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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO – UNIRIO

CENTRO DE LETRAS E ARTES


ESCOLA DE TEATRO
CURSO DE GRADUAÇÃO EM TEATRO

PARTITURAS E CANÇÕES PARA PIRATAS:

A PERFORMATIVIDADE NA ESCOLA DO ESPETÁCULO

IVAN DOS SANTOS FARIA

Rio de Janeiro – RJ
2018
IVAN DOS SANTOS FARIA

PARTITURAS E CANÇÕES PARA PIRATAS:

A PERFORMATIVIDADE NA ESCOLA DO ESPETÁCULO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


ao Departamento de Ensino do Teatro da
Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro (UNIRIO) - Centro de Letras e Artes
(CLA), como pré-requisito para obtenção do
grau de Licenciado em Teatro, orientado pela
Profa. Dra. Marina Henriques Coutinho.

Rio de Janeiro – RJ
2018
IVAN DOS SANTOS FARIA

PARTITURAS E CANÇÕES PARA PIRATAS

Trabalho de Conclusão de Curso submetido à Comissão Examinadora designada pelo Curso de


Graduação em Teatro, modalidade Licenciatura, do Departamento de Ensino do Teatro da
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) - Centro de Letras e Artes (CLA), como
pré-requisito para obtenção do grau de Licenciado.

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________________
Profa. Dra. Marina Henriques Coutinho – UNIRIO
Orientadora

_________________________________________________
Profa. Dra. Liliane Ferreira Mundim – UNIRIO

__________________________________________________
Me. Marcelo Azevedo Asth

__________________________________________________
Prof. Dr. Marcos Aurélio Bulhões Martins - USP

Nota: ______________________

Rio de Janeiro, _____de__________ de________


Dedico este trabalho a todos os jovens que anseiam pela arte nas escolas:
os que tive a sorte de conhecer e aqueles que em algum lugar,
em todo lugar, esperam e merecem seu fazer artístico.
E ao jovem que eu fui e que sonhou ser artista.
AGRADECIMENTOS

À meus pais, Roberto e Cristina, por terem sido sempre chão e teto e abrigo.

À minha irmã, Bela, por estar lá quando eu mais precisei.

À minha orientadora Marina, por tudo: por sempre acreditar e sempre segurar na

mão, por ser tão companheira e por fazer desses caminhos da academia tão mais

caminhos do afeto.

À Ana Paula por me ajudar a construir saúde no sentido mais amplo, no sentido

mais feliz.

À Susanna, por ter entrado na minha vida como uma manhã de carnaval e ter feito

tanta festa. Por ter ensinado e partilhado tanta coisa: dos afetos, dos estudos, da vida e

do lar.

À Thaynara que chegou de mansinho e se apossou do meu coração. Por ser todo

dia testemunho de uma mulher forte, corajosa e aventureira. Por me ajudar a seguir

quando eu tenho medo.

À Ana Paula, Juliane e Taye que foram família e casa quando me aventurei.

À Necylia que está chegando e de maneira tão generosa.

À Daniel, por ter sido o primeiro. E por isso ter mudado tudo. Por ter me olhado

nos olhos, segurado minha mão e não ter me deixado ir embora. Pelas trocas de afeto e

de pensamentos. Por todo o amor.

Ao amigo Gustavo Henrique pelo olhar sensível e carinhoso, sempre. Por ser

companheiro nessa jornada.

À Karlla Maria, pelas aventuras, gargalhadas e companheirismo.

À Julia e Letícia por estarem cada vez mais perto.

À Luiza e Leandro, por serem esse calor no coração, e família também.

À Tainá, por ser a guru da tecnologia, sempre disposta com seu sorriso infinito.
À Rodrigo, por ter chegado de repente com toda sua alegria e afeto.

Aos amigos e colegas da Unirio que fizeram essa travessia mais bonita, em

especial: Gisele, Juliana, Nata, Tauã.

Aos mestres da Unirio que contribuíram com a minha jornada acadêmica, em

especial: Ana Achcar, Angela Materno, Angela Reis, Joana Ribeiro, Leonardo Munk,

Liliane Mundim, Miguel Vellinho, Paulo Trajano.

À Profa. Ana Bernstein pela competência e por ter me olhado como artista quando

eu menos esperava.

À Profa. Tânia Alice, por ter sido a primeira a falar de performance e ter plantado

essa semente.

Ao querido Marcelo Asth pela generosidade e atenção em colaborar com os

encaminhamentos desta pesquisa.

À Fundação Casa de Rui Barbosa, Coletivo Kinodeleuze, Coletivo Mil Brechas e

Rede Universidade Nômade pela organização do curso Deleuze e Guattari – recontar

platôs, em especial a Bruno Cava, ministrante; pela difusão e acessibilidade do

conhecimento.

À Rainer, Selma e Werther, na casa de quem, mesmo sem saber, as primeiras

linhas forma escritas.

Aos companheiros de ofício no Colégio Salesiano Santa Rosa, em especial à Elza

Solon e Tânia Dutra, por serem exemplo de competência e humanidade. Por terem me

recebido tão bem no início de tudo.

Aos jovens que passaram pelas minhas aulas na Oficina Livre de Teatro e que

foram parceiros e colaboradores artísticos.

Gratidão!
Viver é afinar o instrumento
De dentro prá fora
De fora prá dentro
A toda hora, todo momento
De dentro prá fora
De fora prá dentro
A toda hora, todo momento
De dentro prá fora
De fora prá dentro

(Walter Franco, Serra do luar)


RESUMO

O presente trabalho propõe um olhar sobre a instituição escolar através da Sociedade do


Espetáculo (DEBORD, 1997), pensando que a escola que contribui com as dinâmicas
desta sociedade (fragmentação, alienação, relação através das imagens) passa a ser ela
própria uma Escola do Espetáculo. O objetivo da pesquisa é pensar como construir
alternativas a este panorama usando o espaço da aula de teatro. Assim, trabalhar com a
performatividade, ou o teatro performativo, no ambiente escolar surge como uma
possível resposta a esta questão. Não só no sentido de efetivar performances, mas
também de ser a performatividade um processo, uma metodologia e, mais,
reconhecendo o próprio espaço da aula como uma ação performativa e caracterizando,
assim, o professor como híbrido professor-performer (CIOTTI, 2014). O trabalho
também efetiva um mapeamento de ações performativas efetivadas em ambiente escolar
pelo autor.

Palavras Chave: Performatividade; Escola; Sociedade do Espetáculo; Escola do


Espetáculo; Híbrido professor-performer.
ABSTRACT

This work aims to discuss the role of school through the Society of the
Spectacle (DEBORD, 1997). In his work, the author suggests the concept of School of
Spectacle as a school that contributes to the dynamics of this society (fragmentation,
alienation, relation through images). The point of the research is to examine how to
build up alternatives to this dynamics in theater classes. Therefore, working with
performativity, or performative theater, in the school environment emerges as a possible
answer to this matter. Not only in the sense of making performances happen, but also of
being performativity a process, a methodology and, moreover, recognizing the lesson
itself as a performative action and thus characterizing the teacher as a hybrid teacher-
performer (CIOTTI, 2014). This work also traces back to performative actions carried
out in the school environment by the author.

Keywords: Performativity; School; Society of the Spectacle; School of the Spectacle;


Hybrid teacher-performer.
SUMÁRIO DAS FIGURAS

Figura 1: mapa da deriva conceitual ............................................................................. 27

Figura 2: mapa conceitual com maior territorialização................................................ 28

Figura 3: mapa conceitual insinuando estrutura de tópicos. Surge o “pirata” ............ 28

Figura 4: deslizamento de terra em Taiwan .................................................................. 76

Figura 5: registro da performance "Aula de artes" ..................................................... 107

Figura 6: o professor-performer pinta a aluna-performer durante a ação de "Aula de

artes" ............................................................................................................................ 107

Figura 7: detalhe dos registros gráficos produzidos durante a performance "Aula de

artes" ............................................................................................................................ 107

Figura 8: alunas-performers durante a performance "Rotule" já com as intervenções

dos passantes ................................................................................................................ 111

Figura 9: detalhe dos adesivos colados na aluna-performer durante a performance

"Rotule" ........................................................................................................................ 111

Figura 10: detalhe dos adesivos colados em um dos passantes que se juntou às alunas-

performers durante a ação de "Rotule"........................................................................ 111

Figura 11: alunos-performers no corredor da escola durante a ação "Renascer?" ... 117

Figura 12: registro da performance "Renascer?" ....................................................... 118

Figura 13: aluna-performer durante sua intervenção na performance "Renascer?" . 118

Figura 14: alunos-performers caminhando vendados na performance "Os cegos" .... 121

Figura 15 : imagem final da performance "Os cegos", no altar da basílica ............... 121
Figura 16 e 17: performance urbana CEGOS em São Paulo.......................................122

Figura 18: quadro A Parábola dos Cegos, de Pieter Bruegel......................................123

Figura 19: mural-instalação da Performance "O rastro da liberdade" ...................... 125

Figura 20: confecção do cartaz para a Performance "O rastro da liberdade" ........... 125

Figura 21: o grupo se prepara para a performance "O rastro da liberdade"............. 125

Figura 22: ação com os guarda-chuvas na performance "O rastro da liberdade" ..... 128

Figura 23: alunos-performers ao fim da performance "O rastro da liberdade" ......... 128

Figura 24: roupa de um dos alunos-performers após a performance "O rastro da

liberdade" ..................................................................................................................... 128

Figura 25: registro da performance "As quatro estações" no pátio da escola............ 129

Figura 26: alunas-performers em cortejo com participação espontânea de outros

jovens durante a ação "As quatro estações" ................................................................ 130

Figura 27: registro da performance "As quatro estações" na praça de alimentação da

escola com funcionários e alunos observando ao fundo .............................................. 132

Figura 28: crianças da escola aderem ao cortejo da ação "As quatro estações" ....... 132

Figura 29: contraste entre as caminhadas ................................................................... 133

Figura 30: duas alunas (em primeiro plano) aderem ao cortejo de alunos-performer na

ação "Beber água" ....................................................................................................... 133


SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ....................................................................................................... 13

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 16

CAPÍTULO 1: UMA ESCOLA DO ESPETÁCULO................................................ 34

1.1 - A Sociedade do Espetáculo e sua escola: alienação dos corpos, a disciplina e a


força de trabalho. ........................................................................................................ 34

1.2 - Figuras vagabundas: o que fica de fora .............................................................. 43

1.3 – Como resistir: o saber da experiência, a montagem e a performatividade ........ 53

1.4 - A Arte, essa peste: ainda sobre resistir ............................................................... 63

CAPÍTULO 2: A PERFORMATIVIDADE NA ESCOLA ...................................... 68

2.1 – Uma ANTIdefinição performática..................................................................... 69

2.2 – Inventividade e não criatividade ........................................................................ 71

2.3 – Aula espetáculo.................................................................................................. 72

2.4 - Aspectos, desafios e potências da performatividade na escola .......................... 73

2.5 – O híbrido professor-performer........................................................................... 89

2.6 – Sobre os meus processos ................................................................................... 96

CAPÍTULO 3: RELATOS DE MEUS INVENTOS PERFORMATIVOS EM


AMBIENTE ESCOLAR ............................................................................................ 105

3.1 – Relato da performance “Aula de Artes” .......................................................... 105

3.2 – Relato da performance “Rotule”...................................................................... 107

3.3 – Relato da performance “Renascer?” ................................................................ 112

3.4 – Relato da performance “Os cegos” .................................................................. 119

3.5 – Relato da performance “O rastro da liberdade”............................................... 122

3.6 – Relato da performance “As quatro estações” .................................................. 129

3.7 – Relato da performance “Beber água” .............................................................. 132

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 137

REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 140


APRESENTAÇÃO

Estou cansado. Muito cansado. Da escola.

Estou cansado dos alunos cansados e massacrados por provas e notas baixas e

notas altas. Seus corpos tão jovens e tão encurvados, cansados. Corpos que aprenderam

que não são bons ou bonitos o suficiente. Estou cansado disso. Cansado de ser um dos

poucos a dizer-lhes que seus corpos e sonhos são lindos. Estou cansado de que eles não

acreditem quando lhes digo essas coisas.

Estou cansado de ter que me impor diante dos colegas e coordenadoras e diretores

e diretoras e ser a única pessoa na sala de reunião a perguntar: qual o sentido disso na

escola?! Estou cansado de ver professores que reproduzem mecanismos de punição,

subordinação e produção que lhes são impostos e fazem mal a eles próprios. Estou

cansado que eles não se deem conta. Muito cansado.

Estou cansado das folhas de ponto, roletas, catracas, crachás de identificação e

jalecos (jalecos!) que me fazem sentir sempre numa fábrica e nunca num lugar de

felicidade onde eu decidi trabalhar.

Estou cansado de pensar que talvez eu tenha escolhido uma profissão fracassada e

que o meu esforço – qualquer esforço, todo o esforço! - terá sido em vão, mesmo que de

algum modo eu saiba que essa é a lógica da escola empresa fábrica.

Mesmo que eu saiba, estou cansado... E tem dias, a maior parte deles, em que

chego em casa e deito no sofá sem forças sequer para tomar banho. E me deixo ficar

horas, duas ou três, até sentir minhas energias minimamente recuperadas, como se toda

aquela estrutura escolar tivesse sugado minha força vital. É terrível.

E tem dias em que digo coisas feias aos alunos. E tem dias em que eu sei que não

fiz o meu melhor. E tem dias em que poupo minhas forças para poder dar conta de todas

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as outras turmas e questões que terei de dar conta até o fim do dia. E tem dias em que eu

vi um aluno ou aluna ser massacrado pelo julgamento do grupo e não fiz nada. Eu não

pude fazer nada. Eu não consegui fazer nada. E tem dias em que eu me sinto muito mal

por não ser o melhor que eu posso ser. E tem dias em que uma criança sorri. E tem dias

em que eu... (!) ... Interrupção. No tempo, no espaço, no cansaço.

Uma criança sorriu.

E eu vi.

(Não sei bem o que fazer.)

Uma criança sorriu e continua sorrindo e pede para sentar ao meu lado na roda. E

continua sorrindo.

E uma outra criança diz que gosta da minha aula porque é o único lugar em que

ela é ouvida. E um pai te agradece por estar ajudando o filho a superar a timidez e a se

integrar na escola. E uma outa criança - poderia ser a mesma – diz que está ali porque o

sonho dela é ser artista e eu respondo: você já é!

Eu não respondi todas as vezes, eu sei, fui fraco. Mas eu respondi algumas! Eu

respondi mesmo! E ela até não entendeu, mas eu falei e aquelas palavras ecoaram no

espaço e eu ouvi minha voz ecoar no espaço e pude descobrir que eu ainda tinha voz e

que ela funcionava.

E a minha voz me dizia que eu queria contar para aqueles meninos e meninas que

eles também têm voz e podem fazer tudo o que quiserem com ela.

A criança continua sorrindo do meu lado. Mas eu continuo cansado. Mas ela

continua sorrindo... (Talvez seja eu mesmo sorrindo para mim de um outro lugar do

tempo e do espaço, quando eu era garoto e sorria para os meus professores.)

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Essa é a loucura desse lugar professor, a loucura de ser essa coisa que chamaram

de professor: não tem lógica nenhuma... E é por isso que só faz sentido se pensada pela

lógica da paixão.

15
INTRODUÇÃO

O texto que inicia esse trabalho não é sobre desistência. Ao contrário, é sobre

resistência. É sobre a razão, ainda que não racional, de não ir embora. Se ele tem um

aspecto de cansaço, de certo modo oposto ao que vai ocorrer em seguida, é porque me

interessa mais estabelecer as coisas pelo lado de fora. Por aquilo que elas não são. Pelo

negativo. Pelas bordas enevoadas. Pelas linhas de fuga (DELEUZE; GUATTARI,

1995).

Sendo assim, começo dizendo: nunca fui designer.

Aos 18 anos conclui meu ensino médio numa escola particular na cidade de

Niterói – RJ e passei no meu primeiro concurso de vestibular. Ingressei

automaticamente na Universidade Federal do Rio de Janeiro no curso de graduação em

de Design Gráfico. Escolhi esse curso porque na época uma orientadora educacional da

escola me disse que a carreira de design se adequava mais aos meus projetos de vida e

me traria uma estabilidade e um retorno financeiro maiores do que as carreiras artísticas

que naquele momento eu cogitava (teatro, música). Além disso, seria uma opção para

não abrir mão de um trabalho associado ao fazer artístico, ao ato criativo. Engano.

O curso de design gráfico tinha pouca ênfase na arte e um grande foco na questão

industrial: como otimizar processos, reduzir custos, produzir em larga escala. Vale

guardar essa informação porque ela vai fazer muito sentido mais à frente.

Em paralelo ao curso de graduação eu segui com a minha prática nas artes

cênicas. Eu tinha começado a fazer teatro ainda no Ensino Médio na escola onde

estudava e continuei fazendo parte do mesmo grupo mesmo depois de concluída a

escola. O único ano em que parei de fazer teatro para me dedicar mais à carreira de

design, numa tentativa de me adequar, foi um dos momentos de maior infelicidade.

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Quando terminei a graduação - tendo passado por alguns estágios que me

mostraram que a rotina da profissão não me agradava – decidi que iria prestar o

vestibular de novo para a graduação de licenciatura em teatro da Universidade Federal

do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO. Aquele era o ano de 2010 e quando contei isso

para a minha então professora e diretora de teatro, que mediava o grupo de teatro da

escola do qual eu ainda fazia parte, ela perguntou:

ELA - Você vai fazer mesmo o vestibular para teatro?

EU - Vou.

ELA - Mas vai mesmo?

EU - Vou.

ELA - Para licenciatura?

EU - Vou.

ELA - Então eu tenho um emprego para você.

Aquela professora tinha acabado de ser aprovada no concurso para professora na

UNIRIO com dedicação exclusiva e precisaria abrir mão de seu cargo na escola onde

tínhamos o grupo e, se possível, indicar alguém para substituí-la. No início eu achei

uma loucura, que a escola nunca iria me contratar e que eu não tinha competência para

assumir o cargo. Naquele momento, o projeto – a Oficina Livre de Teatro - já vigorava

a 7 anos ininterruptos e contava com aproximadamente 80 alunos e cerca de 6 turmas

por ano, todas com práticas de montagem diferentes, tudo sob o comando dela, única

professora responsável. Eu tive medo. Mas era uma grande oportunidade,

principalmente de buscar um sustento na arte e de ajudar a convencer minha família de

que uma nova graduação, agora na licenciatura em teatro, não era um projeto tão

absurdo. Dessas justificativas que precisamos quando ainda dependemos dos outros, da

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família. Também das justificativas que precisamos para nos convencer de nossos

próprios projetos.

