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Ano 10 Número 15

Memórias | 2019

sescsp.org.br

Memórias { reportagem especial: Especialistas discutem o significado e a relevância da memória


no contexto contemporâneo e enfatizam a importância da preservação de patrimônios materiais e
imateriais { depoimentos: Direito à memória pode ser tomado como um ato de resistência
{ entrevista: A historiadora Ana Maria Camargo defende que centros de memória são instrumentos
de ação e devem ser melhor aproveitados { perfil: Conheça a artista Leila Memórias | Cadernos
Danzinger, cujaSesc obra dialoga
de Cidadania | 3
com vivências pessoais { ensaio: O poeta e museólogo Mario Chagas apresenta seus museus inspiradores
FRECHAL
quilombo pioneiro
no Brasil
Christine Leidgens

PATRIMÔNIO
COLONIAL
LATINO-
AMERICANO
Percival Tirapeli

CENTROS
DE MEMÓRIA
uma proposta de definição
Ana Maria Camargo
e Silvana Goulart

MEMÓRIA
DA AMNÉSIA
políticas do
esquecimento
Giselle Beiguelman

As Edições Sesc publicam livros em


diversas áreas do conhecimento e ampliam
os diferentes debates propostos pela
ação do Sesc em seus centros culturais e
desportivos no Estado de São Paulo. /edicoessescsp
4 | Cadernos Sesc de Cidadania | Memórias
editorial

ENVOLVER-SE DE TEMPOS
Danilo Santos de Miranda
Diretor do Sesc São Paulo

A trajetória de uma instituição é condicionada por dois aspectos que, restrito a círculos especializados,
ao definirem sua identidade, orientam observou-se notável espalhamento.
tomadas de decisão face aos desafios de O dia a dia do Sesc está repleto
cada contexto: sua missão e seus valores. de iniciativas que colocam em
A missão estabelece o centro de gravidade relevo a valorização da memória, e
em torno do qual se equilibram todas a presente publicação é uma delas.
as ações institucionais, ao passo que os Os Cadernos Sesc de Cidadania, que
valores revelam aquilo sobre o qual não procuram aprofundar a discussão
se abre mão quando da efetivação dessas em torno de assuntos de interesse
ações. No primeiro caso, há um caráter público, aventuram-se agora nos
perene, praticamente definitivo: a missão complexos meandros do “já-vivido”,
do Sesc – colaborar para o bem-estar mimetizando nas páginas a seguir uma
de trabalhadores do comércio de bens, disposição que ocorre cotidianamente
serviços e turismo, seus dependentes nas unidades. Trata-se de preservar
e da sociedade de seu entorno – é a elementos representativos de outros
mesma desde seu surgimento, em 1946. tempos, cuidando para que possam
Quanto aos valores, o componente transmitir parte de seu vigor às gerações
histórico é fundamental: as mutações da futuras; mas trata-se sobretudo de
sociedade ao longo do tempo ensejam estimular o juízo crítico sobre o
novas urgências, reordenam prioridades mundo que nos rodeia, assim como
e encaminham demandas que eram, abordar a realidade em sua inteireza,
até então, menos visíveis. Valores sem simplificações enganosas.
como diversidade e sustentabilidade, Promover a memória implica
por exemplo, sequer faziam pleno um compromisso: compreender o
sentido em meados do século XX; fenômeno de superexposição do
entretanto, consolidaram-se nas assunto para atuar a partir de premissas
últimas décadas e, atualmente, são responsáveis, que entendam o campo
considerados inegociáveis para o Sesc. das memórias como expressão
Vale refletir, segundo tal perspectiva, cultural fundamental, recusando
sobre o valor da memória. instrumentalizações. Para tanto,
Nos dias que correm, parece permitir que ele seja contagiado por
coerente que uma entidade empenhada outros valores que orientam as ações
num projeto socioeducativo esteja institucionais – como o exercício
comprometida com a promoção da da cidadania, a vocação educativa e
memória. Mas isso não foi sempre assim: a diversidade – é a estratégia mais
essa percepção foi sendo construída adequada. No âmbito dos direitos
paulatinamente. A conscientização de humanos, tais contágios são desejáveis,
que a memória condiciona o tempo pois conduzem a uma perspectiva
presente, influenciando comportamentos integral acerca dos seres humanos.
e visões de mundo, se deu, em grande A memória é um desses direitos; como
medida, a partir de uma crescente tal, deve ser pensada de forma sistêmica,
movimentação dos cidadãos, exigindo jogando-se luz sobre sua capacidade
que narrativas não-hegemônicas de influenciar e ser influenciada
fossem ouvidas. No lugar de um tema pelas demais dinâmicas sociais. ⌺

Memórias | Cadernos Sesc de Cidadania | 5


índice
Expediente
SESC - SERVIÇO SOCIAL
DO COMÉRCIO
Administração Regional no
Estado de São Paulo

presidente do Conselho regional


Baixe grátis essa e outras publicações do Sesc São Paulo: Abram Szajman
diretor do departaMento
regional
Danilo Santos de Miranda

Divulgação/Governo do Estado de SP superintendentes


p.5 p.8 CoMuniCaÇÃo soCial Ivan Giannini
artigo Sesc tÉCniCo-soCial Joel Naimayer Padula
Ação do Sesc na preservação adMinistraÇÃo Luiz Deoclécio
de acervos adota perspectiva Massaro Galina assessoria
tÉCniCa e de planeJaMento
cidadã, promovendo o
Sérgio José Battistelli
direito à memória.
Cadernos Sesc de
p.8 Cidadania Memória
reportagem especial gerÊnCia de artes grÁfiCas
Heranças materiais e Hélcio Magalhães
imateriais servem ao presente adJunta Karina Musumeci
e constituem os fundamentos assistentes Gislene Lopes,
da identidade nacional. Rogério Ianelli, Tatiane Vieira
de Almeida e Priscila Ravanelli
p.18 Andreani (estagiária)
intervenção produÇÃo digital Ana Paula Fraay
Conheça obras da coleção gerÊnCia de estudos e
“Pequenos Impérios”, em Divulgação desenvolviMento Marta Raquel
que a artista Leila Danzinger p.20 Colabone adJunta Ilona Hertel
assistente João Paulo L. Guadanucci
trabalha com o acervo e
pesQuisadora Carla Lira
as memórias do pai.
editor Renato Essenfelder proJeto
p.20 grÁfiCo e diagraMaÇÃo Marcio J.
perfil Freitas reportageM Gabriel Vituri e
Leila Danzinger, artista, Carolina Brandileone trataMento
poeta e pesquisadora, de iMageM Edson Sales.
descobriu nas memórias
de família a potência de A revista Cadernos Sesc de Cidadania
uma arte emancipadora. é uma publicação do Sesc São Paulo.
Distribuição gratuita.
p.26
depoimentos Impresso em Junho de 2019
Lembrar pode ser também Tiragem: 10.000 exemplares
um ato de resistência?
Leia relatos de lideranças Arte: Patricia Brandstatter Acesse a versão on-line e
das mais diversas áreas. p.36 baixe a versão PDF desta
revista em sescsp.org.br
p.32
entrevista Sesc São Paulo
Para Ana Maria Camargo, Av. Álvaro Ramos, 991
03331-000 São Paulo - SP
historiadora e professora
Tel.: (11) 2607-8255
da USP, centros de memória
devem ser considerados sescsp.org.br
espaços de ação.

p.36
artigo
O poeta e museólogo Mario
Chagas discorre sobre o
significado da memória e fala
dos museus que o inspiram.

6 | Cadernos sesC de Cidadania | MeMórias


artigo Sesc

SOBRE A DISPOSIÇÃO DE PERMANECER


João Paulo Leite Guadanuccci*

Uma escadaria unindo as partes alta e baixa de um bairro, cuidada as concepções que buscam explicar a
por moradores locais; um idioma falado relação das pessoas com os fatos que
por centenas de indígenas num vídeo de a antecederam; de outro lado, há a
youtube; três caixas de postais antigos dimensão político-social dessa questão,
encontradas embaixo da cama da avó, indagando quais acontecimentos
falecida há alguns meses; o museu mereceriam ser lembrados, assim como
ferroviário da cidade; uma poesia de quem faria tais escolhas. Evidentemente,
que ninguém mais lembra direito, essas duas facetas se interpenetram, mas
contando como os primeiros habitantes é útil aproximar-se delas por partes.
cozinhavam; jovens aproveitando os LPs A palavra memória admite vários
dos pais para reinventar o hip-hop; um significados, os principais se referindo
canhão enferrujado apontado para o à capacidade (não apenas humana) de
mar; músicas e danças que se misturam, reter algo ligado ao passado, assim
toda sexta-feira de lua cheia, naquela como dizendo respeito aos seus
comunidade; um conjunto de edifícios desdobramentos materiais, simbólicos
modernos que um dia revolucionaram e sociais. É visível a conexão dessas
o conceito de moradia; fotos digitais acepções com a noção ampliada de
salvas numa pasta desconhecida; um cultura (dita “antropológica”), já
senhor que sabe fazer ampulhetas que ambas revelam suas respectivas
conforme seu avô lhe ensinara. tendências ao transbordamento
A memória se insinua por todo e sua onipresença. De qualquer
lado. Está presente nos atos cotidianos modo, é importante sublinhar: a
e no significado que lhes damos. memória é pressuposto da cultura.
Configura o mundo que habitamos Conforme variaram tempo e espaço,
e o modo como nele agimos. Tão a relação com o acontecido adquiriu
embrenhada na textura da realidade, usos sociais diversos. A temporalidade
oferece um desafio a quem queira sobre circular que organiza a vida de certos
ela refletir: como circunscrevê-la? grupos e comunidades, mimetizando
Por quais lados abordá-la? em grande medida os ciclos naturais,
Trata-se de uma empreitada que varia confere à memória um estatuto peculiar:
segundo o contexto. Afinal, a memória nesses casos, as ações do dia a dia e,
é assunto sobre o qual se comenta principalmente, os ritos e celebrações
desde que o ser humano percebeu atualizam permanentemente o já-vivido,
*Mestre em História
da Arte, bacharel em
que se lembrava – já não lembramos solicitando-o com uma intimidade
Filosofia e assistente exatamente quando isso ocorreu. peculiar. O mesmo não acontece na
técnico da Gerência Muita coisa mudou desde então. experiência contemporânea, em que
de Estudos e
Desenvolvimento do Pode-se pensar tais mudanças a partir determinada distância caracteriza a
Sesc São Paulo de duas frentes: de um lado, temos relação com o passado, distância essa

Memórias | Cadernos Sesc de Cidadania | 7


artigo Sesc

Foto: Alexandre Nunis/Sesc SP

cuidado. Pesquisador trabalha na higienização de cartaz; criado em 2006, o Sesc Memórias preserva documentos relativos às ações do Sesc

ocupada por especialistas e diletantes, em tal contexto e realiza suas ações


por ativistas e negociantes. no campo da memória levando-o
Num contexto como o atual, no em consideração. Ao longo de sua
qual o futuro deixou de representar existência, é visível o incremento da
a promessa de progresso contínuo e atuação nesse domínio – o que dialoga,
passou a sugerir panoramas bem mais em certo grau, com as movimentações
inquietantes – o colapso ecológico é sua ocorridas dentro e fora do país.
faceta mais contundente –, é coerente Alguns marcos ajudam a compreender
que se olhe “para trás” com avidez, essa trajetória, como a requalificação de
como se lá tivessem sido depositadas uma fábrica de geladeiras e tambores
certas lições que desaprendemos. para se transformar, em 1982, num
Indivíduos e coletividades perguntam-se centro de lazer e convivência, o Sesc
sobre seu passado e seus antecedentes, Pompeia. A decisão de restaurar e
empresas e entidades criam estratégias preservar a arquitetura fabril, numa
de preservação de suas respectivas época em que o zelo pelo patrimônio
histórias, inseridos numa voga que edificado se restringia aos símbolos do
inclui agentes relevantes, como o poder político ou religioso, indicou
turismo, a publicidade e a moda. Pensar a o reconhecimento de que a memória
memória hoje é lidar com essa situação, constitui um campo múltiplo, construído
marcada por excessos e carências. e reelaborado por instâncias variadas da
O Sesc, assim como outras sociedade. A chancela oficial, na forma
instituições socioculturais, está inserido de tombamento, viria bem mais tarde:

