada.
escravocrata, depois com trabalhadores Fundado em 1979, o PDT abrigou
livres, o contingente humano trabalhador talentos intelectuais como Darcy Ribeiro,
só existiu para gerar superlucros. Neiva Moreira e Edmundo Moniz, este
O decisivo é o vínculo mercantil um eminente historiador da rebelião de
colônia-metrópole. A fazenda escravista Canudos. Cito-o aqui com realce porque
antecipa a fábrica moderna, a fazenda Edmundo Moniz foi trotskista e brizolista,
com população isolada uma da outra. No o que para mim significa a simbiose possí-
meio dos escravos não havia pai de famí- vel e necessária entre marxismo e nacio-
lia com mulher e filhos; eram eles meras nalismo latino-americano, e que já havia
peças pertencentes ao senhor: “a pátria é a sido delineado por mim no livro A jangada
fazenda para quem nasce e vive nos limi- do Sul, publicado em 2005. Todavia, é
tes do seu cercado”. O fazendeiro é tudo: mister aduzir que foi a partir de Leonel
patrão, padrinho, chefe político, empresá- Brizola que a categoria de Trotsky sobre o
rio. A fazenda foi a instituição básica que desenvolvimento desigual do capitalismo
moldou a vida dos donos e dos subalter- se inscreveu no âmago de minha recons-
nos. O poder continua oligárquico, mesmo trução histórica do trabalhismo. E, nesse
depois de finda a escravidão. Desse livro aspecto, o referido livro remou contra
inédito sobre Darcy Ribeiro, uma das a maré acadêmica, porquanto todos os
conexões do ponto de vista político é com saberes universitários eram unânimes em
outro livro meu, Depois de Leonel Brizola, não imputar dimensão teórica à práxis
publicado em 2008, na sequência da morte de Leonel Brizola, como se o ex-governa-
do líder gaúcho, que traz uma sociolo- dor do Rio Grande do Sul atuasse empi-
gia do trabalhismo brasileiro iniciado em ricamente e historicamente desprovido
1930. O assunto que me ocupava dizia de ideia e de pensamento. Esse equívoco

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não foi resultado apenas de uma operação de Darcy Ribeiro. Eis o que dizia esse
hermenêutica de sociólogos e historiado- genial indo-americano: “Um proletariado
res inidôneos, mas sim um estratagema sem outro ideal a não ser a redução das
que deixou sem história a força de traba- horas de trabalho e o aumento de centavos
lho a partir do capital multinacional no salário não será nunca capaz de uma
instalado em São Paulo. Permita-me citar grande ação histórica.” O imperativo de
o seguinte trecho: “A máquina universitá- nacionalizar a economia para fazer justiça
ria e midiática do prestígio político não social foi deixado de lado pelo partido
consagrou Leonel Brizola e Darcy Ribeiro, político que alcançaria o poder sob o
mas sim FHC e Lula. Estes, ungidos pelos comando das multinacionais. Em vez de
Bancos internacionais, colocaram como justiça social, a sacristia do PT oferecerá
bandeira progressista a questão da demo- esmola e caridade. Por isso colocou um
cracia, identificando o regime de 1964 tucano no Banco Central.
com autoritarismo, ocultando no entanto Há antecedentes em minha biblio-
sua essência: a entrega das riquezas do grafia, pois essa categoria leninista do
país às multinacionais. A ditadura não foi imperialismo, como emanação necessária
derrubada por pressão das forças popula- e insuprimível do capitalismo, tem nítida
res e deixou, com a abertura democrática, presença em O príncipe da moeda (1997),
intacto o domínio das multinacionais, obra acerca do neoliberalismo dos gover-
assim como houve conivência com o nos de FHC, o que sugere uma unidade
caráter ilícito da dívida externa, de modo dos assuntos tratados. Vejamos o que
que no cenário político montado pela aconteceu do ponto de vista cronológico
direita era preciso destruir a tendência de O xará de Apipucos até O príncipe da
política que colocava como alvo principal moeda. Entre essas duas reflexões sobre
a denúncia da espoliação internacional. Gilberto Freyre e Fernando Henrique
A essa frente anti-Brizola participaram Cardoso, publiquei Collor: a cocaína dos
todos os partidos políticos: PT, PSDB, pobres (1989) e Brizulla: o samba da demo-
PFL e PMDB. Em todos esses partidos cracia (1989), dois livros que foram poli-
o traço uníssono foi a reivindicação de ticamente militantes e comprometidos
uma democracia em geral, ou seja, uma com o trabalhismo de Getúlio Vargas, João
democracia sem caráter de classe, já que Goulart e Leonel Brizola.
a democracia era detentora em si mesma Em 1986 ingressei como professor
de um valor absoluto e universal. A única de sociologia na Universidade Federal de
voz destoante chamava a atenção para o Juiz de Fora, por onde se dá minha inser-
conteúdo econômico dessa democracia ção didática, o que não ensejou nenhuma
das perdas internacionais, assim como ruptura com minha colaboração em vários
Darcy Ribeiro apontava a cabeça tradeu- jornais e revistas do país. Permaneceu
nista do ABC em São Paulo, retomando o a inicial conexão entre universidade e
que dizia o marxista peruano, José Carlos ensaio. Vários ensaios e artigos foram
Mariátegui, cujas afinidades estão menos publicados no caderno “Mais!” de A Folha
próximas de Florestan Fernandes do que de São Paulo.