Aos poucos, a professora foi me convencendo de que o fato de eu já ter uma

graduação concluída em uma Escola de Belas Artes, o meu engajamento no projeto

desde o início e, principalmente, meu desejo e projeto de ingressar no curso de

licenciatura faziam com que eu tivesse o perfil para o trabalho. Além disso, ela se

comprometeu a me ajudar e orientar à distância na condução das aulas. E assim foi

feito: uma vez convencida a direção da escola, eu assumi as turmas e minha antiga

professora me orientou sobre todo o encaminhamento do trabalho. Ela foi como mãe.

Lembro do dia em que sentamos juntos e que ela me apresentou sua caixa de jogos

teatrais. Era uma caixa física, cinza, com uma divisão na parte de dentro de separava os

jogos em quatro quadrantes (jogos de integração, temas para improvisação, expressão

corporal e concentração – eu acho...). As pequenas cartinhas plastificadas, com

indicações de cores, tinham o nome do jogo. E só. Ela abriu a caixa, foi tirando uma a

uma as cartas e me explicando os jogos: esse aqui é um que você coloca o grupo em

roda.... Eu fui anotando. Esse foi o meu primeiro arquivo de jogos e atividades para as

aulas de teatro.

Mas o cuidado não parou por ai. As aulas na escola terminavam 19h. Às 19:30 o

telefone tocava, era ela. Queria saber como tinham sido as atividades: “Como foi hoje?

Faltou muita gente? Aquele garoto tem ido? Fica atento na fulana que ela tem

dificuldade de se integrar. Aquela outra já decorou o texto?” Foi lindo. De um cuidado

sem tamanho. Eu me senti amparado e seguro para assumir aquele desafio. Se algum dia

eu precisar passar por uma situação parecida de passar o meu cargo para alguém, é

assim que vou fazer. “Ensinar exige a corporificação das palavras pelo exemplo”

(FREIRE, 2011, p. 35).

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Essa mulher tão forte e carinhosa, sempre com os pés no chão e o olhar no

horizonte foi se tornando amiga e parceira. Nos reencontramos pelos caminhos da

UNIRIO e hoje é quem orienta este trabalho de conclusão de curso. Não poderia ser

diferente o modo de fechar esse ciclo. Se hoje estou aqui, estudando, trabalhando e

produzindo a partir da paixão (dessa lógica da paixão) e do desejo que tenho pela arte e

pelo teatro é porque lá atrás aquela artista sensível olhou para um jovem cheio de

sonhos e soube que era possível. Este trabalho nasce disso: dessa capacidade de

acreditar no próximo.

***

Assim, eu comecei minha experiência de professor de teatro quase que

simultaneamente ao meu ingresso na graduação em teatro. Essa circunstância foi muito

proveitosa para o meu crescimento profissional porque aquilo que me ia sendo

apresentado na faculdade eu ia tentando aplicar aos grupos onde lecionava.

Metodologias do ensino do teatro, exercícios de expressão corporal, jogos de improviso,

visadas da pedagogia, a faculdade ia me fornecendo um arquivo de informações que ao

serem colocadas em prática iam criando o meu repertório para ser mediador na

linguagem teatral.1

Nesse ponto preciso dizer que a UNIRIO não só me possibilitou todo um aparato

de conhecimento acadêmico, mas também me ofereceu toda uma série de vivências e

experiências fundamentais para mim. Minha primeira universidade, cursada de 2005 a

2010, me mostrou uma instituição branca e elitista. Na época, não notei nada de

estranho porque era o mesmo ambiente que eu tinha vivenciado na minha escola

1
A questão sobre “arquivo e repertório” se baseia, aqui, nos escritos de Denise Pereira Rachel (2013, p.
47) e será mencionada novamente mais a frente, mais especificamente no capítulo 3, mas não é a tônica
deste trabalho. Por se tratar de um tema muito potente, guardo para um momento de pesquisa futura.

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(particular) durante toda minha vida. Mas quando entrei na UNIRIO e ao longo do

curso, eu fui entrando em contato com uma enorme diversidade de indivíduos e

experiências de vida: negras, negros, gays, trans, periféricos e periféricas – das

periferias do Rio de Janeiro, em Santa Cruz, às periferias do Brasil, em Aparecida de

Goiânia. Estes eram meus amigos e amigas, companheiros de cena, trabalho, estudo e

festa. Com tantos atravessamentos a noção de centro se desloca. Eu fui me dando conta

dos meus privilégios, dos quais não tinha consciência: homem, branco, de classe média.

Desse modo, na UNIRIO eu fui vivenciando e construindo desde os meus afetos

pessoais até a dimensão política da minha profissão e do meu ser humano em sociedade.

Por isso, por tudo isso, eu sou grato a esta instituição e a todos, todas e todxs que

atravessaram meu caminho nesta jornada.

Além disso, fica também o entendimento de que só uma universidade pública e

com políticas de acessibilidade poderia prover esses encontros. Sei que a luta por uma

universidade para todxs ainda não conquistou tudo aquilo que quer e precisa. Mas

também quero partilhar um olhar otimista de quem vê os avanços. Se no ano de 2017

nos deparamos no Centro de Letras e Artes da Unirio com pichações racistas foi porque

esses negros e negras chegaram na universidade para ficar.

Trago esse relato porque tudo isso foi fundamental para a minha construção

profissional de professor de teatro e para o trabalho que venho desenvolvendo desde

2010 até o presente momento, 2018, na Oficina Livre de Teatro – no mesmo lugar onde

iniciei minha prática docente. Este profeto funciona como um programa extraclasse e

optativo em que os alunos interessados se inscrevem e participam de uma aula semanal

com duração de uma ou duas horas (Ensino Fundamental e Médio, respectivamente)

que ocorre no contra turno. Os alunos envolvidos não pagam a mais por essas aulas,

sendo o projeto disponibilizado pela escola com seus custos já inclusos na mensalidade

20
regular. O professor responsável tem vínculo empregatício com a instituição, com

remuneração fixa por hora/aula. Este vínculo faz com que a atividade, apesar de

extraclasse, tenha uma relação bastante íntima com a escola: seja no acompanhamento

dos alunos e alunas junto aos professores e orientação educacional, seja na participação

do calendário acadêmico.

O projeto fica sediado no Colégio Salesiano Santa Rosa, na cidade de Niterói,

estado do Rio de Janeiro. Esta escola se caracteriza por ser uma instituição particular de

ensino e pertencer à Rede Salesiana de Escolas, grupo de escolas católicas.

Atualmente, a Oficina tem mais de 100 alunos envolvidos divididos em 8 turmas

regulares, cada uma com sua respectiva montagenm de fim de ano. O projeto é

oferecido para todas as séries da escola (do sexto ano do Ensino Fundamental II até o

terceiro ano do Ensino Médio) permitindo também que ex-alunos da escola que ao se

formarem estivessem participando da Oficina de Teatro possam permanecer na

atividade.

Os grupos são compostos a partir de inscrições que ocorrem no início do ano

letivo e o critério de preenchimento de vagas é a ordem dessas inscrições, sem nenhum

tipo de seleção. As turmas são ofertadas de modo a agrupar os alunos por faixa etária ao

mesmo tempo que busca quebrar a seriação tradicional da escola. Além disso, leva-se

em consideração que as séries do Ensino Fundamental II são as que registram maior

número de inscritos. Sendo assim, a oferta das oito turmas que atualmente compõe a

Oficina Livre de Teatro se dá do seguinte modo:

- 2 turmas para o 6o ano do Ensino Fundamental II,

- 2 turmas em que alunos de 7º e 8º anos do Ensino Fundamental II ficam juntos

- 1 turma para o 9º ano do Ensino Fundamental II e 1º ano do Ensino Médio,

- 1 turma para o 1º e 2º anos do Ensino Médio,

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- 1 turma para o 2º e 3º anos do Ensino Médio,

- 1 turma para o 3º ano do Ensino Médio e ex-alunos.

Ao longo dos 14 anos de funcionamento, estima-se um total de 98 turmas, 1.425

alunas e alunos envolvidos, 80 montagens e um público de aproximadamente 6.860

pessoas. Tudo isso gerenciado por um único professor ou professora por vez.

***

Nos meus primeiros anos de trabalho, e de faculdade, eu estava ocupado em

entender e lidar com questões bem práticas do universo docente: planejamento das

aulas; como manter a tenção e interesse dos alunos; quais jogos se adequem melhor a

que idade; gerenciar os interesses, afetos e energias de um grande número de pessoas

(alunas e alunos, famílias, professores, coordenadores, direção); manter minha escuta

aberta para as necessidades dos grupos e ao mesmo tempo conseguir incluir aquilo que

eu julgava importante para as experiências; produzir as peças de fim de ano sem fazer

disso o objetivo da Oficina Livre de Teatro, mas sem abrir mão dessa vivência que pode

ser tão rica.

Aos poucos, fui ganhando uma visão mais apurada do trabalho do teatro dentro da

instituição escolar, me dando conta do tratamento periférico e aderecista que ele

comumente recebe. Somado a isso, fui me aborrecendo – o cansaço do texto inicial –

com o caráter conservador da instituição e com o fato de que minhas ocupações como

professor de teatro começaram a dificultar minhas atividades como ator. Foi nesse

momento, um pouco esgotado do cotidiano da sala de aula, um pouco insatisfeito com

os mecanismos da instituição, que entrei em contato com o universo da performance.

Experimentei algumas pequenas ações com os alunos. Elas deram certo e eu fui

seguindo. Fui percebendo que a performance fazia com que eu me comunicasse com os

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alunos em um lugar menos professoral. Fui notando também que as minhas

insatisfações com a escola enquanto instituição eram muito parecidas com as deles: falta

de horizontalidade, falta de escuta, excesso de ordens e hierarquias.

Aos poucos, a performatividade foi se tornando esse lugar dentro do meu trabalho

onde eu efetivava a minha resistência. Resistência ao sistema da escola, à demanda dos

“produtos cênicos” que me eram exigidos nas datas festivas; à carência da minha

própria produção artística. Além disso, era o momento em que eu podia juntamente com

os alunos expor para toda a comunidade escolar aquilo que nos deixava insatisfeitos. E

isso, aparentemente protegidos pelo rótulo de “experimental”. Algo como fazer-se de

louco, mas numa perspectiva em que sabemos que os loucos tem muito a nos dizer,

como nos ensina a leitura da obra de Artaud.

E foi a partir dessas experiências que comecei a investigação sobre o tema da

performance. Não tinha conhecimento ou vivência prévia suficiente sobre o assunto que

embasasse minhas ações, mas com a pesquisa fui descobrindo que o modo como eu

conduzia o trabalho já me situava de maneira bem pertinente às questões referentes ao

tema: retirada do texto do centro da experimentação cênica, valorização das imagens,

apropriação do espaço. Fui descobrindo também que a proposta de ir construindo um

método juntamente com os alunos ao longo da minha própria descoberta sobre o tema

tinha em si uma dimensão performática. A estes procedimentos fui somando depois

descobertas da minha pesquisa, como uma dissolução de personagem e dramaturgia

num processo de assumir o performer, a performer e suas vivências.

Assim, a escolha do tema performance para este trabalho se deu como uma

possibilidade de falar não só de uma experiência concreta, mas como uma oportunidade

de criar diálogo e me debruçar sobre certo material teórico das áreas da filosofia,

sociologia e educação que a muito me instigavam. Respectivamente, as ideias sobre

23
rizoma (DELEUZE; GUATTARI, 1995), Sociedade do Espetáculo (DEBORD, 1997) e

saber da experiência (LARROSA, 2014) conversavam com as minhas insatisfações

diante da instituição escolar tradicional e encontraram na performance uma resposta e

uma resistência à essas questões.

Devo admitir que tentei fugir de escrever sobre a escola, em especial aquela onde

trabalho, num momento em que tinha muitas insatisfações com ela. Mas a orientadora

foi insistente em afirmar que trabalhar com um objeto concreto traria consistência ao

trabalho e farta fonte de pesquisa. E, de fato, se hoje este trabalho se mostra extenso é

porque ao acolher a sugestão e assumir o trabalho desenvolvido com os alunos na escola

eu tive vasto material para me debruçar.

Também preciso admitir que dito assim a escolha do tema parece ter sido

evidente, mas não foi. Com tantos desejos, referências e um vasto horizonte aberto pela

graduação o recorte para esta escrita foi um grande desafio. Neste sentido, o encontro

com a obra de Deleuze e Guattari foi fundamental para o entendimento e a execução dos

processos de territorialização desta pesquisa - onde estabelecer os contornos, as bordas,

os limites – ao mesmo tempo em que não se exclui a possibilidade da

desterritorialização - deixar escorrer os sentidos e objetos de pesquisa, migrando

fluidamente quando os contornos se borram.

Sobre isto:

Todo rizoma compreende linhas de segmentaridade segundo as quais


ele é estratificado, territorializado, organizado, significado, atribuído,
etc; mas compreende também linhas de desterritorialização pelas quais
ele foge sem parar. Há ruptura no rizoma cada vez que linhas
segmentares explodem numa linha de fuga, mas a linha de fuga faz
parte do rizoma. Estas linhas não param de se remeter uma às outras.
É por isto que não se pode contar com um dualismo ou uma
dicotomia, nem mesmo sob a forma rudimentar do bom e do mau
(DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 25-26).

24
Não faz mais sentido a dicotomia na elaboração de um pensamento que se

proponha a olhar para as instâncias da educação e da arte contemporânea, como nos

apontam Deleuze e Guattari. São mais coerentes com os desejos e angústias atuais os

processos de desenhar, esfumaçar e redesenhar constantemente (reterritorializar) as

bordas desses conceitos. Esses procedimentos são característicos do modelo rizomático:

O sistema-radícula, ou raiz fasciculada [...]. Desta vez a raiz principal


abortou, ou se destruiu em sua extremidade: vem se enxertar nela uma
multiplicidade imediata e qualquer de raízes secundárias que
deflagram um grande desenvolvimento (DELEUZE; GUATTARI,
1995, p. 20).

Além dos procedimentos citados acima, também são característicos do modelo

rizomático os princípios de: A) conexão e heterogeneidade - “qualquer ponto de um

rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo” (DELEUZE; GUATTARI,

1995, p. 22); B) multiplicidade – “quando o múltiplo é efetivamente tratado como

substantivo, multiplicidade” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 23); C) ruptura a-

significante – “um rizoma pode ser rompido, quebrado em um lugar qualquer, e,

também retoma segundo uma ou outra de suas linhas e segundo outras linhas”

(DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 25); D) cartografia e de decalcomania –

do eixo genético ou da estrutura profunda, dizemos que eles são antes


de tudo princípios de decalque, reprodutíveis ao infinito. [...]
Diferente é o rizoma, mapa e não decalque. [...] O mapa é aberto, é
conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível,
suscetível de receber modificações constantes. (DELEUZE;
GUATTARI, 1995, p. 29-30).

Sendo assim, o modelo rizomático faz-se como epistemologia neste trabalho. Seja

no delineamento do tema que se deu de maneira pouco ortodoxa e flertando com várias

possíveis conexões (narrativa - Benjamin, discurso - Foucault, experiência – Larrosa,

jornada do herói - Campbell, poética do espaço – Bachelard, e tantas outras...); seja na

escolha das leituras, algumas descobertas assumidamente perambulando pela biblioteca

da faculdade; ou ainda na proposta de mapear, através de relatos, algumas das minhas

25
experiências como professor de teatro. Tudo com muitas idas e vindas e incertezas. Mas

se inicialmente eu fiquei angustiado e perdido diante da grande quantidade de desejos e

possibilidades para desdobrar o trabalho, ser atravessado pelo pensamento rizomático

fez com que eu conseguisse encarrar melhor esses afetos e inseguranças da pesquisa e

pudesse seguir exatamente através deles.

A imagem do mapa, último dos princípios rizomáticos listados, me foi muito

proveitosa: “Se o mapa se opõe ao decalque é por estar inteiramente voltado para uma

experiência ancorada no real” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 30). No caso desta

pesquisa, não só a experiência real da minha prática docente, mas também a experiência

real da pesquisa, do estudo, da leitura e da construção do pensamento – que é

absolutamente rizomática. Busco manter este caráter aparente no modo como o trabalho

está estruturado e redigido: quebras, pausas, digressões, relatos, historinhas, imagens,

não linearidade. É a vontade de manter a escrita aparente enquanto processo, enquanto

procedimento de trabalho. “Um mapa é uma questão de performance” (DELEUZE;

GUATTARI, 1995, p. 30), nesse sentido, o trabalho se torna o rastro desse caminhar do

pensamento, dessa ação. E é por isso que gostaria de partilhar alguns dos mapas que fui

efetivando ao longo do processo.

Estes mapas de ideias e conceitos não são evoluções melhoradas uns dos outros.

Eles são autônomos (embora dialoguem), mas não dependem ou derivam entre si.

Exibir aqui essas idas e vindas do processo, esse tatear, se faz para evidenciar a

incompletude e as incertezas do processo de pesquisa, dois aspectos que a sociedade

capitalista tende a entender como fraquezas. Assim, partilhar essas possíveis

fragilidades do trabalho (e minhas enquanto pesquisador) tem um objetivo de assumir

uma dimensão performativa na pesquisa e na escrita na medida em que “o „valor do

26
risco‟, „o malogro‟ tornam-se constitutivos da performatividade e devem ser

considerados como lei” (FÉRAL, 2008, p. 203).

Figura 1: mapa da deriva conceitual.

27
Figura 2: mapa conceitual com maior territorialização.

Figura 3: mapa conceitual insinuando estrutura de tópicos. Surge a ideia do “pirata”.

28
Escrever em primeira pessoa, partilhar minhas inseguranças e minha prática

pessoal, evidenciar a escolha de um tema sobre o qual eu tinha pouco contato; estes

foram outros riscos que fui assumindo ao longo do caminho na busca por uma coerência

entre a forma e o conteúdo da pesquisa, entre o processo e o trabalho final – visto que

este já era aquele.

***

Inicialmente, a noção de experiência (LARROSA, 2014) era aporte teórico para

pensar o objeto de estudo – minha prática docente. Mas aos poucos ela foi se tornando

metodologia para o trabalho: não só a experiência do professor de teatro sob o olhar

distanciado de um observador que investiga (racionalizando e separando as duas

instâncias); mas também a vivência do próprio pesquisador no ato do estudo e escrita.

De modo análogo, o modelo de rizoma (DELEUZE; GUATTARI, 1995) entrou no

trabalho com a função de ser método de pesquisa, mas aos poucos foi se tornando

elemento analisável na medida em que dialogava frontalmente com o objeto da

performatividade. Simultaneamente, a performatividade que foi pensada como objeto

central de estudo foi ganhando vultos de método à medida que eu fui assumindo a

pesquisa (investigação e escrita) como ato performativo.