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Num contexto
como o atual,
no qual o
futuro deixou
de representar
em 2004 na esfera municipal, em 2014 com especial atenção para a questão
a promessa
na federal. Outra construção tombada da acessibilidade. Além disso, duas
atualmente sob a gestão do Sesc no unidades – Sesc Interlagos e Sesc de progresso
Estado de São Paulo é o conjunto de Itaquera – estão localizadas em áreas contínuo e
armazéns criado no começo do século de proteção ambiental, construindo passou a sugerir
XX pela Companhia Ultramarina de importantes áreas verdes para atividades
panoramas bem
Desenvolvimento do Japão, KKKK (Kaigai de lazer e educação permanente.
Kogyo Kabushiki Kaisha), adaptado Paralelamente ao cuidado com a mais inquietantes,
para abrigar desde 2016 o Sesc Registro, memória materializada, o Sesc desenvolve é coerente que se
na maior cidade do Vale do Ribeira. uma frente de ação complementar: olhe “para trás”
Outro aspecto que revela a trata-se de iniciativas de caráter educativo
com avidez
importância conferida à memória foi que têm como foco a memória e o
a constituição de acervos a partir de patrimônio. Cursos, oficinas e seminários
estratégias diversas, como é o caso abordam a educação patrimonial e
do Acervo Sesc de Arte Brasileira – a museologia social, bem como um
coleção de obras de arte brasileira amplo espectro de questões ligadas a
incorporadas sistematicamente expressões identitárias e tradicionais,
desde a década de 1970, acessíveis aos estimulando os públicos a refletir sobre
públicos em todas as unidades – e o as construções de narrativas levadas a
mobiliário elaborado especificamente cabos por grupos sociais os mais diversos.
para os espaços do Sesc, concebidos Tal empenho ganha maior alcance com
por designers e arquitetos importantes a publicação de livros e a produção de
A memória serve
da história cultural brasileira. material audiovisual dedicado ao assunto. ao presente, o
Em 2006, a preservação da memória Em todos esses casos, tão importante que explica em
institucional ganha um impulso quanto jogar luz sobre modos de vida grande medida
fundamental: o surgimento do Sesc plurais, com especial cuidado para
Memórias, programa encarregado do aqueles menos visibilizados, é situar
a relevância que
recolhimento, tratamento, catalogação, os debates e reflexões na perspectiva ela adquiriu para
guarda, digitalização e disponibilização da cidadania. Isso significa a reiteração além de círculos
para pesquisa de documentos relativos de que, dentre os direitos culturais, especializados
às ações do Sesc desde sua fundação, destaca-se o direito à memória; isso inclui
em 1946. Trabalhando com itens cuja não apenas o acesso às memórias dos
diversidade testemunha a polivalência estratos que compõem a sociedade, como
das atividades – fotografias, materiais principalmente a possibilidade de que
gráficos, conteúdos audiovisuais em cada cidadão ou grupo tenha garantido o
múltiplos suportes, peças tridimensionais reconhecimento, preservação e promoção
e entrevistas – o Sesc Memórias de suas narrativas sobre o passado.
aproximou-se de especialistas para Afinal, a memória serve ao presente
construir metodologias adequadas a um – essa condição é cada vez melhor
acervo tão peculiar. Atualmente, subsidia compreendida, o que explica em grande
pesquisas realizadas por funcionários medida a relevância que ela adquiriu
da entidade, por pessoas ligadas ao para além de círculos especializados.
universo acadêmico, por veículos de Os interesses pessoais e coletivos
comunicação e pela sociedade em geral. que dela se apropriam determinam
Além de edificações e acervos, o seus usos, por vezes inclusivos, mas
cuidado institucional com o patrimônio que não raro reforçam situações de
reflete-se no âmbito natural. Uma desigualdade e vulnerabilidade.
das áreas do Sesc Bertioga constitui Cabe àqueles comprometidos
uma Reserva Particular do Patrimônio com pautas de interesse público
Natural (RPPN), espaço no qual envolverem-se nessas dinâmicas,
se articulam preservação do meio aproximando o tema da memória de
ambiente e mediação socioeducativa, uma perspectiva justa e democrática. ⌺

Memórias | Cadernos Sesc de Cidadania | 9


reportagem especial

patrimôni
A preservação da memória,
seja na forma de heranças ma-
teriais ou imateriais, é funda-
mental para o desenvolvimento
e a construção de uma identi-
dade nacional

texto: Gabriel Vituri


e Carolina Brandileone

Passava das sete horas da noite quan-


do o fogo começou. Exceto por quatro
vigilantes que se dividiam na tarefa de
cuidar do local quando as portas se fe-
chavam para o público, não havia mais
ninguém no espaço. Rapidamente, as
chamas tomaram conta do Museu Na-
cional da Universidade Federal do Rio
de Janeiro, e as imagens da destruição
que passaram a ser compartilhadas em
tempo real em redes sociais e emisso-
ras de televisão geravam revolta e tris-
teza profundas.
Naquele domingo, ao mesmo tem-
po em que milhões de itens desapare-
ciam para sempre, enquanto os bom-
beiros tentavam combater o incêndio,
já vinham à tona discussões sobre a
culpa e a responsabilidade pela tragé-
dia que àquela altura ganhara propor-
ções irrecuperáveis.
Apesar da indignação que se seguiu,
a catástrofe no maior museu de histó-
ria natural do país, no dia 2 de setem-
bro de 2018, não pode ser considerada
fenômeno inédito na cultura brasilei-
ra. Longe disso. No fim de 2015, por
exemplo, o Museu da Língua Portu-
guesa, em São Paulo, também foi de-
vastado pelo fogo, e sua reconstrução

10 | Cadernos Sesc de Cidadania | Memórias


o de todos Foto: Marco Antonio/Sesc São Paulo

sesc pompeia. O conjunto arquitetônico do


Sesc Pompeia foi tombado como patrimônio
cultural do Brasil em 2015; é a segunda obra da
arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi, depois do
Masp, a constar da lista do patrimônio nacional

Memórias | Cadernos Sesc de Cidadania | 11


reportagem especial

só deve ser concluída no fim deste ano.


Em 2010, o Instituto Butantan, um dos
grandes centros mundiais de referên-
cia na produção de pesquisas biológi-
cas, foi atingido por um incêndio que
dizimou dezenas de milhares de espé-
cimes de serpentes, aranhas, escorpi-
ões e outros animais catalogados.
A lista de eventos semelhantes é
longa, e os efeitos negativos que tais
episódios trazem para o patrimônio
cultural brasileiro, imensos. Mas para
além das investigações e responsabili-
zações, o que isso diz sobre a manei-
ra como lidamos com a nossa memó-
ria enquanto país? “Eu morei no Rio
e conheci o Museu Nacional em 1980.
Lembro que já era uma barbaridade
naquela época. Ou seja, eu sei que ele
está em perigo desde aqueles tempos”,
conta Carlos Augusto Calil, professor
do Departamento de Cinema, Rádio e
Televisão da Escola de Comunicações
e Artes da Universidade de São Pau-
lo (ECA/USP). “Se eu sabia, muita gen-
te também sabia antes de mim. Quan-
to tempo foi preciso para que aquele
museu, com tudo o que ele represen-
tava, ficasse na iminência do desastre
até que o desastre acontecesse? Quer
dizer, eu não fiz nada, o governo não
fez nada, ninguém fez nada. Quem foi
que destruiu o Museu Nacional, en-
tão?”, questiona Calil. theatro municipal de são Paulo. um dia escutaram ou presenciaram,
A catástrofe exterminou anos de Projetado por Domiziano Rossi e Cláudio acervos, museus e outras vivências se-
pesquisa em andamento, vestígios ar- Rossi e construído pelo escritório de melhantes ou até a capacidade fisioló-
queológicos únicos, documentos his- Ramos de Azevedo, teve obras concluídas gica de reter lembranças passadas.
tóricos e grande parte do edifício e das em 1911 e sediou importantes eventos, Considerando que a preservação da
características arquitetônicas do mu- como a Semana de Arte Moderna de 1922 memória de um povo é de fato funda-
seu. Fora a relevância de todo o acer- mental para o seu desenvolvimento e
vo perdido, o apagamento dessa histó- para a construção de uma identidade
ria representa também o apagamento nacional, é preciso também refletir so-
das memórias que esse material carre- bre que políticas são necessárias para
gava consigo. que esse patrimônio cultural se susten-
Mas qual é o significado da perda da te e, principalmente, não se apague –
memória em um país com tantos desa- pelo fogo ou pelo esquecimento.
fios no tempo presente? O quanto isso
importa? Se perguntarmos a um con- Primeiros passos
junto de pessoas o que elas entendem “Entende-se por Patrimônio Artístico
por “memória”, muito provavelmente Nacional todas as obras de arte pura ou
as respostas serão as mais diversas: ex- de arte aplicada, popular ou erudita,
periências boas e ruins, histórias que nacional ou estrangeira, pertencentes

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Foto: Paolo Massimo Ferretti/CC

Romeiro Chuva, professora da Univer-


sidade Federal do Estado do Rio de Ja-
neiro (UNIRIO). “Quando surge essa
política de patrimônio nos anos 1930,
ela está em acordo com uma política
que está sendo colocada em nível in-
ternacional, e aí o Brasil cria o órgão,
implementando uma nova lei que re-
gulamenta toda uma prática de pre-
servação do patrimônio cultural, que
está discutindo principalmente o pa-
trimônio material, patrimônio edifi-
cado, patrimônio arquitetônico, urba-
no”, completa.
Colocando de outra forma, obras
de arte, construções, museus, acervos
e mesmo as paisagens naturais ou com
intervenções humanas estariam con-
templadas pelo Iphan. “Quando se fala
em patrimônio material, a primeira
coisa em que a gente pensa é nas cida-
des coloniais, nos centros históricos
antigos”, ilustra a professora.
Assim, com o patrimônio de pedra e
cal (a expressão costuma ser usada para
designar monumentos e outros bens
materiais tangíveis) oficialmente res-
guardado por uma instituição federal,
restava ainda compreender o que seria
feito dos patrimônios intangíveis, ou
seja, que fossem imateriais e, portan-
to, de difícil assimilação no imaginá-
rio de quem deveria buscar preservá-
aos poderes públicos, a organismos so- Oficialmente fundado pelo jurista e -lo. Quem poderia definir, a partir da
ciais e a particulares nacionais, a par- jornalista Rodrigo Melo Franco de An- imaterialidade, o que era ou não rele-
ticulares estrangeiros, residentes no drade, que teve a colaboração do escri- vante e, no limite, um patrimônio a
Brasil”. Tão ampla quanto misteriosa, tor modernista ao longo desse processo ser cuidado?
a definição de Mario de Andrade para de elaboração dos termos que defini-
o que se enquadraria na categoria de riam a instituição, o Iphan tornou-se Cultura e memória
patrimônio artístico, escrita em 1936, um órgão oficial a partir do decreto-lei Embora essa discussão tenha ganhado
consta de um anteprojeto do então Ser- 25, sancionado em novembro daque- força só a partir dos anos 1970, nacio-
viço do Patrimônio Histórico e Artís- le ano. Dali em diante, nas palavras do nal e internacionalmente, havia pistas
tico Nacional (Sphan), e é um dos pri- decreto, “bens móveis e imóveis exis- de que isso estava, sim, no radar bra-
meiros movimentos “burocráticos” no tentes no país e cuja conservação seja sileiro. “No anteprojeto, o Mario de
sentido dessa preservação. de interesse público, quer por sua vin- Andrade já considerou a possibilidade
O texto, encomendado à época por culação a fatos memoráveis da histó- de que outras manifestações fossem
Gustavo Capanema, ministro da Saú- ria do Brasil, quer por seu excepcional incluídas, porque ele era um homem
de e Educação no governo de Getú- valor arqueológico ou etnográfico, bi- aberto ao folclore, às manifestações re-
lio Vargas, serviu de inspiração para o bliográfico ou artístico”, deveriam ser ligiosas, à cultura negra”, afirma Carlos
que depois se consolidaria na criação protegidos e preservados. Calil. “Ele tinha interesse pela cultura
do Instituto do Patrimônio Histórico “A política brasileira não inventou popular, e sabia que existia um Brasil
e Artístico Nacional, o Iphan, em 1937. essas categorias”, explica Márcia Regina profundo que não era monumental, e