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O que tenho de realçar a partir de telenovela. A televisão aparece como


1986 é a unidade temática e estilística um sistema de socialização psíquica que
do que tenho escrito até agora em 2015. atinge todas as idades, não havendo assim
A propósito, não faço distinção entre diferenças entre os programas infantis
os meus livros militantes e as minhas de auditório e a telenovela para adul-
investigações acadêmicas e de pesquisa, tos. Digamos, então, para refazer o fio
inclusive no terreno da estética, a exem- temático e estilístico, que o livro Collor: a
plo de Gláuber Pátria Rocha Livre (2001), cocaína dos pobres antecipará meu ensaio
livro que retomará no cinema o que era político sobre o presidente Fernando
lacunar na música em De olho na fresta. Henrique Cardoso, intitulado O príncipe
Evidentemente tenho que assinalar da moeda, o qual retoma minha reflexão
que o vínculo temático não foi por mim sobre a campanha eleitoral à presidên-
percebido no momento em que meus cia da República em 1989. Os argumen-
livros e artigos foram escritos. Como tos utilizados em O cabaré das crianças
autor, minha impressão é de que foram foram reatualizados em um ensaio que
induzidos pela realidade empírica, pois escrevi para a Revista Serrote do IMS, por
existe indubitavelmente conexão entre ocasião do cinquentenário da apresenta-
um livro e outro. Dir-se-ia: um livro dora infantil. O artigo chama-se “A mídia,
puxou o outro. Por exemplo, professor a mulher, o dinheiro e o pai do homem”,
de Ciências Sociais, retornei ao assunto ensaio orientado metodologicamente
acústico e imagético de De olho na fresta, pela preocupação em mostrar a possibili-
quando abordei o programa de auditó- dade de convergir a disciplina do folclore
rio infantil como signo da expansão tele- com o marxismo. Nesse ensaio aparece
visa na sociedade brasileira, conforme O pela primeira vez a aplicação da categoria
cabaré das crianças (1999). Havia conexão mais-valia ideológica de Ludovico Silva,
entre a sociologia do cabaré infantil e o grande poeta e filósofo marxista vene-
universo adulto da telenovela em Collor: zuelano que escreveu vários livros sobre
cocaína dos pobres. O outro lado antípoda o conceito de alienação na obra de Karl
dessa telenovela “collorida” foi o fracasso Marx. Ludovico é autor de uma teoria
de Leonel Brizola, porque não se efeti- poética do Ocidente de Homero a Ruben
vou no cenário eleitoral de 1989 a aliança Darío, e teve a audácia e a originalidade
Brizola (o Sol) e Lula (a Lua) para evocar o de transpor o conceito básico da econo-
conhecido samba de Nelson Cavaquinho, mia política (mais-valia, digamos, mate-
que me serviu de inspiração. rial) para a esfera da comunicação de
Lecionando em vários cursos massa, isto é, a produção ideológica no
na UFJF, em contacto assíduo com a capitalismo monopolista, quer em socie-
juventude, verifiquei a importância do dades periféricas, quer em sociedades
conceito de indústria cultural de Adorno metropolitanas. Mas antes de fazer tal
e Horkheimer. Disso resultou o referido transplantação epistemológica, Ludovico
ensaio sobre a apresentadora Xuxa como Silva apurou com maior rigor a semân-
prelúdio do entretenimento adulto na tica da palavra ideologia em toda a obra

