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ANTROPOCENO
Eduardo Viola
Eduardo Viola, Universidade de Brasília (UnB), Brasília – DF. E-mail: eduviola@gmail.com
Larissa Basso
Larissa Basso, Universidade de Brasília (UnB), Brasília – DF. E-mail: larissabasso@gmail.com
DOI: 10.17666/319201/2016
no sistema planetário é essencial alcançar coopera- conhecimento, com aumento exponencial da po-
ção que vá além do mínimo denominador comum, pulação global e do consumo per capita de recursos
é necessário aprofundar a governança global, o que naturais, fez com que a humanidade passasse a ser
implica cessão de soberania em favor de acordos in- a principal força de transformação no planeta. Essa
tergovernamentais mais robustos. é a principal característica da atual época geológi-
O objetivo deste artigo é demonstrar como o ca, o Antropoceno.
Antropoceno ainda não foi internalizado em gran- O Antropoceno foi definido pela primeira
de parte da produção das Relações Internacionais vez pelos cientistas Crutzen e Stoemer (2000).
e como a internalização torna necessário redefinir Antropoceno é uma nova época geológica e hu-
conceitos tradicionais da disciplina. Para tanto, o mana, caracterizada pelo protagonismo da hu-
trabalho será dividido em três partes. Na primeira manidade como força transformadora do planeta
será tratado do tema do Antropoceno, seu signi- (Rockstrom et al., 2009; Biermann et al., 2012;
ficado e o desafio que representa para as relações Steffen et al., 2015) De acordo com os cientistas,
internacionais. Na segunda será traçada a atual a intensidade dos impactos da humanidade sobre
conjuntura internacional, com evidências do retro- o planeta aumentou de forma exponencial após a
cesso na cooperação internacional e o aumento da Revolução Industrial, portanto ela seria o marco
conflituosidade e da incapacidade de regimes inter- de início da nova época geológica. No entanto,
nacionais em tratar de problemas comuns globais, apesar de a Revolução Industrial ter sido o esto-
em especial a instabilidade ambiental. Na terceira pim do processo que desencadeou o Antropoceno,
será demonstrado como a atualização dos concei- à época os impactos da humanidade sobre o pla-
tos de ameaça, segurança e interesse nacional, além neta ainda não tinham cumulado ou alcançado a
do aprofundamento da governança global, podem escala que tornou o homo sapiens a principal força
tornar a geopolítica muito mais capaz para lidar de transformadora terrestre. Por isso, entende-se que
forma satisfatória com problemas comuns globais, o Antropoceno se consubstancia no início do sé-
característicos do século XXI. culo XXI, quando os requisitos de escala e cumu-
latividade foram alcançados (Viola, Franchini e
Ribeiro, 2013).
O Antropoceno e as relações internacionais Um dos fatores motrizes da Revolução Indus-
trial foi o uso massivo dos combustíveis fósseis.
Com o uso desses, a restrição energética que limi-
O conceito de Antropoceno e os limites planetários tava as atividades humanas1 foi superada (Steffen et
al., 2011, p. 848). O uso do carvão e do petróleo
Há aproximadamente 11 mil anos terminou a permitiu que a humanidade desenvolvesse a meta-
última glaciação e o planeta entrou em uma era geo- lurgia e as máquinas, a indústria química e os ferti-
lógica de clima mais ameno e estável, chamada de lizantes agrícolas, a eletricidade e o motor de com-
Holoceno. Esse clima ameno e estável proporcio- bustão interna; que revolucionasse as comunicações
nou à humanidade condições de desenvolvimento e os sistemas produtivos para a produção em massa.
não presentes em épocas anteriores para outras es- Tantas transformações, impactantes em si mesmas,
pécies; por isso, ao longo do Holoceno, ela pas- não teriam alcançado escala planetária sem seu em-
sou de alguns grupos de caçadores-coletores para prego disseminado por um número cada vez maior
uma população de 6 bilhões de pessoas, agrupada de seres humanos. De fato, entre 1945 e 2000, a
em complexas organizações sociais com naciona- população mundial passou de 3 bilhões para 6 bi-
lidades, culturas e modos de vida diversos. O de- lhões de pessoas; o consumo de petróleo aumen-
senvolvimento da humanidade foi paulatino, mas tou em quase quatro vezes, a atividade econômica
trouxe impactos cumulativos. Em fins do século aumentou em quinze vezes, e a urbanização e os
XX e início do século XXI, a transformação da so- padrões de consumo de massa disseminaram-se
ciedade industrial para a sociedade de informação/ (Steffen et al., 2011).
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O início do Antropoceno coincide com a ul- ainda esta não for mitigada, chegar-se-ia à mudança
trapassagem dos limites planetários. Os limites climática catastrófica, os chamados tipping points:
planetários – mudança do clima, integridade da fim da corrente do Golfo, que é fundamental para
biosfera, fluxos biogeoquímicos do nitrogênio e do o clima ameno da Europa; liberação generalizada
fósforo, diminuição da camada de ozônio, acidifi- do metano da tundra canadense e siberiana, em
cação dos oceanos, uso da água doce, uso dos solos, razão do degelo dessas regiões; incêndios gene-
poluição agregada global por aerossóis e contami- ralizados na Amazônia e outras florestas tropicais
nação química (Rockstrom et al., 2009; Steffen et remanescentes (Congo, Indonésia); derretimento
al., 2015) – são limites de resiliência do planeta: se do gelo na Groelândia; colapso de parte do gelo
ultrapassados, a estabilidade ambiental é perdida. da Antártida; mudança no ciclo monções na Ásia;
Dois limites encontram-se ultrapassados: os fluxos aumento do nível do mar entre 50 e 100 metros,
biogeoquímicos do nitrogênio e do fósforo, em ra- inundando grande parte das cidades. A probabili-
zão do uso massivo de fertilizantes desde os anos de dade de mudança climática catastrófica é hoje mui-
1950, e a integridade da biosfera, como consequên- to baixa, mas ela aumentará progressivamente caso
cia da expansão da população humana, que impac- a humanidade não consiga conter a concentração
tou ecossistemas naturais e outras espécies a ponto de carbono na atmosfera, e uma mudança climática
de extingui-las – é a sexta grande extinção em 4 nesse nível implicaria o fim da civilização, senão a
bilhões de anos de história da vida, a primeira pro- extinção da espécie humana.
duzida pela humanidade. A estabilidade do clima Retomar um espaço seguro para a existência
foi quebrada, em razão da acumulação de gases de humana na Terra requer mitigar a ultrapassagem
efeito estufa (GEE) na atmosfera. Como resultado, dos limites planetários. Todavia, há descompasso
está atualmente em curso a mudança do clima in- entre as medidas necessárias para essa mitigação e o
cremental, que pode, se não mitigada, evoluir para que a atual geopolítica tem oferecido como respos-
perigosa e posteriormente catastrófica. ta a essas questões.