Desse modo, rizoma, experiência e performatividade foram redefinindo suas

funções na pesquisa na medida em que iam se relacionando. Iam se redefinindo

constantemente, ou, nas palavras de Deleuze e Guattari, se reterritorializando. Eles nos

dizem: “as multiplicidades se definem pelo fora: pela linha abstrata, linha de fuga ou de

desterritorialização segundo a qual elas mudam de natureza ao se conectarem às outras”

(DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 25).

29
Esse característica da multiplicidade e da reterritorialização pelas linhas de fuga

acaba por intervir também nos objetivos do trabalho. Proponho pensar a escola, ou antes

repensá-la, através do fora, por suas linhas de fuga, pelo olhar da rua e do que está fora

dessa muralha/borda que a constitui enquanto Escola. Sob essa perspectiva, a Escola se

desterritorializa no mundo (na rua) e o mundo se reterritorializa na escola. Jogos

constantes de se remapear, recartografar que se estabelecem nesse espaço do entre.

Esta pesquisa não é sobre o que seria uma pedagogia da performance para o teatro

na escola, seus princípios, métodos e estruturas. Esta seria uma proposição ontológica,

do ser e do que é. De outro modo, articulado com um pensamento rizomático, proponho

não uma pergunta de “o que é?”, mas de “como funciona”, visto que nada é – nem a

escola, nem a pedagogia, nem o professor/a professora, nem o ser. E, no caso específico

da escola e da inserção da performatividade, se trata de como esta pode operar

desterritorializações e reteritorializações criando multiplicidades numa estrutura

eminentemente vertical e hierarquizada.

Sendo assim, este trabalho se faz como uma investigação sobre como se articula o

exercício desse teatro performativo no ambiente da escola. Desta fricção de universos

distintos é que se evidenciam e se debatem os atritos de poder, espaço e linguagem. A

vivência desses embates já é por si a educação pela experiência (LARROSA, 2014) com

potencial para reelaborar os processos cognitivos e críticos dos indivíduos envolvidos.

***

Considerando as abordagens referentes a rizoma, experiência e performatividade,

este escrito que você tem em mãos agora é uma espécie de cartografia da pesquisa. Se

de algum modo a concretude do material impresso, da tinta sobre o papel branco, se faz

território e contribui para a partilha do pensamento, que fique claro que este é só um

30
decalque de um rizoma em processo, sempre em processo. Sendo assim, este mapa-

escrita se estrutura conforme descrevo a seguir.

O capítulo um, uma das portas de entrada, fala sobre a relação entre a instituição

escolar e a Sociedade do Espetáculo (DEBORD, 1997) e sobre a noção de uma Escola

do Espetáculo que surge quando os princípios desta sociedade (fragmentação, alienação,

produção) são incorporados na instituição de ensino. Participam desta realidade

educativa os princípios descritos por Foucault (2016) como a disciplinarização para

alienar e docilizar os corpos com o intuito de se apropriar da força de trabalho dos

indivíduos envolvidos.

Na busca por uma possibilidade de resistir a este panorama, proponho uma

desterritorialização da escola: olhar para aquilo que está fora dela e pensar como esse

elemento estrangeiro é capaz de criar multiplicidades. No caso, o outro da escola que

está engajada em produzir é a rua, habitada por suas figuras vagabundas. Estas figuras

são marcadas pelo saber da experiência (LARROSA, 2014) e não pela lógica da

produção – por isso são chamadas de vagabundas por aqueles que tentam incutir nelas

uma lógica de mercado.

Em paralelo, trago a noção de montagem para fazer contraponto à prática da

fragmentação. Se esta busca justapor as partes retiradas do todo numa simulação de

unidade, gerando uma alienação; a montagem, ao contrário, busca evidenciar os

processos de composição, desnaturalizando os acontecimentos e propondo uma visão

crítica.

Para efetivar a prática de montagem (e desmontagem) no ambiente escolar – no

que tange seus aspectos de poder, espaço, linguagem, forma – proponho o uso da

performatividade (FÉRRAL, 2008). Isto porque a performatividade valoriza os

indivíduos, as ações, a ocupação e reinvenção dos espaços e investe numa dissolução da

31
mimese enquanto real, o que contribui para a tentativa de romper a alienação da

Sociedade do Espetáculo.

Ao fim deste grande bloco de ideias levanto o questionamento: quem seria capaz

de propor essa desmontagem no ambiente escolar efetivando a performatividade? Se

escutarmos a voz de Artaud (2006), uma voz fora dos muros da civilidade e da razão

vigente, temos que o teatro (a arte) surge da peste. O artista seria então esse ser

pestilendo, em brasa, incendiado e incendiando tudo ao seu redor. Seria ele, o artista,

aquele capaz de reterritorializar a escola. Uma espécie de pirata capaz de contrabandear

elementos entre o fora e o dentro, abrindo espaços e transformando o muro da escola em

membrana.

O capítulo dois, uma outra janela de entrada, fala sobre a relação entre a

performatividade e a escola. Como essas duas instâncias se atravessam e quais as

potencias e desafios desse encontro. Um dos aspectos que é posto em questão a partir

desse encontro é o da aula espetacular (RACHEL, 2013) que é aquela que se dá num

espaço espetacularizado, no sentido desenvolvido por Guy Debord e, por isso, sem

possibilidade de diálogo; que privilegia o conhecimento abstrato sem ligação com a

realidade de cada um; que é unidirecional (do professor para o aluno). Para furar essa

lógica e efetivar a pirataria da performatividade surge a figura do híbrido professor-

performer (CIOTTI, 2014) onde essas duas instâncias - professor e performer – passam

a se reelaborar constante e reciprocamente para gerar inventos, sempre provisórios e

instáveis, que busquem dar conta das questões da escola, da sala de aula e da pedagogia.

Na última parte desse segundo capítulo descrevo um pouco como fui construindo

práticas de performatividade dentro da minha prática docente, métodos e

procedimentos.

32
O terceiro capítulo busca dar conta de mapear, através de relatos, alguns dos

experimentos que desenvolvi com meus grupos de estudantes no que tange a questão da

performatividade. O objetivo é refletir essas narrativas a partir dos conceitos

desenvolvidos nos capítulos anteriores além de gerar arquivo para que outros

pesquisadores possam se valer dessas experiências gerando multiplicidades.

***

Escrevo um pouco como quem deixa um mapa de um tesouro perdido. Não que eu

tenha encontrado esse pote de ouro ao fim do arco-íris, porque ao fim – mas este não era

o início? – entendemos que é a jornada que nos vale.

Que o leitor e este decalque impresso do meu rizoma-pensamento possam também

se reterritorializar, na medida em que lhes interesse. E que possamos ir reinventando

modos de conhecimento, escrita e pesquisa – na escola e na academia. Propondo “outra

maneira de viajar e também de se mover, partir do meio, pelo meio, entrar e sair,

começar nem terminar” (BAILLY apud DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 49).

33
CAPÍTULO 1: UMA ESCOLA DO ESPETÁCULO

As escolas são atravessadas por muitos aspectos: econômicos, políticos,

pedagógicos, sociais. Mas um traço me interessa de maneira especial para este trabalho:

como a sociedade midiática na qual estamos inseridos interfere de maneira específica

nas instituições escolares.

1.1 - A Sociedade do Espetáculo e sua escola: alienação dos corpos, a


disciplina e a força de trabalho.

Para pensarmos esta sociedade midiática na qual estamos inseridos, usarei o

conceito de Sociedade do Espetáculo (DEBORD, 1997), que não é só aquela sociedade

que está sob influência da mídia impressa e áudio visual - rádio, televisão, propaganda –

mas aquela em que todos os aspectos da vida se tornam mídias, se tornam imagens, e

são vivenciadas como tal. “Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas

condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos.

Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação” (DEBORD, 1997, p.

13).

E ainda:

“As imagens que se destacaram de cada aspecto da vida fundem-se


num fluxo comum, no qual a unidade dessa mesma vida já não pode
ser reestabelecida. A realidade considerada parcialmente apresenta-se
em sua própria unidade geral como um pseudomundo à parte, objeto
de mera contemplação. [...] O espetáculo em geral, como inversão
concreta da vida, é o movimento autônomo do não vivo” (DEBORD,
1997, p. 13).

Além disso, o autor evidencia que a relação dos indivíduos com o mundo através

das imagens é uma parte essencial do sistema econômico capitalista e da produção em

massa, não só numa relação linear em que um causa o outro, mas numa lógica circular

que vai se retroalimentando. “No espetáculo, imagem da economia reinante, o fim não é
34
nada, o desenrolar é tudo. O espetáculo não deseja chegar a nada que não seja ele

mesmo” (DEBORD, 1997, p. 17). Deste modo, a construção de imagens não só fomenta

o consumo e a produção em massa, mas também é estimulada por eles.

Para entender esse movimento cíclico vale olharmos para relação que se

estabelece entre a economia e a Sociedade do Espetáculo que se dá em primeira

instância através do sistema de produção e de seu pensamento fragmentado: “a

separação é o alfa e o ômega do espetáculo” (DEBORB, 1997, p. 21). Para além do

desmembramento das etapas da produção em série, ocorre uma “separação generalizada

entre o trabalhador e o que ele produz, perdem-se todo ponto de vista unitário sobre a

atividade realizada, toda a comunicação pessoal direta entre os produtores” (DEBORD,

1997, p. 22). O produtor não se identifica mais com aquilo que produz. Isso porque ele

não é mais um produtor, propriamente, ele se tornou um operário. Opera máquinas e

etapas de uma produção, mas não se identifica com o resultado final desta.

Considerando que o trabalho é o modo do homem intervir no mundo e que o homem

operário já não se identifica mais com aquilo que produz, ele não se identifica com o

próprio mundo porque não consegue intervir nele. Toda essa lógica gera um processo de

alienação.

Quando, neste raciocínio, o mundo se torna alheio ao homem, a relação entre eles

passa a se estabelecer através de imagens, de projeções da vida, mas que não são a vida

de fato. “Quando o mundo real se transforma em simples imagens, as simples imagens

tornam-se seres reais e motivações eficientes de um comportamento hipnótico”

(DEBORD, 1997, p. 18). Passamos a assumir as projeções como o próprio mundo, mas

fica a sensação de que falta algo. Alguns buscam suprir essa falta consumindo mais

imagens, projeções; outros buscam sair dessa lógica reinante.

35
Vale lembrar que Guy Debord publicou o seu livro “A sociedade do espetáculo”,

onde expõe seu pensamento, em 1967 antes da computação e da internet domésticas.

Hoje, quando pensamos em imagem, virtualidade e aparência, nos remetemos

diretamente ao universo da tecnologia portátil e tão cotidiana, ao computador e ao

telefone pessoal. Mas, mesmo depois de décadas, as mídias sociais (facebook,

instagran) e novas plataformas, como o youtube, não invalidam o pensamento de

Debord. Ao contrário, trazem uma outra dimensão ao debate que ele propunha, na

medida em que os dispositivos citados dinamizam mais ainda as relações entre imagem

e indivíduo.

Inserida nesse contexto, a instituição escolar que corresponde e contribui com as

características da Sociedade do Espetáculo (fragmentação, alienação, relação através

das imagens, autônomo do não vivo) passa a ser ela própria uma Escola do Espetáculo.

Este conceito aqui desenvolvido é primeiramente justificado no aspecto

fragmentado da instituição escolar que se estabelece de maneira específica. Não só uma

fragmentação que vai preparar os indivíduos para serem inseridos na indústria de

mercadorias e de serviços - através das tarefas e do conhecimento especializado -, mas,

principalmente, quando através desses procedimentos fracionados, ela ensina uma

linguagem segmentada através da qual o indivíduo passa a se relacionar com o mundo e,

assim, a sociedade do espetáculo se perpetua.

Essa linguagem fragmentada se efetiva na separação entre as disciplinas na escola

(não só no fato delas funcionarem em blocos, mas principalmente por se articularem de

maneira precária) e na cisão entre a escola e o mundo, fazendo com que a instituição

não dialogue com a cidade, com a vida cotidiana, com os desejos e curiosidades dos

indivíduos inseridos nesse processo. Some-se a estas a fragmentação do corpo:

36
negligenciado, enfileirado em carteiras, padronizado em uniformes para, uma vez posto

de lado, não interferir na produção ali proposta.

Todas essas separações estão no centro do pensamento que Debord apresenta: “A

origem do espetáculo é a perda da unidade do mundo” (DEBORD, 1997, p. 23). É um

entendimento de que essas desconexões se dão não só em benefício de uma

produtividade e de uma otimização do trabalho, mas se configuram como um projeto

sócio político.

A fragmentação do pensamento e do saber é o modo mais eficiente de


controle social, quer dizer, da submissão de pessoas a um modelo
excludente de sociedade. Sem a capacidade de relacionar a
experiência particular com o todo da vida, [...] jovens e crianças
terminam submetidos a processos e engrenagens que os tornam tão
pequenos e insignificantes que não se sentem potentes para
transformar aquilo que os oprime (MOSÉ, 2013, p. 52).

Além disso, todas essas separações e cisões são vivenciadas como naturais. Não

são evidenciadas e, por isso, os indivíduos aprendem – apreendem – essa parcela da

vida como uma totalidade, tal qual na lógica da Sociedade do Espetáculo. Como já dito

anteriormente em relação à sociedade do espetáculo, mas que se aplica também à

instituição escolar: “a realidade considerada parcialmente apresenta-se em sua própria

unidade geral como um pseudomundo à parte” (DEBORD, 1997, p. 13). Como

exemplo, podemos pensar que não é incomum que jovens e crianças vivam em função

da escola, como se esta fosse a totalidade de suas vidas.

Desse modo, perdendo a unidade entre a escola e o mundo, mente e corpo, entre

as áreas do conhecimento, o indivíduo alienado passa a se relacionar com o mundo

através das imagens. E é esta relação que faz com que a vida se afaste da vida e que não

seja possível uma educação pela experiência (LARROSA, 2014), como abordarei mais

à frente. Ao contrário, o que se constrói são indivíduos que tendem ao automatismo de

procedimentos, com grande dificuldade para contextualizar, analisar, relacionar e criar.

37
Uma das situações que mais me assustou quando comecei a dar aulas de teatro, e

ainda assusta, é que ao serem questionados sobre suas vontades, no que diz respeito ao

processo da Oficina de Teatro, os alunos e alunas se emudecem. A alienação da

Sociedade do Espetáculo afasta os indivíduos não só do mundo, mas também de si

próprios, seus desejos e prazeres.

Tenho por hábito sondar os grupos a respeito de seus interesses no que diz

respeito à culminância da Oficina no fim do ano letivo, para que possamos construir

juntos um fechamento de ciclo. Normalmente, as respostas são vagas ou dialogam com

um lugar comum do que eles estão habituados a ver em teatro, cinema, televisão e

internet – no caso de terem essas referências. Outras vezes as respostas dizem respeito

ao que eles imaginam que pode causar boa impressão numa plateia de pais e amigos –

uma certa busca por aprovação. Quando, depois de dialogarmos, eles entendem que a

pergunta diz respeito aos seus desejos pessoais, faz-se um silêncio na sala.

***

Dentre as fragmentações que a instituição escolar promove, vale olharmos em

especial para uma delas: a do corpo. Remontando as mais antigas instituições

disciplinares, é neste processo que o corpo físico e simbólico - com seus desejos,

transformações, angústias e secreções - será apartado do processo de educação

promovido pela instituição escolar. Este corpo será deixado do lado de fora, assim como

a cidade e a vida, para valorizar o intelecto e a força de trabalho. O corpo será separado

daquilo que ele produz, procedimento alienante e de interesse econômico, como nos

aponta Foucault.

Ao propor uma genealogia das instituições carcerárias, o autor nos fala da

importância dos corpos nesse espaço: “os sistemas punitivos devem ser recolocados em

38
uma certa „economia política‟ do corpo [...], é sempre do corpo que se trata – do corpo e

de suas forças, da utilidade e da docilidade delas, de sua repartição e de sua submissão”

(FOUCAULT, 2016, p. 29).

O autor ainda nos fala que essa “economia política do corpo” diz respeito a um

interesse que tange as possibilidades de utilização econômica deste: sua força de

produção. Mas não é qualquer força que se converte em produção. Para que essa força

se torne útil é preciso que o corpo que a gera seja, ao mesmo tempo, produtivo e

submisso. E é na tentativa de garantir essas duas condições que passam a ser aplicadas

uma série de estratégias (como o isolamento, o controle de horários, vestimentas,

postura física) às quais o seu conjunto Foucault vai chamar de “tecnologia política do

corpo”, cujo objetivo é docilizar os corpos: “é dócil um corpo que pode ser submetido,

que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado” (FOUCAULT, 2016,

p. 134).

É preciso entender também que a principal engrenagem dessas estratégias e, por

isso, da “tecnologia política do corpo” é a disciplina. É ela que dociliza os corpos

estabelecendo uma relação com a ideia de utilidade: “esses métodos que permitem o

controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas

forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar

de as „disciplinas” (FOUCAULT, 2016, p. 135).

No caso específico da instituição escolar, a força de trabalho em questão é um vir

a ser2. Os jovens submetidos a este sistema não produzem como os operários de uma

fábrica. Sendo assim, a função da escola enquanto instituição disciplinadora é habituá-

2
É preciso refletir sobre a educação que não entende a criança e o jovem pelo que ele é mas pelo que ele
vai se tornar, negando a sua realidade e o momento presente. A criança que está na escola para se tornar
médico, professor... Mas o que aquela criança é? Ao negar o que o educando trás e vive no momento
presente, nega-se também as possíveis experiências reais e significativas porque trabalha na perspectiva
do vir a ser, da virtualidade.

39
los às disciplinas que lhes serão impostas posteriormente para, aí então, terem sua força

de trabalho convertida em produção: docilizar os corpos para torná-los produtivos.

Uma maneira de averiguar a questão da docilização dos corpos é observar as

diferenças entre escolas que atendem alunos de baixa e alta renda. Quanto mais humilde

e periférico for o público de uma instituição escolar, mais esta instituição irá se parecer

com uma fábrica, ou mesmo uma prisão: grandes salas com um grande número de

alunos dificultando o olhar individualizado, uniformes que buscam domar o corpo e

anular as diferenças, grande controle sobre o cumprimento dos horários, deslocamentos

e atividades. Neste panorama salvam-se algumas exceções, claro: como escolas modelo,

colégios de aplicação, dentre outros; mas estes não são a maioria.