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de Karl Marx. Foi isso que tentei deixar livro A ideologia curupira, originalmente
claro no prefácio que escrevi ao seu livro tese de doutorado defendida na USP em
A mais-valia ideológica (2013) na edição 1977. Convém repisar que o orientador
brasileira da editora Insular, que publicou de minha tese foi Gabriel Cohn, exímio
pela primeira vez este notável escritor no pesquisador e tradutor de Max Weber,
Brasil. Na revista REBELA (Universidade conhecedor da escola de Frankfurt, prin-
de Santa Catarina), publiquei em 2013 cipalmente de Theodor Adorno, sociólogo
artigo sobre o poeta venezuelano intitu- que surge nas páginas de De olho na fresta
lado O insensato Ludovico Silva – entre a e O príncipe da moeda. Esse livro reves-
poesia e o marxismo. te-se de particular significado para mim,
Nas Ciências Humanas e no jorna- porque é uma baliza na minha reflexão
lismo, para não mencionar os parlamen- como sociólogo, justamente por não ser
tares, o que se verifica é o uso equivocado comum e corriqueiro nas Ciências Sociais
e anfibológico da palavra ideologia, como tratar o tema da natureza. O capítulo dedi-
sendo o acervo das ideias de um determi- cado ao físico José Walter Bautista Vidal,
nado autor ou determinada doutrina polí- o criador do Proálcool, terá a partir daí
tica. Por exemplo: a ideologia de Lênin, a influência fundamental em minha visão
ideologia de Leonel Brizola, a ideologia de de mundo. É que me abriu com o conhe-
Joãozinho Trinta. Enfatizei o uso errado da cimento da obra desse eminente físico (do
palavra ideologia nesse artigo, mas a ênfase qual me tornei amigo e parceiro) uma área
foi no autor Ludovico Silva como polígrafo. de investigação nova. Refiro-me ao tema
Desde quando estava escrevendo da energia abordada pela Termodinâmica,
sobre Gilberto Freyre no Recife, surgiu em disciplina que mostra que a energia não é
mim o desejo de realizar uma investiga- criada pelo homem, tendo conformação
ção abrangente que focalizasse a teoria diferente de acordo com as particularida-
marxista de Darcy Ribeiro, e como esta des geográficas.
explicava a dinâmica histórica do subde- Bautista Vidal ensinou-me a ver o
senvolvimento a partir do processo civili- sol do ponto de vista sociológico, o sol
zatório. Conversando com Gilberto Freyre como doador de energia e fonte de toda a
em Apipucos, tomei conhecimento do riqueza, abordagem que se chocava com
prefácio à Casa grande e senzala, edição a existência de uma sociabilidade miserá-
venezuelana, escrito por Darcy Ribeiro, vel como a brasileira. Foi com base nesse
no qual eram feitos alguns reparos ao contraste que escrevemos a quatro mãos
método empático utilizado pelo sociólogo o livro O poder dos trópicos (1998), o qual
pernambucano. Uma dessas restrições tinha por pretensão servir de roteiro para
dizia respeito ao foco dado à escravidão a implantação de uma política energé-
pelo escravo doméstico, negligenciando a tica (fundada na biomassa vegetal, álcool
existência do escravo do eito. Pude verificar e óleos) para fundamentar a civilização
então que, no comentário crítico de Darcy brasileira solidária, igualitária e demo-
Ribeiro, sobressaia a questão das classes crática. O poder dos trópicos anunciava
sociais, que foi o tema desenvolvido por que o petróleo estava chegando ao fim
Florestan Fernandes, o prefaciador de meu e que nossa vocação energética não era

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a matriz fóssil. A propósito escrevi na da nossa verdadeira vocação energética:


Revista Política – para la independên- a biomassa vegetal. Essa mesma posição
cia y la unidad de América Latina, Nº 12, anti-Pré-Sal foi defendida pelo geólogo e
publicada pela Del Sur em 2012, o artigo fazendeiro florestal Marcelo Guimarães,
“O Brasil pusilânime diante da guerra das que ficou conhecido em Minas Gerais
Malvinas”, mostrando a busca incansável por ter posto em execução as micro-
do petróleo pelas potências imperialis- destilarias de álcool como estratégia do
tas. Bautista e eu continuamos a pesquisa autodesenvolvimento.
mostrando a alienação energética que Também tornei-me amigo de Marcelo
persegue os sociólogos e os economistas. Guimarães, indo visitá-lo amiúde em sua
Esse foi o objeto de análise de outro livro, fazendola em Mateus Leme, de cujos
A dialética dos trópicos (2000), que trazia encontros resultaram uma reportagem
uma crítica à CEPAL e ao pensamento de escrita por mim no livro A salvação da
Celso Furtado, porque ambos equaciona- lavoura (2002), no qual mostrei, com base
ram de maneira equivocada os pacotes em seus ensinamentos, que seria possível
tecnológicos de extração forânea. Ainda pela primeira vez na história da agricultura
com Bautista Vidal escrevi Petrobrás: um mundial plantar simultaneamente ener-
clarão na história (2001), cujo mote era gia e comida, tendo por base a pequena
para contrastar com os sucessivos apagões propriedade e não o latifúndio mono-
elétricos. O livro sobre a Petrobrás focali- cultor e antiecológico. Não é por acaso
zava a necessidade de esta empresa incor- que o subtítulo desse livro é “roteiro da
porar a produção da biomassa energética, fartura para o povo brasileiro”. À maneira
com o que poderia constituir-se numa de Bautista Vidal, Marcelo hiperbolizou
grande empresa mundial de energia a lidar com lucidez a antítese entre petróleo e
com o petróleo do passado e a biomassa biomassa, defendendo a tese de que a
do futuro, não deixando de denunciar Petrobrás tem uma compreensão turvada
a desinformação da Petrobrás em rela- da energia nos trópicos, pois nossa voca-
ção ao trópico como o local por excelên- ção natural é uma civilização construída
cia para se construir uma civilização da com combustíveis ecologicamente limpos
fotossíntese. É preciso assinalar também e extraídos do sol. Lembro-me que tive
que esse livro é o retrato da inserção didá- a sorte de ter Marcelo Guimarães como
tica de Bautista Vidal como professor de leitor ativo do meu livro Biomassa - a
termodinâmica na Universidade da Bahia, eterna energia do futuro (2002), cujo
colaborando na Petrobrás com um curso título resume a essência da concepção
sobre a prospecção de petróleo em águas do tempo em relação aos combustíveis
marítimas profundas. Essa investigação fósseis (carvão mineral e petróleo) não-re-
na área geofísica gerou em seus ex-dis- nováveis. A biomassa vegetal, abundante
cípulos a descoberta do Pré-Sal, embora nos trópicos úmidos, não apenas apon-
seja imperioso aduzir que o meu amigo tava para o futuro, como era uma forma
morreu fazendo crítica implacável ao de energia eterna, pelo menos – ressaltava
Pré-Sal, por ser um caminho equivocado Marcelo Guimarães – eterna enquanto
que iria privilegiar o petróleo e nos desviar houver sol. As implicações desse fato