A mudança do clima incremental resulta em
eventos climáticos extremos cada vez mais frequen- Os desafios do Antropoceno e a realidade da
tes: chuvas mais intensas e concentradas; secas mais geopolítica
extremas; extremos prolongados de calor e frio;
choques mais intensos entre circulação atmosféri- A mitigação da mudança climática é um bem
ca oceânica e terrestre em muitas regiões litorâneas; comum global. Bens comuns são caracterizados
sequências de furacões e tufões; retração extensa e pela não exclusividade – não é possível excluir de
prolongada do gelo nos verões do oceano Ártico; seu uso aqueles que não contribuem para sua pro-
início de liberação de metano acumulado na tundra visão. Por isso, partes individualmente considera-
siberiana e canadense. Esses eventos, no curto pra- das não têm interesse em sua provisão: é necessário
zo, ameaçam segmentos da população mais vulne- algum arranjo cooperativo para que esses bens se-
ráveis, particularmente os mais pobres em diversas jam providos. A estabilidade do clima, no entanto,
partes do planeta. No longo prazo, podem tornar têm características que dificultam a formação de
mais custosos e menos previsíveis os sistemas ener- arranjos cooperativos eficientes para sua provisão:
géticos, de telecomunicações e de transporte. (i) é intrinsicamente global, centrada em alterações
Caso a mudança climática em curso não seja na atmosfera; (ii) opera em uma escala de tempo
mitigada, poderá evoluir para a mudança climática de longo prazo estranha à experiência quotidia-
perigosa. Esta seria caracterizada por: potencial de na humana, pois décadas podem ocorrer entre a
destruição de produção agrícola; escassez de água; adoção de medidas de mitigação e a observância
extremos climáticos mais intensos; aumento da de seus efeitos; (iii) envolve profundas questões de
turbulência do mar e ondas anormais que invadem equidade, intra e intergerações; (iv) não apresenta
temporariamente as regiões costeiras – e a maioria linearidade causa-efeito; (v) entre suas causas está
da população do mundo vive em áreas costeiras. Se um leque amplo de atividades quotidianas huma-
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nas, o que torna impossível que sua solução seja al- cujas emissões são as que mais crescem entre todos
cançada por uma medida única (Steffen, 2011, pp. os setores da economia mundial; (xii) avançar rapi-
22-26; Underdal, 2010, p. 386). A mudança do damente na densidade da cooperação internacional
clima é um problema complexo e de tratamento sobre novas tecnologias de baixo carbono, incluí-
bastante difícil; sua mitigação requer a implemen- das as relacionadas com a geoengenharia climática
tação de medidas que tocam questões centrais da (manejo da radiação solar e do comportamento das
realidade contemporânea, como fontes de energia, nuvens e outras) (Viola, Franchini e Ribeiro, 2013,
estilos de vida, instituições e governança, formas pp. 143-144; The Royal Society 2012; Parsons e
de organização econômica e valores (Jamieson, Ernst 2014). Essas mudanças exigem novas tec-
2011, pp. 38-42; Steffen, 2011, p. 21). Institui- nologias e designs, mas, principalmente, mudanças
ções e sistemas jurídicos atuais, centrados na ló- políticas e culturais, que são altamente influencia-
gica causa-efeito de curto prazo e na provisão de das por complexos processos sociais e psicológicos
bens privados, não estão preparados para lidar com (Veiga, 2013).
a mudança do clima (Steffen, 2011; Underdal, No fundamental, o desafio não é tecnológico.
2010) – e isso é verdade tanto na esfera interna Houve desenvolvimento significativo de tecnolo-
como na internacional. gias para aumentar a eficiência energética e o uso
Para mitigar as mudanças climáticas, é preciso de fontes energéticas de baixo carbono: eletrodo-
reduzir a concentração de GEE, especialmente o car- mésticos com menos gasto de energia/intensivos;
bono, na atmosfera, ou seja, descarbonizar. São doze técnicas para aproveitamento da luz solar em edi-
os vetores principais para a descarbonização glo- fícios; aquecimento de água por energia solar; ele-
bal: (i) acelerar extraordinariamente o ritmo da tricidade gerada por energia eólica, solar fotovol-
eficiência energética; (ii) descarbonizar a matriz taica, gases de aterros sanitários, nuclear, energia
energética mundial (diminuindo drasticamente o geotérmica e marés – incluindo expansão do uso
uso do carvão, estabilizando o uso do petróleo e de baterias e de smart grid; veículos movidos a gás
aumentando significativamente o uso das energias natural, biomassa e íons de lítio. Outra quantida-
renováveis e, em menor medida, do gás natural e de de tecnologias está em estágio pré-comercial,
da energia nuclear); (iii) aumentar radicalmente a e muitas outras encontram-se em estágios de de-
proporção do transporte coletivo na mobilidade monstração ou pesquisa e desenvolvimento (Die-
humana e, quando houver necessidade de trans- sendorf, 2011, p. 565).
porte individual, usar carros elétricos, de hidrogê- No entanto, as respostas políticas para a mu-
nio, de biocombustíveis ou híbridos; (iv) parar o dança do clima têm sido insatisfatórias. Até agora,
desmatamento e reflorestar/florestar massivamente; emissões de GEE continuam crescendo ao ritmo
(v) utilizar técnicas agropecuárias virtuosas como de aproximadamente 2% ao ano, mesmo que de
plantio direto, agricultura de baixo carbono e mí- modo bastante heterogêneo entre os diversos países.