Memórias | Cadernos Sesc de Cidadania | 13


reportagem especial

que deveria ser preservado como for- brasileiro passa a ser reconhecido tan-
ma de descobrirmos verdadeiramente to nas instâncias materiais quanto nas
o nosso país, inclusive ajudando a evi- imateriais. “A partir desse momento,
tar a invasão permanente das influên- isso começa a tentar se firmar como
cias estrangeiras”, informa o professor um conceito legal”, diz. “Agora, po-
da USP, que já dirigiu instituições cul- líticas efetivamente construídas, ela-
turais como a Cinemateca Brasileira e boradas e implementadas só vão sur-
o Centro Cultural São Paulo. gir depois dos anos 2000”, pondera.
O anteprojeto do autor de “Macu- Em agosto do ano 2000, o decreto nú-
naíma”, no entanto, não foi exatamen- mero 3.551 consolida o que já vinha se
te considerado na hora de redigir o de- desenhando, instituindo o registro de
creto-lei, e a discussão sobre as outras bens de natureza imaterial como par-
formas de definição de patrimônio, te do patrimônio cultural do país. “A
pelo menos em instâncias oficiais, fi- ideia é que a atuação do Estado seja no
caram adormecidas por mais de qua- sentido de defender princípios de am-
tro décadas. “As discussões institucio- pliação do reconhecimento de culturas
nalizadas para lidar com esse universo diferentes no Brasil, de representação”,
começam a surgir no final dos anos explica a professora Márcia Chuva, es-
1970, com a criação da Fundação Na- pecialista em políticas de patrimônio.
cional Pró Memória”, esclarece Márcia
Sant’Anna, professora da Universida- Material e imaterial
de Federal da Bahia (UFBA) que ocu- A roda de capoeira, o frevo, terreiros
pou diferentes cargos no Iphan entre de Candomblé, a feira de Caruaru e até
1987 e 2011. “Esse termo ‘patrimônio mesmo o modo de fazer um queijo na
imaterial’ não era usado, falava-se em Serra da Canastra são alguns exemplos
‘patrimônio vivo’, que de certa forma de patrimônios culturais imateriais re-
dialoga com a noção atual”. conhecidos atualmente no Brasil. Mas
Criada em 1979, a Fundação Pró Me- afinal, como compreender essas defi-
mória, sustenta Márcia Sant’Anna, é nições e as suas interações com reali- estação da luz.
uma das responsáveis diretas pela ela- dades que muitas vezes partem da ma- Inaugurada em março de 1901, a Estação
boração do artigo 206 que apareceria terialidade? Márcia Sant’Anna explica da Luz ocupa uma área de 7.500 metros
anos depois na Constituição Federal que as conexões entre patrimônio ma- quadrados no centro de São Paulo;
de 1988, quando o patrimônio cultural terial e imaterial acontecem o tempo tombada em 1982, sua estrutura foi
todo, inclusive no caso de um conheci- importada da Inglaterra, copiando traços
mento, como nos procedimentos para do Big Ben e da abadia de Westminter
criar um queijo em Minas Gerais. “Para
um saber se concretizar, ele depende
de um conjunto de aspectos ou de in-
sumos materiais para que sua expres-
são aconteça”, esclarece.
Ainda que as políticas de preserva-
ção estejam separadas (“mais por uma
“Quando surge a política questão conceitual”, afirma a profes-
sora da UFBA), as coisas estão inter-
de patrimônio nos anos ligadas. Enquanto a salvaguarda do
1930 no Brasil, ela está em patrimônio imaterial enfatiza mais o   A ideia é que a
acordo com uma política sujeito, no caso do patrimônio mate- atuação do Estado seja
que está sendo colocada rial o elemento em evidência é sem- no sentido de defender
pre o objeto. “Um determinado con-
em nível internacional” princípios de ampliação
junto urbano pode até estar tombado
como patrimônio material, mas ele não do reconhecimento de
existe em sua dimensão humana se culturas diferentes

14 | Cadernos Sesc de Cidadania | Memórias


Foto: Divulgação/Governo do Estado de SP

Já os lugares servem justamente para


fazer a ponte entre material e imate-
rial: “Trata-se de um lugar material
que abarca, engloba, envolve um con-
junto de expressões culturais que são
fundamentais para a própria existência
do lugar. E talvez essa categoria Luga-
res seja a que mostra de uma maneira
bastante clara esse vínculo do material
com o imaterial”.

Legitimação e resistência
A ideia de que uma determinada mani-
festação artística é considerada um pa-
trimônio cultural e outra, não, desper-
ta uma questão: quem legitima o que é
patrimônio e como isso se dá na práti-
ca? “Você tem um conjunto de atores
sociais, não somente enquanto indiví-
duos, mas segmentos, instituições, que
legitimam esse patrimônio a partir de
processos estabelecidos de reconheci-
mento. É evidente que essa legitimação
é necessária, porque todo patrimônio
é uma construção social, ele não exis-
te em si”, responde Márcia Sant’Anna.
Na opinião de Carlos Calil, é um pro-
cesso inevitável: “[Quem legitima] é a
não existirem pessoas ali produzindo a partir de algumas materialidades, en- vida, a realidade, porque aquelas pes-
sentido de patrimônio, porque há um tão há uma divisão histórica, mas que soas existem. O quilombola existe, a
conjunto de saberes, fazeres e celebra- não é intrínseca às coisas. O campo de manifestação indígena existe, mani-
ções nesse espaço que só fazem sentido patrimônio tem debatido essa divisão. festações de cultura popular existem.
com essa interação”, explica Sant’Anna. Como os tipos de patrimônios salva- Você pode até recalcá-las institucio-
O conjunto tombado de Goiás Velho, guardados são diferentes, eles preci- nalmente, mas elas emergem depois,
ela complementa, é uma boa forma de sam de ações diferentes, mas a inten- não há dúvida”.
ilustrar essa relação: “Há uma série de ção é salvaguardar práticas culturais Além de ser essencial para a cons-
expressões culturais que dizem respei- diversas que representem a diversida- trução da identidade de um país, a sal-
to a esse espaço e preenchem aquilo de de cultural da nação, seja ela material vaguarda de um patrimônio cultural –
significado, e que também existem em ou imaterial”. material ou imaterial – pode também
função dele: a procissão do fogaréu, a Hoje em dia, o Iphan divide os pa- ser vista como um gesto de afirmação
doceria tradicional de Goiás, todas es- trimônios culturais imateriais em qua- de políticas identitárias e culturais que
sas manifestações operam ali no mes- tro categorias: Saberes, Celebrações, constituem uma nação. “Hoje em dia as
mo lugar”. Formas de Expressão e Lugares. “Sa- políticas de patrimônio têm se aproxi-
“Tudo o que é patrimônio material beres envolve todos os conhecimentos mado de políticas de reparação”, afir-
só é reconhecido porque tem um valor tradicionais, Celebrações é para toda ma Márcia Chuva. “São políticas que
simbólico, então existe por si só um ca- e qualquer tipo de celebração vincu- incluem em nosso imaginário grupos
ráter imaterial”, elucida Márcia Chuva, lada ao cotidiano e à civilidade, à re- sociais que antes eram excluídos. Um
da UNIRIO. Os argumentos da profes- ligiosidade e a vários aspectos da vida exemplo é o tombamento dos terrei-
sora, doutora em História pela Univer- social”, explica Márcia Sant’Anna. As ros de Candomblé, que ocorre na Bahia
sidade Federal Fluminense (UFF), vão formas de expressão, desenvolve, são desde os anos 1990. Você usa o tomba-
ao encontro do que defende a profes- muito variadas, podendo ser plásticas, mento, um instrumento utilizado para
sora da UFBA: “O patrimônio acontece cênicas, musicais e de várias naturezas. o patrimônio material, mas o que im-

Memórias | Cadernos Sesc de Cidadania | 15


reportagem especial

porta ali são os sentidos e significados


atribuídos àquele espaço e àquelas prá-
ticas”, complementa a pesquisadora.
Colocando de outra maneira, as po-
líticas de patrimônio, assim, passam a
incluir grupos que historicamente fo-
ram excluídos, como os negros, e criam
espaços de resistências que trazem uma
noção de memória atualizada e, muitas
vezes, salvaguardada por políticas ins-
titucionalizadas. Nesse sentido, expli-
ca Chuva, há hoje em dia uma série de
instrumentos legais para garantir es-
ses direitos: “No âmbito da pesquisa,
da produção científica, há muitos de-
bates que favorecem, por exemplo, a
ideia de uma cidade para todos”.
“A sociedade tem se apropriado des-
sa ideia de maneira bastante ampla, in-
clusive do ponto de vista dos chamados
detentores desses bens culturais, ou
seja, aquelas pessoas que efetivamen-
te produzem esse patrimônio”, concor-
da Márcia Sant’Anna. No plano federal,
ela completa, a política de patrimônio
parte do princípio de que a salvaguar-
da deve ser um processo participativo.
“Tem sido assim já ao longo de vários
projetos que abrangem comunidades
no Brasil todo. Os produtores e deten-
tores de conhecimentos também aju- “Muita coisa se conquistou no sen- processo. “Acho que as políticas de pa-
dam a construir toda essa política e a tido de que algumas políticas se insti- trimônio têm um compromisso que é
preencher de conteúdo essa expres- tucionalizaram, mas a verdade é que mostrar, com a preservação desse pa-
são de patrimônio cultural imaterial”. a Universidade Federal do Rio de Ja- trimônio, que existem problemas his-
neiro não foi capaz de administrar o tóricos brasileiros que têm efeito até
Memórias do abandono museu mais importante do país e nin- hoje”, pondera, citando o exemplo da
Considerado um dos maiores antropó- guém foi responsabilizado por isso”, escravidão. “É importante preservar
logos brasileiros, com uma obra reco- critica Calil. Ex-Secretário Munici- registros dessa experiência históri-
nhecida mundialmente e elogiada por pal de Cultura de São Paulo, o profes- ca não só em respeito a uma memó-
cânones como Claude Lévi-Strauss, sor considera que a institucionalida- ria dos que já passaram, mas também
Eduardo Viveiros de Castro declarou de melhorou, mas se ela não funciona, a quem vive no presente hoje, por-
em uma entrevista ser contra a hipo- é preciso que a população cobre mu- que isso atinge as pessoas ainda. Sa-
tética reconstrução do Museu Nacio- danças. “Nós estamos vivendo nesse ber como ocorreu, o que aconteceu no
nal da UFRJ. Na visão dele, as ruínas momento a omissão governamental, pós-abolição, e como isso segue ten-
servem como uma memória das coi- que não é novidade, porque já vive- do efeitos sociais e urbanos, é trazer
sas mortas. Apagar a história, portan- mos outros ciclos de omissão. Ago- o passado para o presente, é mostrar
to, seria apagar o descaso e o abandono ra, quando o Presidente da República como os passados estão presentes e, se
com os quais nós, enquanto sociedade, diz que índio é preguiçoso, que sina- eles forem jogados para debaixo do ta-
deveríamos conviver para nos lembrar lização ele está dando para a socieda- pete, os traumas não serão superados
sempre do que foi o incêndio na ins- de?”, questiona. nunca. É preciso que as políticas en-
tituição e, assim, evitar que episódios Para Márcia Chuva, a relação com frentem os problemas que advieram
semelhantes continuem a ocorrer. o passado também é parte inerente ao dessa história.” ⌺

16 | Cadernos Sesc de Cidadania | Memórias


“Os passados estão presentes e, se eles forem jogados para debaixo
do tapete, os traumas não serão superados nunca”