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seriam inúmeras para o processo civili- energia da biomassa com o latifúndio,


zatório, que é movido pela combinação pois a cana de açúcar não é uma gramí-
de energia e tecnologia, seja qual for a nea intrinsecamente ligada ao mono-
ordenação classista. pólio da terra, embora esta tenha sido a
Bautista Vidal e Marcelo Guimarães origem das “plantations” colonizadoras
trouxeram para mim a necessidade de de fundamental importância nas capita-
abordar a conexão entre energia e ecolo- nias hereditárias, nas sesmarias e no atual
gia; por isso, escrevi um capítulo no livro agrobusiness latifundiário. Enfatizo aqui o
de Bautista Vidal intitulado Brasil: a civi- quanto para mim foi importante a desco-
lização suicida (2000), que é um libelo berta da energia nas minhas abordagens
contra a alienação energética que perse- sociológicas, pois é sabido que as Ciências
gue os responsáveis pela política de Sociais estão divorciadas daquilo que
desenvolvimento no Brasil. A ecologia Engels chamou de dialética da natureza.
aparecia conectada com o desequilíbrio Nesse livro informei sobre a exuberân-
da biosfera provocado pela emissão dos cia energética da natureza dos trópicos e
combustíveis fósseis, os quais queimam como isso poderia ser um fator de fartura
dióxido de carbono, poluindo a atmos- e felicidade para o povo, de modo que a
fera e provocando efeitos catastróficos: o civilização brasileira está diante de um
aquecimento global, a chuva ácida e os grande dilema: escolher entre o álcool em
cataclismos oceânicos. O dramático aque- pequenas propriedades e o etanol nos lati-
cimento global é responsável pela escas- fúndios sob controle das multinacionais.
sez das águas, provocado sobretudo pelo E nesse dilema, que é econômico, polí-
uso do petróleo e do carvão mineral desde tico e tecnológico, está embutida a ques-
1800 com a revolução industrial capita- tão do adubo produzido com o petróleo
lista, sendo o sistema capitalista asso- das multinacionais, enquanto a perspec-
ciado à concentração da mina de carvão e tiva anunciada por Marcelo Guimarães e
do poço de petróleo. Bautista Vidal apontava para a produção
Em A salvação da lavoura (2002) de um adubo orgânico e descentralizado.
enfatizei que tudo o que é produzido pela Eles enfatizaram também que o sol por
energia fóssil poderia ser obtido pelos si mesmo não é suficiente. É necessária a
derivados da biomassa, a exemplo do água para armazenar a energia eletromag-
álcool da cana de açúcar, da mandioca e do nética do sol. Por isso O poder dos trópi-
dendê, plantas que florescem de maneira cos e A salvação da lavoura apresentaram
rápida, ao contrário dos combustíveis a diferença entre uma civilização baseada
fosseis que precisam de milhares de anos no hidrocarboneto e uma civilização
para se formarem. Marcelo Guimarães, baseada no hidrato de carbono. Teríamos
em suas experiências realizadas em Minas de fazer a substituição (como pré-requi-
Gerais, mostrou que era possível produ- sito à transformação socialista) da petro-
zir em pequenas propriedades simul- química pela alcoolquímica.
taneamente álcool combustível, leite e Depois da morte de Bautista Vidal e
cachaça. O geólogo e tecnólogo alertou- de Marcelo Guimarães, não abandonei essa
-me de que era um equívoco identificar perspectiva energético-ecológica, que me

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orientou na produção de vários trabalhos resultaram os seguintes livros organiza-