nimo uso de fertilizantes nitrogenados; (vi) reduzir Neste nível de crescimento, o limite do orçamento
o consumo de carne (particularmente de gado, cujo global de carbono – o que os climatologistas ava-
ciclo produtivo produz uma quantidade enorme de liam como as emissões que nos restam para evitar
metano e consome muita água) nos países de ren- a mudança climática perigosa – seria atingido em
da alta e média; (vii) usar eficientemente a água; torno de 2040. O insucesso do regime do clima em mi-
(viii) baixar rapidamente a taxa de fecundidade na tigar o problema é resultado da discrepância entre a
África, Oriente Médio e sul da Ásia; (ix) acelerar natureza da questão climática e as características do
o desenvolvimento de tecnologias de captura e se- sistema internacional contemporâneo: (i) o aumen-
questro de carbono fóssil; (x) diminuir as reuniões to da conflituosidade e (ii) o modelo de tomada
presenciais e substituí-las por reuniões virtuais; (xi) de decisões, que resulta no mínimo denominador
diminuir a velocidade de crescimento do tráfego comum e trava o avanço da negociação de temas
aéreo (incluída uma revolução tecnológica de efi- comuns globais.
ciência energética de novos materiais mais leves),
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como a mudança do clima, a discrepância entre rea- alto risco, por sua vez, são raras, mas devastadoras
lidade desigual e a igualdade normativa torna-se se concretizadas – a guerra nuclear ou as ameaças
ostensiva, e explica, em grande medida, a incapa- terroristas de grande escala (atentados com uso de
cidade do regime internacional para obter soluções armas radiológicas ou bacteriológicas que causem a
eficientes para a questão. morte de milhões de pessoas). Os limites planetá-
rios não se encaixam em nenhuma das duas cate-
Incapacidade dos regimes em mitigar a gorias: a mudança do clima, por exemplo, tem alto
ultrapassagem dos limites planetários impacto e alta probabilidade de acontecer, dados
os fatos verificados pela ciência (Dalby, 2013, pp.
A geopolítica contemporânea, assim como 188-189).
a maioria das ciências sociais, é construída sobre A mudança do clima tem algumas semelhanças
pressupostos de um meio ambiente estável para as com ameaças nucleares e terroristas: (i) há incer-
atividades humanas – o meio ambiente como pano teza em relação à sensibilidade, gama, escala, ve-
de fundo para o drama humano (Dalby, 2013, p. locidade e natureza descontínua das ameaças; (ii)
189). O Antropoceno representa o fim dessa esta- há incerteza em relação à efetividade e confiabili-
bilidade, o que, porém, ainda foi minimamente in- dade de estratégias de resposta; (iii) há certeza de
corporado pelas relações internacionais: as análises que as consequências das ameaças para a segurança
continuam caracterizando como grandes ameaças à internacional requereriam intervenções militares se
estabilidade da civilização apenas os conflitos entre forem mal administradas, mas que o desmantela-
as potências. A ameaça da instabilidade ambiental mento das ameaças requer, acima de tudo, ação ci-
é, porém, de escala crescentemente significativa, vil que toque as causas do problema (Dalby, 2013,
mesmo que ainda não tenha atingido a gravidade p. 189). Guarda, porém, uma diferença extraordi-
imediata dos conflitos humanos. Envolve fato- nária: o sistema climático, ao contrário das ameaças
res fundamentais para a sobrevivência da espécie, nucleares e terroristas, escapa à discricionariedade
como eventos climáticos extremos, escassez de água humana, pois vai inevitavelmente seguir as leis da
doce, acidificação dos oceanos, grandes perdas de física – o aumento da concentração de GEE leva ao
solos agrícolas, florestas e espécies animais e vege- aumento da temperatura média do planeta e à que-
tais, de impacto tão relevante quanto o da Primeira bra dos padrões de clima estável. Na mudança do
e Segunda Guerras Mundiais. Em termos de ins- clima, a ação humana não é capaz de deter a relação
tabilidade no sistema internacional e possibilidade causa-consequência; sua atuação interfere apenas
de perdas materiais e humanas, o risco da mudança para determinar seus níveis (Dalby, 2013, p. 189).
climática perigosa não equivale ao de uma guerra A resposta no sistema internacional para a mu-
simétrica entre potências que ocupam o centro do dança do clima foi o desenvolvimento do regime
sistema. No entanto, tem impacto muito mais alto internacional sobre mudanças climáticas. Sua evo-
do que guerras assimétricas inter e intraestatais, que lução é bastante conhecida. Antes de 1990, a preo-
ocorrem desde 1945. cupação era com a definição do problema (Gupta,
O cálculo do risco desenvolvido na época do 2010). Em 1992, foi assinada a Convenção Qua-
Holoceno está baseado em dois pressupostos: si- dro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas
tuações de alto risco são aquelas que têm alto im- (CQNUMC), que estabelece os parâmetros para
pacto mas probabilidade pequena de acontecer, e negociação do tema das mudanças climáticas e
situações de baixo risco são as que têm baixo im- inaugura a busca de soluções para o problema, mas
pacto mas probabilidade alta de ocorrência (Dalby, não elenca obrigações específicas de implementa-
2013, pp. 188-189). Esse raciocínio está enraizado ção. Ficou decidido que obrigações específicas se-
na psiquê humana. Em política internacional, con- riam discutidas em reuniões periódicas, chamadas
flitos localizados são considerados de baixo risco: Conferências das Partes (COPs), de modo a definir
são comuns, mas representam pouco risco para a as estratégias de implementação das obrigações as-
estabilidade do sistema internacional; situações de sumidas. As COPs ocorrem desde 1995, e os con-
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textos de três delas são especialmente importantes mitigação nacionalmente apropriadas (NAMAs,
para a trajetória do regime: a COP 03 (Kyoto), a em inglês), nos dois casos para cumprimento até
COP 15 (Copenhagen) e a COP 21 (Paris). 2020. O texto foi construído pelos Estados Uni-
A COP 03 ocorreu em 1997 e o Protocolo dos e a coalizão BASIC – Brasil, África do Sul,
de Quioto foi assinado pelos países membros da Índia e China –, cujos países seguiam resistentes
CQNUMC na ocasião. Na fase de negociação do a assumir obrigações de redução de emissões, mas
Protocolo, economias industrializadas assumiram a não queriam ser taxados de culpados pelo fracas-
liderança nos compromissos de redução de emis- so da Conferência (Dubash, 2010; Hallding et al.,
sões de GEE (Gupta, 2010; Viola, 2002). O pro- 2011). O Acordo de Copenhague não é legalmente
tocolo estabelece que essas economias, agrupadas vinculante nem foi adotado oficialmente, uma vez
no Anexo I da CQNUMC, deveriam impor limites que Bolívia, Sudão e Venezuela se opuseram a seus
compulsórios para suas emissões, reduzindo-as em termos, impedindo o consenso. Ao contrário de re-
pelo menos 5% entre 2008 e 2012 em relação aos duzir emissões de GEE, os compromissos apresen-
patamares de 1990. No contexto da negociação, as tados pelos países representam, em todos os casos,
economias emergentes foram pressionadas mas re- exceto o da União Europeia, aumentos em relação
jeitaram compromissos de redução de suas curvas aos patamares de emissões em 1990.3
de emissões (em relação a cenários business as usual) As negociações do acordo que substituiria o Pro-
para o mesmo período (Viola, 2002). Elas articula- tocolo de Quioto a partir de 2012 seguiram em meio
vam-se principalmente por meio do G-77+China, a grandes discordâncias. Em 2011, foi decidido que
lideradas pelo Brasil, Índia e China, utilizando o um instrumento legalmente vinculante deveria ser
princípio das responsabilidades comuns, porém acordado até 2015. Em 2012, os membros da UN-
diferenciadas, e a responsabilidade histórica das FCCC assinaram a Emenda de Doha, estabelecendo
economias desenvolvidas para justificar seu posi- um segundo período de vigência para o Protocolo de
cionamento. Entre 1997 e 2001, o regime do clima Quioto, de 2013 até 2019. Canadá, Japão e Rússia
caminha para a consolidação (Gupta, 2010), mas não assinaram a Emenda. A Emenda ainda não en-
tem um revés, pois os Estados Unidos deixam a trou em vigor;4 quando entrar, estará vinculando a
liderança: decidem não ratificar o Protocolo de redução de emissões de países que representam uma
Quioto alegando que sua competição em merca- parcela pequena no total global: 13,62% em 2012;
dos internacionais com economias emergentes não 12,83% em 2013 (IEA, 2014; 2015).5
obrigadas a reduzir emissões era desleal. O Protoco- Em preparação para a COP 21, a polêmica em
lo entrou em vigor em 2005 obrigando a redução torno da obrigatoriedade dos compromissos seguia.