Fotos: Sesc São Paulo

Ilha Diana.
Localizada próxima ao centro de Santos,
Ivaporunduva. a Ilha Diana só pode ser acessada de
O quilombo faz parte do conjunto de barco, e é considerada uma das últimas
comunidades quilombolas do Vale do Ribeira e colônias de pescadores da região que ainda
data do final do século 17. Na década de 1990, preserva a maior parte de suas tradições
a população do local formalizou a criação da
Associação Quilombo de Ivaporunduva

convenção da Apesar de ser atualmente o do- outros desdobramentos também ca-


unesco estabelece cumento-base nesse tópico, as con- minharam nesse sentido: em 1976,
diretrizes sobre venções e debates da UNESCO sobre por exemplo, a chamada Recomen-
preservação do o tema começaram décadas antes, dação de Nairobi incluiu como pa-
patrimônio uma espécie de prólogo sobre o que
seria consolidado no início do sécu-
trimônio aldeias e lugarejos. Como
diz um trecho da convenção, esta-
Em 2003, uma conferência da Or- lo 21. “A partir dos anos 1970 há todo riam contemplados agrupamen-
ganização das Nações Unidas para um debate crítico sobre o que foi se- tos de construções e espaços, “tan-
a Educação, a Ciência e a Cultu- lecionado como patrimônio, além to no meio urbano quanto rural”,
ra, a UNESCO, consolidou em de uma demanda que alguns países que fossem relevantes do pon-
uma convenção as diretrizes ne- e movimentos tinham sobre a cul- to de vista “arqueológico, arqui-
cessárias para que o mundo com- tura estar representada também por tetônico, pré-histórico, históri-
preendesse a importância da sal- práticas tradicionais que mostras- co, estético ou sociocultural”.
vaguarda do patrimônio cultural sem diversidade para além do ní- Por fim, podem também ser lem-
imaterial. Hoje, o documento con- vel arquitetônico e urbano”, explica brados os encontros realizados no
tinua sendo uma referência nesse a professora Márcia Chuva. Em 1972, México, em 1982 e em 1985, a Confe-
debate e serve como guia para dife- a Conferência Geral da UNESCO rência Geral de Paris em 1989, o se-
rentes nações a respeito dos pro- já falava em Patrimônio Mundial, minário de 1995 na República Tche-
cessos de preservação da diversi- Cultural e Natural, por exemplo. ca, e o fórum de proteção ao folclore
dade cultural e desenvolvimento. Ao longo dos anos seguintes, realizado em 1997 na Tailândia. ⌺

Memórias | Cadernos Sesc de Cidadania | 17


intervenção

Bildung
2014, composta por 18 pranchas
com livros e documentos
costurados, estante de madeira
com 107 livros e 128 documentos.

Leila Danzinger
artista, poeta e pesquisadora,
é professora do Instituto
de Artes da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro

SOBRE a obra
Em “Bildung”, Leila
recorreu a livros trazidos
da Alemanha por seus avós,
que fugiam do nazismo.
Uma primeira versão
do trabalho foi exposta
em 2014 na mostra cole-
tiva “Há Escolas que são
Gaiolas e há Escolas que
são Asas”, no MAR (Museu
de Arte do Rio). Em 2018
surgiu uma segunda
versão, apresentada na
mostra individual “Ao
Sul do Futuro”, no Museu
Lasar Segall, em São Paulo.

18 | Cadernos Sesc de Cidadania | Memórias


Foto: Wilton Montenegro

Memórias | Cadernos Sesc de Cidadania | 19


perfil

A arte de lembrar
A artista plástica Leila Danziger descobriu nas origens
de sua própria família a potência de uma vasta obra
que faz dialogar memória, ética e emancipação

texto: Gabriel Vituri


fotos: Arquivo pessoal/Divulgação

uma espécie de tabu, e isso é bem co-


mum em famílias com experiências
Em 1985, ao chegar à França para co- assim. Ele queria ser brasileiro, tipi-
meçar sua formação em artes, Lei- camente brasileiro, possuía esse dese-
la Danziger percebeu que havia algo jo muito forte nele”.
em suas origens que chamava aten- Então, enquanto se estabelecia na
ção, como se por detrás de sua traje- Europa para estudar – primeiro, no
tória pessoal e familiar houvesse mais curso de Artes Gráficas, que logo foi
potência do que ela imaginara até ali. substituído pelo de Artes Visuais –, a
Ainda que a Segunda Guerra Mun- “consciência histórica” de suas ori-
dial tivesse ficado no passado havia gens foi criando forma até que Leila
quatro décadas, os franceses, ela con- compreendesse que, dali em diante,
ta, esforçavam-se para lidar com os sua obra e suas memórias andariam
traumas que o Holocausto havia espa- pelos mesmos caminhos. “Eu dese-
lhado por todo o continente europeu. jei ser artista a partir de um encontro
Enquanto nação, tentavam compreen- com a história”, diz.
der e reconhecer sua própria respon- Hoje, aos 57 anos, Leila Danziger
sabilidade na ascensão do regime na- mistura imagem e palavra para le-
zista. “Meu sobrenome lá gerava um var seus trabalhos a galerias e mu-
efeito muito curioso nas pessoas. Co- seus dentro e fora do Brasil, com um
bravam de mim uma relação com a trabalho fortemente marcado pelo uso
história que eu não tinha”, lembra a de documentos públicos, arquivos fa-
artista. Durante a guerra, fugindo da miliares, registros da imprensa e afins.
perseguição aos judeus, seu pai e seus “O impresso é um documento de civi-
avós refugiaram-se no Brasil: “O fato lização incrível, me encanta. Se eu não
de meu pai ter vindo da Alemanha era fosse artista plástica eu certamente

20 | Cadernos Sesc de Cidadania | Memórias


Perigosos, subversivos, sediciosos [Cadernos do povo brasileiro]
A instalação traz livros censurados pela ditadura militar no Brasil e fotografias
de mortos e desaparecidos tanto no período ditatorial como no democrático.
Os rostos estão cobertos por páginas extraídas dos livros censurados

Memórias | Cadernos Sesc de Cidadania | 21


perfil

“Eu desejei ser artista a partir


de um encontro com a história”

lugar-chave. Leila em seu apartamento no Edifício Líbano (RJ)

seria designer, porque pra mim é um – na maneira como se relacionava com conta a ida dele para Auschwitz.” O en-
meio muito importante.” a trajetória de sua família. Ao presti- contro com a literatura foi determi-
Como boa parte dos que se tornam giar uma exposição em Paris sobre a nante para a maneira como a artista
artistas, Leila sempre cultivou uma re- cultura europeia, ela se deparou com plástica passou a interpretar a influ-
lação com desenho e pintura – mas, cenários essencialmente familiares: ência de seu passado na sua forma de
embora gostasse muito dessas ativida- “Me lembro que ela terminava com trabalhar. “Eu percebi que tinha uma
des, o plano de se tornar artista plásti- uma projeção dos artistas e intelec- transmissão em que eu me reconhe-
ca nos anos 1980 não a empolgava. “Há tuais judeus que deixaram Viena por cia, sobretudo pela literatura”, explica.
um ponto importante na minha vida, causa do nazismo em 1938, e só ali me “É uma virada que me acompanha até
e que não está no meu currículo por- dei conta, de uma forma muito físi- hoje.” Além de Levi, a poesia de Paul
que não sei bem onde encaixar, que foi ca, que meus avós e meu pai tinham Celan foi uma obra “absolutamente
meu primeiro emprego, no Mobral, o fugido de Berlim nessa leva, embora transformadora” para ela. “Ainda na
Movimento Brasileiro de Alfabetiza- minha família não fosse nem de inte- França, comecei a estudar alemão, que
ção”, recorda. “Eu queria ser ilustra- lectuais, nem de artistas, mas de pes- era o tabu absoluto na família. Então,
dora, e na época fazia ilustrações para soas com profissões muito comuns”. as pessoas achavam que eu falava a
material didático. Tive uma formação Leila conta que aquilo a fez perceber língua por causa do meu pai, mas era
legal com pessoas bacanas, com quem como sua vida estava implicada na- pelo Celan, porque eu queria enten-
eu convivia intensamente.” quela história. der, escutar aquilo”, justifica.
Nessa época, depois de um cur- Há mais ou menos dez anos, a artis-
to período na Escola de Belas Artes, literatura e outras leituras ta começou a escrever poesia (“eu brin-
no Rio de Janeiro, onde nasceu, Leila Não foi só pela arte, todavia, que Lei- co que é a faixa bônus da minha vida”),
abandonou o curso e se mudou para la passou a lidar com suas origens. e, em 2012, publicou o primeiro de
a França, quando considera que hou- “Lembro do dia em que li ‘É Isto Um seus três livros do gênero. “Para mim
ve a virada – “pela arte mesmo”, diz Homem?’, do Primo Levi, em que ele é um desdobramento do processo do

22 | Cadernos Sesc de Cidadania | Memórias


pequenos impérios
Leila organizou esta série a partir do arquivo do pai (veja
panorama à pág. 16). “Se cada resto, cada ‘pequeno
império’ é um arquivo, cabe perguntar o que está
arquivado na matéria que o constitui”, ela escreveu
Fotos: Wilton Montenegro

trabalho, porque existe uma questão se diz grata a agências públicas de fo- sendo guardados por ele, “de uma for-
sobre a escrita do artista, e na verdade mento à pesquisa que lhe proporciona- ma muito organizada”, diz. “Eram pas-
eu comecei a escrever poesia porque ram oportunidades de estudo ao lon- tas e fichários em torno de algumas
isso me permitia fazer experimenta- go de sua carreira, mas lamenta o fato temáticas obsessivas: Rio de Janeiro,
ções, pensar nos processos”, afirma. de essas instituições com frequência construção civil (desabamentos e de-
Pesquisadora com dois pós-doutora- evitarem nomear a arte em seus pro- sastres), política brasileira, segunda
dos e professora do Instituto de Ar- gramas de auxílio. “No campo da uni- grande guerra, Israel (a língua hebrai-
tes da Universidade Estadual do Rio versidade, a arte como conhecimento ca), contas (todas as contas de luz e
de Janeiro, Leila concilia a vida acadê- sensível se consolidou muito nos úl- gás), recibos, certificados de garantia
mica com seu trabalho artístico e res- timos anos, então são coisas indissoci- de todos os eletrodomésticos que teve
salta que uma coisa alimenta a outra. áveis”, pondera. Como professora, po- na vida, todos os impostos de renda,
“Me instiga muito essa conexão entre rém, ela acredita que o desafio é não registros com a contabilidade diária
a universidade e a arte”, pontua, refle- deixar que a obra tome conta do do- dos gastos da família desde a década
xão que contrasta com a ideia de que cente, “é preciso pensar além do pró- de 1970”, lista a artista, que lembra que
a pesquisa poderia frear ou impactar prio trabalho, você precisa ser maior Rolf tinha uma kombi cheia de coi-
negativamente em sua produção. “Sou do que ele”. sas armazenadas e um banheiro inu-
muita grata ao ambiente acadêmico. A tilizado por conta da quantidade de
universidade me constitui como pes- PEQUENOS IMPÉRIOS material.
soa. Fui uma aluna feliz, agradeço aos Em 2011, com a morte de seu pai, Rolf A solução encontrada por ela para
meus professores e meus alunos hoje Manfred Danziger, a artista plástica se “processar” tanta coisa se transformou
são muito importantes, as trocas com deparou com a missão de esvaziar o em diversas obras, inclusive Pequenos
eles são fundamentais”, destaca. apartamento onde ele morava, o que Impérios: “Criei um ritual e fiz cate-
Há quase vinte anos como professo- envolvia revirar e vasculhar incontá- gorias com carimbos, com frases, e aí
ra em uma universidade pública, Leila veis materiais de arquivo que vinham carimbava e fotografava essas seleções,