audiovisuais realizados com os meus alunos dos por mim: A história de um menino e
na Universidade Federal de Juiz de Fora. as transformações do mundo, A boca do
Vários vídeos foram produzidos com uma homem, Verdades quase desconhecidas.
diretriz estética e política que foi por mim Há dois aspectos que presidiram a organi-
denominada Kivideobiopsicomassafolk, zação desses livros: primeiro, a regionali-
hibridismo linguístico que designa a dade, já que Silva Mello é concebido como
abordagem interdisciplinar do cinema, da um tipo cultural representativo dessa
termodinâmica, da psicologia e do folclore. cidade, o seu livro de memória História de
A dimensão energética envolve uma questão um menino e transformações do mundo
continental; foi com essa ideia que realizei constitui um exemplo notável de amor
em Buenos Aires conferência sobre ener- pela cidade de Juiz de Fora. Reputo-o
gia e Pátria Grande, no Instituto Nacional como um dos pontos altos da literatura
Manuel Dorrego, no ano de 2013. brasileira com impregnação regional.
Há que pausar aqui para esclarecer O segundo aspecto diz respeito às refle-
que o “biopsico”, que integra a híbrida xões desse eminente médico acerca dos
expressão linguística, é alusão ao estudo e problemas atualíssimos que envolvem a
pesquisa feitos por mim sobre o extraor- saúde, a alimentação e a energia. Foi então
dinário médico juiz-forano Antônio Silva que tive a oportunidade de participar
Mello, referência fundamental na história como conferencista em vários congres-
das Ciências Naturais do século XX. Eu o li sos de História da Medicina realizados em
pela primeira vez em uma entrevista dada Minas Gerais a partir de 2001. Acrescento
ao jornal O Pasquim em 1968. Estava estu- a propósito que Silva Mello levou-me a
dando em São Paulo e, então, não poderia conhecer o médico José Roiz. Este escreveu
supor que 20 anos depois seria professor um livro admirável, intitulado O esporte
em sua cidade natal. Acredito não ser um mata. Tive a honra de prefaciar esse livro,
mero acaso, desprovido de importância com o texto“Crítica do capitalismo glico-
em minha vida, o itinerário de São Paulo/ corticóide estressante”, com o objetivo de
Juiz de Fora. Meu ingresso como profes- mostrar que José Roiz havia feito a anato-
sor de Ciências Sociais na Universidade mia da mercadoria capitalista na esfera da
Federal de Juiz de Fora data de 1986, biologia, tomando como objeto de análise
momento crucial em minha vida intelec- o culto fetichista do esporte na sociedade
tual, pois comecei a estudar a cultura local contemporânea mundial.
conversando com o historiador Dormivilly Em 2014 sintetizei as contribuições
Nóbrega em memoráveis tardes no Bairro silvamellianas em um livro publicado
de Lourdes. Minha afeição por Juiz de Fora pela editora da Universidade Federal de
foi reconhecida pelo então vereador Flavio Juiz de Fora, intitulado Nossa vida de
Cheker na Câmara Municipal, condeco- cada dia entre o supermercado e a droga-
rando-me com o título de cidadão hono- ria. Antes disso, convém mencionar que
rário da cidade. escrevi na Revista da Academia Brasileira
Levei anos pensando e estudando de Letras (Fase VII, Outubro – Novembro -
sobre a vida e a obra de Silva Mello. Disso Dezembro 2008, Ano XV, N° 57) um artigo

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focalizando sua abordagem da alimen- econômicos são guiados pelo monopólio


tação, “O país do alimento”, na qual Silva da indústria da alimentação, seguida pelo
Mello foi membro ilustre, ocupando a embuste farmacêutico com a profusão de
cadeira 19 do historiador Gustavo Barroso, remédios que mudam apenas a embala-
que influenciou profundamente o estilo de gem. Vale reparar que durante mais de 40
Luís da Câmara Cascudo sobre o folclore. anos, na Revista Brasileira de Medicina,
Coloquei em discussão o caráter mercantil fundada e dirigida por ele, combateu a
da organização industrial e da produção vitaminomania produzida pelos labora-
do alimento. A filosofia de Silva Mello, é a tórios. Segundo Silva Mello, “era preferí-
da alimentação ancestral; médico dotado vel gastar mais dinheiro com comida que
de uma atualidade impressionante com com remédio”.
o descalabro ecológico produzido pelo Silva Mello abriu-me um novo cami-
sistema capitalista, não só na natureza nho, a sociologia da Medicina, o qual
como também na alimentação. Sua estreia já havia sido palmilhado por Gilberto
literária data de 1936, tinha 50 anos Freyre. Julgo que muito do meu interesse
quando escreveu um livro de crítica ao pela área médica se deve à influência do
ensino de medicina no Rio de Janeiro, por doutor Zoláquio da Silva Vasconcellos,
ser demasiado abstrato e retórico, livro meu saudoso e querido pai, que foi
intitulado Problemas do ensino médico médico no interior do Estado de São
e de educação, com prefácio de Gilberto Paulo, Santa Adélia, cidadezinha onde
Freyre, que lhe atribuiu o epíteto de nasci e fui alfabetizado pela profes-
“Dom Quixote da Medicina”. A propósito, sora primária Dona Adelaide Felisberto,
convém reparar o acerto dessa caracte- minha mãe, talvez a origem primeva do
rização, porque foi um prelúdio do que meu interesse educacional pelos CIEPS
seria a atividade intelectual e médica de mentalizados por Leonel Brizola, Darcy
Silva Mello, a qual remou contra a maré de Ribeiro e Oscar Niemeyer.
seu tempo ao denunciar o vínculo entre a O Folclore foi tema do meu livro
indústria de alimentos e o aparato farma- sobre Luís da Câmara Cascudo intitulado
cêutico, constelação de interesses econô- Do Sincretismo à Xifopagia (2009). A inves-
micos entre a produção de alimento e os tigação que começou em Nina Rodrigues
fabricantes de remédios. A simbiose das (o introdutor da categoria “sincretismo”)
multinacionais dos remédios e da comida até a sociologia do açúcar, na qual Luís da
(sementes, adubos, pesticidas) não faz Câmara Cascudo faz restrições ao sincre-
senão aumentar com a chamada lavoura tismo como definidor da interpenetração
“biotech” e o poder da engenharia gené- étnica e cultural e propõe como substituto
tica na agricultura mundial. Silva Mello o termo xifopagia. O sincretismo está em
foi pioneiro em denunciar o agrobusi- Nina Rodrigues, Silvio Romero, Arthur
ness tóxico e a fabricação monopolista de Ramos, Manuel Querino, Edson Carneiro,
remédios. A falta de leite no seio da mãe Roger Bastide e Gilberto Freyre. A ideia da
(agalacia) é provocada pela desnatura- interpenetração sincrética pressupõe que
lização dos alimentos, cujos interesses as etnias se confluíram e se diluíram em