de emissões de países que, juntos, correspondiam a Apesar do aumento de suas emissões no total global,
apenas 29,91% do total global de emissões no mes- as economias emergentes se mantinham resistentes
mo ano (IEA, 2007).2 a aceitar metas de redução compulsórias para suas
O contexto da COP 15 era mais complexo. emissões, alegando a responsabilidade histórica dos
Havia grande expectativa de assinatura de um acor- países desenvolvidos. Os Estados Unidos continua-
do legalmente vinculante que substituiria o Pro- vam reiterando a necessidade de obrigar os emer-
tocolo de Quioto após 2012. A União Europeia gentes a reduzir emissões como condição para acei-
vinha tendo uma atuação destacada de liderança, tar as metas compulsórias para as suas emissões.
propondo compromissos fortes e diferenciados Países vinculados pela Emenda de Doha, além de
para todos os países, mas China, Estados Unidos e outras representações,6 pressionavam pelo maior
Índia mantinham posições modestas. Os resultados envolvimento dos demais. Em 2013, foi aprovado
da Conferência foram mínimos: os países do Ane- que os membros da CQNUMC deveriam apresentar,
xo I da Convenção foram instados a propor metas até 1o de outubro de 2015, Contribuições Nacional-
quantificadas, mas voluntárias, de redução de emis- mente Determinadas (Intended Nationally Determi-
sões que alcançassem toda a economia, enquanto ned Contributions – INDCs). As INDCs deveriam
os países não Anexo I deveriam apresentar ações de conter informações detalhadas sobre os compromissos
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de cada membro após 2020, e a maioria dos mem- sua grandeza e a incapacidade dos seres humanos
bros da Convenção as apresentou. O Acordo de de alterá-lo em escala planetária, atualmente a reali-
Paris, assinado em 2015, é legalmente vinculante dade é oposta: a atuação da humanidade modifica-
(mas aguarda a ratificação de seus membros para -o de maneira profunda e sistêmica. As consequên-
entrar em vigor); as INDCs, sua parte fundamen- cias dessas modificações têm dinâmica incerta e
tal, no entanto, não são: são compromissos volun- complexa (não linear).
tários que devem ser revistos periodicamente, com Vejam-se incerteza e complexidade no caso da
a intenção de serem adaptados conforme sua im- mudança do clima. A incerteza está relacionada com
plementação ocorra. Caso o conjunto das INDCs o longo período de tempo que há entre o acúmulo
apresentadas7 for totalmente implementado, a tem- de GEE na atmosfera e a observância das consequên-
peratura média do planeta subirá 2,7o C até 2100 cias desse acúmulo, e também entre a adoção de po-
(Climate Action Tracker, 2015). líticas para reduzir os gases estufa e os efeitos dessas
O insucesso do regime em obter a mitigação políticas (Underdal, 2010, p. 386). A complexidade
da mudança do clima decorre das características do está relacionada com o fim da linearidade: uma mu-
atual sistema político-jurídico, desenvolvido para dança mínima na concentração de gases estufa pode
lidar com curto prazo entre ação política e seu efei- gerar efeitos catastróficos. Políticas que lidam de ma-
to, questões de causa e consequência diretas e rela- neira eficiente com sistemas complexos não dão so-
cionadas com atividades determinadas. A mudança luções fáceis e rápidas para os problemas: combinam
do clima é cercada de incerteza e complexidade, e persistência e flexibilidade para lidar com efeitos
opera no longo prazo. Uma solução mais efetiva inesperados e/ou mudanças que surjam ao longo de
para o problema passa pela revisão dos conceitos sua implementação (Underdal, 2010, pp. 388-389).
de ameaça e segurança, com o reconhecimento do Quando incerteza e complexidade não são reconhe-
Antropoceno, de sua escala e de suas características; cidas em relação à mudança do clima, as potenciais
pela revisão do conceito de interesse nacional, para respostas ao problema estarão muito aquém do que é
além das bases vestfalianas; e pelo aprofundamento necessário para efetivamente enfrentá-la – o que vem
da governança global. acontecendo no regime do clima.
