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ANTONIO SÉRGIO ALFREDO GUIMARÃES

Resistência
e revolta nos
anos 1960:
Abdias do
Nascimento
ANTONIO SÉRGIO
ALFREDO GUIMARÃES
é professor do
Departamento de
Sociologia da FFLCH-USP.

Versão anterior deste texto foi


apresentada ao XXIV Encontro
Nacional da Anpocs em Caxambu,
em outubro de 2005, e preliminar-
mente discutida no seminário Brazil:
Race and Politics in the Americas, na
Universidade do Texas, em Austin,
em 16 de setembro de 2005.
J á faz algum tempo que venho traba-
lhando com a noção de modernidade
negra para explicar o processo de construção
de diferentes identidades raciais dos negros e
1 Entendo por modernidade
negra o processo de inclu-
são social e simbólica dos
descendentes de africanos às
sociedades das Américas e
da Europa. Significa, grosso
modo, a incorporação dos
mulatos brasileiros e americanos1. Mas só se negros ao Ocidente como
pessoas civilizadas. Podem-se
pode falar de modernidade negra no plural, pois distinguir dois momentos de
tal integração, cuja ordem
ela varia de acordo com as diferentes formações cronológica não é unívoca:
um primeiro, de representação
nacionais. Isso significa, em termos concretos, positiva dos negros, construí-
da por intelectuais brancos,
principalmente na literatura e
que a história de cada Estado-nação do Ociden- nas artes plásticas (cubismo,
negrismo, modernismo) e, num
te ou de origem ocidental (fruto da colonização segundo momento, a criação
de representações positivas
européia) é, ao mesmo tempo, uma história dos negros feitas pelos próprios
negros, também nas artes e
particular da modernidade negra. na literatura, mas também na
ideologia e na política.
No entanto, para explicar essas diversas for-
mações podemos recorrer a um conjunto fixo de
condicionantes históricos, que funcionam como
se fossem variáveis independentes. Além dos
fatores demográficos, econômicos, sociais ou
políticos, pode-se destacar uma ordem particular
de condições, mais propriamente ideológicas ou
intelectuais, que são as tradições e constela-
ções de idéias. Tradições essas tão intimamen-
te interconectadas por influências recíprocas
que apenas podemos agrupá-las pelas grandes
línguas de expressão colonial: o português, o
espanhol, o inglês e o francês.
Podemos, assim, identificar três grandes zo-
nas de pensamento, a ibero-afro-americana, a
anglo-afro-americana e a franco-afro-americana,
que funcionaram como verdadeiros “arquivos” de
onde foram sacadas idéias para forjar identidades
raciais e ideologias de integração na modernida-
de ocidental. Eu diria que idéias e intelectuais
negros circularam entre essas três zonas.
Em outros textos, procurei explorar algumas
construções ideológicas que deram origem a cer-
tos padrões particulares. Foi assim que explorei
a idéia de raças históricas, desenvolvida por
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DuBois, nos Estados Unidos, a partir das francês e não havia tradução em português 2 Não descobri ainda a data
dessa edição, mas, na quarta
noções de Kultur, do romantismo alemão, ou espanhol antes de 1955. Em comunica- capa, há uma notícia biográfica
e culture, da antropologia cultural de Boas. ção pessoal, disse-me ele que leu o texto de Camus em que se registra
sua morte em janeiro de 1960.
Detive-me também em vários momentos de Camus, pela primeira vez, em espanhol,
3 “E o Camus escreveu, acho
sobre a noção de négritude, criação de Aimé numa edição que lhe fora presenteada que foi depois dessa visita [ao
Brasil, em 1949], ele escreveu o
Césaire e Leopold Seghnor, reelaborada por por seu amigo Efraim Bó4, comprada no Homem Revoltado, e eu escrevi
Guerreiro Ramos e Abdias do Nascimento; México. Essa informação é congruente logo o Negro Revoltado, você
pode ver que faço várias refe-
assim como escrevi detalhadamente sobre com a versão das citações de Camus em O rências, a cada capítulo boto
a ideologia da democracia racial como Negro Revoltado5. Mas por que, ao ler El
uma setença do Camus” (apud
Police, 2000, vol II, p. 181).
forma de apropriação das idéias de Gilberto Hombre Rebelde, como foi traduzido para 4 Efraim Bó, Gofredo Iommi, Juan
Freyre e de Arthur Ramos pelos intelectuais o espanhol, Abdias evita falar de negro re- Raul Young e Napoleão Lopes
Filho formavam com Abdias a
negros brasileiros (ver Guimarães, 2004a; belde? Isso sugere que Abdias ou já tinha Santa Hermandad Orquídea,
2004b; 2002). conhecimento da tradução portuguesa ou um grupo de poetas argentinos
e brasileiros que percorreu boa
Há, entretanto, duas noções, oriundas conhecia o original, pois, ademais, o livro parte da América do Sul em
boemia, nos anos 1940 (ver
do mundo francófono, ambas bastante é citado sempre por Abdias como L’Homme Police, 2000).
desenvolvidas por Albert Camus, que en- Révolté 6. O decisivo, entretanto, para ar- 5 As citações feitas por Abdias
contraram eco nos escritos de Abdias do riscar uma datação, é o fato de o conceito não correspondem à tradu-
ção portuguesa. Por exemplo,
Nascimento dos anos 1960 e que passaram de revolta não ser central no discurso de coteje-se a citação feita por
desapercebidas pela literatura especializada Abdias antes de O Negro Revoltado. Parece Abdias, “A Revolta Nasce
do Espetáculo da Sem-razão,
até o momento. Refiro-me às noções de mais prudente, pois, acreditar que Abdias ante uma Condição Injusta e
Incompreensível” (Nascimento,
resistência e de revolta, bastante presentes tomou conhecimento da “revolta” depois 1982, p. 74), com o original
nas ideologias que informaram as lutas de de 1966, talvez pouco antes de escrever o francês (“La Révolte Naît du
Spectacle de la Déraison,
descolonização da África francesa. Apesar seu ensaio. devant une Condition Injuste
de as atas do I Congresso do Negro Bra- Vale ressaltar, inicialmente, que a noção et Incompréhensible” (Camus,
1951, p. 23), e ver-se-á que
sileiro terem sido publicadas em livro, em de “revolta”, significando um profundo muito provavelmente a palavra
“sem-razão” parece ser uma
1968, com o título de O Negro Revoltado sentimento subjetivo de injustiça que não tradução literal do francês
(Nascimento, 1982), título também do encontra expressão política coletiva, ou “déraison” ou do espanhol
“sinrazón”. Enquanto a primeira
ensaio introdutório, escrito por Abdias do seja, que não se transforma em “rebeldia” edição em língua espanhola
do Homme Révolté data da
Nascimento, nenhuma curiosidade maior ou “combate”, é elemento constitutivo do segunda metade dos anos
despertaram nem o título, nem as inúmeras repertório das idéias que forjaram historica- 1950, a versão portuguesa
aparece em algum ano des-
citações de O Homem Revoltado, de Albert mente a identidade negra no Brasil. Abdias conhecido dos anos 1960, e
Camus (s/d)2. tinha íntimo contato com esse mundo de utiliza a palavra “insensatez”
para traduzir “déraison”.
Este artigo busca, portanto, jogar alguma idéias, como bem o demonstra Macedo
6 Elisa Nascimento me fez, por
luz sobre o porquê da utilização de tais con- (2005) na sua exposição dos escritos de e-mail, o seguinte esclarecimen-
to: “Sobre o livro de Camus,
ceitos e verificar a sua eventual influência Abdias no ano de 19467. O distintivo da L’Homme Révolté. Dele Abdias
na obra posterior de Abdias, assim como na revolta que Abdias apreende em Camus, tomou conhecimento na época
em que saiu, e com Efraim,
ideologia dos futuros movimentos negros entretanto, é que, em torno dela, poderá Gerardo e outros ‘francófonos’
discutiu muito o livro, conheceu
brasileiros. organizar discursivamente a resistência o texto e escolheu os trechos
moral e política às injustiças vividas pelo transcritos no ensaio que pre-
parava para os anais do 1o
negro brasileiro. Congresso. Essa introdução ele
O fato é que a leitura de El Hombre escreveu naquela época, mas