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sua individualização. Fundamentando-se e Darcy Ribeiro, por ter Luís da Câmara


no catolicismo e no candomblé, Luís da Cascudo colocado na escala étnica o
Câmara Cascudo irá apresentar a mistura primado do elemento português, seguido
xifopágica na qual cada etnia permanece do indígena e depois do negro, por ter real-
com suas próprias características, ou seja, çado que nossa configuração étnico-racial
juntam-se mas permanecem cada uma não deve ser explicada como resultado
em si mesma. Luís da Câmara Cascudo é da violência imanente a todo processo
tratado como o intérprete da civilização colonizador. O mestre de Gilberto Freyre,
brasileira tão importante quanto Gilberto Oliveira Lima, conhecedor da expansão
Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. Luís inglesa e espanhola na América, afir-
da Câmara Cascudo é considerado o antro- mou que o Brasil havia sido uma espécie
pólogo das civilizações que estudou o de colônia mimada. É isso o que está na
processo de permuta cultural enfatizando obra de Luís da Câmara Cascudo, na qual
nossa filiação com a expansão ibérica que há uma fluidez social entre o colonizador
se transfigurou com a presença do negro e o colonizado, ou seja, o colonialismo
e do índio, mas manteve a predominân- não aparece como categoria explicativa
cia luso-ibérica na comida, na religião, do Brasil como totalidade, ao contrário
na música e no imaginário sobrenatural. do que diziam Darcy Ribeiro e o histo-
Essas ideias foram repassadas na confe- riador Nelson Werneck Sodré, que nunca
rência “Cascudo: intérprete da alma do perderam de vista o escravismo colonial
Brasil”, dada por mim no aniversário de como elemento básico na relação Brasil
54 anos do Museu Câmara Cascudo em e Portugal. Essa diretriz informou o meu
Natal, Rio Grande do Norte, no ano de artigo “Retorno ao Recalcado: o nacio-
2014. Basicamente, o que conferenciei nalismo na cultura brasileira”, publi-
em Natal foi a propósito do autor Luís da cado em 2008 na Revista do Programa de
Câmara Cascudo, intérprete original da Estudos Pós-Graduados em História e do
cultura brasileira, tomando como ponto Departamento de História, pela editora da
de partida os estudos etnológicos de Nina PUC-SP. Nesse artigo mostrei que a dire-
Rodrigues até os ensaístas Sérgio Buarque triz fundamental do nacionalismo estava
de Holanda, Caio Prado Júnior, Gilberto alicerçada na distinção entre a fase de
Freyre e Darcy Ribeiro. exportação de capital e a fase de instala-
O maior estudioso da cultura popu- ção das grandes empresas multinacionais
lar afirmou que o Brasil amanheceu na na economia do país. Nas últimas déca-
história no século XVI fruto de um encon- das, o nacionalismo foi recalcado pela
tro feliz. O encontro euro-ameraba com o ofensiva do neoliberalismo das privatiza-
homem português e a mulher indígena. ções internacionais. Todavia, fatalmente a
Esse encontro foi feliz até o momento em perspectiva é de que haja retomada desse
que apareceu a escravidão, mais ou menos conceito na política e na cultura, sobre-
por volta de 1530, depois a constrição tudo com o caso inevitável dos combus-
escravagista impediu o conúbio amoroso. tíveis fósseis, que colocará o território dos
Retomei a discussão com Gilberto Freyre trópicos no epicentro energético da histó-
ria no século XXI.