Em segundo lugar, é preciso levar a sério o peso
que o atual modelo de desenvolvimento, adotado
Geopolítica para o século XXI pela quase totalidade dos países, tem sobre o futu-
ro. Mudança climática perigosa ou catastrófica não
será consequência do choque de um asteroide ou
Ameaças à segurança no Antropoceno do encapsulamento da Terra por um buraco negro;
resultará do consumo inconsequente, do uso indis-
Reconhecer a realidade do Antropoceno e in- criminado de combustíveis fósseis, do desfloresta-
corporá-la às bases da geopolítica significa entender mento, de altíssimas taxas de fecundidade em várias
que: (i) a mudança do Holoceno para o Antropo- regiões; do uso massivo de fertilizantes e aditivos
ceno representa uma transformação profunda e in- químicos, entre outros (The Royal Society, 2012).
certa do sistema terrestre, nunca antes experimen- De fato, vive-se, atualmente, uma janela de opor-
tada pela espécie humana em sua existência; (ii) tunidade: decisões que forem tomadas nas próxi-
essa transformação não é um problema marginal e, mas duas décadas darão origem a consequências
sim, resulta das bases do sistema produtivo (Dalby, que serão experimentadas nos próximos séculos.
2014). Por isso, a noção de ameaças à segurança Assegurar a estabilidade do planeta requer refletir
requer revisão. honesta e abertamente sobre sistemas energéticos e
Em primeiro lugar, incerteza e complexidade materiais usados na produção de bens de consumo
dos problemas ambientais precisam ser incorpo- (Dalby, 2013, p. 190), além de padrões de consu-
radas à matriz cognitiva dos internacionalistas. Se mo, estilos de vida, valores, crenças e instituições
antes o meio ambiente era considerado estável, ante correntes. Sem reflexão, a inércia será provavelmen-
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te mantida, e as consequências, conforme as evi- ciedade civil (Viola, Franchini e Ribeiro, 2013),
dências apresentadas pela ciência, serão bastante unidos ou não por um território, com interesses co-
duras para as próximas gerações. muns, mas também interesses conflitantes, ou seja,
Em terceiro lugar, é essencial entender que o comunidades plurais, heterogêneas, por vezes desa-
Antropoceno é resultado de escolhas que foram fei- gregadas nas tomadas de decisão (Scholte, 2008, p.
tas pela humanidade. Escolhas são sempre políticas, 306; Koenig-Archibugi, 2010, p. 21). Neste senti-
e dão origem a grupos de interesse e de privilégios. do, como integrar em uma única definição de in-
Mudar as escolhas significa, sim, mudar o status quo teresse nacional grupos heterogêneos, que podem
socioeconômico e político e posicionar de forma ser muito diferentes entre si? Quando se trata dos
diversa diferentes grupos. Uma parte importante interesses envolvidos em questões de bens comuns
dos grupos privilegiados pelo atual sistema resisti- globais, como a mitigação da mudança do clima, a
rão a mudanças; se eles detêm grande poder e há dificuldade torna-se evidente, vez que grupos com
mecanismos inerciais para impedir o aumento de a mesma nacionalidade têm vulnerabilidade diversa à
poder de outros grupos, as barreiras para mudanças mudança do clima, interesses diversos em relação
serão maiores. Não se pode ignorar essa realidade: à mudança da matriz energética e à adoção de no-
compreender e modificar a política de poder é a di- vos padrões de consumo. O interesse nacional será,
ferença entre a adoção de medidas que efetivamente portanto, um amálgama dos interesses de diferentes
mitiguem a ultrapassagem das fronteiras planetárias grupos, e delineado fundamentalmente pelos dos
e medidas que tratam o problema como marginal que detêm as maiores fatias de poder político –
ou acessório (Dalby, 2013, p. 190; Underdal, 2010, portanto, variável no tempo e no espaço.
p. 387). Na mitigação da ultrapassagem das fronteiras
planetárias, é importante observar as peculiaridades
Interesse nacional no Antropoceno que envolvem os incentivos e a distribuição de po-
der político, que tornam a definição do interesse
As bases vestfalianas da configuração do Estado nacional nessas questões um problema triplamente
como uma entidade unitária formada por território, desafiador.
população e governo soberano precisa ser – e tem Em primeiro lugar, pesquisas comprovam que
sido – revista. Em um mundo complexo como o seres humanos valorizam mais benefícios presentes
da sociedade da informação/conhecimento, pensar do que futuros e dedicam mais atenção ao tratamen-
o Estado como ator unitário é irreal. A globaliza- to de questões imediatas em relação a questões fu-
ção tem forças centrípetas e centrífugas; promove, turas (Death, 2013; Diamond, 2011; Dahl, 1972).
ao mesmo tempo, o aumento da interdependência Trocar um uso presente – por exemplo, usufruir dos
econômica e dos intercâmbios de informação e co- sistemas energéticos e dos padrões de consumo – por
nhecimento entre diversas partes do mundo, e a um benefício futuro – a mitigação da mudança do
fragmentação – por meio da identificação entre clima –, que será, inclusive, em proveito de outras
grupos que dividem interesses e crenças, ainda que gerações, é encarado como um sacrifício gigantesco e
tenham diferentes nacionalidades; ou da articula- resistido por grandes parcelas da população, que pre-
ção de interesses entre governos subnacionais e en- cisam receber incentivos para adotar novas práticas.