RÉSISTANCE E REVOLTA
não encontrava editora para o
Rebelde foi decisiva para o desenvolvi- livro. O ensaio ficou esperando,
passou-se o tempo, Efraim foi ao
mento posterior do pensamento político de México e voltou com a edição
Em que ano Abdias leu O Homem Re- Abdias. Mas não todo o livro, frise-se logo em espanhol, e só em 1966
ou 67 a GRD concorda em
voltado é difícil estabelecer. Em entrevista de início. Como veremos adiante, foram a publicar o livro com os anais
do Congresso. Aí Abdias volta
a Gerard Police (2000), Abdias sugere ter introdução e a primeira parte, justamente ao texto, o atualiza e aprimora,
escrito O Negro Revoltado logo depois de aquela intitulada “o homem revoltado”, que agrega uma série de coisas, mas
o ensaio é basicamente o mesmo
Camus ter escrito o L’Homme Révolté, mas prenderam a atenção e fascinaram Abdias. e mantém as citações do livro de
isso é inverossímil, pois o ensaio é datado O restante do ensaio não parece interessar Camus”.

de agosto de 1967 e o livro de Camus pu- a ele; justamente onde Camus se pergunta 7 Refiro-me, aqui, ao capítulo 3
da dissertação de mestrado
blicado em 19513. Ademais, Abdias não lia por que os ideais se pervertem, por que a de Márcio Macedo, Abdias

