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Memórias | 2019
sescsp.org.br
PATRIMÔNIO
COLONIAL
LATINO-
AMERICANO
Percival Tirapeli
CENTROS
DE MEMÓRIA
uma proposta de definição
Ana Maria Camargo
e Silvana Goulart
MEMÓRIA
DA AMNÉSIA
políticas do
esquecimento
Giselle Beiguelman
ENVOLVER-SE DE TEMPOS
Danilo Santos de Miranda
Diretor do Sesc São Paulo
A trajetória de uma instituição é condicionada por dois aspectos que, restrito a círculos especializados,
ao definirem sua identidade, orientam observou-se notável espalhamento.
tomadas de decisão face aos desafios de O dia a dia do Sesc está repleto
cada contexto: sua missão e seus valores. de iniciativas que colocam em
A missão estabelece o centro de gravidade relevo a valorização da memória, e
em torno do qual se equilibram todas a presente publicação é uma delas.
as ações institucionais, ao passo que os Os Cadernos Sesc de Cidadania, que
valores revelam aquilo sobre o qual não procuram aprofundar a discussão
se abre mão quando da efetivação dessas em torno de assuntos de interesse
ações. No primeiro caso, há um caráter público, aventuram-se agora nos
perene, praticamente definitivo: a missão complexos meandros do “já-vivido”,
do Sesc – colaborar para o bem-estar mimetizando nas páginas a seguir uma
de trabalhadores do comércio de bens, disposição que ocorre cotidianamente
serviços e turismo, seus dependentes nas unidades. Trata-se de preservar
e da sociedade de seu entorno – é a elementos representativos de outros
mesma desde seu surgimento, em 1946. tempos, cuidando para que possam
Quanto aos valores, o componente transmitir parte de seu vigor às gerações
histórico é fundamental: as mutações da futuras; mas trata-se sobretudo de
sociedade ao longo do tempo ensejam estimular o juízo crítico sobre o
novas urgências, reordenam prioridades mundo que nos rodeia, assim como
e encaminham demandas que eram, abordar a realidade em sua inteireza,
até então, menos visíveis. Valores sem simplificações enganosas.
como diversidade e sustentabilidade, Promover a memória implica
por exemplo, sequer faziam pleno um compromisso: compreender o
sentido em meados do século XX; fenômeno de superexposição do
entretanto, consolidaram-se nas assunto para atuar a partir de premissas
últimas décadas e, atualmente, são responsáveis, que entendam o campo
considerados inegociáveis para o Sesc. das memórias como expressão
Vale refletir, segundo tal perspectiva, cultural fundamental, recusando
sobre o valor da memória. instrumentalizações. Para tanto,
Nos dias que correm, parece permitir que ele seja contagiado por
coerente que uma entidade empenhada outros valores que orientam as ações
num projeto socioeducativo esteja institucionais – como o exercício
comprometida com a promoção da da cidadania, a vocação educativa e
memória. Mas isso não foi sempre assim: a diversidade – é a estratégia mais
essa percepção foi sendo construída adequada. No âmbito dos direitos
paulatinamente. A conscientização de humanos, tais contágios são desejáveis,
que a memória condiciona o tempo pois conduzem a uma perspectiva
presente, influenciando comportamentos integral acerca dos seres humanos.
e visões de mundo, se deu, em grande A memória é um desses direitos; como
medida, a partir de uma crescente tal, deve ser pensada de forma sistêmica,
movimentação dos cidadãos, exigindo jogando-se luz sobre sua capacidade
que narrativas não-hegemônicas de influenciar e ser influenciada
fossem ouvidas. No lugar de um tema pelas demais dinâmicas sociais. ⌺
p.36
artigo
O poeta e museólogo Mario
Chagas discorre sobre o
significado da memória e fala
dos museus que o inspiram.