tidades extranacionais, mesmo que isso possa entrar Além disso, é preciso lidar com a realidade de que
em contradição com os interesses gerais do Estado a mitigação da mudança do clima exige disciplina,
nação (Keohane e Nye, 2001; Nye, 2011; Held et persistência e adaptação ao longo do tempo: será pre-
al., 1999; Biermann, 2015). É o fenômeno defini- ciso resistir, inúmeras vezes, a benefícios individuais
do como Rosenau (2003) por “fragmegration” (pa- de curto prazo para atingir os benefícios coletivos de
lavra construída pelo autor, combinando fragmen- longo prazo. Por fim, não se pode desconsiderar o
tation – fragmentação – e integration – integração). fato de que a ausência dos beneficiados pelas políti-
O Estado, no século XXI, é plural: conjunto cas de mitigação da tomada de decisão – vez que são
de governo, empresas, comunidade científica e so- futuras gerações, ou, muitas vezes, futuras gerações
10 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 31 N° 92
divergências e diferenças entre seus membros, além são Rússia, Turquia, Arábia Saudita e Irã. Apesar de
de importantes variações de ação e resultado em sua vulnerabilidade extrema à mudança do clima, a
períodos. A União Europeia é seguida por Japão, Índia é uma das mais ferrenhas defensoras do argu-
que pode ser considerado moderadamente refor- mento da responsabilidade histórica, e o clima tem
mista, se focada sua trajetória no regime do clima, perdido prioridade na sua agenda doméstica. O Ca-
mas têm retrocedido na direção do conservadoris- nadá era reformista até meados da década de 2000,
mo (Viola, Franchini e Ribeiro, 2013). Sua INDC mas retrocedeu com os governos conservadores en-
(Contribuição Nacionalmente Determinada), em tre 2006 e 2015. Com a derrota dos conservadores
particular, ficou muito aquém de suas responsabi- nas eleições de outubro de 2015, o Canadá tende
lidades: o Japão estabeleceu o ano de 2013 como a passar gradualmente ao campo reformista mode-
referência para sua redução de emissões, após com- rado. A Austrália passou de conservadora para con-
promissos prévios utilizarem o ano de 1990. servadora moderada em 2007 e voltou para o
São potências moderadamente conservadoras conservadorismo em 2013. A Rússia é uma das
os Estados Unidos, a China, o Brasil, a Coreia do potências menos engajadas nas negociações: tinha
Sul, o México, a África do Sul e a Indonésia. En- um nível alto de emissões em 1990 quando ainda
tre esses, extremamente relevante é a trajetória de era parte da União das Repúblicas Socialistas Sovié-
Estados Unidos e China, que juntos respondem ticas e se beneficia, na contabilidade de emissões,
por mais de 40% do total global de emissões.10 Os da redução que ocorreu em razão da desintegração
dois países mantiveram-se conservadores ao longo e da redução do desenvolvimento econômico desde
da trajetória do regime climático, mas têm migrado então. Não apresenta compromissos ambiciosos e
para um conservadorismo moderado, impulsiona- condiciona seus pleitos à concessão de ajuda inter-
do, inclusive, por iniciativa conjunta: assinaram, nacional, algo inacreditável para um país de renda
em 2014, um acordo bilateral para redução de per capita média/alta e responsável por gigantescas
emissões. A importância da iniciativa bilateral não emissões históricas entre 1910 e 1990.
deve ser minorada, em razão da interdependência O aprofundamento da governança global entre as
entre as economias estadunidense e chinesa: são potências climáticas pode encaminhar resultados mais
grandes competidores nos mercados internacionais, efetivos do que os obtidos pelo regime do clima. Não
mas têm grandes parcerias produtivas; por isso, se trata de descredenciar os demais atores de partici-
avanços bilaterais na redução de emissões podem par da solução do problema, mas de verificar que, feliz
significar maior possibilidade de cooperação de ou infelizmente, por conta da distribuição desigual de
ambos no regime internacional. A Coreia do Sul poder climático, a solução do problema está nas mãos
era conservadora até 2005, avançou para reformista de poucos atores. O regime internacional sobre mu-
moderada na segunda metade da década e retroce- danças climáticas assegura a participação de muitos
deu para conservadora moderada a partir de 2013. atores com base em sua igualdade normativa, mas seu
A trajetória brasileira é complexa: foi conservadora padrão de negociações segue o mínimo denominador
até 2009, quando teve um avanço para o conser- comum: todos precisam concordar com as medidas
vadorismo moderado; a partir de 2011, retrocedeu adotadas e, por isso, os resultados acabam diluídos. Se
para o conservadorismo, pois voltou a defender as potências climáticas avançarem na direção do refor-
posições, como o argumento das responsabilidades mismo, por intermédio da adoção concertada de prá-
históricas, que havia abandonado em 2009 (Viola ticas em favor da descarbonização, os resultados para
e Basso, 2015); em 2015, poderia ser considerado a mitigação da mudança do clima podem ser muito
novamente conservador moderado, vez que sua mais relevantes. Esse avanço poderia ser dado tanto
INDC estabelece, pela primeira vez, um ano base em bases multilaterais – uma concertação climática de
para cálculo da redução de emissões, ainda que as mais densidade, que se assemelhe ao Tratado de Não
metas apresentadas não sejam ambiciosas. Proliferação Nuclear ou aos tratados de regulação do
As potências conservadoras são Índia, Canadá, crescimento de arsenais nucleares entre os Estados
Austrália e Nigéria, e as extremamente conservadoras Unidos e a União Soviética – ou em base plurilate-
12 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 31 N° 92
Tabela 1
As potências climáticas (2012)
ral.11 Central é o avanço das práticas das potências tornar-se instável, questão central nas preocupações
na direção do reformismo, ou seja, em favor de mais humanas, especialmente em relação à sobrevivência
ampla descarbonização de suas economias. no longo prazo. Mitigar a instabilidade ambiental é
bem comum global; requer concertação internacional
com cessão parcial da soberania dos Estados em prol
Conclusão de uma governança global mais efetiva.
Com o advento da revolução digital e a con-
O fim do século XX e início do século XXI são figuração da sociedade da informação/conheci-
palco de uma transformação sem precedente na histó- mento, conceitos tradicionais das relações interna-
ria: inaugurou-se o Antropoceno, nova época geológi- cionais foram atualizados. O Estado deixou de ser
ca e humana em que o meio ambiente deixa de ser es- a ficção de um ator unitário para ser visto como
tável, mero pano de fundo dos dramas humanos, para pluralidade, conjunto de governo, empresas, comu-
O SISTEMA INTERNACIONAL NO ANTROPOCENO 13
Tabela 2
Os 10 maiores produtores de combustíveis fósseis (2014)
nidade científica e sociedade civil, que têm interes- da escassez de água doce; extremos climáticos mais
ses comuns, mas também interesses conflitantes. intensos; aumento da turbulência do mar e ondas
Interesse nacional deixou de ser a resultante natural anormais que invadem temporariamente as regiões
de interesses do ator unitário para ser compreendi- costeiras; aumento significativo do nível do mar;
do como resultado da luta política entre diversos aceleração do derretimento do gelo na Groenlân-
grupos, que detêm diferentes fatias de poder, e, por dia. Prevenindo-se a mudança climática perigosa,
isso, variável no tempo e no espaço. No Antropo- evita-se a mudança climática catastrófica.
ceno, também o conceito de ameaça à segurança é Para que a mitigação seja factível, é crucial que
modificado: não apenas as guerras simétricas entre as potências climáticas – países com capacidade real
potências – atualmente bastante improváveis, vez de influenciar a mudança do clima, dado o mon-
que o prejuízo mútuo seria enorme – colocariam tante de suas emissões de carbono e seu potencial
o sistema internacional em risco, mas também os humano e tecnológico para promover a descarboni-
efeitos da instabilidade ambiental. A diferença é zação – adotem posturas reformistas em relação ao
que a instabilidade ambiental já é realidade, e po- atual regime do clima. Ou seja: que se comprome-
derá agravar-se ainda mais caso não sejam tomadas tam efetivamente com medidas que façam avançar
efetivas medidas para sua mitigação. a descarbonização de suas economias.