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rebeldia, uma vez no poder, se transforma resistência continuada e prolongada dos
em opressão, ou seja, o cerne da argu- negros às discriminações raciais e às for-
mentação de Camus, que provoca a sua mas alienantes da cultura embranquecida
ruptura com Sartre e os comunistas, com de origem européia.
Breton e os surrealistas. Apesar de haver Tal interpretação substituirá definitiva-
um paralelo entre as rupturas de Camus mente aquela de um país mestiço e sincrético
e de Abdias com o comunismo francês e ao qual os negros devem se integrar através
brasileiro, respectivamente, não parece ter da educação formal e da edificação de uma
sido essa a razão principal da atração que o personalidade não-ressentida e não-aliena-
primeiro exerceu sobre o segundo8. Também da. Marcará também o amadurecimento da
não parece haver relação entre a guerra de sua fase mais exclusivamente artística, cen-
libertação da Argélia e tal fascínio, a não trada sobre a idéia de negritude, e que dera
ser indiretamente, pela via das idéias, posto ainda o tom ao seu discurso na “Carta Aberta
que, como se sabe, não foi Camus quem ao I Festival Mundial das Artes Negras”
abraçou a causa argelina, mas Sartre, o (Nascimento, 2002, pp. 321-32), reunido
aliado dos comunistas9. em Dakar, escrita em março de 1966. Mas
Foram os conceitos de résistence e de estou me adiantando, tratarei da evolução
do Nascimento: a Trajetória révolté que galvanizaram a atenção de do pensamento de Abdias no próximo item.
de um Negro Revoltado, ainda
em elaboração (2005) no Abdias, os mesmos que já haviam servido Voltemos ao Negro Revoltado.
Departamento de Sociologia da de ponte entre o pensamento de juventu- A ruptura a que me refiro é expressa por
USP, sob a minha orientação.
de (“Peau noire, masques blancs”) e de Abdias do Nascimento (1982, pp. 93-4) nos
8 Evidência adicional de que
a polêmica entre Camus e maturidade (“Les dannés de la terre”) de seguintes termos:
Sartre não interessou a Abdias
é o fato de que, ao distinguir Franz Fanon, segundo aponta corretamente
ressentimento de revolta, ao Dennis McEnnerney (2003). “Que valor invoca a revolta do negro?
invés de seguir Camus, Abdias
prefere escrever: “Com Sartre, McEnnerney é convincente ao demons- Seu valor de Homem, seu valor de Negro,
acreditamos que ela [a revolta]
vai mais longe: ‘[…] a revolta é
trar que o conceito de résistence, tal como seu valor de cidadão brasileiro. Quando
que é o âmago da liberdade, desenvolvido pelos partisans franceses, a Abolição da escravatura em 1888 e a
pelo que ela apenas se realiza
com o engajamento na revolta’” tem o significado de “opor-se a pressões Constituição da República em 1889 asse-
(Nascimento, 1982, p. 66). moralmente questionáveis e à sedução da guram teoricamente que o ex-escravo é um
9 Sartre passou os meses de colaboração política com os opressores”, cidadão brasileiro com todos os direitos,
agosto e setembro de 1960
no Brasil e aproveitou para refugiando-se em suas forças interiores. Foi um cidadão igual ao cidadão branco, mas,
defender as revoluções cubana
e argelina; mas não parece ter
a partir desse conceito, desenvolvido nos na prática, fabrica um cidadão de segunda
se encontrado com Abdias. editoriais do jornal clandestino Combat e, classe já que não forneceu ao negro os ins-
Seu interesse, em relação aos
negros brasileiros, concentrou-se mais tarde, exposto nas Lettres à un Ami Al- trumentos e meios de usar as franquias legais
sobre sua cultura e religiosidade, lemand, que Camus (Camus, s/d, p. 27) pôde – atingem profundamente sua condição de
tendo visitado, guiado por Jorge
e Zélia Amado, assim como escrever, em O Homem Revoltado: “O que homem e plantam nele o germe da revolta.
Vivaldo da Costa Lima, can-
domblés, xangôs e umbandas fora a princípio uma resistência irredutível As oligarquias republicanas, responsáveis
(ver Beauvoir, 1963). do homem converte-se no homem integral por essa abolição de fachada, atiraram os
10 “O que é um homem revoltado? que com essa resistência se identifica e nela quase cinqüenta por cento da população
Um homem que diz não. Mas
ao negar-se não renuncia: é se resume. […] A consciência nasce com do país – os escravos e seus descendentes
também um homem que diz sim
a revolta”. – à morte lenta da história, dos guetos, do
desde seu primeiro movimento”
(Nascimento, 1982, p. 57), Foram esses conceitos, mais que os de mocambo, da favela, do analfabetismo, da
“Qu’est-ce qu’un homme révolté?
Un homme qui dit non. Mais s’il raça negra, democracia racial ou negri- doença, do crime, prostituição”.
refuse, il ne renonce pas: c’est tude, que operaram a mudança radical do
aussi un homme qui dit oui,
dès son premier mouvement” pensamento de Abdias e que se expressam Abdias cita sete vezes o ensaio de Camus.
(Camus, 1951, p. 27); e “Eu
me revolto, logo nós somos” no pequeno ensaio introdutório à edição das Todas as citações são retiradas da “Introdu-
(Nascimento, 1982, p. 59), “Je atas do I Congresso do Negro Brasileiro, ção” e da Parte I do Homme Révolté. São
me révolte, donc nous sommes”
(Camus, 1951, p. 38). realizado em 1950, mas só publicadas em duas epígrafes gerais10, outras quatro que
11 “[…] la révolte est profondément 1968, pouco antes de Abdias partir para o enunciam diferentes seções do ensaio e uma
positive puisqu’elle révèle ce qui, exílio. Esses conceitos rearticulam a sua citação final11. As seções são as seguintes:
en l’homme, est toujours à dé-
fendre” (Camus, 1951, p. 34). interpretação da história brasileira como a) Discriminação militante: “O espírito da