Em instituições que atendem a alunos e famílias de maior poder aquisitivo existe

um arejamento dessas disciplinas: maior flexibilização nos uniformes, estrutura física

mais humanizada, contato mais direto com os educadores. Estes jovens, e não aqueles,

são habituados e motivados a se expressar e construir sua autoconfiança para que

possam se tornar líderes - chefes - daquelas outras crianças. Os jovens das escolas de

baixa renda já estão inseridos num processo de docilização para que futuramente

possam ser comandados por aqueles que foram ensinados a conduzir.

É isto que estamos ensinando aos nossos jovens: para além dos conteúdos, o que

permeia toda a trajetória escolar são ensinamentos – exemplos – de estruturas e

linguagens. A forma que permeia a estrutura da nossa tradicional instituição escolar

ensina uma maneira de se relacionar com o mundo, mas que não é igualitária,

emancipadora ou criativa. Ao contrário, nos diz que cada um tem o seu lugar nessa

grande estrutura industrial e que se sairmos desse lugar seremos punidos por atrapalhar

a ordem: a produção.

40
É fato que ofertamos livros, saberes, expomos os indivíduos a situações que

podem, sim, desenvolver seus intelectos. Contamos histórias de terras, lugares e tempos

distantes que, sim, podem expandir as perspectivas e capacidades cognitivas. Mas a

forma que viabiliza tudo isso é doutrinadora e disciplinatória e, ao fim das contas, está a

serviço do capitalismo cuja construção do conhecimento dos indivíduos não é o objetivo

principal. Se o conhecimento pode ser libertador, o seu formato, atualmente, lhe presta

um desserviço.

Todo esse raciocínio se constrói a partir das questões levantadas por Foucault num

contexto de Europa do séc. XVII e XVIII pensando a estruturação de instituições

carcerárias, mas muito do pensamento que ele desenvolve nos serve para analisar as

estruturas escolares. Na verdade, essa associação já é proposta pelo autor quando ele

engloba as prisões juntamente com os colégios, quarteis e hospitais sob o mesmo grupo

de instituições disciplinares, propondo assim os pontos em comum entre elas.

Sobre os processos de disciplina que docilizam os corpos para torná-los úteis, sob

o ponto de vista da produção, Foucault fala que essa nova anatomia política se dá por

uma multiplicidade de processos e que podemos encontrá-la vindo de diferentes pontos

da sociedade: “em funcionamento nos colégios, muito cedo; mais tarde nas escolas

primárias; investiram lentamente o espaço hospitalar; e em algumas dezenas de anos

reestruturam a organização militar” (FOUCAULT, 2016, p. 136). E ainda: “escolherei

os exemplos nas instituições militares, médicas, escolares e industriais. Outros

exemplos poderiam ser tomados na colonização, na escravidão, nos cuidados na

primeira infância” (FOUCAULT, 2016, p. 139).

Sabendo que ir de encontro a este formato tão entranhado na sociedade é

confrontar um sistema muito maior do que a instituição escolar, quais as mudanças e

41
posicionamentos possíveis? Como intervir nessa produção de linguagem que vai mediar

a relação do indivíduo com o mundo?

***

Como dito anteriormente, a disciplina apresenta um papel fundamental na prática

de docilizar os corpos e torná-los uteis à produção. Por sua vez, um dos procedimentos

primordiais da disciplina é a fragmentação. Foucault aponta isso quando nos diz:

A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de


utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de
obediência). Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele
por um lado uma „aptidão‟, uma „capacidade‟ que ela procura
aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência que poderia
resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita (FOUCAULT,
2014, p. 135 e 136).

Fragmentar, esquadrinhar o tempo, o espaço, o corpo, o indivíduo nas instituições

disciplinadoras (prisões, escolas, quarteis) tem a função de melhor vistoriar, vigiar e

punir, garantindo assim o bom andamento da produção de força de trabalho.

O corpo fragmentado produto dessa dissociação guarda uma certa relação com os

suplícios e punições do início do sistema penal em que, ainda no séc. XVIII,

dependendo do crime cometido, o condenado era esquartejado em praça pública3. Mas,

agora, com uma diferença: a fragmentação passa a ser simbólica.

Ao relatar as mudanças do sistema penal ocorridas na proximidade do ano de

1780, Foucault, fala que

não é mais ao corpo que se dirige a punição, em suas formas mais


duras, [...] é à alma. À expiação que tripudia sobre o corpo deve
suceder um castigo que atue, profundamente, sobre o coração, o
intelecto, a vontade, as disposições (FOUCAULT, 2016, p. 21).

3
Michel Foucault abre seu trabalho sobre a genealogia dos sistemas punitivos e carcerários descrevendo a
condenação de Damiens, ocorrida em 2 de março de 1757 em Paris. O suplício relatado inclui, dentre
outros, esquartejamento. (FOUCAULT, 2016, p. 9-11.)

42
E ainda: “O aparato da justiça punitiva tem que se ater, agora, a esta nova

realidade, realidade incorpórea” (FOUCAULT, 2016, p. 21). Esta mudança permite que

o corpo que antes era fisicamente mutilado e só podia servir de exemplo, num segundo

momento continua a ser esfacelado, mas simbolicamente e, por isso - aí a diferença –

ainda é capaz de produzir. Como se ao partir o corpo do indivíduo através da

„tecnologia política do corpo‟, anteriormente citada, fosse possível abstrair os corpos,

seus desejos e individualidades, e se apossar de sua força de trabalho.

Surge então uma espécie de indivíduo fantasma ou zumbi. Ou ainda, em

associação com significantes contemporâneos, uma presença virtual, uma presença

incorpórea que produz, sim, informação, tecnologia e toda sorte de novas formas de

força de trabalho numa dita sociedade do conhecimento; mas que, essencialmente, está

desligada da vida porque está desligada de si própria.

1.2 - Figuras vagabundas: o que fica de fora

Ainda para analisar a relação entre docilidade e utilidade nos corpos, vale

pensarmos no oposto deste corpo: aquele que não é útil. Ou, de maneira mais precisa,

aquele que não é útil em sua força de trabalho porque não é um corpo dócil, porque não

se deixa domar e submeter.

Mas que corpos são esses? Grosso modo, aqueles que, em nossa sociedade, não

trabalham, não produzem, são os chamados vagabundos.

Um levantamento feito sobre os condenados da jurisdição de Alost, Bélgica, em

1749 mostra que os ditos malfeitores não eram “artesãos ou lavradores (os operários só

pensam no trabalho que os alimenta), mas vagabundos que se dedicavam à

mendicância” (apud FOUCAULT, 2016, p. 120).

43
Essa ideia de que o não trabalho institui o malfeitor, o vagabundo, funda uma

pedagogia do trabalho: “essa pedagogia tão útil reconstituirá no indivíduo preguiçoso o

gosto pelo trabalho, recolocá-lo-á por força num sistema de interesses em que o trabalho

será mais vantajoso que a preguiça” (FOUCAULT, 2016, p. 120). Ou seja, aos corpos

que não querem se deixar docilizar, que não querem converter sua energia em força de

trabalho, é que se dirige a instituição disciplinar.

Gera certo espanto pensar que mais de dois séculos depois a maioria das

instituições escolares perpetua essas ideias surgidas em casas de detenção como a

descrita acima. Aos corpos e indivíduos que resistem ao enquadramento é aplicada uma

disciplina para enquadrá-los no sistema de produção, desconsiderando seus desejos e

suas individualidades. Só para exemplificar algumas das semelhanças que se mantém,

podemos citar: tempo de aprendizagem do indivíduo negligenciado em prol de um ritmo

pré-estabelecido, interesses (e desinteresses) do aluno por áreas de conhecimento

abafadas.

Considerando que a relação de causalidade em que o ócio gera o vagabundo ainda

se mantem, é válido analisarmos dois aspectos gerais dessa lógica: 1) as noções de

trabalho e ócio (produzir e não produzir) e 2) quem são os ditos vagabundos e

vagabundas.

Em primeira instância, gostaria de olhar para o significante “preguiça” usado por

Foucault na última citação feita. No Brasil, esta palavra está fortemente associada ao

discurso construído pelo homem branco europeu colonizador a respeito dos índios e

negros escravizados. O senso comum resultante dessa construção é de que os índios,

principalmente, trabalhavam tão mal que não foi eficiente usá-los como escravos e, por

isso, foram trazidos os negros que apesar de fortes podiam se manifestar violentos,

perigosos e ainda indolentes e insubordinados.

44
A história de luta e resistência dos povos e etnias escravizados não cabe neste

trabalho, mas surge de maneira pontual para dialogar com a noção de “vagabundo” que

está aqui sendo construída e que se mostra importante para pensarmos as relações de

(in)disciplina e força de trabalho que fundaram e ainda atravessam as instituições

escolares.

Num processo de desconstruir o senso comum citado acima, não é difícil perceber

que a imagem de que os escravizados trabalhavam mal se deve, em grande parte, ao fato

de que as condições de trabalho eram desumanas (longuíssima jornada de trabalho,

péssimas condições de vida, de alimentação, de moradia, maus tratos e tantas outras

condições que sabemos) e por isso a produção não se efetivava como desejado pelo

Senhor de Escravos. E ainda, ao que os escravistas chamavam de perigosos e

insubordinados, é preciso entender como resistência. Resistência a um processo de

dominação que visava a objetificação e apropriação dos corpos e da força de trabalho

dos dominados, aqueles que resistiam.

Além desses fatores desumanos e repletos de atrocidade sobre os quais é sempre

preciso manifestar repúdio, vale lembrar – e, agora, o que nos interessa de maneira mais

pontual para esta pesquisa – que as noções de produção, trabalho e tempo dos povos

escravizados eram completamente diferentes daquelas trazidas pelos europeus

colonizadores. Os grupos indígenas e africanos escravizados não tinham construído ou

sido atravessados pelas noções de manufatura em larga escala, fábrica ou indústria.

Quando lhes são impostas estas noções à força, o que se dá é uma falta de sentido. Uma

percepção de estrangeirismo para além do “vir de outro lugar ou país”, mas uma noção

de alheio àquela construção de sociedade no que diz respeito aos seus valores e práticas

mais básicas.

45
Como contraponto podemos olhar para os imigrantes italianos e japoneses que

chegaram ao Brasil no final do séc. XIX e início do séc. XX. A estes grupos eram

impostas condições de trabalho que hoje entendemos como sendo de escravidão

moderna (a dívida por alimentação e transporte junto ao patrão que nunca é quitada, por

exemplo), mas eles não eram escravos como os povos africanos e tribos indígenas. Não

ocorria, como com estes, a objetificação e animalização em último grau que levava à

desumanização desses indivíduos e grupos.

Os emigrantes europeus e asiáticos que chegaram ao Brasil não foram feitos

escravos, literalmente, porque já eram operários - da fábrica ou do campo. Já estavam

inseridos no sistema de produção que se apropriava de sua força de trabalho. Aqueles

corpos já estavam docilizados. Os indígenas, em especial, precisaram ser escravizados

(dentro de uma lógica capitalista industrial) porque não eram operários. Eles precisavam

ter sua força de trabalho e seus corpos disciplinados porque eram livres.4

Assim como as diversas tribos indígenas e etnias africanas, os vagabundos de hoje

também são, de certa forma, estrangeiros. Exteriores à noção de sociedade ocidental

capitalista globalizada e midiática, estes grupos se tornam marginalizados.

Marginalizados de maneira literal, por estarem nas bordas físicas da cidade – quando

moram nas periferias e nas calçadas - e de maneira simbólica por serem desqualificados,

postos de lado.

Incluir no debate os tópicos referentes à escravidão e às “figuras vagabundas” –

como será feito a seguir – nos ajuda a perceber as questões da disciplina e da produção

na escola articulada com um contexto econômico e social. Desse modo, podemos notar

como a ideia de preguiçoso, vagabundo, “aquele que não se esforça”, “aquele que não

4
Refiro-me aos grupos indígenas em especial neste trecho porque os povos africanos trazidos ao Brasil
no tráfico de escravos já haviam perdido sua liberdade ao serem sequestrados de sua terra. Apesar disso,
ao chegarem ao Brasil, passaram pelos mesmos métodos de disciplinarização do corpo para terem sua
força de trabalho aproveitadas.

46
faz nada”, são construções e se referem aos indivíduos aos quais a força não foi

convertida em força de trabalho, seja no sistema escravista, na indústria, ou na escola.

Assim, vemos que o discurso e a imagem construídos pelo colonizador português

no Brasil em relação aos povos escravizados se assemelham à construção que se faz dos

ditos vagabundos e preguiçosos na nossa sociedade. Em ambos os casos a

desqualificação de determinado grupo se dá com o objetivo de mais facilmente poder se

aproximar dele para discipliná-lo e se apropriar de sua força de trabalho. Procedimento

parecido é usado por muitos professores e escolas: desqualificar o indivíduo ao qual não

se consegue adequar (“você é terrível, fulano!”) diminuindo sua autoestima como

recurso para, novamente, tentar enquadrá-lo.

Buscando no dicionário o significado de “vagabundo” encontramos:

1. Que ou quem vagabundeia ou tem vida errante = NÔMADA. 2.


Que ou aquele que não tem ocupação ou que não faz nada = OCIOSO,
TUNANTE, VADIO. Adjetivo: 3. Que é pouco constante =
INCONSTANTE, VERSÁTIL, VOLÚVEL. 4. [Brasil, Depreciativo]
Que tem pouca qualidade (ex.: que uísque vagabundo). =
ORDINÁRIO (VAGABUNDO, 2013).

O verbete citado, apesar de conter como primeira descrição a noção de nômade,

que não é em si depreciativa, traz como ideia central para definir “vagabundo” a noção

de ocioso, aquele que não faz nada. Quando recorremos ao gênero feminino da palavra

(vagabunda) verificamos como a linguagem construída de maneira machista deprecia

mais ainda a quem se refere: “1. [Brasil, Informal, Depreciativo] Mulher que se

comporta de modo considerado devasso ou imoral = PIRANHA, VADIA, VAGABA”

(VAGABUNDA, 2013). Neste último caso, a desqualificação se propõe também numa

esfera moral.

É interessante pensarmos na associação que existe entre esses dois verbetes.

Apesar da palavra no gênero feminino excluir a descrição de ociosidade e da palavra no

gênero masculino não trazer de modo evidente a questão moral, a própria palavra

47
geradora se encarrega de criar as ligações entre ambas as definições. O quanto da noção

de imoral e devassidão não reside na figura que “não faz nada”? E mais, o quanto que a

ocupação de prostituta – comumente referida pelos termos “vadia” e “piranha”

presentes no segundo verbete - fica deslegitimada enquanto profissão, uma vez que

guarda relação com este “não fazer nada”.

Para além das questões feministas e de direito e igualdade de gênero,

fundamentais para os debates de uma educação e sociedade igualitárias, mas que não

são a tônica deste trabalho; aqui, interessa mais pensar como a sobreposição dos

conceitos de vagabundo e vagabunda vai criar a ideia de uma “figura vagabunda”. Esta

figura podemos entender como sendo aquela que não faz nada, ou, melhor, não faz nada

de útil. Ou seja, não produz dentro/a favor/articulada com um sistema capitalista

industrial.

Mas quem são esses grupos aos quais a sociedade aglutina a característica de

vagabundo fazendo desta (des)qualidade uma identidade?

De imediato, em resposta aos verbetes consultados, podemos pensar que os ditos

vagabundos são os mendigos, pedintes e as prostitutas. Ainda em resposta ao primeiro

verbete que contem a ideia de “vida errante”, podemos incluir os ciganos - que num

contexto como o que Foucault descreve de uma Europa do séc. XVIII e XIX faz

sentido, mas que num contexto de Brasil atual, do séc. XXI, se torna uma presença um

tanto quanto abstrata. De qualquer maneira, o que estes três grupos têm em comum,

além de “não fazer nada”, leia-se: não produzir para o sistema, é a ocupação do espaço

da rua. Os mendigos pedem dinheiro nas calçadas; as prostitutas ficam nas janelas e

soleiras dos bordeis (dentro de um imaginário coletivo) e os ciganos ocupam as praças

para vender seus artesanatos, ganhar dinheiro com sua música, dança, malabarismos e

práticas de ocultismo, como o jogo de tarô. Fechamos assim a noção do que seria essa

48
“figura vagabunda”: aquele ou aquela que ocupa a rua e, além disso, não produz nada

para o sistema capitalista.

Deste modo, podemos buscar na sociedade brasileira atual, quais seriam as

“figuras vagabundas” que atravessam a cidade.

O primeiro grande núcleo, já evocado pelos verbetes, é o de pedintes e moradores

de rua. Mas é preciso entender esse núcleo em sua complexidade como formado por

diferentes grupos com vivências, realidades e motivos distintos para estar na rua. São

eles: os órfãos, os dependentes químicos, os sem teto, indivíduos em quadro clínico

psiquiátrico, indivíduos que fugiram de casa por sofrerem maus tratos e abusos,

indivíduos – especialmente idosos – que perderam a memória e não sabem voltar para

casa, só para citar alguns grupos.

O segundo grande núcleo é o dos trabalhadores da rua. Pessoas que não

necessariamente moram na rua mas usam o espaço público para suas práticas

comerciais. Vendedores ambulantes, que, por sua informalidade profissional, não

contribuem com os impostos da mesma maneira que os comerciantes formais.

Imigrantes e refugiados, especialmente os ilegais, que com a barreira da língua, da

qualificação da mão de obra, ou do reconhecimento dessa qualificação - validação de

diploma -, buscam sobreviver de práticas não formais de comércio e prestação de

serviços.

Talvez seja difícil entender este grupo de ambulantes como “vagabundos” uma

vez que claramente são trabalhadores. Mas é preciso lembrar de que maneira esses

profissionais são comumente confundidos com bandidos, tem suas mercadorias

49
apreendidas, são tratados como delinquentes pela força policial, sem falar das vezes em

que são expulsos das ruas.5

Não se trata aqui de defender a total lisura da classe de vendedores ambulantes –

embora seja importante atentar para que muitas de suas atitudes são maneiras de resistir

a um estado negligente em políticas públicas de educação e de acesso aos empregos.

Apesar disso, o que nos interessa aqui é entender o processo de marginalização desses

grupos justificado através de sua (não) ocupação ou produção formal.

Vale lembrar, ainda em associação com as práticas decorrentes do sistema

escravista brasileiro, que os escravos de casa ou “negros libertos” ocupavam as ruas das

cidades vendendo pequenos lanches e doces – lembremos da cocada e do tabuleiro da

baiana – além de pequenos serviços, como amolador de facas. Há, nesses casos, uma

informalidade nesse tipo de negócio e uma ideia construída pela classe dominante de ser

esta uma ocupação inferior em relação ao comércio e a prestação de serviços formais, os

lojistas. Mais uma vez, o espaço, as práticas e vivências da rua sendo marginalizadas e

inferiorizadas. Sendo estas atividades caracterizadas como “um servicinho extra” e

associando seus praticantes com a figura do malandro ou com a ocorrência de pequenos

furtos quando na verdade aquela era a única fonte de renda daqueles indivíduos. Essa

prática servia, e ainda serve, para desqualificá-los enquanto trabalhadores justificando

assim sua remoção, uma vez que não interessava à classe dominante ter a rua ocupada

pelos negros e pobres – uma prática higienista, que transposta aos vendedores

ambulantes de hoje permanece atuante.