Mitigar a ultrapassagem de um dos limites pla- Atualmente, há maiorias reformistas na União
netários, a mudança do clima, preveniria que às atu- Europeia e importantes minorias em quase todos
ais alterações incrementais do sistema climático – os países-chave para a governança global do clima
eventos climáticos extremos cada vez mais frequen- – Japão, Estados Unidos, China, Índia, Coreia do
tes – sejam somados: aumento do potencial de Sul, Indonésia, Brasil, México, África do Sul, Aus-
destruição de produção agrícola; aprofundamento trália e Canadá. Porém, forças conservadoras ain-
14 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 31 N° 92
da são majoritárias. Como a principal ferramenta Vive-se, atualmente, uma janela de oportuni-
desenvolvida para lidar com o problema climático, dade: decisões que forem tomadas nas próximas
o regime internacional sobre mudança do clima, duas décadas darão origem a consequências que se-
adota o princípio da igualdade normativa entre rão experimentadas na segunda metade do século
os países, as medidas adotadas requerem consenso XXI e nos próximos séculos. Assegurar a estabilida-
universal. Dada a hegemonia conservadora, esse de do planeta é pensar além da segurança energética
mínimo denominador comum é insuficiente para ou das consequências de espaços não governados: é
mitigar a mudança do clima. Um bom exemplo é refletir honesta e abertamente sobre sistemas ener-
o acordo obtido na Conferência de Paris, em de- géticos e materiais usados na produção de bens de
zembro de 2015. Em nível diplomático, o acordo consumo, além de padrões de consumo, estilos
foi um sucesso, pois une em consenso interesses de vida, valores, crenças e instituições correntes. O
nacionais e setoriais diferentes e muitas vezes anta- fator decisivo para essa transformação está no cres-
gônicos. Também foi bem sucedido em estabelecer cimento de forças reformistas nas potências climá-
o nível máximo de aumento da temperatura global ticas e uma concertação mais estreita entre elas, em
em 1,5 grau centígrado, e não 2 graus centígrados. que a soberania seja cedida parcialmente em prol
No entanto, o conteúdo do compromisso afirmado de tratados plurilaterais fortes, nos quais o compro-
é insuficiente para promover profunda descarbo- misso com a descarbonização seja obrigatoriamente
nização global: países apresentaram metas mera- implementado. Essa mudança não é fácil: na verda-
mente voluntárias, e não obrigatórias, de redução de, é muito mais desafiadora do que a concertação
de emissões, que, se totalmente implementadas, dos mais de duzentos atores partes do regime inter-
conduziriam o aumento da temperatura global a nacional do clima. Porém, se ocorrer, será evidência
2,7 graus centígrados no longo prazo; o sistema de de que está sendo atualizada a matriz cognitiva de
monitoramento da implementação das metas é fra- interpretação da realidade em que se vive, provando
co, portanto não há garantia de implementação; a que a espécie humana é capaz de adaptar estruturas
revisão das metas, a ser feita a cada cinco anos, não institucionais e políticas para assegurar sua sobrevi-
obriga os países a aprofundarem seus compromis- vência no mundo do século XXI.
sos; o conceito de descarbonização foi eliminado
do acordo, e também inexiste referência ao fim dos
subsídios aos combustíveis fósseis, condição neces- Notas
sária para que a descarbonização global seja efetiva;
o acordo fala em transferência de recursos de países 1 Antes dos combustíveis fósseis, as fontes de energia
desenvolvidos aos pobres – economias emergentes, eram a luz e o calor sol, o movimento do vento e das
com exceção da China, negaram-se –, mas o mon- águas, e a biomassa, especialmente a lenha, que de-
pendiam de serem encontradas na natureza e não po-
tante é pequeno e o acordo não esclarece que parce-
diam ser deslocadas por longas distâncias.
la teria fontes públicas (os únicas que poderiam ser
cobradas). Maior densidade na concertação entre 2 Se levadas em consideração as emissões de 2008, início
do prazo do compromisso de redução de emissões, a
esses países seria obtida se negociado um tratado
parcela chegava a 27,41% das emissões globais. Caso os
nos moldes mais rigorosos do multilateral do Trata- Estados Unidos tivessem ratificado o Protocolo, a por-
do de Não Proliferação Nuclear (TNP) ou dos qua- centagem teria subido para 51,34%, em números de
tro tratados bilaterais americanos/soviéticos/russos 2005, e 46,46% em números de 2008. Todos cálculos
para a regulação do crescimento de arsenais nuclea- próprios com base em IEA (2007; 2010). Não foram
res (SALT 1, de 1969 e SALT 2, de 1979) e para a encontrados dados para Liechtenstein e Mônaco.
redução dos arsenais nucleares (START 1, de 1991 3 Vide relação da US Climate Network, disponível em:
e START 2, de 1993) ou se os países engajarem-se <http://www.usclimatenetwork.org/policy/copenha-
em negociações plurilaterais que toquem os temas gen-accord-commitments>; acesso em: 15 fev. 2016.
acima. Certamente são alternativas mais eficazes 4 Até 11 de fevereiro de 2016, 60 países haviam ratifi-
para mitigar a mudança climática. cado a Emenda de Doha, número insuficiente para
O SISTEMA INTERNACIONAL NO ANTROPOCENO 15
sua entrada em vigor, Informações disponíveis em: ______. (2015), Earth system governance: world
<http://unfccc.int/kyoto_protocol/doha_amend- politics in the Anthropocene. Cambridge, The
ment/items/7362.php>; acesso em: 11 fev. 2016. MIT Press.
5 Cálculos próprios com base nas publicações citadas. CLIMATE ACTION TRACKER. (2015), “Cli-
6 A Aliança dos Pequenos Estados Ilhas, por exemplo, é mate Action Tracker Update: 2.7°C is not
muito atuante no regime do clima e pressiona por com- enough – we can get lower”. Disponível em:
promissos mais ambiciosos, visto que representa países <http://climateactiontracker.org/assets/publi-
que tendem a submergir em razão da elevação do nível cations/briefing_papers/CAT_Temp_Upda-
do mar. Tem pouca influência no regime, porém.
te_COP21.pdf>. Acesso em: 12 fev. 2016.