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revolta não é possível senão nos grupos em e 1930, no Brasil, mas que simplesmente
que uma igualdade teórica encobre grandes foi o pensamento racista europeu dos anos
desigualdades de fato” (Nascimento, 1982, 1920 e 1930 que foi integrado ao discurso
p. 68); b) Preconceito e Desemprego: “A dos intelectuais negros brasileiros, ainda
Revolta Nasce do Espetáculo da Sem-razão, que com sinal invertido.
ante uma Condição Injusta e Incompreensí- Ao lado de Abdias, entre os principais
vel” (Nascimento, 1982, p. 74); c) A Difícil intelectuais negros brasileiros, nos 1950,
Luta Antiga: “A Consciência Nasce com encontra-se Guerreiro Ramos. Ainda que
a Revolta” (Nascimento, 1982, p. 76); d) suas idéias não fossem completamente
Conferência Nacional do Negro: “A Revolta compartilhadas, sem dúvida, os dois
É a Recusa do Homem a Ser Tratado como mantiveram estreita colaboração e as
Coisa e a Ficar Reduzido à Simples História” idéias do sociólogo foram incorporadas,
(Nascimento, 1982, p. 88). muitas vezes, pelo ativista. Mas o Abdias
Vejamos, agora, como Abdias chegou a do pós-guerra conhecia talvez melhor
reatualizar seu pensamento a partir dos con- que o amigo as diversas tendências do
ceitos centrais de resistência e de revolta. pensamento negro brasileiro, um pensa-
mento que se assentava sobre um enorme
leque de idéias, num espectro que ia da
ênfase monocórdia na reconstrução moral
A EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO do negro (supostamente destroçado pela
escravidão) até a reivindicação do negro
DE ABDIAS NOS ANOS 1950 E 1960 como povo (brasileiro) e não raça. Cita-
rei, além dessas, apenas algumas outras
Como, nos anos 1950, reagiam os idéias-mote: o negro como trabalhador
intelectuais negros brasileiros às idéias e produtor da riqueza material do Brasil;
provenientes das zonas anglo e franco-afro- o negro como colonizador e construtor
americanas? cultural; o negro como injustiçado, preso
Tomemos, primeiro, a idéia do negro à sua revolta subjetiva; o negro como
como uma raça histórica, tal como de- alegria e vida, sobrepujando as injustiças
senvolvida por DuBois12. A idéia de raça, e a dor; o negro como produtor de uma 12 “But while race differences
reverberada pela imprensa negra paulista, cultura original; o negro como guerreiro have followed mainly physical
race lines, yet no mere physical
a partir de 1925, ajudou os negros a mudar defensor da pátria (Henrique Dias13) e da distinctions would really define
a maneira como se representavam publica- liberdade (quilombo dos Palmares). Difícil, or explain the deeper differences
– the cohesiveness and continuity
mente, levando-os a abandonar expressões se não impossível, traçar a origem de todas of these groups. The deeper di-
fferences are spiritual, psychical,
como “classe de gente de cor” ou “classe de essas idéias. Algumas delas percorreram differences undoubtedly based
homens pretos” para falar de “raça negra” livremente as Américas. on the physical, but infinitely
transcending them. The forces
(Guimarães, 2003). No entanto, uma primeira observação, that bind together [the Teuton]
nations are, then, first, their
Mas a idéia de uma raça ou cultura válida para os intelectuais negros brasilei- race identity and common
negra tinha conotações pan-africanistas e ros, é que tinham circulação internacional blood; secondly, and more
important, a common history,
afronacionalistas que serão recusadas de praticamente nula antes de 1968. Tomemos, common laws and religion,
imediato. Também a idéia central de DuBois como exemplo, Guerreiro, o mais formal- similar habits of thought and a
conscious striving together for
de uma dupla consciência nacional (perten- mente educado de todos, mas que nunca certain ideals of life. The whole
process which has brought about
cer, ao mesmo tempo, à nação americana tinha saído do Brasil, e cujo contato com o these race differentiations has
e à raça ou cultura africana) foi rechaçada mundo norte-americano e europeu se dava been a growth, and the great
characteristic of this growth
com veemência. Ao contrário, foi o ideal pela leitura de livros e jornais, que o domínio has been the differentiation of
spiritual and mental differences
de uma completa integração à cultura e à de línguas estrangeiras lhe permitia. Abdias, between great races of mankind
nação brasileiras que prevaleceu. se excetuarmos uma rápida excursão boêmia and the integration of physical
differences” (DuBois, 1986).
Tal rechaço foi tão forte que se pode pela América Latina e duas idas a Cuba, em
13 Henrique Dias, filho de escravos,
mesmo dizer, correndo o risco de uma gene- 1961 e 1963, também não saíra do Brasil e foi comandante do batalhão
ralização apressada, que não foi o conceito seu contato com as idéias anticolonialistas, negro que lutou na guerra contra
os holandeses, em Pernambuco,
de raça de DuBois o acolhido, entre 1925 pan-africanistas ou afrocêntricas dava-se em 1648 e 1649.