Memórias | Cadernos Sesc de Cidadania | 23


perfil

“Eu posso ler um documento hoje de forma


completamente diferente de como eu leria dez
anos atrás ou daqui a outros dez. A questão
é como ler, e isso é o que me interessa”

mas esse trabalho é uma pontinha de 2014 no Museu de Arte do Rio (MAR),
um iceberg imenso, e esse fundo de reunindo pranchas com livros e docu-
arquivo hoje orienta meu trabalho mentos costurados, além de uma es-
todo, o que eu digo ou não digo”. À tante de madeira com documentos e
semelhança da catalogação fantasio- outras obras.
sa de Jorge Luís Borges em seu conto Para a artista plástica, ainda que os
“O idioma analítico de John Wilkins”, documentos existam, eles precisam
em que o autor argentino organiza sua ser lidos no presente a partir de uma
lista de classificação de animais a par- demanda atual. “Eu posso ler um do-
tir de uma “certa enciclopédia chine- cumento hoje de forma completamen-
sa”, a artista encontrou no acervo do te diferente de como eu leria dez anos
pai o que ela chama de micro-história: atrás ou daqui a outros dez”, explica.
um apanhado que a partir do universo “A questão é como ler, e isso é o que
familiar é capaz de orientar pesquisas me interessa: ler no visível e no dis-
e eixos de trabalho dentro do que ela cursivo.” Nesse sentido, Leila pontua
chama de grande história. que nem tudo é legível o tempo todo,
Pequenos Impérios, na realidade, “depende da conjuntura, de uma au-
nunca chegou a ir para uma exposi- sência do presente, e é isso o que muda
ção. No catálogo de Edifício Líbano, no o trabalho”.
entanto, uma de suas obras de grande
destaque que veio a público em 2012, INCERTEZAS
na Galeria de Arte IBEU, em Copaca- A família de Leila veio ao Brasil em de-
bana, Leila Danziger optou por colo- zembro de 1935, pouco tempo depois
car as imagens dos arquivos organiza- da introdução no Estado alemão das
dos como parte da série. “Eu guardei Leis de Nuremberg, em setembro da-
muita coisa, mas me arrependo de não quele ano. Com as leis antissemitas, os
ter guardado tudo”, lamenta a artista, judeus tiveram seus direitos de cida-
que precisou se livrar de uma fração dania limitados. “Meu pai havia perdi-
do material por uma questão de espa- do o direito de estudar no ginásio pú-
ço, já que iria se mudar para o mesmo blico em que estava matriculado, meu
apartamento onde tudo se encontra- avô perdeu o comércio que tinha, eu
va. Em outras palavras, era impossí- nunca soube exatamente do que era”.
vel que ela e o legado arquivístico do Leila tem consciência de que a Se-
pai habitassem o mesmo espaço sem gunda Guerra é um tema delicado, e
que algumas escolhas fossem feitas. que justamente por isso é preciso cau-
Leila também guarda os livros que tela na discussão sobre as memórias e
seus avós trouxeram da Alemanha, os temores que surgem de um marco
compilação que depois se transfor- tão tenebroso na história recente da
mou em Bildung, trabalho exposto em humanidade. “Nos anos 1980, houve

24 | Cadernos Sesc de Cidadania | Memórias


diários públicos
Produzida ao longo de vários anos, desde 2001, a série é composta
de páginas de jornal submetidas a um apagamento seletivo,
pintadas e carimbadas com frases poéticas. Retrata “nossas
pequenas e grandes catástrofes de cada dia: a solidão extrema, a
vida nua, o estado de bando”, como descreveu a própria artista
uma onda muito assustadora de revi-
sionismo, que foi combatida com ve-
emência na época, e achei que isso
tinha sido desqualificado, interrom-
pido”, diz. A partir do Holocausto ela
diz ter aprendido a se identificar com
a exclusão do outro, com a violência da
separação e com os estados de exceção
– por isso, pondera que é preciso es-
tar atento aos usos políticos que se faz
da memória. “É preciso buscar eman-
cipação num sentido de igualdade, de
amenizar sofrimentos. A memória ser-
ve a um projeto de poder ou a proje-
tos emancipatórios? É esse questiona-
mento que precisa ser feito”, afirma.
“Eu me pergunto muito qual é o
teor emancipatório dos trabalhos. Na
arte, é isso que a gente faz, a gente
constrói narrativas. Mas a questão é
qual é o viés ético, a postura ética, que
conduz esse trabalho e essas narrati-
vas que vão surgir. Qual o interesse,
de que lado eu me coloco, com quem
eu faço alianças”, completa. A ela, in-
teressa pensar nos documentos que
esperam o momento de serem lidos,
e sobretudo “estar do lado dos excluí-
dos, de quem está à margem”.
Para a artista plástica, há no ar um
dever de memória que é muitas ve-
zes vazio. “É preciso existir conteú-
do histórico, saber mais sobre o que
queremos lembrar, ler documentos,
conhecer detalhes concretos”, defen-
de. “No Brasil, a história da escravidão
só tem sido enfrentada recentemente.
No caso da ditadura, é o terror com-
pleto. Há dois anos, quando se elo-
giou [o coronel Carlos Brilhante] Us-
tra publicamente durante o processo
de impeachment da [ex-presidente]
Dilma Rousseff, aquilo nunca deveria
ter sido admitido”, critica. Para ela, o
incêndio do Museu Nacional, ocorri-
do no Rio em 2018, também é um pe-
sadelo absoluto. “A gente fica falan-
do de memória por anos e parece que
tudo pode virar poeira, ou ser desdi-
to por um tuíte. Mas não tem proble-
ma, vamos em frente. Vamos continu-
ar falando.” ⌺

Memórias | Cadernos Sesc de Cidadania | 25


depoimentos

memória
um ato de resistência
entrevistas: João Paulo Guadanucci e Gabriel Vituri

“A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar


identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das ativi-
dades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na
febre e na angústia.” Essas palavras, de Jacques Le Goff, célebre
historiador francês, parecem ecoar sob a superfície dos depoi-
mentos das páginas a seguir. Nelas, cinco representantes da so-
ciedade civil tecem relatos impregnados da consciência do valor
da memória como forma de (re)conhecimento de um lugar no
mundo e também de resistência à opressão. Afinal, “a memória
coletiva é não somente uma conquista, é também um instru-
mento e um objeto de poder”.

26 | Cadernos Sesc de Cidadania | Memórias


“Eu tinha problemas de autoestima seríssimos: alisava o cabelo, pensava
que as meninas não queriam saber de mim. Aí comecei a circular
pela região central da cidade e encontrei um universo novo.”

Foto: Gabriel Vituri


descobri minHA identidAde étnico-rAciAl nos bAiles
black dos anos 1970. Até 1977, recém formado pelo Senai,
quando fui trabalhar numa loja de plástico industrial,
eu tinha problemas de autoestima seríssimos: alisava o
cabelo, pensava que as meninas não queriam saber de
mim. Aí, por causa do trabalho, comecei a circular pela
região central da cidade e encontrei um universo novo.
Eu ingressei no movimento negro pelo caminho da
literatura. Publiquei no Cadernos Negros [publicação
literária criada em 1978 e que desde então vem sendo
lançada anualmente pelo grupo Quilombhoje] um
conto ambientado na Vila Itororó, onde morava
uma namorada, e mais tarde processei a experiência
daquele lugar. Talvez por essa razão eu tenha criado
uma certa obsessão por estudar a região do Piques
[o termo, que também dá nome ao obelisco erguido
no Largo da Memória, caracteriza o local cheio de
escadas e ladeiras na região do Anhangabaú, bem como
outros espaços próximos, como o Terminal Bandeira].
É assim que nasce essa identidade: eu, São Paulo, o
patrimônio negro da cidade, somos todos uma coisa só.
A primeira coisa que me chamou a atenção no

Abílio Piques foi o painel de azulejo do José Wasth Rodrigues,


que retrata a tropa, o fazendeiro, o guarda imperial, o

Ferreira
escravocrata, toda uma cena, e duas negras pegando água
em um chafariz. Ali estão as classes que compunham
a sociedade naquele momento. Com o tempo fui
escritor e entendendo o significado, especialmente quando
conheci o Tebas [importante arquiteto do século 18,
jornalista responsável por construções como a torre da primeira
Catedral da Sé, e que foi escravizado até os 57 anos], seu
Chafariz da Misericórdia, e a importância dos negros
escravizados que iam apanhar água para abastecer
a cidade. Isso coloca o sujeito negro no processo de
formação do espaço urbano, como protagonista.
Acho que há uma geração nova propensa a continuar
essa luta de reconhecimento, mas talvez a gente precise
construir mais isso. Nós fomos muito envolvidos pelo
espírito neoliberal, especialmente quem nasceu nos
anos 1980. Mesmo os mais antigos, se não ficarmos
alertas, somos levados por esse fluxo. O inimigo é a
velocidade, essa fragmentação, que não permite que
a gente olhe para a gente mesmo, para a cidade, e
isso dificulta a conexão entre um tempo e outro.

MeMórias | Cadernos sesC de Cidadania | 27


depoimentos

“Até hoje as pessoas me fazem perguntas como se a única palavra que


existisse no Afeganistão, no Irã, fosse ‘guerra’. Pensam que nós não temos
paredes por lá. Às vezes perguntam ‘vocês têm pão, refrigerante?’.”

Foto: Gabriel Vituri


quAndo nós tiVemos que ir emborA, Antes de ApArecer
a oportunidade de pedir refúgio ao Brasil, nós tínhamos
outros quatro países em vista: Estados Unidos, Inglaterra,
Canadá e Austrália. Eu nunca imaginei que estaria neste
lugar. Geralmente, havia pouca informação sobre como
as coisas eram, e o que nós líamos nos livros dizia que
era um país cheio de florestas, jacarés e anacondas. Por
isso, quando recebi uma resposta positiva do embaixador
na Turquia dizendo que poderíamos nos mudar para
cá, vou falar a verdade: fiquei com muito medo.
Chegando aqui, essa imagem rapidamente mudou.
Precisamos de uns meses para descobrir as coisas e as
pessoas, fizemos algumas amizades, então aquela ideia
que tínhamos se apagou. Por outro lado, até hoje as
pessoas me fazem perguntas como se a única palavra que
existisse no Afeganistão, no Irã, fosse “guerra”. Pensam
que nós não temos paredes por lá. Às vezes perguntam
“vocês têm pão, refrigerante?”. Uma vez queriam saber
se eu levava uma bomba na mochila. Fico um pouco
triste, penso se eles não têm razão para perguntar,
e preciso explicar que nem todo mundo é assim.
Eu estava na faculdade de teatro e cinema, no Irã,

Wakilahmad em Teerã, e meu pai ficou doente. “Filho, não quer


trocar para medicina pra ajudar o povo?”, sugeriu.

Tajik
Eu fiz uma prova para ganhar bolsa, ganhei 100%
para estudar por cinco anos. Depois disso, você entra
no hospital e ganha um pouco pra pagar os cursos
médico afegão de especialização e os livros. Eu gostava de atuar e
dirigir, e também já cheguei a escrever peça e poesia,
coisa que tenho feito aqui no Brasil. Queria começar
a fazer em português, mas ainda preciso de tempo.
Por que uma pessoa deixa tudo pra trás, família,
amigos? Estudei medicina, me formei, tive clínicas,
funcionários, mas hoje não tenho mais nada de lá. Por
causa de uma situação que não é culpa minha, preciso
deixar o país. Eu vivi no meu país de origem até os
seis anos. Depois disso, sempre estive em situação de
refúgio. Estudei medicina no Irã e trabalhava com os
Médicos sem Fronteiras porque achava que o importante
era ajudar. Eu não tenho vergonha de falar que sou
refugiado, porque infelizmente há guerra no meu país
há mais de quarenta anos, e eu quero viver. Não acho
que a vida precise ser sempre boa, mas quero viver.