Uma escadaria unindo as partes alta e baixa de um bairro, cuidada as concepções que buscam explicar a
por moradores locais; um idioma falado relação das pessoas com os fatos que
por centenas de indígenas num vídeo de a antecederam; de outro lado, há a
youtube; três caixas de postais antigos dimensão político-social dessa questão,
encontradas embaixo da cama da avó, indagando quais acontecimentos
falecida há alguns meses; o museu mereceriam ser lembrados, assim como
ferroviário da cidade; uma poesia de quem faria tais escolhas. Evidentemente,
que ninguém mais lembra direito, essas duas facetas se interpenetram, mas
contando como os primeiros habitantes é útil aproximar-se delas por partes.
cozinhavam; jovens aproveitando os LPs A palavra memória admite vários
dos pais para reinventar o hip-hop; um significados, os principais se referindo
canhão enferrujado apontado para o à capacidade (não apenas humana) de
mar; músicas e danças que se misturam, reter algo ligado ao passado, assim
toda sexta-feira de lua cheia, naquela como dizendo respeito aos seus
comunidade; um conjunto de edifícios desdobramentos materiais, simbólicos
modernos que um dia revolucionaram e sociais. É visível a conexão dessas
o conceito de moradia; fotos digitais acepções com a noção ampliada de
salvas numa pasta desconhecida; um cultura (dita “antropológica”), já
senhor que sabe fazer ampulhetas que ambas revelam suas respectivas
conforme seu avô lhe ensinara. tendências ao transbordamento
A memória se insinua por todo e sua onipresença. De qualquer
lado. Está presente nos atos cotidianos modo, é importante sublinhar: a
e no significado que lhes damos. memória é pressuposto da cultura.
Configura o mundo que habitamos Conforme variaram tempo e espaço,
e o modo como nele agimos. Tão a relação com o acontecido adquiriu
embrenhada na textura da realidade, usos sociais diversos. A temporalidade
oferece um desafio a quem queira sobre circular que organiza a vida de certos
ela refletir: como circunscrevê-la? grupos e comunidades, mimetizando
Por quais lados abordá-la? em grande medida os ciclos naturais,
Trata-se de uma empreitada que varia confere à memória um estatuto peculiar:
segundo o contexto. Afinal, a memória nesses casos, as ações do dia a dia e,
é assunto sobre o qual se comenta principalmente, os ritos e celebrações
desde que o ser humano percebeu atualizam permanentemente o já-vivido,
*Mestre em História
da Arte, bacharel em
que se lembrava – já não lembramos solicitando-o com uma intimidade
Filosofia e assistente exatamente quando isso ocorreu. peculiar. O mesmo não acontece na
técnico da Gerência Muita coisa mudou desde então. experiência contemporânea, em que
de Estudos e
Desenvolvimento do Pode-se pensar tais mudanças a partir determinada distância caracteriza a
Sesc São Paulo de duas frentes: de um lado, temos relação com o passado, distância essa
cuidado. Pesquisador trabalha na higienização de cartaz; criado em 2006, o Sesc Memórias preserva documentos relativos às ações do Sesc
patrimôni
A preservação da memória,
seja na forma de heranças ma-
teriais ou imateriais, é funda-
mental para o desenvolvimento
e a construção de uma identi-
dade nacional
que deveria ser preservado como for- brasileiro passa a ser reconhecido tan-
ma de descobrirmos verdadeiramente to nas instâncias materiais quanto nas
o nosso país, inclusive ajudando a evi- imateriais. “A partir desse momento,
tar a invasão permanente das influên- isso começa a tentar se firmar como
cias estrangeiras”, informa o professor um conceito legal”, diz. “Agora, po-
da USP, que já dirigiu instituições cul- líticas efetivamente construídas, ela-
turais como a Cinemateca Brasileira e boradas e implementadas só vão sur-
o Centro Cultural São Paulo. gir depois dos anos 2000”, pondera.
O anteprojeto do autor de “Macu- Em agosto do ano 2000, o decreto nú-
naíma”, no entanto, não foi exatamen- mero 3.551 consolida o que já vinha se
te considerado na hora de redigir o de- desenhando, instituindo o registro de
creto-lei, e a discussão sobre as outras bens de natureza imaterial como par-
formas de definição de patrimônio, te do patrimônio cultural do país. “A
pelo menos em instâncias oficiais, fi- ideia é que a atuação do Estado seja no
caram adormecidas por mais de qua- sentido de defender princípios de am-
tro décadas. “As discussões institucio- pliação do reconhecimento de culturas
nalizadas para lidar com esse universo diferentes no Brasil, de representação”,
começam a surgir no final dos anos explica a professora Márcia Chuva, es-
1970, com a criação da Fundação Na- pecialista em políticas de patrimônio.