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por intermédio de seu grupo de amigos Nos anos 1950, Guerreiro Ramos e Ab-
mais próximos. dias do Nascimento falarão ocasionalmente
Mantinham ambos, entretanto, nos de raça negra; mas é a idéia de cultura negra,
anos 1950, algum contato com intelectuais tal como utilizada pelos autores da négritu-
estrangeiros, principalmente norte-america- de, que os influencia mais. Não sem críticas
nos e franceses, que passavam pelo Brasil. e nunca integralmente, pois eles preferiram
O jornal negro O Quilombo e o Teatro Ex- falar em cultura afro-brasileira, rechaçando
perimental do Negro (TEN) eram as duas o afrocentrismo e o pan-africanismo da né-
instituições que permitiam e estreitavam gritude. Ao contrário, a negritude brasileira
os laços com os intelectuais estrangeiros. terá a característica peculiar de ser fusionada
Foi, assim, que Abdias conheceu Camus à democracia racial.
em 1949, quando este visitou o TEN e Um texto de Guerreiro Ramos, publi-
assistiu a um ensaio de sua peça Calígula cado originalmente em O Quilombo, jornal
(O Quilombo, n. 5, 1950, p. 11). dirigido por Abdias, ilustra o que venho
Todavia, o núcleo erudito da formação de dizer:
intelectual de Abdias, à época desse primeiro
encontro, era quase inteiramente dominado “O Brasil deve assumir no mundo a lideran-
pela matriz de pensamento racial brasileiro, ça da política de democracia racial. Porque
tal como expressa por Sílvio Romero, Nina é o único país do orbe que oferece uma so-
Rodrigues, Alberto Torres, Oliveira Vianna, lução satisfatória do problema racial. Com
14 “O professor Luis Lobato se
autodeclarava socialista e Gilberto Freyre e Arthur Ramos. respeito aos homens de cor, oferece-lhes
propunha a participação dos Só depois de 1953, quando o TEN a sociedade brasileira praticamente todas
empregados nos lucros das em-
presas. Afirmando que ‘o negro rompe parcialmente com a intelectualidade as franquias. E se há um problema dos
é povo no Brasil’ ele chegava
à conclusão que ‘a distribuição
acadêmica, Guerreiro Ramos desenvolverá homens de cor em nosso país, ele consis-
igual nos lucros educará o povo, um pensamento original e crítico, bebendo te eminentemente em exercitá-los, pela
em geral, no sentido evolutivo
para o desaparecimento do mais intensamente do repertório de idéias cultura e pela educação, para usar aquelas
preconceito de cor, já que que nutriam a identidade negra brasileira, franquias. […] No momento em que lança-
este é uma decorrência da
própria condição econômica como a idéia-mote de que o negro, no Brasil, mos na vida nacional o mito da negritude,
do negro’” (Diário Trabalhista,
18/7/1946, apud Macedo, é povo14, mas refinando-a a partir de uma fazemos questão de proclamá-la com toda
capítulo 3, da dissertação reflexão mais sistemática, aprendida em clareza. A negritude não é um fermento de
citada).
autores estrangeiros, no caso particular, ódio. Não é um cisma. É uma subjetividade.
15 Para uma análise recente da
evolução do pensamento de nos intelectuais da descolonização, como Uma vivência. Um elemento passional que
Guerreiro Ramos, ver: Barbosa, Fanon, e tornando-se mais aberto às idéias se acha inserido nas categorias clássicas da
2004. Ver ainda: Oliveira,
1995. da negritude15. sociedade brasileira e que as enriquece de
substância humana. […] A negritude, com
seu sortilégio, sempre esteve presente nesta
cultura, exuberante de entusiasmo, inge-
nuidade, paixão, sensualidade, mistério,
embora só hoje por efeito de uma pressão
universal esteja emergindo para a lúcida
consciência de sua fisionomia” (O Quilom-
bo, n. 10, junho-julho/1950, p. 11).

Tal concepção será paulatinamente mo-


dificada por Guerreiro à medida que ele pre-
cisar fazer face às interpretações acadêmicas
sobre o seu pensamento e sobre o Teatro
Experimental do Negro, principalmente
aquela avançada por Costa Pinto (1998;
Maio, 1997), e ao tempo em que avançar
a luta anticolonialista na África, nos anos

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1960. A assunção de uma identidade não-
colonizada, negra, será então considerada
a condição preliminar para a construção de
uma identidade brasileira não-alienada.

