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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL

ESCOLA DE HUMANIDADES – FILOSOFIA


CIÊNCIA E SOCIEDADE

Gustavo Avila de Fraga

Conhecimento Através do Testemunho na perspectiva Não-Reducionista

Introdução

O presente ensaio tem por finalidade expor, de forma breve, a visão não-
reducionista, abordando alguns aspectos sob os quais o testemunho pode ou
não gerar conhecimento. Logo após, faremos a análise do “Caso da Professora
Criacionista”, proposto por Jennifer Lackey. Trataremos de um problema
central na epistemologia do testemunho, a saber, a justificação testemunhal.
Como justificar crenças que adquirimos por meio da palavra de outrem? Uma
vez que a proposta da disciplina, entre outros, é o estudo filosófico da
relevância que as instituições têm para o conhecimento, sinto-me
pessoalmente motivado a refletir sobre a seguinte questão: Podemos acreditar,
por exemplo, no que nos contam, que nos ensinaram desde pequenos no
campo da fé? Certamente o debate epistemológico acerca do testemunho
poderá nos ajudar em questões similares.

Não-Reducionismo

Diferentemente da visão reducionista, o não-reducionismo não exige uma


base não-testemunhal suficiente por parte do agente epistêmico. Em outras
palavras, exige apenas que não exista qualquer base epistêmica para a dúvida,
seja em relação a credibilidade de quem fala ou mesmo sobre a declaração em
questão. A visão não-reducionista encontra suas raízes em Thomas Reid. Tal
visão, requer que o ouvinte não tenha qualquer derrotador não-derrotado. 1 Os
derrotadores são de dois tipos, a saber, o psicológico e o normativo. O
1
MULLER, 2010.
psicológico refere-se a uma possível dúvida ou crença mantida, por parte do
ouvinte, que supõe que a proposição declarada seja falsa ou
formada/sustentada de modo inconfiável. Já o normativo refere-se a uma
possível dúvida ou crença que o ouvinte deveria ter e que presume que a
proposição dita seja falsa ou formada/sustentada de modo não-confiável.

Se, por um lado, pode-se dizer que o não-reducionismo não exige


razões para pensar que uma instancia particular do testemunho seja
verdadeira, por outro lado pode-se dizer que o reducionismo parece
intelectualizar demasiadamente a noção de justificação de uma
crença baseada no testemunho (MULLER, 2010).

Tomemos agora o exemplo de uma criança, que depende totalmente de


seus responsáveis, sejam eles os pais, cuidadores, avós, para aprender sobre
o mundo. Isso se dá através da palavra, do testemunho. Sabemos, porém, que
uma criança não tem a capacidade de verificar a confiabilidade do testemunho.
Ao mesmo tempo, a criança não tem uma base epistêmica para crer seus
responsáveis são dignos de confiança. Robert Audi, nesse sentido, afirma que:

“muito cedo em suas vidas, falamos de bebês e crianças conhecerem


as coisas. [...] Apesar de tudo, podemos certamente falar de seu
aprendizado – que o leite derrama quando derrubado, que o fogão
está quente, e assim por diante – e que aprendizagem (em geral)
implica conhecimento. [...] se, como parece razoável supor, ganhar
conhecimento baseado no testemunho requer apenas não ter razões
para duvidar da credibilidade da testemunha, então a visão proposta
acima não encontra dificuldades.” (AUDI, 2003).

De semelhante maneira, todos os dias nos deparamos com crenças


baseadas em testemunhos, desde algo muito específico como quando olhamos
a previsão do tempo antes de sair para trabalhar até algo abrangente como
algumas crenças religiosas que não têm comprovação científica. Segundo a
visão não-reducionista, o fato de o ouvinte ter escutado no rádio a previsão de
que amanhã irá chover, sem que eu o tenha verificado meteorologicamente,
forma um conhecimento? De sorte que, ter escutado o padre falanr na homilia
que, após a morte as almas alcançarão ou não a salvação eterna, sem ter feito
um estudo escatológico, ou mesmo por não ter evidências empíricas a respeito,
o ouvinte gera um conhecimento? É o que tentaremos clarear a partir de agora.
Algumas condições para o conhecimento através do testemunho

Testemunho pode dar conhecimento aos seus ouvintes apenas sob


determinadas condições. Se um falante A não sabe que “p”, então um ouvinte
B não pode vir a saber que “p” com base na declaração de A. Isso é óbvio,
considerando que A não está enganado. Todavia, se A faz uma suposição que,
por sorte, esteja correta, nesse caso, A dá a informação correta, mas da qual
não tem conhecimento e B, consequentemente também por sorte está correto,
mas também não pode dizer que sabe que “p”.2