cional Pró Memória”, esclarece Márcia
Sant’Anna, professora da Universida- Material e imaterial
de Federal da Bahia (UFBA) que ocu- A roda de capoeira, o frevo, terreiros
pou diferentes cargos no Iphan entre de Candomblé, a feira de Caruaru e até
1987 e 2011. “Esse termo ‘patrimônio mesmo o modo de fazer um queijo na
imaterial’ não era usado, falava-se em Serra da Canastra são alguns exemplos
‘patrimônio vivo’, que de certa forma de patrimônios culturais imateriais re-
dialoga com a noção atual”. conhecidos atualmente no Brasil. Mas
Criada em 1979, a Fundação Pró Me- afinal, como compreender essas defi-
mória, sustenta Márcia Sant’Anna, é nições e as suas interações com reali- estação da luz.
uma das responsáveis diretas pela ela- dades que muitas vezes partem da ma- Inaugurada em março de 1901, a Estação
boração do artigo 206 que apareceria terialidade? Márcia Sant’Anna explica da Luz ocupa uma área de 7.500 metros
anos depois na Constituição Federal que as conexões entre patrimônio ma- quadrados no centro de São Paulo;
de 1988, quando o patrimônio cultural terial e imaterial acontecem o tempo tombada em 1982, sua estrutura foi
todo, inclusive no caso de um conheci- importada da Inglaterra, copiando traços
mento, como nos procedimentos para do Big Ben e da abadia de Westminter
criar um queijo em Minas Gerais. “Para
um saber se concretizar, ele depende
de um conjunto de aspectos ou de in-
sumos materiais para que sua expres-
são aconteça”, esclarece.
Ainda que as políticas de preserva-
ção estejam separadas (“mais por uma
“Quando surge a política questão conceitual”, afirma a profes-
sora da UFBA), as coisas estão inter-
de patrimônio nos anos ligadas. Enquanto a salvaguarda do
1930 no Brasil, ela está em patrimônio imaterial enfatiza mais o A ideia é que a
acordo com uma política sujeito, no caso do patrimônio mate- atuação do Estado seja
que está sendo colocada rial o elemento em evidência é sem- no sentido de defender
pre o objeto. “Um determinado con-
em nível internacional” princípios de ampliação
junto urbano pode até estar tombado
como patrimônio material, mas ele não do reconhecimento de
existe em sua dimensão humana se culturas diferentes
Legitimação e resistência
A ideia de que uma determinada mani-
festação artística é considerada um pa-
trimônio cultural e outra, não, desper-
ta uma questão: quem legitima o que é
patrimônio e como isso se dá na práti-
ca? “Você tem um conjunto de atores
sociais, não somente enquanto indiví-
duos, mas segmentos, instituições, que
legitimam esse patrimônio a partir de
processos estabelecidos de reconheci-
mento. É evidente que essa legitimação
é necessária, porque todo patrimônio
é uma construção social, ele não exis-
te em si”, responde Márcia Sant’Anna.
Na opinião de Carlos Calil, é um pro-
cesso inevitável: “[Quem legitima] é a
não existirem pessoas ali produzindo a partir de algumas materialidades, en- vida, a realidade, porque aquelas pes-
sentido de patrimônio, porque há um tão há uma divisão histórica, mas que soas existem. O quilombola existe, a
conjunto de saberes, fazeres e celebra- não é intrínseca às coisas. O campo de manifestação indígena existe, mani-
ções nesse espaço que só fazem sentido patrimônio tem debatido essa divisão. festações de cultura popular existem.
com essa interação”, explica Sant’Anna. Como os tipos de patrimônios salva- Você pode até recalcá-las institucio-
O conjunto tombado de Goiás Velho, guardados são diferentes, eles preci- nalmente, mas elas emergem depois,
ela complementa, é uma boa forma de sam de ações diferentes, mas a inten- não há dúvida”.