“O brasileiro, em geral, e, especialmente,


o letrado, adere psicologicamente a um
padrão estético europeu e vê os acidentes
étnicos do país e a si próprio, do ponto de
vista deste. Isto é verdade, tanto em refe-
rência ao brasileiro de cor como ao claro.
Este fato de nossa psicologia coletiva é, do
ponto de vista da ciência social, de caráter
patológico, exatamente porque traduz a
adoção de critério artificial, estranho à vida,
para a avaliação da beleza humana. Trata-se,
aqui, de um caso de alienação que consiste
em renunciar à indução de critérios locais “Sem nenhum contato, desligados mate-
ou regionais de julgamento do belo, por rialmente, ignorando o que se fazia fora
subserviência inconsciente a um prestígio de nosso país, mantivemo-nos fiéis ao
exterior” (Ramos, 1995, pp. 194-5). apelo telúrico, ao chamado primitivo. Ao
fermento africano, à negritude, enfim, a
“A partir desta situação vital, o problema qual, já o disse alguém, antes de um tema
efetivo do negro no Brasil é essencialmente ou uma abstração conceitual, é o nosso jeito
psicológico e secundariamente econômico. de sermos homens, nossa ótica do mundo
Explico-me: […] O negro é povo, no Brasil. que nos rodeia. E tudo o que jeito e ótica
Não é um componente estranho de nossa têm de mais profundo e intocável. Por isso,
demografia. Ao contrário, é a sua mais im- segundo o poeta, nos reconhecemos mais 16 Ver o capítulo 2 da dissertação
de Macedo, já citada.
portante matriz demográfica. Esse fato tem de pelo olhar que pelo idioma” (Nascimento,
17 Uma rápida lista de lugares
ser erigido à categoria de valor, como o exige 2002a, p. 331) e atividades desenvolvidas
a nossa dignidade e o nosso orgulho de povo por Abdias durante seu exílio:
1968 – exposição na Harlem
independente” (Ramos, 1995, p. 200). Será, entretanto, apenas a partir do con- Art Gallery; no Cript Gallery
of Columbia University; Visiting
tato com o texto de Camus e da absorção lecturer na Yale School of
É certo que, para Abdias do Nascimento, dos seus conceitos que Abdias começará Drama; exposição na School
of Art and Architecture of Yale
principalmente em suas peças teatrais, a a articular um discurso político original, University; 1969 – Visiting
fellow na Weslyan University,
negritude tem uma expressão mais próxima de maturidade. O Negro Revoltado, de Connecticut; participação no
do pan-africanismo, como sugere Bastide 1967, é a primeira pedra desse discurso seminário “Humanidade em
Revolta”; Associate professor
(1983) e Macedo16 ressalta. No entanto, de maturidade, que evoluirá em direção no Centro de Estudos e Pes-
essa negritude de Abdias não se expressa a uma ideologia de libertação dos negros quisa Porto-riquenhos na State
University of New York; 1973
em discurso ou projeto político de ruptura brasileiros – o quilombismo. – participação na conferência
preparatória do VI Congresso
com a democracia racial, até pelo menos No quilombismo, forjado durante o Pan-Africanista da Jamaica;
1964, quando a tese de Florestan Fer- exílio norte-americano, Abdias concilia os 1974 – participação no VI
Congresso Pan-Africanista em
nandes sobre A Integração do Negro na conceitos eruditos de revolta e resistência Dar-es-Salaam, Tanzânia; 1976
– participação no seminário
Sociedade de Classes é assimilada pelos com os conceitos nativos de revolta e de sobre Alternativas Africanas,
ativistas negros. De 1964 até pelo menos quilombo, recriando assim, no plano da organizado pela União dos
Escritores dos Povos Africanos,
1966, data da “Carta Aberta ao I Festival política de identidade, um passado heróico em Dakar; Conferências em
de Arte Negra”, Abdias passa a construir o para o povo negro brasileiro e um futuro Washington e orador da grande
concentração organizada pelo
seu discurso político, afastando-se do ideal de luta. Para entendê-lo, todavia, é preciso Partido Revolucionário dos Po-
vos Africanos; 1977 – Professor
de democracia racial, denunciado como lembrar a sua intensa circulação interna- visitante na Universidade de
ficção ou mito, e assumindo integralmente cional depois de 196817. Como ele mesmo Ifé, Nigéria, e participação
no II Festival Mundial de Arte
o discurso da negritude: lembra: “Ironicamente, pode-se afirmar ter e Cultura Negro-Africanas.

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sido a ‘revolução’ [o golpe militar de 1964], “Observando as vicissitudes dessas ten-
contrariando seus próprios desígnios, que tativas [referia-se à Kwanzaa], às vezes
dinamizou a participação do negro brasileiro fracassadas, de restituir uma base autôno-
nos foros internacionais do mundo africano” ma de identidade comunitária para resistir
(Nascimento, 1982, p. 12). à sua absorção pelos padrões europeus
Sem pretender esmiuçar tal discurso de majoritários nos Estados Unidos, melhor
maturidade18, que não é objeto deste texto, pude compreender o vasto tesouro, não só
mas apenas para dar ao leitor uma idéia cultural, como também político, que cons-
de como os conceitos de resistência e de titui nossa herança religiosa afro-brasileira.
revolta são rearticulados à velha intuição Embora todo o trabalho cultural/político do
do quilombo como símbolo e síntese da TEN testemunhe essa consciência, já exis-
experiência africana no Brasil, finalizo por tente desde a década de 40, ela se agudizou
esboçar-lhe as linhas gerais. diante desse patético quadro de destituição
cultural do afro-norte-americano”.