5
Neste grupo, me refiro principalmente aos vendedores ambulantes. Não estou me remetendo àqueles
que estabelecem seus negócios em trailers, como os food trucks; carrocinhas, como os pipoqueiros, pois
tem na materialidade dessas estruturas uma vantagem em relação aos ambulantes: ela ajuda a colocar
estes comerciantes num espectro de formalidade, seja pela condição de adquirir o equipamento ou
estrutura, seja pela licença que essa estrutura eventualmente implica.

50
É importante pensarmos que desqualificar esses trabalhadores com a

marginalização e remoção é uma maneira de tentar coagi-los a aceitar empregos que,

embora formais, oferecem baixa remuneração e condições desfavoráveis, tornando esses

indivíduos mão de obra barata.

O último grande grupo a ser evocado para compor o painel das “figuras

vagabundas” da sociedade atual seriam os artistas de rua - de alguma maneira

associados aos ciganos já citados. Os artistas, não só os de rua, têm um histórico de

terem sua prática profissional desvalorizada, tendo em vista, especialmente, que não

produzem materialidade. Nesse quesito os artistas plásticos têm vantagem sobre os

músicos, atores, dançarinos, circenses e performers. Mesmo sobre os escritores e

compositores, visto que o livro e a partitura não são exatamente o produto de seu

trabalho, mas o texto e a música em si; ao passo que o quadro ou escultura são, de fato,

o produto do trabalho do artista destas linguagens. Vale pensar, por exemplo, como as

artes plásticas nas escolas brasileiras tiveram maior presença no ensino das Artes. Como

a materialidade ajuda a produzir sentido e função. Além disso, as artes são comumente

associadas ao divertimento, perdendo prioridade para atividades que tem função

econômica. Dentro desta lógica é fácil perceber o artista como alguém que não trabalha,

que não produz nada de utilitário à sociedade. Soma-se a este panorama uma

desconfiança especial aos artistas de rua. Provavelmente oriunda dos mascates e

saltimbancos medievais – os ciganos acima citados, dentre outros – que associavam as

práticas artísticas com o comércio de pequenos objetos e relíquias vindas de não se sabe

onde, além de práticas oraculares, como taro, vidência e leitura de mãos e, por isso,

associados ao charlatanismo.

Talvez, mais interessante do que pensar a seriedade ou não das práticas

premonitórias desses grupos, seja válido entender o desconforto e fascínio que,

51
simultaneamente, eles causavam. Uma hesitação que não é pontual a respeito desta ou

daquela leitura de mão ser verdadeira, mas um certo medo referente a essas pessoas que

traziam dentro de si um mundo completamente desconhecido. Um medo dessas pessoas

que traziam em si o próprio mundo, a própria vida, pois eram errantes:

Todos os anos, pelo mês de março, uma família de ciganos


esfarrapados plantava a sua tenda perto da aldeia e com um grande
alvoroço de apitos e tímbalos mostrava as novas invenções. Primeiro
levaram o ímã. Um cigano corpulento, de barba indomada e mãos
de pardal, que se apresentou com o nome de Melquíades, fez uma
truculenta demonstração pública do que ele mesmo chamava de a
oitava maravilha dos sábios alquimistas da Macedônia. Foi de casa em
casa arrastando dois lingotes metálicos e todo o mundo se espantou ao
ver que os caldeirões, as caçarolas, os alicates e os fogareiros caíam de
onde estavam [...]. „As coisas têm vida própria‟- apregoava o cigano
com sotaque áspero -, „é só questão de despertar as suas almas‟
(GARCÍA MÁRQUEZ, 2014, p. 43).

Enquanto os cidadãos são aqueles que vivem e cumprem as regras da cidade, os

artistas - sejam ciganos, saltimbancos de outrora, ou performers de hoje – parecem

perturbar e questionar a ordem já posta, como é possível ver no trecho inicial de “Cem

anos de solidão” acima transcrito.

São eles que com sua simples presença fazem questionar os padrões estabelecidos

até o ponto em que se tornam indesejados, por provocar demais. Chamados de

baderneiros, arruaceiros, brincantes, vagabundos, eles têm sua prática profissional

desqualificadas para que possam ser removidos.

Os artistas de rua de hoje, ainda são esses estrangeiros, capazes de migrar de um

lado para o outro atravessando suas experiências e correndo riscos. Estes artistas, com o

seu espírito aventureiro e transgressor, são as figuras vagabundas que nos interessam

olhar para pensar maneiras de resistência dentro da Escola do Espetáculo.

52
1.3 – Como resistir: o saber da experiência, a montagem e a
performatividade

Este seria um panorama muito superficial da marginalidade vagabunda da cidade,

das figuras que não produzem nem contribuem formalmente para a economia e por isso

se tornam, aos olhos do sistema social e econômico, indesejados. Mas qual a função de

enumerar esses grupos aqui, neste trabalho?

O entendimento dessa “figura vagabunda”, bem como do conceito de “corpos

docilizados” (FOUCAULT, 2014) se faz importante neste trabalho para pensarmos o

que a estrutura escolar enquanto instituição disciplinar está excluindo. Ou ainda, que

aspectos da vida, da cidade e dos indivíduos, estão sendo adaptados pela escola para

docilizar os corpos e tornar possível se apropriar de sua força de trabalho.

Ao desqualificar a “figura vagabunda” para discipliná-la, a escola busca eliminar

aquilo que funda esta figura: a rua e a ideia de vadiagem, o “não fazer nada de útil”. A

memória ainda escuta a professora dizer: “Esse menino não faz nada! Não faz nada de

útil! Não presta para nada!”. Ao excluir a rua enquanto lugar emblemático do espaço

público – ponha-se junto à praça -, o que se faz é diminuir de maneira muito

significativa os encontros, o deparar-se com o inesperado, os atravessamentos, a

possibilidade do indivíduo ser confrontado com algo alheio ao seu universo e, dessa

maneira, repensá-lo. Também, nessa exclusão da rua, diminuem não só os encontros do

indivíduo com os eventos, mas também com outros indivíduos, também na perspectiva

de ir desaparecendo com aquilo que é diferente e assim, padronizar os seres e seus

comportamentos – adestrar / docilizar os corpos.

Quando penso nos processos de educação, especialmente naqueles das linguagens

artísticas, busco refletir sobre o que fica de fora. Um aspecto que comumente é deixado

de lado e que me interessa incluir é a noção de “erro”. Normalmente definido pela

53
oposição ao “acerto” e associado às práticas de provas e notas, o “erro” pode ganhar

outros contornos se for trabalhado como elemento surpresa, inesperado, podendo ser

explorado enquanto ferramenta para composição.

Tenho o privilégio de trabalhar numa situação em que a Oficina de Teatro é livre

e, por isso, não confere notas aos alunos nem efetiva avaliações nos moldes tradicionais.

Isso me permite fugir de modelos perante os quais o desempenho dos jovens será

julgado como “certo” ou “errado”. Além disso, sempre que surge a oportunidade,

reforço que não existe erro, que tudo pode ser incorporado ao processo, se assim o

quisermos. E o que define a permanência de um elemento não é sua utilidade ou

notoriedade, mas as próprias leis do processo.

Infelizmente, sabemos que não é esse o pensamento que compõe a regra geral no

ambiente escolar. A ideia de acabar com o “não fazer nada de útil” se dá através do

“fazer algo útil”. Com isso, o que se constrói é um procedimento utilitarista dentro da

escola. O conhecimento, em nossa sociedade, se torna utilitário enquanto ferramenta de

troca para conseguir um bom emprego, vender um projeto, passar num concurso, para

citar alguns exemplos. E mesmo na escola, não só o conhecimento se torna utilitário

enquanto moeda de troca – demonstrar conhecimento adquirido vira nota para passar de

ano -, mas também os procedimentos estabelecidos no espaço escolar são de

utilitarismo: o aluno estuda para receber a nota, cumpre o horário para não ser suspenso,

faz a leitura para ganhar ponto extra. Em todos estes procedimentos existe uma

utilidade, eles são efetivados porque vai ocorrer uma troca e não porque fazem sentido

em si, não porque essas práticas produzem sentido dentro de um processo de produção

de conhecimento.

Atualmente, o conhecimento é essencialmente a ciência e a


tecnologia, algo [...] de alguma forma impessoal; algo que está ai, fora
de nós, como algo de que podemos nos apropriar e que podemos
utilizar; e algo que tem que ver fundamentalmente com o útil no seu
sentido mais estreitamente pragmático, num sentido estritamente

54
instrumental. O conhecimento é basicamente mercadoria e,
estritamente dinheiro; tão neutro e intercambiável, tão sujeito à
rentabilidade e à circulação acelerada como o dinheiro. [...] Nestas
condições, é claro que a mediação entre o conhecimento e a vida não é
outra coisa que a apropriação utilitária (LARROSA, 2014, p. 31).

A citação feita acima é retirada do texto Notas sobre a experiência e o saber da

experiência (LARROSA, 2014), onde o autor desenvolve o seu conceito de experiência

e de como ele é importante para a o processo educativo. Partindo dessa ideia central, ele

vai abordar o que seria o sujeito dessa experiência (aquele que deve estar disposto a

receber o que acontece, a deixar-se afetar pelos acontecimentos, vivenciar efetivamente)

e quais aspectos são nocivos a experiência – dentre eles o excesso de trabalho, que

guarda relação com a ideia de utilitarismo abordada acima.

Em sua obra, Jorge Larrosa Bondía (2014) nos fala que estamos habituados a

pensar a educação pelo binômio ciência/técnica (numa perspectiva tecnicista) ou pelo

binômio teoria/prática (numa perspectiva política, crítica e reflexiva). Mas ele propõe

que pensemos a educação pelo binômio experiência e sentido. Para ele,

a experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca.
Não o que se passa, não o que acontece ou o que toca. A cada dia se
passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos
acontece (LARROSA, 2014, p.18).

Desse modo, ele alerta para elementos que dificultam o acontecimento da

verdadeira experiência: 1) O primeiro desses riscos seria confundir a experiência com

informação. Um maior número de informações não é um maior número de experiência.

Segundo o autor, a preocupação em acumular, ou adquirir grande quantidade de

informação é, na verdade um impedimento para que o sujeito permita se deixar tocar. 2)

Outro aspecto que pode inviabilizar a experiência é a opinião. Emitir opinião, conceito

ou julgamento sobre algo é antes de tudo analisar esse acontecimento de fora e é o

contrário de se envolver (que estaria muito mais próximo do campo semântico da

55
experiência). 3) Em terceiro lugar, o autor nos fala que “a experiência é cada vez mais

rara por falta de tempo. [...] a velocidade e o que ela provoca, a falta de silêncio e de

memória, são também inimigas mortais da experiência” (LARROSA, 2014, p.22). 4)

Por último, ele nos fala que o excesso de trabalho também funciona contra a

experiência. A necessidade de produzir, de apresentar resultado atrapalha a experiência

porque ficamos preocupados com o final e nos esquecemos do curso, do processo.

E por isso, porque sempre estamos querendo o que não é, porque


estamos sempre em atividade, porque estamos sempre mobilizados,
não podemos parar. E, por não podermos parar, nada nos acontece. A
experiência, a possibilidade de que algo nos toque, requer um gesto de
interrupção, [...] escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar
muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço (LARROSA, 2014, p.
24).

É nessa perspectiva de um indivíduo aberto às possibilidades que o autor nos

apresenta a ideia de sujeito da experiência. Isto é, aquele que “se define não por sua

atividade, mas por sua passividade, por sua receptividade, por sua disponibilidade, por

sua abertura” (LARROSA, 2014, p.25)6. Ou seja, é um sujeito que, como as “figuras

vagabundas” que evocamos, não “faz nada de útil”, em sentido estrito, porque se

permite o tempo da escuta, da surpresa, do atravessamento. A vivência de um jovem

cigano que contempla o céu e vai construindo o seu saber de física e astronomia é

completamente diferente daquela que ocorre com o jovem escolarizado sentado na

carteira das aulas de física. O primeiro é um sujeito que não está aprisionado dentro das

regras, grade horária e observação constante da instituição e, por isso, pode vivenciar os

acontecimentos e se afetar por eles, se permitindo a experiência, com seus riscos,

incertezas e potências transformadoras. E é desse sujeito específico que nasce o saber

da experiência que, no pensamento do autor, é o que “se dá na relação entre o

conhecimento e a vida humana” (LARROSA, 2014, p.30). Essa relação com a vida

6
Não confundir a passividade evocada por Larrosa, atrelada a ideia de disponibilidade, com a
subordinação do corpo docilizado.

56
humana é o que mais falta aos nossos jovens escolarizados. Eles apreendem fórmulas,

histórias de tempos distantes, mas não entendem ou vivenciam seus corpos, seus afetos,

seus bairros, suas tradições e origens: estão no mundo sem estar nele, porque assim é

mais fácil alienar seus corpos e sua força de trabalho.

Por outro lado, se olharmos as “figuras vagabundas” - artistas, ciganos,

vendedores ambulantes, meninos e meninas de rua – eles têm uma vasta compreensão

do mundo e de seu lugar nele, por mais que lhes falte instrução sistematizada sobre as

áreas clássicas do conhecimento. Como exemplo, podemos pensar nos meninos e

meninas de rua que sabem usar seus corpos para intimidar, acuar, ou cativar os

passantes na busca por conseguir dinheiro. Ou ainda nos camelôs e vendedores

ambulantes que têm um grande domínio sobre as atividades do comércio – a

negociação, a matemática, a empatia - e um entendimento profundo sobre o produto que

vendem em contraste com a figura do vendedor de shopping, na maioria das vezes

completamente alheio à sua função de vendedor e ao produto com o qual ele se

relaciona.

As experiências vivenciadas pelas “figuras vagabundas” são aprendizado e se

convertem em inteligência dos corpos, dos afetos e das relações sócio-político-

econômicas que eles exercem. Por mais que sejam aprendizados dolorosos porque

marginalizados e na ilegalidade e, por isso, sob condições desfavoráveis de saúde e

segurança, mas sem dúvida, aprendizado e inteligência.

Viviane Mosé numa análise sobre o panorama da educação atual no Brasil nos

diz:

Um jovem que viveu ou vive a realidade escolar brasileira, na qual o


aluno recebe passivamente os dados do professor, na qual o que vale
não é o que o aluno aprende, mas o que o professor ensina, esse aluno
é vítima das novas mídias, porque foi treinado para reproduzir, e não
para pensar, e será arrastado pelos apelos de sua multiplicidade e de
seu excesso. Para instrumentalizar nossos jovens e nossas crianças no

57
uso da rede de computadores, precisamos de uma educação centrada
na aprendizagem, quer dizer, na pesquisa (MOSÉ, 2013, p. 65).

É a percepção de que a escola não ajuda a inserir os indivíduos no mundo

porque está afastada dele. Porque não contempla o caráter múltiplo e orgânico da vida.

Ao contrário, prioriza as tarefas sistematizadas dificultando o desenvolvimento do senso

crítico e fazendo com que esses jovens sejam mais facilmente manipulados pelo sistema

capitalista, pelos meios de comunicação e pela Sociedade do Espetáculo.

Sabemos que a experiência ocorre na escola, que encontros potentes se

efetivam, descobertas ocorrem. Mas esses momentos se dão em especial nas brechas do

sistema educacional: quando um professor se demora na sala e conversa com o aluno de

maneira um pouco mais informal, nos momentos um tanto a ermo passados na

biblioteca, nas conversas do pátio. As experiências significativas não são previstas pela

instituição escolar, nem tão pouco potencializadas.

É nesse sentido que devemos buscar uma educação pela experiência que nos ajude

a reestabelecer o sentido e a unidade da vida que são constantemente fragmentados, seja

pela Sociedade do Espetáculo com suas imagens particionadas, seja pelas instituições

disciplinares – em especial a escola - que dissociam o poder do corpo (sua força de

trabalho) de seus desejos, individualidades e potência política.

Como é possível superar a fragmentação em prol de uma educação pela

experiência? Qual a importância da fragmentação dentro do processo de alienação dos

corpos para o aproveitamento de suas forças de trabalho?

***

A fragmentação é embrutecedora e desumanizadora, na medida em que nos

aproxima das máquinas criadas para otimizar processos. Ela é instaurada visando um

produto final que na maioria das vezes não assume seu caráter descontinuado. Tomemos
58
por exemplo a escola tradicional, dividida em várias disciplinas que correm de maneira

essencialmente desarticulada, mas sobre a máscara do multi e do transdisciplinar, sobre

a fachada da unidade de “casa” ou “família” escolar.

Porém, de maneira oposta a esse processo, podemos pensar na montagem, que

podemos definir como sendo a justaposição de elementos heterogêneos. Ela ocorre

como um recurso de linguagem – seja na imagem, na narrativa, no discurso – e se presta

a evidenciar os signos de maneira a problematizá-los, e os seus usos.

Pensando a fragmentação do indivíduo em relação ao mundo no séc. XX, de fato

desde o final do séc. XIX, é que os movimentos modernistas vão se apropriar da ideia

de fragmentação, das partes separadas, lançando um olhar crítico sobre ela. Seja através

do movimento cubista, das colagens dadaístas, ou da exploração dos recursos do recém

surgido cinema os artistas destes movimentos tiravam a noção de fragmento da vida

cotidiana e do fluxo do senso comum e propunham um olhar emoldurado sobre ele.

Uma espécie de distanciamento tornado possível num efeito de espelho que permite um

olhar e uma reflexão crítica sobre si mesmo e seu tempo: a montagem. Este

procedimento, ao contrário da fragmentação inicialmente descrita, é emancipador na

medida em que dá a entender aos envolvidos os signos e como estes se articulam,

permitindo que cada um descontrua a linguagem na qual está inserida de modo a

reconstruí-la de acordo com suas necessidades e desejos.