ilustrar essa relação: “Há uma série de ção é salvaguardar práticas culturais Além de ser essencial para a cons-
expressões culturais que dizem respei- diversas que representem a diversida- trução da identidade de um país, a sal-
to a esse espaço e preenchem aquilo de de cultural da nação, seja ela material vaguarda de um patrimônio cultural –
significado, e que também existem em ou imaterial”. material ou imaterial – pode também
função dele: a procissão do fogaréu, a Hoje em dia, o Iphan divide os pa- ser vista como um gesto de afirmação
doceria tradicional de Goiás, todas es- trimônios culturais imateriais em qua- de políticas identitárias e culturais que
sas manifestações operam ali no mes- tro categorias: Saberes, Celebrações, constituem uma nação. “Hoje em dia as
mo lugar”. Formas de Expressão e Lugares. “Sa- políticas de patrimônio têm se aproxi-
“Tudo o que é patrimônio material beres envolve todos os conhecimentos mado de políticas de reparação”, afir-
só é reconhecido porque tem um valor tradicionais, Celebrações é para toda ma Márcia Chuva. “São políticas que
simbólico, então existe por si só um ca- e qualquer tipo de celebração vincu- incluem em nosso imaginário grupos
ráter imaterial”, elucida Márcia Chuva, lada ao cotidiano e à civilidade, à re- sociais que antes eram excluídos. Um
da UNIRIO. Os argumentos da profes- ligiosidade e a vários aspectos da vida exemplo é o tombamento dos terrei-
sora, doutora em História pela Univer- social”, explica Márcia Sant’Anna. As ros de Candomblé, que ocorre na Bahia
sidade Federal Fluminense (UFF), vão formas de expressão, desenvolve, são desde os anos 1990. Você usa o tomba-
ao encontro do que defende a profes- muito variadas, podendo ser plásticas, mento, um instrumento utilizado para
sora da UFBA: “O patrimônio acontece cênicas, musicais e de várias naturezas. o patrimônio material, mas o que im-
Ilha Diana.
Localizada próxima ao centro de Santos,
Ivaporunduva. a Ilha Diana só pode ser acessada de
O quilombo faz parte do conjunto de barco, e é considerada uma das últimas
comunidades quilombolas do Vale do Ribeira e colônias de pescadores da região que ainda
data do final do século 17. Na década de 1990, preserva a maior parte de suas tradições
a população do local formalizou a criação da
Associação Quilombo de Ivaporunduva
Bildung
2014, composta por 18 pranchas
com livros e documentos
costurados, estante de madeira
com 107 livros e 128 documentos.
Leila Danzinger
artista, poeta e pesquisadora,
é professora do Instituto
de Artes da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro
SOBRE a obra
Em “Bildung”, Leila
recorreu a livros trazidos
da Alemanha por seus avós,
que fugiam do nazismo.
Uma primeira versão
do trabalho foi exposta
em 2014 na mostra cole-
tiva “Há Escolas que são
Gaiolas e há Escolas que
são Asas”, no MAR (Museu
de Arte do Rio). Em 2018
surgiu uma segunda
versão, apresentada na
mostra individual “Ao
Sul do Futuro”, no Museu
Lasar Segall, em São Paulo.
A arte de lembrar
A artista plástica Leila Danziger descobriu nas origens
de sua própria família a potência de uma vasta obra
que faz dialogar memória, ética e emancipação
seria designer, porque pra mim é um – na maneira como se relacionava com conta a ida dele para Auschwitz.” O en-
meio muito importante.” a trajetória de sua família. Ao presti- contro com a literatura foi determi-
Como boa parte dos que se tornam giar uma exposição em Paris sobre a nante para a maneira como a artista
artistas, Leila sempre cultivou uma re- cultura europeia, ela se deparou com plástica passou a interpretar a influ-
lação com desenho e pintura – mas, cenários essencialmente familiares: ência de seu passado na sua forma de
embora gostasse muito dessas ativida- “Me lembro que ela terminava com trabalhar. “Eu percebi que tinha uma
des, o plano de se tornar artista plásti- uma projeção dos artistas e intelec- transmissão em que eu me reconhe-
ca nos anos 1980 não a empolgava. “Há tuais judeus que deixaram Viena por cia, sobretudo pela literatura”, explica.
um ponto importante na minha vida, causa do nazismo em 1938, e só ali me “É uma virada que me acompanha até
e que não está no meu currículo por- dei conta, de uma forma muito físi- hoje.” Além de Levi, a poesia de Paul
que não sei bem onde encaixar, que foi ca, que meus avós e meu pai tinham Celan foi uma obra “absolutamente
meu primeiro emprego, no Mobral, o fugido de Berlim nessa leva, embora transformadora” para ela. “Ainda na
Movimento Brasileiro de Alfabetiza- minha família não fosse nem de inte- França, comecei a estudar alemão, que
ção”, recorda. “Eu queria ser ilustra- lectuais, nem de artistas, mas de pes- era o tabu absoluto na família. Então,
dora, e na época fazia ilustrações para soas com profissões muito comuns”. as pessoas achavam que eu falava a
material didático. Tive uma formação Leila conta que aquilo a fez perceber língua por causa do meu pai, mas era
legal com pessoas bacanas, com quem como sua vida estava implicada na- pelo Celan, porque eu queria enten-
eu convivia intensamente.” quela história. der, escutar aquilo”, justifica.