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Tentando rastrear o motivo da subs- da mirada eurocêntrica sobre a América


tituição do sincretismo para a xifopagia, Latina. Cada intérprete sublinha o que
tive de reconstruir os esquemas analíti- lhe parece mais significativo. O colono
cos usados em nossa historiografia, pois português cegou-se pela cobiça, o padre
se na formação econômica e social do jesuíta foi adversário neurótico da alegria
Brasil a mão de obra principal foi a do de viver dos índios nus nas florestas tropi-
negro escravo, todavia na cultura popu- cais. A catequese bíblica foi o equivalente
lar não houve o primado negro-africano complementar das pestes, infecções, sífi-
em nenhuma de suas manifestações, nem lis e varíola. Na perspectiva de um Darcy
mesmo na Bahia com o afluxo enorme Ribeiro ou de um Nelson Werneck Sodré,
da mão de obra africana, de modo que o invasor branco colonial massacrou os
houve uma dissimetria entre a principal índios que viviam por aqui em 1500. O
força de trabalho explorada e a conforma- aforismo dilemático de Oswald de Andrade
ção cultural do povo. Enfatizei nesse meu “tupi or not tupi” não deve ser tomado
estudo sobre Luís da Câmara Cascudo o como mero achado piadístico do moder-
seguinte aspecto, não movido por intuito nismo, consoante ao artigo que escrevi
provocador: o predomínio luso-ibérico para a Revista do Departamento de Letras
não é reflexo ou epifenômeno da domina- da UFJF por nome “Da saudade à ninguen-
ção exercida pela classe proprietária vinda dade: Portugal e Brasis”. É antes a denún-
de Portugal. O que está em discussão é o cia do Brasil como um país chacinador de
processo da colonização. Eu me pergun- índios, do avassalamento do indígena. Do
tava nesse livro: o que se entende por colô- negro escravizado veio a super-explora-
nia? Não a colônia grega ou romana, mas ção da força de trabalho para enricar os
a colônia moderna fundada no cálculo núcleos cêntricos do capitalismo. Senhor
capitalista, projetada como empresa de engenho. Dono de usina. Latifundiário.
ultramar para dar lucros, lucros exportá- Industrial. Banqueiro. Em meus livros
veis, cuja razão de ser se prolonga até os A Razão Iracunda e Do Sincretismo à
nossos dias com o pendor “for export” Xifopagia as classes dominantes em todas
da nossa classe dominante associada ao as etapas do Brasil aparecem como feito-
capital estrangeiro. res, cônsules e gerentes de interesses
Foi com a mão de obra do negro externos. Lisboa, Londres, Washington. É
escravo que a colônia existiu, o índio não por isso que as contradições fundamentais
gerou a lucratividade propiciada pelo da sociedade brasileira nunca são mera-
escravismo negro. Extirpado pelo etnocí- mente internas, malgrado a existência
dio, o índio não contribuiu na produção inter-classista. Foi a partir dessa discussão
de renda destinada ao exterior, e a base sobre a causação interna ou externa na
da economia colônia foi a transferência dinâmica social e política é que estudei o
dessa renda, por isso o colonizado de fato sociólogo Andre Gunder Frank, o autor do
foi o negro, não o índio. O que atravessa as extraordinário livro Desenvolvimento do
várias interpretações dos autores clássicos Subdesenvolvimento, o qual define a indus-
sobre o Brasil é a necessidade de se libertar trialização recolonizada pela instalação de

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multinacionais e os seus pacotes tecnoló- novo mundo propiciou e exigiu ao mesmo


gicos exógenos. Quanto mais aumenta o tempo o trabalho assalariado no velho
desenvolvimento, mais aumenta o fluxo mundo. Os sabotadores da obra de Gunder
de capital exportado daqui para o exterior, Frank, os que o colocaram por debaixo
o que comprova a complementaridade do tapete, não atingiram a compreensão
entre o desenvolvimento das metrópoles e da totalidade, enquanto Gunder Frank
o subdesenvolvimento da América Latina. apreendeu o sistema capitalista como um
Esse foi o núcleo do meu livro sobre Andre todo, investigou os diferentes fenôme-
Gunder Frank intitulado O Enguiço das nos em vários lugares com suas conexões
Ciências Sociais (2014). Nesse livro refaço causais, tendo em mira que a acumulação
as etapas do meu percurso intelectual de capital (desigual e irregular) é o princi-
a partir da formação que tive na USP, na pal motor da história junto com a ubíqua
qual Gunder Frank permaneceu negli- luta de classes. Realcei o método de sua
genciado por fazer a crítica de Fernando investigação histórica que se respaldou em
Henrique Cardoso, Florestan Fernandes, Karl Marx, para quem o comércio escravo
Octávio Ianni, etc. O nome “enguiço” das trouxe prosperidade para Liverpool. Tomei
Ciências Sociais refere-se ao impasse que Gunder Frank como guia metodológico
Gunder Frank trouxe para as Ciências com o propósito de reavaliar as causas do
Sociais quando aportou por aqui em 1963, golpe de 64. Este não foi um produto da
dando aula na Universidade de Brasília guerra fria e deveria ser visto em função
convidado por Darcy Ribeiro. O impasse a do processo de acumulação mundial, pois
que me refiro foi sua crítica aos dualismos ocorreram vários golpes de Estado simul-
regionais (Brasil arcaico e Brasil moderno), taneamente na América Latina, o que
a ideia de que seria impossível eliminar o significa que tais golpes não podem ser
subdesenvolvimento com o desenvolvi- explicados apenas pela história particular
mento importado, a exemplo da instala- de cada país. O que enfatizei em meu livro
ção da indústria automobilística. é que Gunder Frank incomodou ao trazer
Com Gunder Frank comecei a viagem para as Ciências Sociais a reflexão sobre o
Pátria Grande, ou seja, comecei a estudar tempo no subdesenvolvimento e o subde-
os autores fundamentais à compreensão senvolvimento no tempo. O problema do
da América Latina, como Jorge Abelardo homem colonial não é o a-historicismo ou
Ramos, Methol Ferré e Vivian Trías. A a história que imobiliza, mas sim a trapaça
questão das classes é decisiva nesse livro. do desenvolvimento capitalista como o
A precondição para se falar em capita- devir do progresso futuro. O desenvol-
lismo, segundo Gunder Frank, é a exis- vimento do subdesenvolvimento, esse
tência de trabalhador livre, de modo que oxímoro barroquizante e dialético é a
a escravidão não é trabalho assalariado, denuncia da condenação do futuro a que
mas isso não quer dizer que o sul dos estamos submetidos no capitalismo.
Estados Unidos, o Caribe açucareiro e os A reflexão sobre Gunder Frank é o
canaviais do Brasil não tivessem sido capi- ponto de partida para a formulação acerca
talistas. Fato é que o trabalho escravo no do capitalismo videofinanceiro, que é um