É certo que antes de montar é preciso separar, e aí reside o possível embaçamento

desses dois conceitos. Para melhor distingui-los podemos pensar que o processo de

fragmentação se dá pela separação - a unidade do trabalho, do discurso, da vida são

rompidas - provocando uma alienação. Já a justaposição dos elementos na montagem

cria um contraste, que tende a provocar uma atitude crítica e analítica. Onde há

montagem, há choque, contraste. É uma maneira de tirar do fluxo contínuo as imagens

59
fragmentadas que estabeleceram uma falsa unidade própria e criam uma alienação. É

uma maneira de resistir à Sociedade do Espetáculo em que “as imagens que se

destacaram de cada aspecto da vida fundem-se num fluxo comum, no qual a unidade

dessa mesma vida já não pode ser reestabelecida” (DEBORD, 1997, p. 21).

É ainda relevante pensarmos que a montagem é um procedimento formal, desse

modo, o efeito crítico não se estabelece pela fala ou pela fábula, mas pela forma. Alterar

a forma da experiência é mudar a própria linguagem dessa experiência. E é nesse

sentido que esse efeito nos interessa para resistir à Escola do Espetáculo.

Ao longo do meu trabalho na Oficina Livre de Teatro, sempre que optei por partir

de material textual para a criação cênica, busquei compartilhar com os grupos

envolvidos os processos de adaptação. Fosse através de ajustes que os próprios alunos

efetivavam no texto como tarefa de casa, fosse conjuntamente durante os ensaios, o

objetivo era revelar os mecanismos de construção cênica, suas engrenagens e

procedimentos. E, principalmente, como eles, alunos-atores, poderiam compor com

esses elementos. Se o fragmento soa natural porque vem pronto, a montagem é

composição porque se mostra fazendo.

“Essa cena agora é sua, você pode fazer o que quiser com ela”, eu disse várias

vezes aos jovens. Eles tendem a duvidar dessa sentença, questionar sua validade. Num

segundo momento, acham que não são capazes. Só depois de muita insistência é que

eles passam a confiar em si próprios.

Desenvolver junto aos jovens o sentido de que eles podem construir suas próprias

narrativas é um caminho longo, porque vai na contramão da Sociedade do Espetáculo. É

uma jornada que envolve a autoconfiança e que gera um jovem a frente de suas

decisões. Um jovem com senso crítico e atitude. Exatamente o tipo de estudante pelo

60
qual a escola tradicional não tem interesse porque passa a questionar fortemente o

sistema imposto.

Assim, interferir na forma e na linguagem que a instituição estabelece e que

permeia as práticas e relações vivenciadas ali dentro é uma maneira de intervir e alterar

as próprias práticas de poder. A montagem nos permite justapor os discursos e práticas

incoerentes e às práticas de opressão que à instituição não interessa evidenciar.

***

Nesse momento surge então uma questão: visto que a desmontagem é um

procedimento, como efetivá-la na escola tendo como área de atuação as aulas de teatro?

Como resposta a esta questão surge a ideia de performatividade, que pretendo

investigar. Retirada da obra de Josette Féral, este é o termo que ela desenvolve ao

questionar a nomenclatura de pós-dramático criada por Lehmann:

um teatro cuja diversidade das características atuais Hans-Thies


Lehmann analisou com precisão e que ele definiu como pós
dramático, mas para o qual eu gostaria de propor a denominação de
„teatro performativo‟, que me parece mais exata e mais de acordo com
as questões atuais.
De fato, se é evidente que a performance redefiniu os parâmetros
permitindo-nos pensar a arte hoje, é evidente também que a prática da
performance teve uma incidência radical sobre a prática teatral como
um todo. Dessa forma, seria preciso destacar também, mais
profundamente, essa filiação que opera uma ruptura epistemológica
nos termos e adotar a expressão „teatro performativo‟ (FÉRAL, 2008,
p. 200).

Férral (2008) descreve o Teatro Performativo como sendo aquele que abre mão da

figura do ator em prol do performer, além de ser um evento teatral centrado na imagem

e na ação e não mais no texto. No centro deste Teatro Performativo está a descrição de

fatos e ações, valorizando a ação em si em detrimento da noção de representação e

mimese, mais associados ao teatro dramático.

61
A opção de trabalhar com a performatividade, atravessada pelo conceito de teatro

pós-dramático, como resistência à escola do espetáculo se deve ao fato de que:

1) A performatividade traz alternativas às questões referentes a docilizar os corpos

através da disciplina, como apontadas por Foucault, na medida em que busca valorizar

as individualidades e potencias dos corpos;

2) Se a disciplina busca excluir as “figuras vagabundas” em seus aspectos de

espaço da rua e não utilidade, a performatividade tem grande relação com a ocupação

do espaço urbano e provoca uma diluição de utilidade na medida em que carrega um

“deslize de sentido” (FÉRAL, 2008, p. 203-204);

3) A performatividade tem a possibilidade de efetivar os processos de montagem

no ambiente escolar ao justapor os corpos, anseios e temáticas levantados pelos jovens

performers em contraste com o pátio, a cantina, o refeitório, o corpo docente, ..., da

escola – evidenciando suas contradições e propondo uma leitura crítica deste espaço-

instituição;

4) A performatividade é uma aliada da educação enquanto experiência uma vez

que podemos considera-la, ela mesma, “a performance como experiência e

competência” (FÉRRAL, 2008, p. 200);

5) A performatividade, inserida no campo do teatro pós-dramático, usufrui das

competências deste e é também resistência à Sociedade do Espetáculo e, assim, à escola

do espetáculo.7

Estas e outras relações entre a performatividade e a Escola do Espetáculo e suas

características serão desdobradas nos capítulos seguintes.

7
“Lehmann considera a pletora de linguagens formais heterogêneas do pós-dramático como uma forma
de resistência à „sociedade do espetáculo‟. É para se contrapor à forma-mercadoria que esse teatro adota
uma estratégia de recusa e de afirmação da própria materialidade, oscilando entre presença e
representação, performance e mimese, real sensorial e ficção, processo criativo e produto representado”
(FERNANDES, 2007).

62
1.4 - A Arte, essa peste: ainda sobre resistir

Existe um elemento proveniente da história das instituições disciplinares que

podemos evocar para reflexão neste trabalho sobre performance e arte no espaço

escolar: a peste.

Foucault (2016, p. 190-191) nos conta os procedimentos tomados em uma cidade

do séc. XVII quando esta era acometida pela peste: a quarentena, a divisão da cidade em

zonas supervisionadas por um intendente, o controle das chaves das casas para que

ninguém saísse, a chamada dos nomes para saber dos vivos e dos mortos, a purificação

das casas feitas sistematicamente e uma por vez. Em suma, um grande sistema de

controle pela ordem e pela disciplina. “A ordem responde à peste; ela tem como função

desfazer todas as confusões [...]. Contra peste, que é mistura, a disciplina faz valer o seu

poder que é de análise” (FOUCAULT, 2016, p. 192).

Foucault descreve ainda, de maneira pormenorizada, a situação da cidade

pestilenta sob intervenção do estado:

Esse espaço fechado, recortado, vigiado em todos os seus pontos,


onde os indivíduos estão inseridos num lugar fixo, onde os menores
movimentos são controlados, onde todos os acontecimentos são
registrados, onde um trabalho ininterrupto de escrita liga o centro e a
periferia, onde o poder é exercido sem divisão, segundo uma figura
hierárquica contínua, onde cada indivíduo é constantemente
localizado, examinado e distribuído entre os vivos, os doentes e os
mortos – isso tudo constitui um modelo compacto do dispositivo
disciplinar (FOUCAULT, 2016, p. 192).

Nesta descrição não é difícil perceber a semelhança com fábricas e, mais, com

muitas instituições escolares ainda de hoje: o controle, a ordem do trabalho, a vigilância,

o poder central. Substituindo, no trecho final, “os vivos, os doentes e os mortos” por

“aprovados, em recuperação, reprovados” temos uma perfeita descrição do

funcionamento da instituição escolar.

63
Mais ainda, Foucault faz uma distinção entre a clausura e a disciplina, enquanto

procedimentos de ordem. Embora elas pareçam estar muito associadas, o autor aponta

filiações distintas para elas, ambas oriundas do universo da saúde pública. Se a

disciplina deriva do combate à peste, a clausura vem de uma lógica de exclusão que

pertence ao universo da lepra.

Por mais que esses procedimentos tenham se juntado ao longo dos tempos nas

instituições disciplinares, é importante perceber que cada um carrega um projeto. A

exclusão dos leprosos trabalha na perspectiva de tirá-los da cidade, a ideia das colônias

e dos asilos. Tirá-los da vista de todos é suficiente para que eles não atrapalhem o curso

da sociedade. Já a disciplina é o oposto, é a prática de manter próximo para controlar.

Se é verdade que a lepra suscitou modelos de exclusão que deram até


um certo ponto o modelo e como que a forma geral do grande
fechamento, já a peste suscitou esquemas disciplinares. Mais que a
divisão maciça e binária entre uns e outros ela recorre a separações
múltiplas, a distribuições individualizantes, a uma organização
aprofundada das vigilâncias e dos controles (FOUCAULT, 2016, p.
192).

Essa passagem do “excluir” para o “apropriar-se” é importante de ser entendida

porque representa a mudança de um projeto político. Se a exclusão é um banimento,

uma espécie de negligência e esquecimento do estado e da sociedade em relação a um

grupo; a disciplina busca enquadrar e se apropriar de algo em relação àquele grupo, no

caso, é uma apropriação da força de trabalho. “O exílio do leproso e a prisão da peste

não trazem consigo o mesmo sonho político. Um é o de uma comunidade pura; o outro,

o de uma sociedade disciplinar. Duas maneiras de exercer poder sobre os homens, de

controlar suas relações” (FOUCAULT, 2016, p. 193).

Essa associação que o autor propõe entre doença em grande escala, controle e o

poder que deriva disso cria uma outra perspectiva para pensarmos os procedimentos

disciplinares na instituição escolar: qual ou quais as “doenças” se pretendem curar nas

64
escolas? De quais “males” pretendem livrar nossos jovens, crianças e famílias ao inseri-

los na instituição escolar? Qual a peste que se pretende reverter? A peste da “burrice”,

da vadiagem, do “não fazer nada”?

O que se pretende eliminar através da disciplinarização da instituição escolar é a

própria vida: retirar as emoções, os afetos, a organicidade, a imprevisibilidade. Retirar a

vida dos indivíduos para que se tornem corpos em um sistema de produção organizado e

eficiente.

Perceba:

“A cidade pestilenta, atravessada inteira pela hierarquia, pela


vigilância, pelo olhar, pela documentação, a cidade imobilizada no
funcionamento de um poder extensivo que age de maneira diversa
sobre todos os corpos individuais – é a utopia da cidade perfeita”
(FOUCAULT, 2016, p. 193).

A “cidade imobilizada” à qual o trecho se refere é uma cidade onde nada

acontece, onde não é possível circular (corpos, ideias, afetos). É um lugar onde não

pode ocorrer a experiência (LARROSA, 2014), algo como uma cidade fantasma.

Apesar de abordar a disciplina dentro dessa perspectiva do controle da peste e do

cerceamento da liberdade, é exatamente esse panorama que nos permite traçar um

paralelo muito específico com a arte e, mais ainda, com o teatro. É a peste e suas

associações quem nos propõe uma alternativa.

Antonin Artaud (2006) já propunha essa associação em seu livro “O teatro e seu

duplo”, no capítulo “O teatro e a peste”. Neste trecho, o autor parte da descrição de uma

cidade acometida pela peste e segue:

Nas casas abertas, a ralé imunizada, ao que parece, por seu cúpido
frenesi, penetra e rouba riquezas que ela sente que lhe serão inúteis. E
é então que se instala o teatro. O teatro, isto é, a gratuidade imediata
que leva a atos inúteis e sem proveito para o momento presente
(ARTAUD, 2006, p. 19).

E ainda:

65
O estado do pestífero que morre sem destruição da matéria, tendo em
si todos os estigmas de um mal absoluto e quase abstrato, é idêntico ao
estado do ator integralmente penetrado e transtornado por seus
sentimentos, sem nenhum proveito para a realidade (ARTAUD, 2006,
p. 20).

Essa ideia de que o teatro se instaura a partir da peste, de seus efeitos e da cidade

pestilenta com seus vapores e humores, nos leva ao raciocínio mais direto de que os

agentes desse teatro, os atores, são os pestilentos. Esses atores-agentes (dramaturgos,

encenadores, cenógrafos, atores e todos as outras funções) são portadores e

disseminadores dessa peste: a arte.

É nesse sentido que cabe ao artista espalhar a peste - a arte - e contaminar a cidade

escolar, de modo a evidenciar as incoerências vividas. Na Oficina Livre de Teatro onde

trabalho, percebo claramente esse aspecto de contágio. Uma das belezas desse projeto é

que como ele é composto por várias turmas e por alunos em diferentes estágios de

engajamento com a arte, o teatro e o espaço cênico, é muito comum ver os alunos que

estão envolvidos a mais tempo no projeto contaminarem, por assim dizer, os demais.

Seja através da conversa, do incentivo para entrar na oficina, da colaboração para

levantar o material cênico ou na confecção de figurinos e adereços, o entusiasmo vai se

espalhando como uma febre. Uma colônia que vai se apoiando e crescendo para então

contaminar o resto da comunidade escolar.

***

Hoje, tenho a imagem da Escola como uma espécie de castelo ou cidadela

medieval: murada, apartada do mundo – como nos fala Foucault –, sendo vigiada sob o

pretexto da segurança e proteção. A minha entrada nessa cidadela, assim como dos

outros colegas artistas e daqueles que vem do mundo e vivem o mundo de uma maneira

mais crítica, é feita mediante autorização prévia. Sempre lembro das carroças de

66
comerciantes e das trupes de artistas se deslocando de uma cidade à outra na idade

média e renascimento. Ligamos e arejamos essas estruturas desenhadas dentro de um

isolamento de tal modo que preveem uma abertura controlada exatamente para se

manterem fechadas. Quando a carroça chega à cidade, ela se dirige ao portão, se

apresenta aos guardas. Sofre uma vistoria. Os guardas se olham, conversam, avaliam.

Por fim, abrem os portões e liberam a entrada, mas não sem antes lançar um olhar que

deixa claro que aquela presença foi autorizada, concedida, e que o entrante é

essencialmente um estrangeiro. Um diferente.

Todo esse panorama me faz lembrar um dos títulos de Augusto Boal: “O teatro

como arte marcial”, e fico pensando quais as armas que temos a favor de uma educação

pela experiência e pela liberdade. Ao longo do tempo que fui entrando e saindo dos

muros da escola, fui atravessando para dentro - secretamente - poemas, histórias,

canções populares, narizes de palhaço, bastões de butoh e uma pitada de

performatividade: todos eles, elementos altamente explosivos.

Confesso que não me deixa feliz pensar na Escola como esse espaço de guerrilha.

Mas quais as alternativas que temos quando o diálogo, quando surge, vem nesse lugar

de conceber pequenas liberdades pontuais como se fossem favores? Não é um diálogo

franco, não é uma escuta efetiva.

Acredito que uma das alternativas seja preparar um grande carnaval.

Performático, lúdico, repleto de imagens, não linear, de modo a abalar as estruturas de

poder e de linguagem das instituições de ensino, evidenciando seu caráter autoritário,

mercantil e aprisionador. Quando a luta for de festa, seremos nós, os artistas, os

melhores soltados desse batalhão brincante.

Avante, Cambada!

67
CAPÍTULO 2: A PERFORMATIVIDADE NA ESCOLA

O esperado seria iniciar essa escrita pelo início, com uma definição do que é a

performance, e da performatividade que caminha junto com ela, e de como pretendo

abordá-las. Este seria um caminho bastante razoável, dentro da perspectiva da razão,

cartesiano até. Mas o tema da performance não é cartesiano. É antes Deleuziano e

rizomático. Por isso, para começar, evoco uma conclusão, ou melhor, uma inconclusão:

Inconclusão provisória

A PERFORMANCE NÃO É NADA.

PORQUE ELA NÃO É.

A PERFORMANCE ESTÁ.

e mais ainda...

ESTÁ NAS COISAS

no corpo, na voz, no espaço, nos afetos...

(mas não tem estado muito nas escolas)

a performance está E sempre de passagem

porque se ficasse SERIA

MAS A PERFORMANCE NÃO É

e sobre este não ser é que pretendo falar

68
2.1 – Uma ANTIdefinição performática

A pesquisa sobre o tema em questão me mostrou como fugir à definição de

performance tem sido uma opção recorrente entre os pesquisadores da área:

La performance se ha caracterizado por esquivar toda definición que


pudiera encerrarla, anquilosaria en márgenes más o menos difusos. Se
dice que hay tantos conceptos de performance como practicantes y
aún podríamos multiplicarlos por el número de espectadores, pues em
cada uno de ellos la misma acción se realiza configurándose
semanticamente de manera diversa (TORRENS, 2007, p. 12).

E ainda:

considero vão, mesmo equivocado, qualquer esforço no sentido de


definir o que seja „performance‟. Trata-se de um gênero
multifacetado, de um movimento, de um sistema tão flexível e aberto
que dribla qualquer definição rígida de „arte‟, „artista‟, „espectador‟ ou
„cena‟. Como a performance indica, desafiar princípios classificatórios
é um dos aspectos mais interessantes da arte contemporânea
(FABIÃO, 2008, p. 238-239).

Agora que já passamos pelo início, podemos abrir os trabalhos pelo meio.

Partindo da premissa que a performance não é mas está em movimento é possível

entender que ela deixe rastros. Estes vestígios sobrepostos podem nos dar uma ideia das

características da performance, numa espécie de arqueologia.

Josette Féral nos fala sobre as características da performance que o teatro

absorveu: “transformação do ator em performer, descrição dos acontecimentos da ação

cênica em detrimento da representação ou de um jogo de ilusão, espetáculo concentrado

na imagem e na ação e não mais sobre o texto” (FÉRAL, 2008, p. 198). No mesmo

artigo a autora nos aponta que para Schechner a performance implica ao menos três

operações:

1. ser/estar („being‟), ou seja, se comportar („to behave‟);


2. fazer („doing‟). É a atividade de tudo o que existe, dos quarks8 aos
seres humanos;

8
Quarks: subpartículas atômicas, formadas das menores partes de um átomo.

69
3. mostrar o que faz („showing doing‟, ligado à natureza dos
comportamentos humanos). Este consiste em dar-se em
espetáculo, em mostrar (ou se mostrar) (FÉRRAL, 2008, p. 200).

Já Eleonora Fabião cita uma lista do que ela chama de tendências dramatúrgicas

da performance da qual eu destaco alguns itens:

1) deslocamento de referências e signos de seus habitats naturais [...];


3) acumulação, exageros e exuberâncias de todos os tipos [...]; 5)
aceleração ou des-aceleração da experiência de sentido até o seu
colapso [...] ; 6) aceleração ou des-aceleração da noção de identidade
até o seu colapso [...] ; 7) o desinteresse em performar personagens
fictícios e o interesse em explorar características próprias [...] ; 9) o
curto-circuito entre arte e não arte (sempre); [...] 13) a ritualização do
cotidiano (FABIÃO, 2008, p. 239).