Nessa época, depois de um cur- Há mais ou menos dez anos, a artis-
to período na Escola de Belas Artes, literatura e outras leituras ta começou a escrever poesia (“eu brin-
no Rio de Janeiro, onde nasceu, Leila Não foi só pela arte, todavia, que Lei- co que é a faixa bônus da minha vida”),
abandonou o curso e se mudou para la passou a lidar com suas origens. e, em 2012, publicou o primeiro de
a França, quando considera que hou- “Lembro do dia em que li ‘É Isto Um seus três livros do gênero. “Para mim
ve a virada – “pela arte mesmo”, diz Homem?’, do Primo Levi, em que ele é um desdobramento do processo do
trabalho, porque existe uma questão se diz grata a agências públicas de fo- sendo guardados por ele, “de uma for-
sobre a escrita do artista, e na verdade mento à pesquisa que lhe proporciona- ma muito organizada”, diz. “Eram pas-
eu comecei a escrever poesia porque ram oportunidades de estudo ao lon- tas e fichários em torno de algumas
isso me permitia fazer experimenta- go de sua carreira, mas lamenta o fato temáticas obsessivas: Rio de Janeiro,
ções, pensar nos processos”, afirma. de essas instituições com frequência construção civil (desabamentos e de-
Pesquisadora com dois pós-doutora- evitarem nomear a arte em seus pro- sastres), política brasileira, segunda
dos e professora do Instituto de Ar- gramas de auxílio. “No campo da uni- grande guerra, Israel (a língua hebrai-
tes da Universidade Estadual do Rio versidade, a arte como conhecimento ca), contas (todas as contas de luz e
de Janeiro, Leila concilia a vida acadê- sensível se consolidou muito nos úl- gás), recibos, certificados de garantia
mica com seu trabalho artístico e res- timos anos, então são coisas indissoci- de todos os eletrodomésticos que teve
salta que uma coisa alimenta a outra. áveis”, pondera. Como professora, po- na vida, todos os impostos de renda,
“Me instiga muito essa conexão entre rém, ela acredita que o desafio é não registros com a contabilidade diária
a universidade e a arte”, pontua, refle- deixar que a obra tome conta do do- dos gastos da família desde a década
xão que contrasta com a ideia de que cente, “é preciso pensar além do pró- de 1970”, lista a artista, que lembra que
a pesquisa poderia frear ou impactar prio trabalho, você precisa ser maior Rolf tinha uma kombi cheia de coi-
negativamente em sua produção. “Sou do que ele”. sas armazenadas e um banheiro inu-
muita grata ao ambiente acadêmico. A tilizado por conta da quantidade de
universidade me constitui como pes- PEQUENOS IMPÉRIOS material.
soa. Fui uma aluna feliz, agradeço aos Em 2011, com a morte de seu pai, Rolf A solução encontrada por ela para
meus professores e meus alunos hoje Manfred Danziger, a artista plástica se “processar” tanta coisa se transformou
são muito importantes, as trocas com deparou com a missão de esvaziar o em diversas obras, inclusive Pequenos
eles são fundamentais”, destaca. apartamento onde ele morava, o que Impérios: “Criei um ritual e fiz cate-
Há quase vinte anos como professo- envolvia revirar e vasculhar incontá- gorias com carimbos, com frases, e aí
ra em uma universidade pública, Leila veis materiais de arquivo que vinham carimbava e fotografava essas seleções,
mas esse trabalho é uma pontinha de 2014 no Museu de Arte do Rio (MAR),
um iceberg imenso, e esse fundo de reunindo pranchas com livros e docu-
arquivo hoje orienta meu trabalho mentos costurados, além de uma es-
todo, o que eu digo ou não digo”. À tante de madeira com documentos e
semelhança da catalogação fantasio- outras obras.