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conceito que foi desenvolvido por mim economista Delfim Neto repisou a tese
em Quebra-Cabeça do Cinema Novo (a ser de Roberto Campos, inspirado no modelo
publicado pela editora Azogue). O capi- Time Life da TV Globo, daí a junção econo-
talismo videofinanceiro é a simbiose da mia política do automóvel com eletrodo-
televisão, do banco e das empresas finan- méstico, a saga das Casas Bahia que foi
ceiras na acumulação de capital. O capital iniciada em 1957 durante os governos de
monopolista está na raiz da comunica- JK e Jânio Quadros, com as primícias da
ção de massa. O conceito de capitalismo burguesia associada, a qual iria desabro-
videofinanceiro foi haurido em Ruy Mauro char plenamente na década de 70 mono-
Marini (a superexploração da força de polista vídeofinanceira. O conceito de
trabalho) e a partir da mais-valia ideoló- capitalismo videofinanceiro, preliminar-
gica de Ludovico Silva. É visível a interação mente esboçado em Collor, A Cocaína dos
entre os dois fenômenos, como mostrei Pobres, não quer dizer que o capitalismo
em Depois de Leonel Brizola, a mais-valia seja diferente agora, pois o capitalismo
ideológica aumenta quanto mais a massa continua sendo capitalismo. Há conexão
trabalhadora se marginaliza socialmente, entre os super-monopólios na colônia
quanto mais ocorre a expansão da tele- e o desenvolvimento da comunicação
visão, cuja propriedade se concentra nos de massa. A multinacional paga salário
clãs-parentais do ar, ou seja, os latifundiá- abaixo do valor da força de trabalho, por
rios das ondas eletrônicas. isso obtém lucros quando os produtos são
O capital monopolista está na base exportados dos países periféricos para o
da reflexão de Glauber Rocha sobre o está- mercado europeu e norte-americano.
gio eletrônico da comunicação de massa. A telenovela da monopolização socie-
É mister assinalar que o vídeomonopólio tária justifica com mais-valia ideológica a
capitalista passa a ser produtor de ideias subalternidade do país aos centros capi-
que circulam como teoria nos meios talistas, assim como induz a pensar e a
acadêmicos. Foi isso o objeto analítico desejar que o subdesenvolvimento possa
de meu livro Glauber Pátria Rocha Livre. ser erradicado mediante a instalação de
As ideias realmente não caem do céu. De empresas multinacionais e com o capital
Roberto Campos a Fernando Henrique estrangeiro como motor da prosperidade
Cardoso a mediação é dada pelo vídeofi- do país. Para finalizar, reparo que há um
nanceiro, seja na ditadura ou na abertura. fio condutor no meu percurso acadêmico
No livro Quebra-Cabeça ressemantizo que e na minha escrita ensaística, a saber, a
o triunfo da telenovela correu paralelo ao reflexão sobre a particularidade da socie-
fracasso do cinema novo glauberiano. A dade capitalista dependente e a presença
novela é a expressão audiovisual do libe- ubíqua do imperialismo na economia, na
ralismo desenvolvimentista na econo- política e na cultura.
mia. Tanto faz ditadura ou democracia.
Segundo Gunder Frank, o liberalismo
multinacional não é capaz de tirar o país
da miséria e do subdesenvolvimento. O

DOSSIÊ – SOCIEDADE, DIREITOS E JUSTIÇA COGNITIVA II


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Cronos: R. Pós-Grad. Ci. Soc. UFRN, Natal, v. 16, n.2, jul./dez. 2015, ISSN 1982-5560

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