Ou ainda se quisermos uma perspectiva cronológica desses vestígios:

Futurismo, Dada e Bauhaus foram momentos da história em que a


performance começa a ser percebida como parte integrada das Artes,
pois, a partir desses movimentos, a performance passa a ser utilizada
como um laboratório de experimentação (CIOTTI, 2014, p. 14).

Essa experimentação se inicia porque o modelo mimético da arte (o drama, no

caso do teatro) não dá mais conta de dialogar com a realidade diante das angústias da

sociedade moderna. Se por um lado a mimese e o drama, buscam a ilusão de uma

realidade homogeneizada e a identificação com o espectador numa lógica espetacular

em que este só contempla; por outro lado o efeito épico em Brecht, bem como a arte

como evento (iniciado nos happenings), geram uma ruptura nesse paradigma (o

estranhamento, uma quebra de fluxo) convocando o espectador a uma atitude de

reflexão e intervenção. A performatividade se desdobra a partir desse pensamento:

interromper o fluxo do drama e de sua lógica espetacular evocando no espectador uma

ação. “A convocação da performance é justamente esta: posicione-se já: aqui e agora”

(FABIÃO, 2008, p: 243). Com isso, a arte contemporânea propõe religar pensamento e

ação, mente e corpo, religar a vida, como nos fala Artaud: “estar do lado da ação é estar

70
do lado da vida liberta, é religar o duplo da vida que é pensamento e ação” (apud

ANDRÉ, 2007, p. 30).

Essa busca por uma não representação leva a um teatro que “assume

características de uma realidade mais imediata, mais fugaz: constitui-se da contra-cena

imediata com o receptor, de sua presença ativa. Por essa razão, chama-se aqui de teatro

da presentação” (ANDRÉ, 2007, p. 59), um teatro relacionado ao presente e a presença.

2.2 – Inventividade e não criatividade

Essa atitude que desmonta a lógica do drama e do espetacular – presentes não só

no teatro mimético mas também na Sociedade do Espetáculo – se faz por uma atitude

que Carminda Mendes André (2007), chama de atitude inventiva. Esta se caracteriza por

atuar no campo das necessidades, se elabora a partir de fragmentos pré-existentes e gera

situações (inventos) que são temporárias – “duram o tempo do movimento que os

levantam” (ANDRÉ, 2007, p. 22). A esta atitude inventiva se opõe o funcionamento da

criatividade que busca solucionar problemas a partir de ideias originais, inéditas e tem

por objetivo estabilizar a crise, busca um sentido de unidade.

No caso da atitude nas artes que desemboca na performatividade é possível

caracterizá-la como inventiva porque: 1) ela parte de uma necessidade em que o drama

não dá mais conta de se articular com a sociedade moderna, 2) se elabora a partir da

explosão da arte moderna e seus elementos fragmentados e 3) é provisória, posto que

dialoga com o momento presente que se reconfigura a todo instante.

É esta atitude que se busca para a educação de modo que se possa caminhar em

direção à experiência (LARROSA, 2014), abarcando o corpo, o presente, a presença e a

vida. Ou, nas palavras de Carminda: “Sugerimos que a atitude da invenção seja usada

71
como ferramenta para a produção do conhecimento da arte do teatro nas condições de

crise em que se encontra no contexto escolar” (ANDRÉ, 2007, p. 23). A invenção para

gerar conhecimento pela arte.

2.3 – Aula espetáculo

À crise referida na última citação, que se articulada com a ideia de Sociedade do

Espetáculo, podemos incluir a aula espetacular (RACHEL, 2013) que é aquela que se

dá num espaço espetacularizado, no sentido desenvolvido por Guy Debord e, por isso,

sem possibilidade de diálogo; que privilegia o conhecimento abstrato sem ligação com a

realidade de cada um; que é unidirecional (do professor para o aluno) e por isso se

aproxima daquela que Paulo Freire chamou de educação bancária9.

Podemos ainda pensar nessa aula espetacular

em paralelo com as convenções estabelecidas por uma peça de teatro


dramática que pressupõe a existência de uma quarta parede, separando
atores de espectadores; ao evidenciar que assim como o espaço teatral
dramático, na sala de aula há o espaço de ação do professor e o espaço
de ação do aluno (RACHEL, 2013, p. 80).

Pensar a escola com mais performatividade e menos teatralidade se faz

exatamente para religar esses duplos (mente e corpo, vida e conhecimento, professor e

aluno). Teatralidade entendida lá onde ela “está mais ligada ao drama, à estrutura

narrativa, à ficção e à ilusão cênica que a distância do real” (FÉRAL, 2008, p. 207).

É a busca por se aproximar da ideia de ação e de multiplicidade e não ficar mais

ancorado na ilusão do uno, de que todos operam e aprendem igual, de que os corpos e

desejos diferenciadores não existem ou não importam, a ilusão de que a escola funciona

para todos porque funciona para alguns.


9
“Na visão „bancária‟ da educação, o „saber‟ é uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada
saber. Doação que se funda numa das manifestações instrumentais da ideologia da opressão” (FREIRE,
2013, p. 81).

72
Assumir a performatividade na educação é assumir o aqui e o agora, assim como

nos diz a primeira operação de Schechner citada anteriormente: ser/estar (FÉRRAL,

2008, p. 200); com seus riscos e possibilidades.

2.4 - Aspectos, desafios e potências da performatividade na escola

Pretendo, agora, evocar alguns aspectos que atravessam essa possibilidade da

performatividade dentro da escola e que, potencialmente, entram em conflito com

princípios da própria instituição. Esse atritar é que gera a potência do processo visto que

tem a capacidade de reterritorializar modos de funcionamento, oxigenar. Por outro lado,

gera desafios, porque a escola, enquanto instituição disciplinar e detentora do poder, não

tem interesse nas mudanças de estrutura. Estes são, ao mesmo tempo, os desafios e as

forças dessa jornada pedagógica.

O primeiro aspecto que pretendo evocar é a questão da produção de sentido, ou

melhor ainda, do deslize de sentidos, como nos diz Josette Féral (2008). Assumindo que

a performance é esse sistema em aberto, que se estabelece no espaço do entre e que

deixa rastros ao invés de fabricar produtos e, mais, que cada um desses rastros

reterritorializa os diferentes corpos afetados de maneira única, é possível entender que a

produção de sentido – o entendimento sobre uma performance ocorrida – não é singular.

Ao contrário, são muitos sentidos. E, assim como a performance que não é mas está em

movimento, esses múltiplos sentidos deslizam se reconfigurando a todo momento. “O

performer confunde o sentido unívoco – de uma imagem ou de um texto – a unidade de

uma visão única e institui a pluralidade, a ambigüidade, o deslize do sentido – talvez

dos sentidos – na cena” (FÉRRAL, 2008, p. 204).

73
Não é mais o espaço do certo ou errado. Ao contrário, é o lugar do e. Uma

performance pode ser ao mesmo tempo desconfortante e prazerosa; um aprendizado e

uma tolice; entretenimento e cura.

Uma experiência que é muito libertadora porque parece inflar novamente o ser de

vida. É o momento em que se assume e se vivência a “latência paradoxal do vivo – o

que não pára de nascer e não cessa de morrer, simultânea e integradamente. Ser e não

ser, eis a questão; ser e não ser arte; ser e não ser cotidiano; ser e não ser ritual”

(FABIÃO, 2008, p. 237).

Pois é exatamente essa beleza que encontra pouca aceitação do espaço

institucional. Como a escola lida com a múltipla possibilidade? Como algo pode ser ao

mesmo tempo certo e errado? Como é possível corrigir, pontuar e conferir grau ao

múltiplo? Uma questão muito pontual, esta, mas que põe em cheque toda a estrutura da

instituição escolar. Isto porque “a escrita cênica [no nosso caso, a pedagogia

performática] não é aí mais hierárquica e ordenada; ela é desconstruída e caótica, ela

introduz o evento, reconhece o risco” (FÉRRAL, 2008, p. 204). O múltiplo, ou em

termos deleuzianos, o rizomático, não tem ordem ou comando externo. Estaríamos

(professores, educandos, famílias, sociedades) dispostos a isso, a assumir esses riscos?

Mais um risco a ser citado: “é o processo, ainda mais que o produto, que o teatro

performativo coloca em cena” (FÉRRAL, 2008, p. 204). Se para os jovens inseridos no

contexto escolar já é difícil vivenciar as incertezas e inseguranças do inacabamento e da

partilha dos projetos artísticos em aberto, quanto mais para os professores e professoras

diante da comunidade acadêmica (coordenadores, diretores, famílias). Retomo à

pergunta: estamos dispostos a isso?

Por hora, não tenho resposta. Deixo em aberto. Deixo em processo.

74
***

Somo a esta incerteza uma imagem: quando penso em deslize de sentidos o que

me vem à mente é um deslizamento de terra. A força da natureza viva que em algum

momento soterra a vontade humana de intelecto, de recortar o espaço, de dominá-lo.

Não pensemos aqui nas tragédias que assolaram o estado do Rio de Janeiro como

a ocorrida no Morro do Bumba, em Niterói, em 2010; ou a ocorrida em Nova Friburgo

em 2011. Não. Evoco o deslizamento como uma alegoria, onde “aquilo que conta

refere-se a algo que está fora da imagem. A concepção [...] do discurso que diz uma

coisa para significar outra” (ANDRÉ, 2007, p. 47). A proposta é de uma imagem que

interrompa este trabalho, o fluxo da escrita – assim como a performatividade que vai

cavando buracos no regime dramático.

Neste deslizamento alegórico, ao contrário daqueles factuais, não é preciso que

nos preocupemos com a vida e integridade das pessoas que estavam no local, tão pouco

com as políticas públicas de habitação, socorro e remoção das vítimas. É só uma

alegoria - mas uma alegoria nunca é só ela mesma.

75
Figura 4: deslizamento de terra em Taiwan. 2010. Disponível em:
<https://blogs.agu.org/landslideblog/2010/04/26/the-mechanism-of-the-highway-3-landslide-in-taiwan/>. Acesso
em 01 maio 2018.

76
Havia em Taiwan, na China, uma pequena cidade chamada Taiwin. Esta era muito

pobre e em tudo dependia da grande capital. Comércio, tecidos, livros, objetos

manufaturados, armas, ... Toda a sorte de quinquilharias e tecnologias.

Para chegar na grande cidade era preciso pegar uma longa estrada, viajar três dias

pernoitando na beira do caminho até chegar nos portões da gloriosa Taiwan.

Certa vez, saiu de Taiwan uma grande caravana para a capital. Era véspera do

aniversário da pequena cidade e muitos moradores iam para preparar a festa: comprar os

mantimentos, providenciar os fogos de artifício, tecidos para as vestes. Iam

representantes de toda cidade.

Chovia muito daquela vez.

Aconteceu, porém, que durante a noite do segundo dia da jornada, no

acampamento da caravana, ouviu-se um grande estrondo. Saíram para ver o que tinha

acontecido e descobriram que uma grande porção de terra de uma encosta próxima

havia desmoronado, caído sobre parte do acampamento e interditando a estrada.

O pânico rapidamente se instaurou. Algumas pessoas choravam, outras estavam

feridas, alguns desaparecidos. Teriam sido soterrados?

Rapidamente os socorros começaram. Aos poucos a situação de emergência foi

sendo contornada, mas o que iriam fazer? A caravana seguiria? E os feridos ficariam

sozinhos ou voltaria? Com quem?

Longamente se debateu a respeito do que fazer e nunca se chegava a um consenso.

Por fim, o grupo acabou se separando. Os homens de negócio da cidade decidiram

atravessar os escombros do desmoronamento para alcançar seu objetivo. Os sábios da

aldeia que compunham a caravana decidiram por voltar para buscar socorro.

Já os artistas ... se entreolharam. Pensaram. E decidiram ficar.

77
Montaram um novo acampamento na beira da estrada. Acenderam uma fogueira e

começaram a cozinhar. Cantar, ensaiar, cuidar de alguns dos feridos que decidiram

ficar.

No lugar onde eles montaram este acampamento surgiu em pouco tempo uma

nova cidade. Esta, ao contrário da primeira Taiwan, não dependia da capital. E até hoje,

na China, quando alguém passa por algum grande dilema ou sofrimento, busca essa

cidade: Taiwan à Beira da Estrada, a cidade que se reinventa.

***

Talvez a escola já seja esse terreno sob efeito do deslizamento.

O que é possível inventar a partir disso?

Pensando nesses destroços segundo Lehmann “o artista trabalha recortando e

definindo as frações de vida sobre as quais irá se debruçar, mas os pedaços recortados

não formam necessariamente um todo orgânico” (apud ANDRÉ, 2007, p. 75). E ainda:

o receptor é convidado a assumir o lugar do centro da obra (lugar


anteriormente ocupado pelo autor) para reger a estruturação que, por
sua vez, gera múltiplas narrativas [...]. O que o artista oferece ao
receptor é a ocasião para a estruturação de uma obra, de uma realidade
e de um discurso. É nesse sentido que se pode afirmar a arte
contemporânea como um „trabalho em processo‟ (ANDRÉ, 2007, p.
75-76).

Se pensarmos na situação da sala de aula e da educação da experiência seria um

panorama parecido: a aula seria a ocasião, o evento, para estruturar uma obra, uma

realidade, um discurso, um saber. Próprio e diferente para cada um dos envolvidos.

Mas quais os modos de fazer deslizar os sentidos no espaço escolar? Uma lista

dos procedimentos do teatro performativo pode nos dar algumas pistas: “esse teatro

procede por meio de fragmentação, paradoxo, sobreposição de significados [...], por

colagens-montagens [...], intertextualidade [...], citações, ready-mades” (FÉRRAL,

78
2008, p. 204). Estas seriam ferramentas capazes de pôr em jogo muitas questões do

espaço escolar e do processo de construção de conhecimento: liberdade, autoestima,

narrativas próprias, só para citar algumas. Nada disso resolve problemas, antes, inventa

ações, faz girar as experiências dos envolvidos. Mas não resolve problemas.

“O objetivo do performer não é absolutamente o de construir ali signos cujo

sentido é definido de uma vez por todas, mas de instalar a ambuiguidade das

significações, o deslocamento dos códigos, o deslizamento de sentido. Ele joga ali com

os signos” (FÉRRAL, 2008, p. 205). Talvez, o ideal seria que pudéssemos assumir que

esse professor pela performatividade não resolve problemas, como já dito antes, ele

inventa ações, provisórias. Verdadeiramente cria outros problemas, outras questões, por

assim dizer. “Performers são, antes de tudo, complicadores culturais” (FABIÃO, 2008,

p. 237). Mas que escola estaria verdadeiramente interessada em contratar um

complicador?

***

“Se se quer aproximar arte contemporânea e educação, é necessário enfrentar o

sinal de maior contundência da crise na atualidade que é a dessubstancialização da arte,

[...] termo empregado para expressar a desvalorização do objeto artístico como obra

acabada” (ANDRÉ, 2007, p. 118). Esse termo, como nos aponta a autora, é responsável

por tirar o objeto artístico e a noção de acabamento do pedestal da arte. Não mais a

representação de uma realidade é o foco do projeto artístico, ele “não apresenta portanto

uma totalidade a ser contemplada; ao contrário, essa arte presenta aos receptores a

necessidade de se elaborar representações e obras” (ANDRÉ, 2007, p. 118).

Como lidar, então, com essa dessubstancialização da arte no ensino das escolas

tradicionais que funcionam numa lógica mercadológica - para qual o produto precisa

79
existir para ser comercializada - ? Como sustentar projetos e bancar permanência nas

escolas sem uma conclusão pré-estabelecida, sem um objetivo que conste no papel?

Mesmo numa situação de aula regular, como justificar a pertinência do trabalho

conquistando espaço e parceria dentro das instituições?

Ocorre-me pensar em estratégias de valorização para o processo, através da

partilha: ensaios abertos, exposição dos rastros da jornada, happenings, montar álbuns

de registro, diários de bordo, ...

O desafio é que os jovens se sintam confortáveis nessa partilha de processos que

se assumem inacabados num universo escolar em que lhes é cobrado o certo, o que

corresponde ao modelo. Nesse sentido, valorizar o processo entre os próprios jovens já é

em si uma jornada pedagógica.

Outro desafio é não deixar o processo cair na lógica mercantilista e comercializá-

lo, vender o processo, porque aí ele também se torna produto. A ideia que se deve

manter é a da partilha, até mesmo de uma celebração. Como nos aponta Renato Cohen

que “compreende o performer como um ritualizador do instante presente” (apud

RACHEL, 2013, p. 4).

***

Um brinco para furar a orelha

A cultura tornada integralmente mercadoria deve também se tornar a


mercadoria vedete da sociedade espetacular. Clark Kerr [...] prevê que
a cultura deve desempenhar na segunda metade do século XX o papel
motor no desenvolvimento da economia, equivalente ao do automóvel
na primeira metade e ao das ferrovias na segunda metade do século
XIX (DEBORD, 1997, p. 126).

Considerando o universo da Escola do Espetáculo, a citação acima vale para

pensarmos como o teatro e as ardes de modo geral se tornaram uma espécie de adereço

80
do sistema educacional. Adereço fundamental, posto que “mercadoria vedete”, mas

sempre mercadoria. Validado por sua aparência e superficialidade e não por seu valor

intrínseco. Seja no aspecto de menor valia no contexto escolar (“vai reprovar o aluno

por causa de artes?!”) ou seja na prática das apresentações quando buscam

prioritariamente exibir aquilo que a “educação integral do indivíduo” é capaz de

produzir (a peça organizada, o coral afinado), as artes parecem ocupar esse lugar de

agregar valor – ainda pela associação do belo na arte. Como uma joia, um brinco,

ajudam a enfeitar o todo da educação, mas sem ser levada em conta como uma área do

conhecimento.

Muitas vezes é ensinado aos alunos que ir à aula de teatro é bom para relaxar e

desanuviar da rotina de estudos. Não que o prazer deva ser negado, mas com essa ideia

se estabelece um aspecto turístico, por assim dizer, da pedagogia teatral e das artes. Um

flanar descompromissado numa espécie de fuga e alienação. A aula de teatro assim

como ligar a TV para relaxar.

Debord nos alerta para o risco desse turismo mercadológico: “Subproduto da

circulação de mercadorias, o turismo, circulação humana considerada como consumo,

resume-se fundamentalmente no lazer de ir ver o que se tornou banal” (DEBORD,

1997, p. 112). Um turismo em que o indivíduo não sai de si, não se permite descobrir o

novo, ser atravessado, se reinventar. Um turismo feito para tirar fotos e postar em redes

sociais.