sa de Jorge Luís Borges em seu conto Para a artista plástica, ainda que os
“O idioma analítico de John Wilkins”, documentos existam, eles precisam
em que o autor argentino organiza sua ser lidos no presente a partir de uma
lista de classificação de animais a par- demanda atual. “Eu posso ler um do-
tir de uma “certa enciclopédia chine- cumento hoje de forma completamen-
sa”, a artista encontrou no acervo do te diferente de como eu leria dez anos
pai o que ela chama de micro-história: atrás ou daqui a outros dez”, explica.
um apanhado que a partir do universo “A questão é como ler, e isso é o que
familiar é capaz de orientar pesquisas me interessa: ler no visível e no dis-
e eixos de trabalho dentro do que ela cursivo.” Nesse sentido, Leila pontua
chama de grande história. que nem tudo é legível o tempo todo,
Pequenos Impérios, na realidade, “depende da conjuntura, de uma au-
nunca chegou a ir para uma exposi- sência do presente, e é isso o que muda
ção. No catálogo de Edifício Líbano, no o trabalho”.
entanto, uma de suas obras de grande
destaque que veio a público em 2012, INCERTEZAS
na Galeria de Arte IBEU, em Copaca- A família de Leila veio ao Brasil em de-
bana, Leila Danziger optou por colo- zembro de 1935, pouco tempo depois
car as imagens dos arquivos organiza- da introdução no Estado alemão das
dos como parte da série. “Eu guardei Leis de Nuremberg, em setembro da-
muita coisa, mas me arrependo de não quele ano. Com as leis antissemitas, os
ter guardado tudo”, lamenta a artista, judeus tiveram seus direitos de cida-
que precisou se livrar de uma fração dania limitados. “Meu pai havia perdi-
do material por uma questão de espa- do o direito de estudar no ginásio pú-
ço, já que iria se mudar para o mesmo blico em que estava matriculado, meu
apartamento onde tudo se encontra- avô perdeu o comércio que tinha, eu
va. Em outras palavras, era impossí- nunca soube exatamente do que era”.
vel que ela e o legado arquivístico do Leila tem consciência de que a Se-
pai habitassem o mesmo espaço sem gunda Guerra é um tema delicado, e
que algumas escolhas fossem feitas. que justamente por isso é preciso cau-
Leila também guarda os livros que tela na discussão sobre as memórias e
seus avós trouxeram da Alemanha, os temores que surgem de um marco
compilação que depois se transfor- tão tenebroso na história recente da
mou em Bildung, trabalho exposto em humanidade. “Nos anos 1980, houve
memória
um ato de resistência
entrevistas: João Paulo Guadanucci e Gabriel Vituri
Ferreira
escravocrata, toda uma cena, e duas negras pegando água
em um chafariz. Ali estão as classes que compunham
a sociedade naquele momento. Com o tempo fui
escritor e entendendo o significado, especialmente quando
conheci o Tebas [importante arquiteto do século 18,
jornalista responsável por construções como a torre da primeira
Catedral da Sé, e que foi escravizado até os 57 anos], seu
Chafariz da Misericórdia, e a importância dos negros
escravizados que iam apanhar água para abastecer
a cidade. Isso coloca o sujeito negro no processo de
formação do espaço urbano, como protagonista.
Acho que há uma geração nova propensa a continuar
essa luta de reconhecimento, mas talvez a gente precise
construir mais isso. Nós fomos muito envolvidos pelo
espírito neoliberal, especialmente quem nasceu nos
anos 1980. Mesmo os mais antigos, se não ficarmos
alertas, somos levados por esse fluxo. O inimigo é a
velocidade, essa fragmentação, que não permite que
a gente olhe para a gente mesmo, para a cidade, e
isso dificulta a conexão entre um tempo e outro.
Tajik
Eu fiz uma prova para ganhar bolsa, ganhei 100%
para estudar por cinco anos. Depois disso, você entra
no hospital e ganha um pouco pra pagar os cursos
médico afegão de especialização e os livros. Eu gostava de atuar e
dirigir, e também já cheguei a escrever peça e poesia,
coisa que tenho feito aqui no Brasil. Queria começar
a fazer em português, mas ainda preciso de tempo.