7 Cálculo feito para as INDCs apresentadas até 8 de CRUTZEN, Paul & STOERMER, Eugene.
dezembro de 2015. (2000), “The Anthropocene”. Global Change
8 Para as correntes que defendem a redistribuição de po- Newsletter, 41: 17-18.
der, o aprofundamento da governança global e a mi- DAHL, Robert. (1972), Polyarchy: participation
tigação do conceito de soberania vestfaliana são opor-
and opposition. New Haven, Yale University
tunidades de mudar a balança de poder no mundo,
Press.
alcançando uma sociedade internacional mais igualitá-
ria e mais justa, conforme inspiração da doutrina kan- DALBY, Simon. (2013), “Biopolitics and climate
tiana. Essa postura, ainda que incorporada por parcelas security in the Anthropocene”. Geoforum, 49:
da população mundial, é utópica em escala global. Para 184-192.
que essa realidade se altere, é necessária uma mudança ______. (2014), “Rethinking geopolitics: climate
significativa da matriz cognitiva humana para aceitar security in the Anthropocene. Global Policy
reduzir benefícios próprios em favor de outros. Oxalá Journal, 5 (1): 1-9.
esta mudança se concretize nas próximas décadas. DEATH, Carl (org.). (2013), Critical Environmen-
9 Importante ressaltar que se trata de uma classificação tal Politics. Londres/Nova York, Routledge.
geral; sempre haverá, dentro das sociedades que for- DIAMOND, Jarrel. (2011), Collapse: how societies
mam as potências climáticas, nuances que distinguem choose to fail or succeed. Revised edition. Nova
os diversos posicionamentos em pontos específicos.
York, Penguin Books.
10 A saber: 41,84% em 2012 e 43,79% em 2013, de DIESENDORF, Mark. (2011), “Redesigning
acordo com dados da IEA (2014; 2015), que excluem energy systems”, in John S. Dryzek; Richard
mudanças de uso da terra.
B. Norgaard e David Schlosberg (eds.), The
11 A literatura tem explorado a opção de clubes de des- Oxford handbook of climate change and society,
carbonização, fóruns que reúnam os principais emis-
Oxford, Oxford University Press.
sores de gases de efeito estufa, como estratégia para
DUBASH, Navroz. (2010), “Copenhagen: climate
aumentar a ambição dos compromissos internacionais
no tema. O G-20, por exemplo, já foi estudado (Van of distrust”. Economic and Political Weekly, 44
den Graff e Westphal, 2011). A eficácia de clubes em (52): 8-11.
prover a concertação climática é defendida por per- GUPTA, Joyeeta. (2010), “A history of interna-
mitir a barganha entre os membros em torno de bens tional climate change policy”. WIREs Climate
providos pelo grupo, que poderiam estar vinculados a Change, 1: 636-653.
compromissos de redução de emissões, incentivando- HALLDING, Karl et al. (2011), Together alone: ba-
-os a adotar medidas de mitigação da mudança do cli- sic countries and the climate change conundrum.
ma (Victor, 2015; Hovi et al., 2015). Copenhagen, Nordic Council of Ministers.
HARDIN, Garrett. (1968), “The tragedy of com-
mons”. Science, 162 (3859): 1243-1248.
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tions. Redwood City, Stanford University
BIERMANN, Frank et al. (2012), “Planetary boun- Press.
daries and earth system governance: exploring HOGE, James F. (2010), “The world ahead”. Fo-
the links”. Ecological Economics, 81: 4-9. reign Affairs, 89 (6): i-ii.
16 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 31 N° 92
Eduardo Viola e Larissa Basso Eduardo Viola and Larissa Basso Eduardo Viola et Larissa Basso
No final do século XX e início do sécu- In the end of the 20th and beginning of À la fin du XXème et au début du XXIème
lo XXI, uma nova época geológica teve the 21st century, a new geological epoch siècle, une nouvelle ère géologique a vu
início, o Antropoceno. Ele é caracteriza- emerged: the Anthropocene. In this new le jour: l’Anthropocène. Elle se caracté-
do pela perda da estabilidade ambiental epoch, the environmental stability is lost rise par la perte de la stabilité environ-
em razão da interferência humana, do due to the human interference and the nementale en conséquence de l’interfé-
impacto cumulativo do desenvolvimen- impact of economic development upon rence humaine, de l’impact cumulatif
to econômico sobre o meio ambiente. A the environment. Such is an unprec- du développement économique sur l’en-
mudança é sem precedentes na experiên- edented change in human experience vironnement. Ce changement n’a pas de
cia humana; mitigá-la significa assegurar and needs to be mitigated in order to al- précèdent dans l’expérience humaine ;
uma existência mais segura para a huma- low a safer human existence. Mitigation l’atténuer signifie assurer une existence
nidade. Essa mitigação, porém, requer requires a lot more intense international plus rassurante pour l’humanité. Cette
concertação internacional muito mais cooperation than the one observed in the atténuation requiert, néanmoins, une
densa do que a que tem sido observada international regime on climate change. concertation internationale beaucoup
no regime internacional sobre mudan- Alliances between key countries for the plus intense que celle que l’on peut ob-
ça do clima. A construção de alianças resolution of the decarbonization prob- server à propos du régime international
de descarbonização entre países-chave lem are crucial. They might be obtained sur les changements climatiques. La
para a resolução do problema é crucial. if new interpretations of threat, security, construction d’alliances de décarbonisa-
Ela será possível mediante a revisão dos and national interest are accepted along tion entre des pays-clés s’avère cruciale
conceitos de ameaça, segurança e inte- with a revision of the conception of sov- pour la résolution du problème. Elle
resse nacional, e uma nova interpretação ereignty in which common global inter- ne sera possible que par la révision des
da soberania, em que interesses comuns ests of the humanity are incorporated. concepts de menace, de sécurité et d’in-
da humanidade sejam incorporados ao What it is about is a complex change, térêt national, et une nouvelle interpréta-
fundamento vestfaliano. É uma mudança but a change that will update important tion de la souveraineté, dans laquelle les
complexa, mas que atualizará fundamen- foundations of a geopolitics able to deal intérêts communs de l’humanité soient
tos importantes para uma geopolítica ca- with the questions put forward by the incorporés au fondement westphalien.
paz de lidar com questões do século XXI. 21st century. C’est un changement complexe, mais qui
mettra à jour des bases importantes pour
une géopolitique capable de faire face
aux questions actuelles du XXIème siècle.