28 | Cadernos sesC de Cidadania | MeMórias


pArA o poVo GuArAni mbYA, ter nossAs memóriAs
registradas e guardadas é o que ajuda de fato a dar
continuidade para muitos saberes, ainda que eles
às vezes fiquem somente no campo da oralidade.
Aqui na Tenondé Porã, por exemplo, somos uma
comunidade com mais de 100 famílias e vivemos
por muitos anos numa área pequena. E aí, em 2016,
quando tivemos a demarcação da terra maior, de
forma mais justa, as pessoas, apesar de não terem
praticado por bastante tempo todos os seus saberes
sobre plantio, colheita, reconhecimentos das fases
da lua, melhor construção das casas e certos modos
de se relacionar com a natureza, tudo isso começou
a acontecer de novo de forma natural. Não foi
preciso estudar muito, não foi preciso fazer um
Foto: Renata Teixeira
curso de anos para aprender novamente, porque
mantivemos na memória como se dão essas práticas.
Há momentos em que isso é passado: em núcleos
familiares, dos mais velhos aos mais jovens; durante
uma visita; durante encontros em que se desenvolvem
conversas sobre a cultura Guarani; em reuniões com
pessoas de outras aldeias; ou também nos rituais.
Acho que esse é o ponto mais forte, quando fazemos
os batizados da erva mate, do milho, e aí todo mundo
vai para a casa de reza, onde fazemos as danças, as
cantorias, porque há muito tempo para conversarmos.
Esse ritual acontece em uma casa que chamamos
de opy’i, o espaço mais importante para o povo
Guarani em todas as aldeias. Ali acontece a
transmissão, o compartilhamento de saberes.
Hoje vivemos em uma área com quase 3.000 pessoas,
e há poucas delas que são mais velhas, como a Brandina,
que já passou dos cem anos e é uma senhora muito
linda e charmosa, equilibrada em seu corpo físico, que é
capaz de sentar de cócoras com o milho no fogo e depois
come o alimento pronto com seus próprios dentes.
Quanto antes a gente conseguir colocar no papel
os ensinamentos dessas gerações, melhor. Para fazer

Jerá parte desse registro de memórias antigas nos utilizamos


de algumas tecnologias, porque fica mais rápido, e

Guarani
toda vez que perdemos alguém, é uma imensidão de
saberes que também se vai. Seguimos uma conduta
aqui de tentar guardar mais, para que talvez outras
uma das lideranças na gerações consigam aprender coisas que ficaram
gravadas. A tecnologia não supera a capacidade humana
aldeia Tenondé Porã de guardar tanta coisa bonita, mas pode ajudar.

“Toda vez que perdemos alguém, é uma imensidão de saberes


que também se vai. A tecnologia não supera a capacidade
humana de guardar tanta coisa bonita, mas pode ajudar.”

MeMórias | Cadernos sesC de Cidadania | 29


depoimentos

Foto: Acervo/Museu da Pessoa


A minHA HistóriA é iGuAl À de região em uma área de segurança
outros cAiçArAs que moram nacional. Era outra pressão:
na região de São Paulo, Rio Exército, Marinha, empresas,
de Janeiro e Paraná. Uma das virou um inferno, abriram estrada
lutas que todos enfrentaram, dentro das terras, fizeram um
e ainda enfrentam, é contra estardalhaço. Depois vieram os
a especulação imobiliária. O ambientalistas: tiravam fotos
primeiro impacto que chegou em com as comunidades, faziam
nossas comunidades veio disso. pressão contra a usina, contra
Os caras vinham de fora, traziam a especulação, e queriam
búfalos, jagunços, e pressionavam transformar o espaço em um
a sair correndo dali. Hoje a gente santuário ecológico. Quando você
sabe que todas as comunidades fala em santuário, a comunidade
tradicionais do Brasil enfrentaram gosta, pensamos que ia ser
essa briga por território. bom. Acolhemos. Em 1986, foi
Lembro do meu pai contando criada a Estação Ecológica de
que, na década de 1930, aqui Jureia-Itatins. Criaram as leis,
na Jureia, chegaram pessoas na mas todo mundo sumiu.
casa da minha avó Joana dizendo Com isso, começamos
que ela precisava vender a terra a receber polícia florestal,
dela. Delegado, dono de cartório, ambiental, tiravam nossas
diziam que era para sair, porque armadilhas de pesca, nossas

Dauro era um espaço muito grande,


diziam que ela não iria conseguir
canoas, não podíamos fazer
mais nada, porque era estação

Marcos
pagar os impostos, que outras ecológica. Nós nunca destruímos,
pessoas invadiriam, então era estávamos há oito gerações no
melhor vender e ganhar um lugar, e aí queriam nos proibir de

do Prado dinheiro, comprar uma casa boa,


um monte de coisas. Ela acabou
fazer a roça, de pescar, de limpar
trilha e reformar as casas. Tivemos
cedendo. Assinou uma papelada que nos organizar de novo.
caiçara, educador e um com o dono do cartório. Quer De lá pra cá, entrei com
dos criadores da União dizer, colocou o dedo no papel, mais força nesse movimento
porque era analfabeta, não sabia pra que a gente garantisse a
dos Moradores da Jureia assinar. Disseram que iriam até permanência das comunidades.
a cidade buscar o dinheiro para Criamos a União dos Moradores
pagá-la, e nunca trouxeram nada da Jureia, em 1989, e em 1993
de volta. Isso foi se repetindo criamos a Associação dos Jovens
depois ao longo dos anos. da Jureia. Enquanto a União
Dizem que existia um homem trabalhava a questão política, os
que andava a cavalo, armado, jovens trabalhavam a questão
pressionando os moradores, da cultura, dos conhecimentos
queimando casas, e as pessoas tradicionais, os festejos, o
acabavam assustadas e iam fandango, as plantas medicinais.
embora. Nasci em 1964, e na Uma comunidade que não
década de 1980 presenciei a tem terra é uma comunidade
chegada de uma empresa que sem identidade, sem cultura. É
queria construir uma cidade, ali que ela consegue passar as
condomínio fechado, e aí tradições e os conhecimentos
começou a pressão. Tivemos que adiante. A luta pelo território é
nos organizar politicamente. importante. As pessoas de fora
Em seguida apareceu a ideia não tem que fazer pra gente, elas
de construir uma usina nuclear, têm é que fazer com a gente.
e a especulação transformou a

30 | Cadernos sesC de Cidadania | MeMórias


Foto: Sesc São Paulo
sou psicóloGo, me Formei em curitibA e, enquAnto
ativista e militante, não comecei no movimento
LGBT, e sim no movimento estudantil. Estar na
universidade me deu bastante noção sobre direitos
humanos, sobre política. Muito antes do meu ativismo
eu já era participante da cultura LGBT. Desde a minha
adolescência eu ia aos shows de drags, aos bares
gays, então a questão da convivência e do consumo
dessa cultura para mim era superimportante – a
questão de se reconhecer enquanto comunidade.
Eu colecionava muitas coisas, isso vem muito
da minha paixão pelas produções culturais LGBTs.
Tinha uma coleção considerável de G Magazines
[revista direcionada ao público gay], de revistas, de
livros. Era algo do meu cotidiano, de diversão, de
identidade, de lazer, dos espaços e das comunidades,
das minhas parcerias, de amigos e amigas, da produção
literária que também me instigava. Então era isso que
perpassava o meu começo, uma ideia de colecionador,
de guardar coisas que eu encontrava e ia guardando.
Em 2010 conheci meu ex-marido, o Felipe, e aí
nesse encontro começamos a estruturar o que depois

Remom viria a ser o Acervo Bajubá. A partir dessa paixão,


começamos a juntar o que ele tinha da área acadêmica,

Matheus
de uma reflexão mais teórica, junto com a coleção que
eu acumulava. Acho que a estruturação do projeto do
acervo em si acabou aparecendo quando a gente ao acaso

Bortolozzi encontrou em um antiquário uma obra bem particular


e importante tanto para a nossa história quanto para
a história do projeto. É um quadro em nanquim do
membro do Darcy Penteado, em que uma mulher faz sexo oral em
Acervo Bajubá outra, e no canto da tela tinha uma breve anotação
que dizia: ilustração 4 da obra “Eu sou uma lésbica”.
Além da literatura e da história da arte transformista
brasileira, outra frente de pesquisa do acervo é a
história do movimento homossexual brasileiro e suas
proximidades e tensões com o movimento de esquerda.
Fora isso, também investigamos a história, via memória
LGBT, sobre a epidemia de HIV/Aids no Brasil.
De maneira geral, o Acervo é um projeto para
englobar pessoas, visando a defesa, a promoção e a
difusão da cultura, do patrimônio histórico artístico
dessa comunidade de LGBTSs brasileiros. É salvaguardar
e principalmente difundir e promover memórias com
o intuito justamente de relembrar essa história: que
seja potência pra gente relembrar no cotidiano.

“A questão da convivência e do consumo da cultura LGBT para mim era


superimportante – a questão de se reconhecer enquanto comunidade”

MeMórias | Cadernos sesC de Cidadania | 31


entrevista
ANA MARIA CAMARGO, HISTORIADORA E PROFESSORA DA USP

“Os centros de
memória são
instrumentos
de ação”
Para especialista, o objetivo
final de um centro de memória
deveria ser subsidiar decisões
e lastrear a execução das ações
sob sua responsabilidade

entrevista: Carla Lira, Gabriel Vituri,


João Paulo Guadanucci e Marta Raquel Colabone
fotos: Dani Sandrini

32 | Cadernos Sesc de Cidadania | Memórias


Como assim? De que maneira se forma (ou deveria
O arquivo, dentre todas essas ins- se formar) um centro de memória?
A historiadora e professora da Univer- tituições, é a que tem menos visibili- O centro de memória seria um ar-
sidade de São Paulo Ana Maria Camar- dade, porque é associada a algo velho, quivo alargado, um arquivo que com-
go, filha de pai bibliófilo e colecio- inservível, lúgubre, reduto da buro- porta não só o material que a institui-
nador de livros e periódicos antigos, cracia. Temos uma ideia muito nega- ção naturalmente produz e acumula
dedicou a vida a estudar a questão dos tiva do arquivo. Por outro lado, um ao longo das suas atividades, mas tam-
arquivos e centros de memória. centro de memória que não contenha bém aquele do qual ela se apropria
Hoje, diz, já triplicou o acervo her- ou abranja o arquivo não passa de algo para se desenvolver e cumprir sua
dado do pai, além de ter colecionado supérfluo e de vida efêmera. Dentro missão. É preciso haver uma série de
documentos que, adquiridos nas fei- de uma instituição, quando se quer informações disponíveis, preparadas
ras de antiguidades, servem para ilus- fazer cortes para economizar recur- para uso imediato, e não apenas aque-
trar suas aulas. “Acabei reunindo uma sos, a primeira coisa que cai é o cen- las originárias de suas atividades pre-
vasta documentação representativa tro de memória. Procuramos retratar cedentes. O centro de memória deve
das atividades rotineiras de pessoas esse fenômeno no livro, sobretudo a agregar, além do arquivo, documentos
das mais diversas condições sociais. partir da experiência de Silvana Gou- que lhe são complementares, e que
Pessoas comuns...”, revela. lart, que acompanhou em várias enti- muitas vezes são produzidos por ini-
Nesta entrevista, a professora dis- dades a criação e o desmantelamento ciativa do próprio centro. Um exem-
corre sobre o que são e para que ser- de centros de memória, quase todos plo disso seriam as entrevistas que o
vem os centros de memória na con- associados à área de marketing. Nas Sesc fez com participantes de ativida-
temporaneidade e lamenta o fato de entidades privadas, principalmente, des e eventos antigos, que não fica-
muitas instituições ainda terem uma o centro se torna lugar para uma pe- ram devidamente registrados nos do-
compreensão limitada da importân- quena exposição, um pequeno museu, cumentos rotineiros. Não tendo sido
cia desses espaços. um espaço onde ficam os papéis e os produzidas ao longo das práticas ad-
objetos que serão depois transforma- ministrativas da instituição, o que não
O que caracteriza um centro de me- dos em livro institucional. Subordi- lhes confere o caráter de documen-
mória e o diferencia dos arquivos, nado ao setor de comunicação e com tos de arquivo, tais entrevistas aca-
museus, bibliotecas e outros acervos? funções predominantemente orna- bam assumindo estatuto documen-
O nome “centro de memória” é mentais, o centro de memória não é tal por força desse gesto de atribuição
uma peculiaridade nossa, do Brasil. capaz de subsidiar as decisões do or- de sentido que os centros de memória
Basta pesquisar na literatura de outros ganismo como um todo, seja ele pú- podem realizar. Em resumo, o centro
países, e não se vai encontrar essa ex- blico ou privado, nem de servir de las- de memória abrigaria todo e qualquer
pressão para designar um arquivo ou tro para as atividades que desenvolve. suporte de informação que possa ser
um centro de documentação. Se eu útil ao organismo onde está instala-
fosse comparar o centro de memó- do, qualquer que seja seu formato, sua
ria com as instituições mais conven- linguagem, sua procedência.
cionais de custódia de documentos,
como museus, bibliotecas e arquivos, As coisas vão ganhando sentido, então.
eu o aproximaria da ideia de “arqui- Sim, e podemos fazer vários tipos
vo”, e vou justificar: acho que um cen- de comparações. Em uma fábrica de
tro de memória é (ou deveria ser) um caminhões, por exemplo, o arquivo
arquivo ampliado. No livro que escre- contém projetos, gráficos, notas de
vemos [“Centros de memória: uma
  Quanto maior for compra, contratos de prestação de
proposta de definição”, edições Sesc, o grau de intervenção serviços e outros tantos documen-
2015], Silvana Goulart e eu partimos de uma instituição tos. O caminhão, produto final da fá-
da ideia de que “centro de memória” no meio em que atua, brica, não é colocado no arquivo, pois
é um novo nome pra designar velhas nasceu para sair da empresa. Se tomo
práticas que, por sua natureza, foram
maior a importância por referência uma fábrica de pregos,
assumindo um caráter pejorativo, ou de seu arquivo, de seu é possível que, por suas dimensões
de menor importância. centro de memória  diminutas, o arquivo abrigue uma