Por que uma pessoa deixa tudo pra trás, família,
amigos? Estudei medicina, me formei, tive clínicas,
funcionários, mas hoje não tenho mais nada de lá. Por
causa de uma situação que não é culpa minha, preciso
deixar o país. Eu vivi no meu país de origem até os
seis anos. Depois disso, sempre estive em situação de
refúgio. Estudei medicina no Irã e trabalhava com os
Médicos sem Fronteiras porque achava que o importante
era ajudar. Eu não tenho vergonha de falar que sou
refugiado, porque infelizmente há guerra no meu país
há mais de quarenta anos, e eu quero viver. Não acho
que a vida precise ser sempre boa, mas quero viver.
Guarani
toda vez que perdemos alguém, é uma imensidão de
saberes que também se vai. Seguimos uma conduta
aqui de tentar guardar mais, para que talvez outras
uma das lideranças na gerações consigam aprender coisas que ficaram
gravadas. A tecnologia não supera a capacidade humana
aldeia Tenondé Porã de guardar tanta coisa bonita, mas pode ajudar.
Marcos
pagar os impostos, que outras ecológica. Nós nunca destruímos,
pessoas invadiriam, então era estávamos há oito gerações no
melhor vender e ganhar um lugar, e aí queriam nos proibir de
Matheus
de uma reflexão mais teórica, junto com a coleção que
eu acumulava. Acho que a estruturação do projeto do
acervo em si acabou aparecendo quando a gente ao acaso
“Os centros de
memória são
instrumentos
de ação”
Para especialista, o objetivo
final de um centro de memória
deveria ser subsidiar decisões
e lastrear a execução das ações
sob sua responsabilidade
amostra desses produtos, que tam- outros setores. Essa a razão pela qual os remanescentes mais antigos da in-
bém nasceram para sair da empre- os franceses comparam os serviços li- venção da escrita são exemplos típicos
sa. Nesse caso, os pregos assumem gados à documentação com ativida- do ato de representar ações e dotá-las
o estatuto de documentos pelo ges- des “ménagères”, similares às tarefas de efeito probatório e duradouro. Se
to de atribuição de sentido que sem- domésticas, que só aparecem quando observarmos bem, os documentos de
pre podemos empreender nos centros não funcionam. O clássico exemplo arquivo equivalem às ações que via-
de memória. Como o livro procurou do trabalho da dona de casa, que cos- bilizam, ao mesmo tempo que lhes
demonstrar, os centros de memória tuma ser percebido apenas quando a servem de prova. Os arquivos nun-
seriam o amálgama das funções tra- comida não aparece na mesa no ho- ca são uma finalidade para as insti-
dicionalmente exercidas por biblio- rário de costume, caberia como uma tuições que os acumulam, mas meios
tecários, museólogos, arquivistas e luva para o arquivo e seus congêne- pelos quais essas instituições assegu-
historiadores, adquirindo sempre a res... Pode parecer contraditório, mas ram sua continuidade.
fisionomia das instituições em que a importância dos centros de memó-
estão inseridos. ria está na sua instrumentalidade, ca- A discussão dos centros de memória
racterística que, ao mesmo tempo, os na atualidade tem um caráter mui-
E como essas instituições se diferen- torna invisíveis. to diferente do que tinha no passado?
ciam entre si? O fato de termos entendido o cen-
Quanto maior for o grau de inter- Como definiríamos essa instru- tro de memória como um arquivo
venção de uma instituição no meio mentalidade? ampliado, como um lugar que pode
em que atua, maior a importância de A instrumentalidade é algo que reunir tudo aquilo que é estratégi-
seu arquivo, de seu centro de memó- está no cerne do documento de ar- co para a instituição, faz com que ele
ria. É o que ocorre com as prefeitu- quivo. É o traço que o distingue e que seja concebido de forma bem flexí-
ras, com os tribunais e tantas outras dá sentido aos conceitos e princípios vel. Não podemos afirmar que existe
entidades que atendem a uma deman- da ciência que o tem por objeto. É por um modelo perfeito de centro de me-
da social ampla. A importância dos meio do documento de arquivo que, mória, mas há estudos que vêm sen-
documentos reunidos em seus acer- nas sociedades complexas, certas ati- do feitos em vários lugares para criar
vos nada tem a ver com o fato de se- vidades são viabilizadas e, a posteriori, esse armazém de documentos, infor-
rem órgãos oficiais ou de represen- comprovadas. Os estudiosos do apa- mações e dados e torná-lo operacio-
tarem o poder público, e sim com o recimento da escrita vinculam seu nal. O advento das novas tecnologias
largo espectro de sua atuação na so- nascimento à necessidade de consig- teve um efeito intrigante no âmbito
ciedade. Não é à toa que constituem nar compromissos e direitos. Ou seja: das organizações: tornar imperceptí-
fonte de primeira ordem para a pes- vel a descontinuidade entre a ação e
quisa histórica. o documento que lhe serve de veícu-
lo, fazendo com que muitos autores,
Qual o potencial de um centro de como apontamos no livro, postulem
memória? a necessidade de materializar (conver-
O centro de memória deve ser tendo-os em documentos) os proce-
um órgão que torna disponíveis, e de dimentos rotineiros e voláteis da ins-
modo imediato, as informações ne- tituição, garantindo sua mobilização.