Tomarei um texto de Abdias, publicado


O QUILOMBISMO como apêndice a O Negro Revoltado, na
sua segunda edição, para exemplificar o
Após o endurecimento do regime que venho de dizer sobre a evolução do seu
militar, em 1968, Guerreiro e Abdias pensamento. Trata-se de “Uma Mensagem
partiram para o exílio norte-americano. do Quilombismo”, conferência pronunciada
Na América, Guerreiro fará uma carreira por ele em 1980, na Câmara dos Deputados
muito bem-sucedida como sociólogo das dos Estados Unidos, em Washington.
organizações e não retomará jamais seus Logo de início, ele anuncia à platéia
escritos sobre as relações raciais brasi- afro-americana a herança de que ele é por-
leiras. Abdias, ao contrário, se tornará, tador: o quilombo.
nos anos vindouros, o principal líder da
reconstrução do movimento negro bra- “Existe outra condição da vida africana
sileiro. O exílio norte-americano será que nunca se modificou durante a história
decisivo para o futuro da sua ideologia do meu povo: nossa resistência contra a
política, que será enriquecida pelo con- opressão e nossa vitalidade e força criativas.
tato íntimo com as idéias que circulam Trouxemos conosco, desde a África, a força
no mundo anglo-afro-americano. As do nosso espírito, das nossas instituições
idéias de raça, o birracialismo, o multi- socioeconômicas e políticas, de nossa re-
culturalismo e o afrocentrismo, tal como ligião, arte e cultura. É essa a essência do
desenvolvidos por um de seus melhores nosso conceito de quilombo” (Nascimento,
amigos, Molefi K. Asante (1987), pene- 1982, p. 26, grifos meus).
trarão definitivamente no seu vocabulário
político e entrarão na agenda do Movi- O quilombismo de Abdias assenta-se,
mento Negro brasileiro, que se reorganiza todavia, sobre o elemento basilar da iden-
a partir de 1980. tidade afro-brasileira que é a idéia de que
Essas idéias anglo-saxônicas serão, en- o Brasil foi construído pelo trabalho dos
tretanto, integradas à velha matriz da identi- africanos, negros e mulatos. Idéia essa que
dade negra brasileira, à negritude brasileira, vem do movimento abolicionista e pode ser
18 Para estudar o amadureci- com suas inclinações nacional-populistas, encontrada em Manoel Querino (1980) e nos
mento do quilombismo, como
ideologia, ver: Nascimento,
seu anticolonialismo e antiimperialismo, pioneiros da identidade negra brasileira19:
2002b. agora potenciadas pelas noção camusiana
19 Analisei este texto de Querino de resistência. “Nossos ancestrais nos legaram outra he-
em “Manoel Querino e a For-
mação do ‘Pensamento Negro’ As razões para tal desenvolvimento rança: a construção de um país chamado
no Brasil, entre 1890 e 1920”, serão parcialmente anunciadas pelo próprio Brasil, erigido por africanos e somente
comunicação apresentada no
ano passado, nesse GT. Abdias do Nascimento (1982, p. 20): por africanos. Um país com um território

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enorme, a metade da América do Sul; um científicas da época diziam que o negro
país maior do que o território continental ‘permaneceria para sempre como motivo
dos Estados Unidos. A tarefa de construir básico da nossa inferioridade como povo’.
a estrutura econômica e material desse país Era necessário acabar com ele. A literatura
significou o holocausto de milhões de vidas política daquele tempo é muito explícita
africanas” (Nascimento, 1982, p. 25). neste sentido. E assim começa o genocídio,
nesse século, do povo negro do Brasil, de
Os demais elementos do quilombismo duas maneiras: através da liquidação física,
são mais bem explicados pela conjuntura inanição, doença não atendida, e brutali-
política dos anos 1980 e pela internacio- dade policial; mais sutil é a operação da
nalização da luta negra em conexão com miscigenação compulsória. Esta política
alguns grandes movimentos sociais interna- demográfica, pregada como ideal social pe-
cionais: o restabelecimento da democracia las camadas dominantes, dita que o cidadão
na América Latina e a defesa dos direitos brasileiro atinge os direitos civis e humanos,
humanos ameaçados pelas ditaduras ins- a ascensão na escala socioeconômica, enfim,
taladas na década de 1960, a luta contra o a sobrevivência física e econômica, somente
apartheid e contra as desigualdades raciais na medida em que ele atinja as caracterís-
e o movimento feminista. ticas do branco, na cor da pele, nos traços
Vamos rapidamente a eles. Comecemos somáticos e no comportamento social, não
pelo feminismo. A idéia aceita internacio- importando sua competência profissional,
nalmente do Brasil como uma nação mesti- seu caráter ou inteligência” (Nascimento,
ça, e da mestiçagem como uma solução para 1982, p. 27, grifos meus).
o racismo, é denunciada por Abdias a partir
da categoria jurídico-moral de estupro: Entretanto, foi uma novidade, introdu-
zida por Abdias com nítido fim político, o
“O senhor colonial português não se casava argumento de que o Brasil é o maior país
com a mulher africana, conforme implica negro do mundo depois da Nigéria. A auto-
o slogan convencional do intercasamento: ridade decorrente da demografia fará com
estuprava-a. […] disso resultando o fenô- que os negros brasileiros se apresentem,
meno cruel de sua prostituição forçada em internacionalmente, pela voz de Abdias, à
nossa sociedade. Semelhante à violência maneira dos sul-africanos, como uma maio-
policial que se pratica normalmente contra ria negra explorada por uma minoria branca
a comunidade negra, a violência sexual é ou embranquecida. Para isso é preciso que
também outro elemento do estado de terror a democracia racial seja denunciada, não
sistematicamente imposto sobre nós, para apenas como mito, mas como ideologia
reforçar em nós o sentimento de nossa racista:
própria impotência e inferioridade” (Nas-
cimento, 1982, p. 29). “O supremacismo branco no Brasil criou
instrumentos de dominação racial muito
Outras categorias, essas muito caras sutis e sofisticados para mascarar esse 20 O termo aparece pela primeira
vez, com referência aos negros,
ao movimento internacional de defesa dos processo genocida. O mais efetivo deles na famosa petição apresentada
direitos humanos, genocídio20 e violência, se constitui no mito da ‘democracia racial’. por Paul Robeson e William L.
Patterson às Nações Unidas,
são também acionadas por Abdias, ao tempo Aqui temos talvez a mais importante dife- “We Charge Genocide: the
Crime of Government Against
em que reforça idéias já consolidadas, como rença entre os sistemas de dominação anglo- the Negro People”. O texto
a máxima de Guerreiro de que negro é o americana e luso (ou hispano)-americano. da petição começa assim:
“Out of the inhuman Black
povo brasileiro: O mito da ‘democracia racial’ mantém uma ghettos of American cities, out
fachada despistadora que oculta e disfarça of the cotton plantations of the
South, comes this record of mass
“Já que o ex-escravo se tornara cidadão, o a realidade de um racismo tão violento e slayings on the basis of race, of
lives deliberately warped and
Brasil se tornava inegavelmente um país tão destrutivo quanto aquele dos Estados distorted by the willful creation of
negro; circunstância que a elite domi- Unidos ou da África do Sul” (Nascimento, conditions making for premature
death, poverty and disease…”
nante branca não podia tolerar. As teorias 1982, p. 28). (Patterson, 2001).