Memórias | Cadernos Sesc de Cidadania | 33


entrevista

amostra desses produtos, que tam- outros setores. Essa a razão pela qual os remanescentes mais antigos da in-
bém nasceram para sair da empre- os franceses comparam os serviços li- venção da escrita são exemplos típicos
sa. Nesse caso, os pregos assumem gados à documentação com ativida- do ato de representar ações e dotá-las
o estatuto de documentos pelo ges- des “ménagères”, similares às tarefas de efeito probatório e duradouro. Se
to de atribuição de sentido que sem- domésticas, que só aparecem quando observarmos bem, os documentos de
pre podemos empreender nos centros não funcionam. O clássico exemplo arquivo equivalem às ações que via-
de memória. Como o livro procurou do trabalho da dona de casa, que cos- bilizam, ao mesmo tempo que lhes
demonstrar, os centros de memória tuma ser percebido apenas quando a servem de prova. Os arquivos nun-
seriam o amálgama das funções tra- comida não aparece na mesa no ho- ca são uma finalidade para as insti-
dicionalmente exercidas por biblio- rário de costume, caberia como uma tuições que os acumulam, mas meios
tecários, museólogos, arquivistas e luva para o arquivo e seus congêne- pelos quais essas instituições assegu-
historiadores, adquirindo sempre a res... Pode parecer contraditório, mas ram sua continuidade.
fisionomia das instituições em que a importância dos centros de memó-
estão inseridos. ria está na sua instrumentalidade, ca- A discussão dos centros de memória
racterística que, ao mesmo tempo, os na atualidade tem um caráter mui-
E como essas instituições se diferen- torna invisíveis. to diferente do que tinha no passado?
ciam entre si? O fato de termos entendido o cen-
Quanto maior for o grau de inter- Como definiríamos essa instru- tro de memória como um arquivo
venção de uma instituição no meio mentalidade? ampliado, como um lugar que pode
em que atua, maior a importância de A instrumentalidade é algo que reunir tudo aquilo que é estratégi-
seu arquivo, de seu centro de memó- está no cerne do documento de ar- co para a instituição, faz com que ele
ria. É o que ocorre com as prefeitu- quivo. É o traço que o distingue e que seja concebido de forma bem flexí-
ras, com os tribunais e tantas outras dá sentido aos conceitos e princípios vel. Não podemos afirmar que existe
entidades que atendem a uma deman- da ciência que o tem por objeto. É por um modelo perfeito de centro de me-
da social ampla. A importância dos meio do documento de arquivo que, mória, mas há estudos que vêm sen-
documentos reunidos em seus acer- nas sociedades complexas, certas ati- do feitos em vários lugares para criar
vos nada tem a ver com o fato de se- vidades são viabilizadas e, a posteriori, esse armazém de documentos, infor-
rem órgãos oficiais ou de represen- comprovadas. Os estudiosos do apa- mações e dados e torná-lo operacio-
tarem o poder público, e sim com o recimento da escrita vinculam seu nal. O advento das novas tecnologias
largo espectro de sua atuação na so- nascimento à necessidade de consig- teve um efeito intrigante no âmbito
ciedade. Não é à toa que constituem nar compromissos e direitos. Ou seja: das organizações: tornar imperceptí-
fonte de primeira ordem para a pes- vel a descontinuidade entre a ação e
quisa histórica. o documento que lhe serve de veícu-
lo, fazendo com que muitos autores,
Qual o potencial de um centro de como apontamos no livro, postulem
memória? a necessidade de materializar (conver-
O centro de memória deve ser tendo-os em documentos) os proce-
um órgão que torna disponíveis, e de dimentos rotineiros e voláteis da ins-
modo imediato, as informações ne- tituição, garantindo sua mobilização.
cessárias para o funcionamento da
instituição, sejam elas retiradas do O que seria essa mobilização?
arquivo administrativo, do noticiário Seria, basicamente, a capacida-
de imprensa, de livros e artigos publi-   O documento de de de extrair da documentação ele-
cados ou dos depoimentos de antigos mentos específicos, pontuais, e ou-
funcionários. Na condição de meca-
arquivo é, por excelência, tros mais genéricos, indicadores de
nismos de retaguarda, os centros de a representação de tendências. Gosto de fazer um recuo
memória não desfrutam de grande vi- uma ação. As tábuas de no tempo e evocar o modo como no
sibilidade. Não se trata de má compre- argila da Mesopotâmia Brasil das capitanias e províncias os
ensão de suas finalidades, ou de fal- arquivos governamentais acumula-
ta de marketing. É que eles são peças
foram espalhadas pelos vam documentos que, em intervalos
instrumentais e de inegável impor- museus, mas eram livros mais ou menos regulares, eram exa-
tância, mas sem o protagonismo de de contabilidade   minados, sistematizados e submetidos

34 | Cadernos Sesc de Cidadania | Memórias


  Pode parecer contraditório, mas a
importância dos centros de memória está na
sua instrumentalidade, característica que,
ao mesmo tempo, os torna invisíveis

  Eu tinha a ideia de fazer uma documentação selvagem. É mais fácil digitalizar tudo,
das pessoas comuns, porque você encontra por mais caro que seja esse proces-
isso sobre grandes ícones, mas não existe uma so, do que criar metadados pertinen-
tes para a documentação sob custó-
documentação doméstica, do comum dia de um centro de memória. Como
os arquivos públicos não têm investi-
do em instrumentos de pesquisa que
apontem para o potencial informati-
vo das séries ali conservadas, optan-
do por apresentá-las em quilométri-
cas relações de imagens digitais, resta
saber se têm de fato alimentado traba-
lhos acadêmicos novos... Acho difícil.

Mudando de assunto, essa sua relação


com os arquivos e as memórias tam-
bém passa por uma esfera pessoal?
Bem, meu pai era um bibliófilo, e
eu sou herdeira de seu fascínio pelo
mundo dos livros, da história, da lite-
ratura, das coleções de revistas e jor-
nais antigos. Praticamente tripliquei
sua biblioteca. Meu interesse pelos ar-
quivos, em particular, me levou a fre-
quentar feirinhas como a do Bixiga,
onde aparecem documentos pessoais
em grande quantidade. Alguém mor-
re e no dia seguinte a família já põe à
venda seu diário íntimo, sua corres-
pondência, seus retratos e uma infi-
nidade de coisas. Eu compro quase
A historiadora Ana Maria Camargo observa painel que registra a expansão do Sesc no Estado tudo. Tenho até fornecedores fixos,
que sabem do que gosto e que procu-
ram não dispersar os conjuntos com
os quais pretendo recompor, na me-
a abordagem estatística. Para tanto permitiria contratar um especialista dida do possível, a organicidade do
costumava-se contratar determina- para dar conta dessa tarefa... que restou de uma vida. Tenho usa-
dos indivíduos, geralmente militares do esse material em minhas aulas,
(que conheciam matemática), para es- Nesse sentido, que desafios surgem mas a quantidade de documentos é
crever uma história daquela região de nesse panorama de hoje, mais rápido? tamanha e tão variada - incluindo ál-
uma perspectiva panorâmica. Não se Há varias pesquisas sobre o assun- buns de figurinhas, bilhetes de lote-
tratava da história diletante que co- to. O eixo de tudo é a construção de ria, apólices, livros do bebê, material
nhecemos, mas de uma função prag- uma base de dados poderosíssima, que de propaganda política, cadernos de
mática cuja principal justificativa era articule diferentes camadas de dados receitas e muitos outros itens - que
permitir que se pudesse “bem gover- e informações. É, sem dúvida, um preciso dar um destino melhor para
nar” aquela área. Nos centros de me- trabalho dos mais sofisticados, a exi- eles. Penso que poderiam constituir
mória também é necessário, em es- gir o concurso de especialistas de vá- o embrião de um núcleo devotado à
paços de tempo cada vez mais curtos, rias áreas. A maioria das instituições, vida das pessoas comuns, na contra-
sistematizar informações, torná-las no entanto, escolhe o caminho mais mão das políticas que miram os íco-
inteligíveis e apresentá-las de forma curto para disponibilizar, para usuá- nes da política, da ciência, da litera-
projetiva, apontando tendências. Só rios internos e externos, os documen- tura ou da arte. Não sei o que fazer,
que a velocidade do mundo, hoje, não tos de seus acervos: o da digitalização mas aceito sugestões... ⌺

Memórias | Cadernos Sesc de Cidadania | 35


artigo

Memória Social em fragmentos: o poder


das encruzilhadas e a museologia em ação
Mario de Souza Chagas*
ilustração: Patricia Brandstatter

Somos a memória que temos e a responsabilidade Aqui o crucial é compreendido como


uma referência à cruz e à encruzilhada
que assumimos. Sem memória não existimos, sem
da memória, por onde passam diversas
responsabilidade talvez não mereçamos existir. linhas conceituais e práticas.
José Saramago A imagem da página 39,
lembrando a íris do olho humano
e a escultura de Marcel Duchamp,
I parte da crucialidade do conceito
A deusa da memória, aquela que de memória e chega à compreensão
tem o poder de produzir e evitar o de sua complexidade e presença
esquecimento, é conhecida na mitologia multifacetada no mundo (in-mundo).
grega como Mnemosine. A existência
da deusa confirma-se na relação com o II
outro, com seus pais (Urano e Gaia), com Pela encruzilhada da memória
suas cinco irmãs (Teia, Reia, Têmis, Febe e passam a memória e o esquecimento,
Tétis), com seu sobrinho e amante (Zeus), é impossível separá-los. Onde há
com suas nove filhas (Musas) e com os memória, há esquecimento. Toda
seres mortais que a cultuam e cantam. e qualquer política de memória, é
Na atualidade, a memória, do política de esquecimento. Passam
ponto de vista das ciências humanas pelo mesmo caminho o coletivo e o
e sociais, é tratada como um conceito individual. Há uma dimensão coletiva
ou uma prática social impregnados de da memória, assim como uma dimensão
afetividades e subjetividades e que, por individual. Além disso, mesmo que
isso mesmo, existem em relação. Eis um a memória seja social, é o indivíduo
bom ponto de partida: a memória e o quem lembra. Pela encruzilhada da
esquecimento não existem por si, ambos memória passam a identidade e a
existem em relação; no entanto, sem diferença, a permanência e a mudança.
eles não há existência humana possível. Os processos identitários implicam
Inspirado em conferência ministrada prática que leve em conta as diferenças;
pela professora Margarida de Souza Neves assim como a percepção da mudança
quero sugerir que a primeira frase do depende da noção de permanência.
primeiro verbete do primeiro volume Se tudo fosse apenas mudança e se
da Enciclopédia Einaudi, publicada tudo mudasse ao mesmo tempo e na
*Poeta, museólogo, em Portugal, na cidade do Porto, em mesma direção não haveria sequer
doutor em Ciências
Sociais pela UERJ e
1985, seja considerada como uma condições de se perceber a mudança.
um dos responsáveis chave especial. O verbete denomina-se A preservação e a deterioração
pela Política “Memória” e foi escrito por Jacques também passam pela encruzilhada
Nacional de Museus.
É diretor do Museu Le Goff. A frase diz o seguinte: “O da memória. A preservação está
da República. conceito de memória é crucial”. para a memória assim como a