Ademais, para que um falante A saiba que “p”, o falante A tem de crer que
“p”. A condição da crença é uma condição necessária para o conhecimento.
Se, para um falante A e um ouvinte B, B sabe que “p” com base no testemunho
de A de que “p” se e somente se A sabe que “p”, então se A não crê que “p”, B
não pode vir a saber que “p” com base no testemunho de A. 3

Caso da Professora Criacionista

Analisemos, entretanto, o caso da professora criacionista. proposto por


Jennifer Lackey:

“caso da Professora criacionista: stella é uma professora da quarta


série, que é cristã devota, e suas crenças religiosas estão baseadas
em uma fé profunda que ela tem desde que era muito jovem. Parte da
sua fé inclui uma crença na verdade do criacionismo e,
consequentemente, uma crença na falsidade da Teoria evolucionista.
Apesar disso, ela reconhece plenamente que existe uma enorme
quantidade de evidência científica contra essas duas crenças. Na
verdade, ela admite não estar baseando o seu comprometimento com
o criacionismo completamente nas evidências, mas na fé pessoal que
ela tem em um criador todopoderoso. Devido a isso, stella não acha
que a religião seja algo que ela deve impor àqueles que estão ao seu
redor, e isso é especialmente verdadeiro com relação a seus alunos
da quarta série. em vez disso, ela considera seu dever como
professora incluir no material que apresenta aquele que está melhor
sustentado pelas evidências disponíveis, que inclui claramente a
verdade da Teoria evolucionista. como resultado, após consultar
fontes fidedignas na biblioteca e desenvolver notas de aula
confiáveis, stella afirma aos seus alunos ‘’o Homo sapiens moderno
evoluiu do Homo erectus’’, ao apresentar a sua aula de biologia hoje.
Apesar de stella não crer nem saber essa proposição, ela não
compartilha as suas próprias opiniões pessoais, que estão baseadas
na fé, com seus alunos, e assim eles formam a crença verdadeira

2
AUDI 2003.
3
MULLER, 2010.
correspondente unicamente com base no seu testemunho confiável.”
(LACKEY, 2008).

Lackey sugere que o receptor poderia obter conhecimento mesmo que a


fonte testemunhal não o tenha. Seria o caso de qualquer professor, como
vimos acima, que ensina uma teoria, assumindo que essa teoria seja
verdadeira, ao passo que não acredita na verdade da mesma. Nesse caso,
parece que o professor transmite conhecimento, mesmo que ele não tenha
esse conhecimento, uma vez que não crê naquilo que ele afirma. Outros
autores discordariam de tal proposição, afirmando que se o professor dispõe de
evidências a favor da teoria e ainda assim mantém-se descrente, parece que
ele é uma fonte insuficientemente confiável para que o seu testemunho possa
embasar o conhecimento de seus receptores.4

Considerações Finais

Brevemente avaliamos a visão não-reducionista acerca do conhecimento


testemunhal. Vimos, primeiramente, que o não-reducionismo tem como
característica fundamental que qualquer relato verdadeiro de qualquer falante
poderia proporcionar conhecimento testemunhal para qualquer ouvinte,
bastando apenas que não houvesse algum derrotador não-derrotado.
Compreendemos também que exigir conhecimento do falante não é
necessário, mas que somente aqueles falantes que têm um desempenho
epistêmico suficientemente conducente à verdade podem cumprir um papel
epistêmico adequado ao dar testemunho. Como vimos no caso da professora
criacionista, proposto por Jennifer Lackey, um falante pode ser uma fonte
confiável e transmitir informações verdadeiras sem, no entanto, crer nessas
informações.

É evidente que o debate epistemológico acerca do conhecimento


através do testemunho, mesmo a partir dos questionamentos abordados no
início deste trabalho, estão longe de encerrar-se. Entretendo, concluo que é um
tema de grande relevância para a sociedade atual. Afinal, é fato que o

4
SARTORI, 2015.
testemunho, seja falado ou escrito está presente em nossa vida
cotidianamente. Se ao ouvirmos no rádio a previsão do tempo que diz que
amanhã estará chovendo em nossa região ou se escutarmos o padre falando
na homilia dominical que existe vida após a morte, e, com isso, formamos uma
crença com base nessas informações, podemos dizer que boa parte do que
sabemos é através do testemunho.

Referências

AUDI, Robert. 1997. O lugar do testemunho na construção do conhecimento e


da justificação. The American Philosophical Quarterly, 34, p. 402-422.
Tradução de Kátia M. Etcheverry.

LACKEY, J. Learning from Words: Testimony as a Source of Knowledge.


Oxford: Oxford University Press, 2008.

MÜLLER, Felipe de Matos. 2010. Conhecimento testemunhal – a visão não


reducionista. Veritas v. 55, n. 2, maio/ago., p. 126-143. Porto Alegre.

SARTORI, Carlos Augusto. 2015. A autoridade epistêmica do testemunho.


Veritas v. 60, n. 3, set/dez., p. 447-459. Porto Alegre.

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