cessárias para o funcionamento da
instituição, sejam elas retiradas do O que seria essa mobilização?
arquivo administrativo, do noticiário Seria, basicamente, a capacida-
de imprensa, de livros e artigos publi- O documento de de de extrair da documentação ele-
cados ou dos depoimentos de antigos mentos específicos, pontuais, e ou-
funcionários. Na condição de meca-
arquivo é, por excelência, tros mais genéricos, indicadores de
nismos de retaguarda, os centros de a representação de tendências. Gosto de fazer um recuo
memória não desfrutam de grande vi- uma ação. As tábuas de no tempo e evocar o modo como no
sibilidade. Não se trata de má compre- argila da Mesopotâmia Brasil das capitanias e províncias os
ensão de suas finalidades, ou de fal- arquivos governamentais acumula-
ta de marketing. É que eles são peças
foram espalhadas pelos vam documentos que, em intervalos
instrumentais e de inegável impor- museus, mas eram livros mais ou menos regulares, eram exa-
tância, mas sem o protagonismo de de contabilidade minados, sistematizados e submetidos
Eu tinha a ideia de fazer uma documentação selvagem. É mais fácil digitalizar tudo,
das pessoas comuns, porque você encontra por mais caro que seja esse proces-
isso sobre grandes ícones, mas não existe uma so, do que criar metadados pertinen-
tes para a documentação sob custó-
documentação doméstica, do comum dia de um centro de memória. Como
os arquivos públicos não têm investi-
do em instrumentos de pesquisa que
apontem para o potencial informati-
vo das séries ali conservadas, optan-
do por apresentá-las em quilométri-
cas relações de imagens digitais, resta
saber se têm de fato alimentado traba-
lhos acadêmicos novos... Acho difícil.
VII IX
A minha sugestão é que essas As mudanças conceituais e teóricas
experiências não sejam tomadas como geradas no campo dos museus afetam
modelos e sim como inspirações. A e produzem transformações relevantes
seleção destas experiências tem um na museologia que, no entendimento
componente que não é desprezível. É aqui sustentado, está longe de ser
A museologia importante que o leitor compreenda ciência castiça e descomprometida
social ancora-se no que tenho uma relação de afeto político com a vida. Esta perspectiva coloca em
e de afeto poético com todas elas, xeque a orientação museológica que
desejo de prestar nesse sentido, minha narrativa está se considera isenta de ideologia e crê
serviços práticos contaminada de afetos. Muitas outras na possibilidade de uma museologia
à vida e, por isso, iniciativas de museus sociais e populares pura, higiênica, esterilizada.
está interessada com os quais também tenho relações de Por fim, cabe considerar que a
afeto poderiam ser incorporadas, mas, museologia social ancora-se no desejo
em inventar,
neste caso, os limites previstos para o de prestar serviços práticos à vida e,
imaginar, ver, texto seriam rompidos. Além das quatro por isso, está interessada em inventar,
rever e transver experiências museais seria possível imaginar, ver, rever e transver os museus
os museus citar, por exemplo, o Museu da Rocinha compreendendo-os como atos que afetam
Sankofa Memória e História, o Museu e potencializam a vida. A museologia
do Horto, o Memórias do Cerro Corá, o social implica um saber-fazer “in-mundo”
Ecomuseu Amigos do Rio Joana, o Museu contaminado de vida afetiva e social. ⌺
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