36 | Cadernos Sesc de Cidadania | Memórias


deterioração para o esquecimento. III
Deterioração e esquecimento fazem A percepção do novo e do velho passa
parte da dinâmica da vida social. pela memória. Um objeto musealizado,
Síntese: toda e qualquer política de como uma espevitadeira, por exemplo,
preservação leva em si o seu oposto. mesmo tendo mais de cem anos poderá
A crucialidade da memória permite ser absolutamente novo para quem
a compreensão de que por ela também não o conhece e poderá ser fonte de
passam a liberdade e a tirania, o poder e inspiração. Além de tudo isso, ainda
a resistência. A memória não tem valor passa pela encruzilhada da memória a
em si, não é positiva ou negativa, não revolução e a conservação. A memória
expressa verdade ou mentira e, por isso pode ser conservadora, mas também
mesmo, tanto pode servir à libertação pode ser revolucionária. Uma saturação
quanto à tirania; tanto pode estar ao de memórias, informações, técnicas,
serviço do poder repressivo do estado tecnologias, conhecimentos e acessos;
quanto a favor da sociedade e do poder associada à experiências repressivas,
criativo de indivíduos e coletivos. abusivas, exploradoras e desrespeitosas,
É possível também falar em por exemplo, pode provocar uma
memória voluntária e involuntária, em explosão libertadora. Memória, tensão,
memória fixa e em memória volátil, crise, explosão. A favor desse argumento
em memória do corpo e em memória apresenta-se a reflexão de Jacques Le
da alma, em memória afetiva e em Goff que finaliza o verbete citado: “A
memória cognitiva, tudo isso aponta memória até então acumulada vai
para a crucialidade da memória. explodir na Revolução de 1789: não terá
O conceito de memória é mesmo sido ela o seu grande detonador?”.
crucial. Por ele passam o tempo e
o espaço, o passado e o presente, o IV
presente e o futuro. Há uma memória A narrativa que aqui se oferece
do espaço, assim como uma memória movimenta-se na encruzilhada entre a
do tempo. Se por um lado habitamos criação e a resistência e tem a intenção de
o espaço, por outro, o espaço nos fortalecer o diálogo com e o exercício de
habita. Construímos memórias no uma nova imaginação poética (potência
tempo e o tempo constrói memórias de criação) e também política (potência
em nós. Por mais que a memória de resistência) em articulação com os
esteja fundeada no presente, não se movimentos sociais e com a afirmação da
pode negar a sua articulação com o arte, da filosofia e da ciência colocadas a
passado, nem o seu desejo de se projetar favor da celebração da potência da vida.
no amanhã, no futuro do agora.
Pela cruz e pela encruzilhada da
memória passam a memória e a história,
a repetição e a criação. A história é o
reino do desejo de precisão, ela quer
ser ciência, racional; a memória aceita
a aventura, o impressionismo, o voo
do impreciso. A repetição e a criação
dependem inteiramente da memória.
O conceito de memória é mesmo crucial. Por
Repetir pode ser criar e também
pode significar a impossibilidade da ele passam o tempo e o espaço, o passado e o
criação, tudo depende da consciência presente, o presente e o futuro. Há uma memória
da repetição e do que se pretende com do espaço, assim como uma memória do tempo
ela. A criação no campo da arte, da
magia, da ciência, da técnica e da política
depende inteiramente da memória.

Memórias | Cadernos Sesc de Cidadania | 37


artigo

V iniciativas de memória e museologia


“A memória é uma ilha de edição”. social no Brasil e no exterior.
Este verso-poema de Waly Salomão 2. Museu Vivo de São Bento
opera uma extraordinária síntese Lançado em 2007, no município de
e propicia a compreensão de que a Duque de Caxias, na baixada fluminense
memória é construção social e, como do Estado do Rio de Janeiro, o Museu
tal, é construtora de sociabilidades e Vivo de São Bento é uma experiência
subjetividades. Este poema também inovadora. Trata-se de um museu de
conduz ao rápido entendimento de que percurso, também reconhecido como
a memória não é total, ao contrário, museu de território e ecomuseu, cujo
é sempre seletiva e formada por projeto resultou do acúmulo de reflexões
fragmentos, vestígios, sobejos e retalhos e experiências desenvolvidas por um
com os quais se compõem narrativas coletivo de professores com forte atuação
épicas, líricas, trágicas, cômicas e na rede estadual e municipal de ensino
científicas. A memória inscrita no corpo e na militância do Sindicato Estadual
é uma ilha de edição e, por isso mesmo, de Profissionais da Educação (SEPE).
segue jogando o jogo de capturas e 3. Museu de Favela (MUF)
movimentos de fuga, de manipulações e Fundado em 2008 por moradores
emancipações, de tiranias e liberdades. das favelas Pavão, Pavãozinho e
O verso-poema iluminado pela luz Cantagalo, o MUF é uma organização
do cinema ilumina a compreensão: a não governamental, de caráter
memória está (ou pode estar) no campo comunitário, concebido como um
das relações e das lutas e está habilitada museu de território, ancorado na
para mobilizar afetos, representações, memória social e no patrimônio natural
direitos, devires e compromissos. e cultural, tangível e intangível. Os
20 mil moradores da comunidade,
VI incluindo modos de vida, narrativas,
A potência de criação e a potência criações artísticas, saberes e fazeres, bem
de resistência estão presentes em como o território de 12 hectares de área,
iniciativas de memória e museus sociais localizado nas encostas do Maciço do
que podem ser inspiradores. Apresento Cantagalo, entre os bairros de Ipanema,
de um modo muito breve quatro Copacabana e Lagoa, na zona sul da
iniciativas localizadas no Rio de Janeiro. cidade do Rio de Janeiro, constituem
1. Museu da Maré o lócus privilegiado do Museu.
Lançado em maio de 2006 é o 4. Museu das Remoções
primeiro museu instalado em uma Iniciativa desenvolvida por moradores,
favela da cidade do Rio de Janeiro apoiadores e amigos da Vila Autódromo,
e administrado pelos moradores e o Museu das Remoções foi lançado
ex-moradores da favela. O conjunto de no dia 18 de maio de 2016, quando
favelas da Maré situa-se na Zona Norte se comemorava o dia internacional
da cidade do Rio de Janeiro. Ali vivem de museus, com o tema “Museus e
mais de 130 mil pessoas, ocupando Paisagens Culturais”, sugerido pelo
uma extensão de 800 mil metros Conselho Internacional de Museus
quadrados, distribuídas em 16 favelas (ICOM). Situada na Barra da Tijuca, no
ou comunidades que guardam entre si município do Rio de Janeiro, a Vila
semelhanças e diferenças, pluralidades Autódromo era constituída de pelo
e singularidades históricas, geográficas, menos 600 famílias. O processo de
culturais, arquitetônicas, musicais e remoção foi perverso e muito violento.
mais. Seu projeto é inovador do ponto Em nome do grande capital e de um
de vista histórico, antropológico, megaevento de caráter mundial (as
educacional, artístico, museológico e Olimpíadas), a prefeitura da cidade do
tem servido de inspiração para outras Rio de Janeiro, atendendo aos interesses

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A memória está (ou pode estar) no campo das relações
e das lutas e está habilitada para mobilizar afetos,
representações, direitos, devires e compromissos

Memórias | Cadernos Sesc de Cidadania | 39


artigo

de poderosas empreiteiras, decidiu Casa Bumba Meu Boi - Raízes do Gericinó,


remover famílias que moravam na Vila o Museu de Artes Lúdicas e muitas outras.
Autódromo há mais de 50 anos e que
estavam com sua situação fundiária VIII
regulamentada. O processo de remoção Registre-se que as iniciativas
envolveu luta, sangue, disputa. Pelo apresentadas não pedem permissão
menos 580 famílias foram removidas. para ser museus; todas se assumem
Talvez a prefeitura não contasse com a e se afirmam como museus. Esses
resistência de 20 famílias que insistiam museus desenvolvem um conjunto
em dizer: “Nem todos têm um preço”. de práticas na primeira pessoa (do
Essas vinte famílias, com o auxílio de plural e do singular) e nos auxiliam
apoiadores e amigos, inventaram novas a valorizar a importância de uma
possibilidades de estar no mundo e museologia compreensiva e libertária.
venceram os Jogos Olímpicos. Foi neste Esses museus nos ajudam a perceber os
quadro que, entre janeiro e fevereiro de limites da museologia normativa que
2016, organizou-se um grupo visando à dá mais valor às regras e normas do
criação do Museu das Remoções, a partir que à própria dinâmica da vida. Esses
dos escombros das casas destruídas, dos museus são uma indicação clara de que
registros documentais e das memórias da a Museologia Social está em movimento
Vila Autódromo. O Museu das Remoções, e continua celebrando a potência de
criado por uma comunidade popular criação, a potência de resistência e a
que enfrentou o poder destruidor do potência da vida. Estamos diante de
poder público e descobriu na luta o seu museus que produzem novas linhas de
próprio poder, chamou para si a tarefa e ação e fazem rizoma com o mundo. São
a responsabilidade de contar a história museus que, com memória e criatividade,
das remoções a partir da perspectiva produzem transformações sociais e
dos afetados pelas políticas de remoções. fazem história; museus que exercitam
O lema do Museu: “Memória não novas imaginações políticas, poéticas
se remove”, passou a ser a chave de e museais e colaboram para a inovação
ações, projetos e encaminhamentos. e a invenção de conceitos e práticas.

VII IX
A minha sugestão é que essas As mudanças conceituais e teóricas
experiências não sejam tomadas como geradas no campo dos museus afetam
modelos e sim como inspirações. A e produzem transformações relevantes
seleção destas experiências tem um na museologia que, no entendimento
componente que não é desprezível. É aqui sustentado, está longe de ser
A museologia importante que o leitor compreenda ciência castiça e descomprometida
social ancora-se no que tenho uma relação de afeto político com a vida. Esta perspectiva coloca em
e de afeto poético com todas elas, xeque a orientação museológica que
desejo de prestar nesse sentido, minha narrativa está se considera isenta de ideologia e crê
serviços práticos contaminada de afetos. Muitas outras na possibilidade de uma museologia
à vida e, por isso, iniciativas de museus sociais e populares pura, higiênica, esterilizada.
está interessada com os quais também tenho relações de Por fim, cabe considerar que a
afeto poderiam ser incorporadas, mas, museologia social ancora-se no desejo
em inventar,
neste caso, os limites previstos para o de prestar serviços práticos à vida e,
imaginar, ver, texto seriam rompidos. Além das quatro por isso, está interessada em inventar,
rever e transver experiências museais seria possível imaginar, ver, rever e transver os museus
os museus citar, por exemplo, o Museu da Rocinha compreendendo-os como atos que afetam
Sankofa Memória e História, o Museu e potencializam a vida. A museologia
do Horto, o Memórias do Cerro Corá, o social implica um saber-fazer “in-mundo”
Ecomuseu Amigos do Rio Joana, o Museu contaminado de vida afetiva e social. ⌺

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A Reserva Natural Sesc Bertioga está inserida na área
urbana de Bertioga, com cerca de 600 mil m² de floresta de
restinga, abrigando mais de 650 espécies de fauna e flora.
Os visitantes são recebidos no ponto de atendimento por
educadores, onde são realizadas diversas ações e também
apresentadas pesquisas e projetos, entre eles a trilha com
desenho universal, acessível a pessoas com
e sem deficiência.
Com a Reserva o Sesc protege a biodiversidade, dialoga
com a comunidade e estimula a conexão da diversidade
humana com o ambiente natural.

Saiba mais em: sescsp.org.br/reservanatural

Memórias | Cadernos Sesc de Cidadania | 41


Sesc Memórias
O Centro de Memórias
do Sesc é responsável
pela guarda e difusão dos
documentos que revelam a
história da instituição e de
sua ação programática. O
acervo está disponível para
pesquisas presenciais.

Para agendar sua visita:


sescmemorias@sescsp.org.br
Para agendar sua visita: sescmemorias@sescsp.org.br

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Tel: (11) 3016-1655
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