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Também em sintonia com o movimento mento entre 1968 e 1980. Tal continuidade
internacional de defesa dos direitos hu- foi garantida pela sua incorporação dos
manos, as desigualdades sociais no país conceitos de resistência e revolta, desenvol-
serão apresentadas como racismo. Mas vidos no mundo intelectual francês, e dos
não apenas isso, as desigualdades sociais quais ele toma plena consciência apenas
são também utilizadas por Abdias para depois da leitura de O Homem Revoltado,
retomar as antigas bandeiras antiimpe- de Albert Camus, em algum momento entre
rialistas, agora renovadas pelas idéias da março de 1966 e agosto de 1967. É bem
nova esquerda brasileira e latino-americana verdade que tais conceitos já estão presentes
(Marini, 1974): em estado latente em muitos escritos de sua
fase anterior, em meados dos anos 1950
“A ditadura [militar brasileira] articulou ou meados de 1960, quando estreita suas
também uma política econômica de indus- afinidades com a négritude. É bem verdade,
trialização forçada dentro do sistema capi- também, que sua visão das religiões afro-
talista-monopolista mundial, entregando brasileiras já estava marcada há muito pela
a economia do país ao capital estrangeiro mesma concepção de resistência, tal como
multinacional e transformando o Brasil num Bastide (1945; 1961) a empregava.
poder subimperialista, que se expande em É forçoso reconhecer que, se é verdade
busca dos mercados das economias mais que muitos ignoram essa última fase de
fracas da África e do resto da América Abdias antes do exílio, e daí rapidamente
Latina. Tal política econômica resultou, comparam o Abdias dos anos 1950 ao Ab-
inclusive, numa escandalosa concentração dias dos 1980, atribuindo a sua mudança à
racial da renda nas mãos de uma minúscula incorporação de valores negro-americanos,
elite minoritária, constituída de somente 5% é também verdade que o quilombismo
da população do país. Esses 5% absorveram marca uma nova ruptura, a qual pode ser
27,7% do ingresso nacional em 1960; até sintetizada pela centralidade que passa a ter
1976, essa proporção havia aumentado para o afrocentrismo em seu pensamento. Essa
quase 40%. No outro extremo, a metade segunda ruptura, entretanto, não foi objeto
mais pobre do nosso povo, sendo a imensa do presente artigo.
maioria de descendentes africanos, obteve Meu argumento principal, todavia, é
17,7% em 1960; em 1976, sua parcela havia de que se houve ruptura no pensamento de
diminuído para quase 11,8%” (Nascimento, Abdias, e houve várias, a maior delas, a que
1982, p. 31, grifo meu). marca realmente um ponto de inflexão com
sua ideologia política dos anos 1950, deu-se
De real e completamente novo, portanto, quando Abdias passou a narrar a história
Abdias trará ao Brasil o discurso afrocên- do negro brasileiro como uma história de
trico. É certamente dele que decorrem os resistência cultural e de revoltas políticas.
pontos mais virulentos do discurso qui- Meu argumento, portanto, revalida a posi-
lombista: a denúncia do genocídio físico ção do próprio Abdias, que sempre negou
e cultural que estariam sofrendo os negros que o exílio norte-americano tivesse feito
brasileiros, e a apresentação internacional dele um militante diferente daquele que
da democracia racial como discurso supre- deixou o Brasil.
macista branco. Mais ainda, é preciso salientar que foi
precisamente a incorporação das noções
de négritude, primeiro, e, principalmente
as de résistance e révolte, ou seja, de no-
CONCLUSÃO ções que chegam ao TEN pela sua estreita
correspondência com a Présence Africaine,
Procurei demonstrar, ao longo destas que o pensamento de Abdias começa a
páginas, que existe mais continuidade que afastar-se do mainstream da intelectuali-
ruptura no pensamento de Abdias do Nasci- dade brasileira, mormente da influência

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de figuras-chaves como Arthur Ramos, e não há por que duvidar dela, isso indica
Edison Carneiro, Costa Pinto e Gilberto que o rompimento público com aqueles
Freyre, que vêem com muita desconfiança intelectuais, que se efetiva depois, com a
e preocupação a aproximação dos negros publicação de O Negro no Rio de Janeiro,
brasileiros aos padrões racialistas europeus de Costa Pinto, já estava em gestão pelo
e americanos. Se a datação sugerida por menos desde 1951, ou seja, no rescaldo do
Elisa Nascimento e Abdias estiver correta, I Congresso do Negro Brasileiro.

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