A banalização do espaço da educação artística, aqui mais especificamente do

teatro, faz com que essas atividades sejam mais do mesmo no ambiente escolar –

mesmo espaço, regras, tempo, avaliação. Considero importante singularizar esse espaço

da aula de artes para que seja possível cruzar as barreiras, transpor e fazer a travessia.

81
A ideia de travessia, inclusive, guarda relação etimológica com a palavra

experiência, proposta por Larrosa para pensar uma educação que produza sentido:

“Vamos agora ao que nos ensina a própria palavra experiência. [...] A raiz indo-europeia

é per, com a qual se relaciona antes de tudo a ideia de travessia” (LARROSA, 2014, p.

26).

Singularizar o espaço do teatro para propor a experiência e possibilitar a travessia,

como um pirata.

Se em alguns casos a pedagogia teatral pode se adequar às expectativas da Escola

do Espetáculo, a articulação com os aspectos da performance tem potencial para atritar

com esse espaço e desenvolver um olhar crítico e um reposicionamento dos indivíduos

envolvidos. Se para algumas instituições o interesse primeiro nas artes é de adereço, é

possível se valer disso e se aproximar delas desse modo. É possível enfeitar o todo da

educação, pendurar o brinco de pérola, mas não sem furar a orelha. Cavar o espaço,

promovendo estado de alerta, risco, aventura e descoberta. Como piratas no mar.

Essas pequenas rebeldias. Essas conquistas.

***

Segue um relato meu, de umas rebeldias.

Sobre como comecei performativamente. Uma versão.

Carminda Mendes André fala das figuras solitárias e sem pares quando menciona

os artistas intervencionistas:

artistas de teatro sem edifício e/ou sem grupo teatral, de artistas


plásticos sem galerias, de músicos sem instrumentos, e de todo tipo de
artista ambulante. Alguns por opção outros por ocasião. Andarilhos
solitários, às vezes em grupos pequenos, cavando espaços, exercem
sua arte de inventar espaços (ANDRÉ, 2007, p. 73).

82
Quando li esse trecho me identifiquei rapidamente. É uma perspectiva que dialoga

francamente com a minha realidade de professor de teatro em escola.

Quando iniciei o trabalho com performatividade na minha prática pedagógica foi

quase na mesma época em que me percebi “sem grupo” dentro da escola. Já haviam-se

passado os primeiros anos de trabalho dentro da mesma escola, meus olhos não estavam

mais tão embaçados com as primeiras questões (planejamentos, montagens, ...) e pude

notar melhor o panorama que se desenhava e como ele afetava meu trabalho: único

professor de teatro, equipe de artes pequena, desarticulada e sem coordenação. Sem

perspectiva de outras figuras dispostas à criação dentro do ambiente escolar (com

exceção de uma parte dos alunos), fui me percebendo sozinho e sem possibilidades de

diálogo, de duplos.

Os participantes da Oficina de Teatro até embarcavam nas minhas propostas

artísticas e pedagógicas, mas os estudantes iam embora ao fim do ano e o que se

renovava era a instituição que negligenciava o meu trabalho. Espaço físico das aulas

carentes de reparos, desinteresse e desconhecimento por parte da direção e coordenação

sobre os projetos que eu desenvolvia, descaso com as apresentações sem nenhum

representante da escola (só os convidados dos alunos). Eu me sentia desamparado

enquanto profissional.

Essa invisibilidade (apesar de uma média anual de 100 alunos, oito turmas, 6

montagens diferentes e um público estimado de mais de 500 pessoas) que em sua via

negativa carrega a falta de representatividade e a falta de voz na instituição, mas em

contrapartida, traz uma certa mobilidade nas ações. Se a instituição parecia não prestar

muita atenção aos meus processos, talvez eu pudesse experimentar algumas práticas

mais, digamos, “ousadas”.

83
Foi aí que comecei a propor aos meus alunos mais velhos, do Ensino Médio, com

os quais eu tinha uma conversa mais franca, diálogos e propostas que eram atravessadas

por questões de performatividade. Começamos com conversas e vídeos sobre teatro-

dança, Pina Baush, Marina Abramovic, Pop Art, ready made, happenings. Passamos por

atividades de concentração, estabelecer um contato mais efetivo consigo mesmo e com

o próximo, propostas de apropriação do espaço, dinâmicas em que a palavra ficava de

lado e o foco era desviado para o corpo e as imagens. E quando dei por mim, estávamos

desenvolvendo ações no pátio da escola em horários de recreio e saída dos alunos.

Foi tudo muito rápido. Era um dia chuvoso com poucos alunos em sala. Por acaso

eu estava com o meu computador pessoal. Estávamos todos meio desanimados. Nem

lembro porque, talvez porque estivéssemos desanimados, comecei a falar sobre arte

contemporânea, performance, teatro dança, sobre como tudo aquilo buscava um diálogo

mais franco com a vida, coisa que o teatro “tradicional” (dramático) não dava mais

conta. Mostrei alguns vídeos (Sagração da Primavera e Café Muller, ambos

coreografias da Pina Baush, e trechos do filme Pina, do Win Wenders). O pequeno

grupo se interessou, para a minha surpresa. Não era nada arrebatador. A reação deles era

ao mesmo tempo de curiosidade e estranhamento – era já o múltiplo em ação. Foi tudo

muito rápido. Dali para as práticas e para as intervenções no pátio foi um pulo: menos

de um mês.

Tal não foi a minha surpresa quando duas alunas me abordaram:

- Nós inventamos uma performance e queremos fazer no recreio. Você ajuda a

gente?

Já era a proposta para “ROTULE”.

***

84
De Certeau (apud ANDRÉ, 2007, p. 138), ao falar das figuras “assujeitadas”,

indivíduos sem lugares próprios, aponta:

uma ação de astúcia, própria daqueles que, mesmo dentro de um


espaço conquistado, conseguem driblar a vigilância e conquistar
pequenas vitórias. Esse tipo de ação, chamada por ele [De Certeau] de
„táticas‟, demonstra uma certa sabedoria para perceber as falhas na
administração (ANDRÉ, 2007, p. 138).

Essas pequenas astúcias, vitórias e conquistas, vão dando fôlego ao trabalho.

Ajudam o professor a persistir e as ações culturais a insistir. A medida que essas

práticas de caráter marginal, clandestino vão se tornando frequentes, os indivíduos vão

se unindo. Como se o segredo, a marginalidade, ou a sensação de um inimigo comum –

a Instituição – forjassem o grupo. Uma espécie de gueto que vai surgindo. Ou ainda,

uma comuna, como as cidades da Idade Média que se tornavam emancipadas pela

obtenção de carta de autonomia fornecida pelo seu suserano. “Mis clases son como

comunas” (apud TORRENS, 2007, p. 51), nos diz Carolee Schneemann quando fala

sobre o trabalho com corpo em sala de aula para romper os tabus referentes a este.

Já não era mais o professor-artista sozinho, existia um senso de coletivo. Devo

confessar que este é o momento em que me confundo com os jovens; um híbrido de

docente e discente. É na rebeldia, na insubordinação e na vontade de gritar que nos

misturamos e descobrimos afinidades, projetos em comum.

Questiono se é uma postura tola, infantil, leviana, de um professor em início de

carreira. Mas devo confessar que foram estas ações que me trouxeram maior felicidade

dentro de minha prática. Talvez o conforto venha de Deleuze e Guattari (1995) onde o

leviano é como um rizoma que corre pela superfície e pela borda. Um funcionamento

que pode, sim, ser um pouco tolo, mas que é honesto com os indivíduos envolvidos no

processo, incluindo eu mesmo.

85
Mas se De Certeau aponta a fuga é ele também quem aponta o risco: „Não

interessa o que conquistam, mas a ação de astúcia não pode ser controlada do mesmo

modo que não se controla o pensamento silencioso de alguém. Quando descobertas,

essas táticas são fortemente reprimidas” (apud ANDRÉ, 2007, p. 138).

***

Foi em 2016. Um grupo de 9º ano do fundamental II e 1º ano do Ensino Médio.

Uma turma grande para os meus padrões, iniciamos com cerca de 20. Alguns foram

saindo. Os debates, improvisos e jogos começaram a girar em torno de questões de

sexualidade, liberdade, escola. Eu lembrei da peça O Despertar da Primavera, de Frank

Wedekind. A história foi escrita e se passa no final do séc. XIX, é ambientada no

interior da Alemanha, num ambiente rural. O roteiro já carrega traços do

expressionismo alemão e, enquanto formato, apresenta cenas quase independentes sem

o encadeamento de causa e efeito, numa linguagem já bem próxima do teatro

contemporâneo. No texto, jovens em idade púbere vivenciam questões como a

descoberta da sexualidade (incluindo a homosexualidade), busca por maior liberdade

junto aos pais e a escola, a relação entre religião e conhecimento. Ou seja, todos

elementos que a instituição escolar, normalmente, não tem interesse em abordar. Mas

era só um exercício... (eu pensei na época).

Fizemos uma primeira leitura de alguns trechos, seguimos para debates e

improvisos. Atividade de uma aula, coisa pouca. O grupo adorou. Manifestou interesse

em montar a peça para apresentar no final do ano. Eu tentei dissuadí-los. Disse que já

havia tentado montar antes com uma outra turma, que era um projeto antigo meu, mas

que os próprios alunos tinham desistido no meio. Eles insistiram. Eu disse que eram

assuntos pesados, que provavelmente eles desistiriam também. Eles insistiram mais. Eu

86
falei que a escola não deixaria. Eles ficavam cada vez mais engajados, parecia um

fermento (talvez fosse mesmo). No final, eu, cansado de tentar a desistência deles e feliz

por ter despertado um interesse no grupo, disse que iríamos seguir com o processo. E

que ao longo do ano veríamos a viabilidade da montagem completa do texto.

Eu disse isso certo de que eles iam desistir, se desinteressar ao longo do ano. Mas

não desistiram.

Fomos lendo o texto, improvisando as cenas, levantando o espetáculo, dividindo

personagens. Eles foram decorando as falas. Foram surgindo propostas de cenário,

figurino, trilha sonora.... Contra todas as minhas expectativas, o processo estava fluindo.

E de maneira bastante interessante.

Eu não achei que fosse dar problema com a escola. Nunca eles tinham me pedido

para ver os roteiros ou aprovar previamente os projetos. Eles negligenciavam o trabalho

da Oficina de Teatro. E eu me valia disso. Prova é que no ano anterior eu tinha montado

a Ópera do Malandro, de Chico Buarque, com as personagens prostituas em cena bem

como a travesti Geni sem nenhuma intervenção. A direção, como de costume, não foi

assistir.

Pois, naquele ano, eles pediram os roteiros.

Cerca de um mês antes de estrear, o espetáculo foi censurado. A direção impediu

que apresentássemos nosso projeto.

De início, pediram para ver os textos. De todas as peças, de todas as turmas.

Depois, a diretora me chamou para uma conversa a respeito do Despertar. Para encurtar

a história, ela me coagiu a fazer cortes no roteiro. Eu, muito indignado, mas pensando

em não desapontar os alunos e na tentativa de preservar parte do nosso trabalho, fiz os

cortes. Quando passei para o grupo eles ficaram indignados.

87
Um dia, eu estava me arrumando para sair de casa e ir para a escola dar aulas

quando o telefone tocou. Era a diretora: “Professor Ivan, eu gostaria de saber o que o Sr.

disse aos seus alunos, porque eles estão no recreio passando um abaixo assinado para

fazer a peça sem cortes. Eu preciso saber de que lado você está. ”

Lembrei-me desse episódio da ligação quando li o seguinte trecho: “Levando

adiante a cena da guerra, surge a questão de saber qual o papel designado aos

professores de artes, onde se posicionam dentro desse lugar vigiado que se tornou a

escola e de que maneira reagem diante dessa figuração” (ANDRÉ, 2007, p. 137).

A peça nunca aconteceu. Desde então, todo ano, a direção me pede para ver o

roteiro de todos as montagens em andamento.

***

Desenvolvendo os conceitos de produto, processo, fabricação e ação cultural,

Carminda Mendes André (2007), partindo da obra de Teixeira Coelho Neto, elabora

essas ideias que podem nos ser uteis para pensarmos os funcionamentos do professor de

artes, mais especificamente do teatro, na instituição escolar.

Segundo a autora, o produto é um todo projetado. Tem seu início e fim já

previamente estabelecidos, como numa linha de produção. Por isso está dentro da lógica

do fabricado. Não só na sua materialidade, mas também na sua ideologia: “diz-se que

ele é fabricado no sentido artificial e, por ser fabricado, corre o risco de ser manipulado

por uma ideologia” (ANDRÉ, 2007, p. 91). Aí reside o seu perigo, ele pode ser usado

como ferramenta de manipulação.

Funcionando numa outra lógica, em relação à fabricação, está a noção de ação

cultural. Esta tem um início estruturado, pensado, para fazer desenrolar as ações; mas

não tem um trilhar nem um produto final previamente estabelecidos. Não se sabe onde a

88
ação cultural vai levar. Isso porque ela considera os atravessamentos que vão ocorrer,

como os indivíduos envolvidos no processo, e que esses atravessamentos irão

reconfigurar a ação. Não é possível prever um produto final, nem se ele chegará a

ocorrer. É por isso que neste modo de funcionamento o foco não pode estar no objeto

nem ser considerada sua comercialização, porque a priori ele não existe. O foco está no

processo: “Na ação, o agente gera um processo, não um objeto” (ANDRÉ, 2007, p. 91).

fabricação  início e fim estabelecidos  produto

ação cultural  início estruturado, mas sem final pré-estabelecido  processo

Se fizermos um paralelo com a educação pela experiência (que resiste a Sociedade

do Espetáculo), o que se busca é exatamente o processo, o invento e a ação cultural. O

que comumente desenhamos como um planejamento de aulas deveria então ser pensado

como uma sequencia de disparadores de inventos: mecanismos e processos para iniciar

as ações do grupo.

Para mediar essas ações culturais, este que seria então um agente cultural no

universo da escola, a figura que se anuncia mais pertinente nesse panorama é o híbrido

professor-performer proposto por Naira Ciotti (2014).

2.5 – O híbrido professor-performer

A ideia de um professor-performer antes de tudo não deve ser confundida com um

professor de performance, que se proponha a ensinar performance para uma turma. Isso

estaria inserido num contexto de ensino tradicional, conteudístico, e numa proposta

bancária. Se as premissas da performance são ser/estar (no mundo) e agir, como é

possível ensinar um modo de estar no mundo? Além disso, considerando que a ideia de

89
performatividade lida com um não modelo e um não mimetismo, não há nada a ser

ensinado. Torrens já levanta essa questão: “¿Es posible enseñar performance?”

(TORRENS, 2007, p. 47)

Isto posto, já sabemos que a proposta de Naira Ciotti (2014) do professor-

performer é uma outra coisa. É antes de tudo um híbrido entre essas duas instâncias tão

conhecidas da nossa sociedade, mas que mutuamente atravessadas se reterritorializam

reciprocamente. Nas palavras da própria autora: “A hibridação professor-performer

propõe que o aluno seja produtor em arte. Neste contexto, ensinar é, acima de tudo, um

processo de criação e experimentação” (CIOTTI, 2014, p. 43).

É oportuno observar que a autora define o seu objeto de estudo - ou melhor,

anuncia seu modo de funcionamento - pelo outro, pelo fora. Situa o professor-performer

através do aluno. É um procedimento rizomático em que “as multiplicidades se definem

pelo fora: pela linha abstrata, linha de fuga ou de desterritorialização segundo a qual

elas mudam de natureza ao se conectarem às outras” (DELEUZE; GUATTARI, 1995,

p. 25). Além disso, a autora situa o contexto deste ensinar que é o do processo.

Todos esses aspectos (meio, processo, híbrido, linha de fuga) nos fazem entender

que a figura que ela evoca se constitui no espaço do entre, na fronteira. É antes de tudo

um híbrido.

Mais do que juntar as vantagens dos dois mundos - isso seria quase um produto

multiuso a ser comercializado nos canais de venda de TV - o professor-performer se

depara com algo próximo a uma indefinição vinda de uma colagem improvável. Desliza

pelas definições, pelo ser, pois está. Uma espécie de monstro. Algo como uma quimera,

uma esfinge. Uma sereia, talvez. Que não existe, mas sabe-se lá. Difícil de decifrar. Ou

antes, como já vimos, se constitui pelo fora.

90
E não digo isso para enevoar a figura e encerrar o debate, ou antes para justificar

uma imprecisão ou descuido nas funções e formação deste professor-performer. Não.

Até porque esse deslizar de sentidos, funções e ações exige maior preparo, mais energia,

estudo e sensibilidade. Ser sereia nos mares de agora é árido.

Digo isso na perspectiva de que o próprio profissional se desafia, se provoca, testa

e reconfigura seus limites o tempo inteiro. Isso porque nunca está confortavelmente

situado nesta ou naquela função. É o infinito exercício da crítica e da busca. “Caminhar

é ter falta de lugar” (ANDRÉ, 2007, p. 72).

Talvez, propor um professor-performer e uma aula performativa fosse a aplicação

do e conjuntivo e rizomático à proposta triangular de Ana Mae Barbosa: uma aula, ou

melhor, uma ação que fosse simultaneamente - em seus devires e linhas de fuga – a

fruição, a produção e a contextualização. Que as fronteiras entre artista, espectador e

crítico de arte10, ou a inda entre aluno e professor pudessem deslizar de tal modo

borrando essas fronteiras e fazendo com que esses papéis atravessassem os indivíduos.

Não é simples e não existem respostas prontas, mas são desafios que parecem anunciar

um panorama bem mais interessante à educação.

E assim, essa figura desliza incessantemente entre artista e professor. Do mesmo

modo, se confunde a todo instante entre docente e discente / atuante e espectador.

Porque, seja simultaneamente, seja em câmbio contínuo, todos os indivíduos do

processo constroem o saber da experiência e partilham esse saber – sendo este último

mais próximo da figura “que ensina”. “Cada corpo é educando e educador

simultaneamente”, e ainda “a transformação do par ensino-aprendizagem, no território

móvel do ensinando-aprendendo” (CIOTTI, 2009).

10
Tentando dar um nome àquele que, tradicionalmente, explica e contextualiza a obra de arte.

91
Neste sentido, quando Ciotti diz que onde há o professor-performer entendo

também que há uma proposição de que o aluno seja produtor, ela diz que o próprio

mediador também produz, posto que ele é também aluno pelo deslize de funções. O

professor deve produzir arte, junto com seus alunos! Isso ajudaria a desmontar a velha

dicotomia de que o professor de artes, de teatro, é o artista que “não deu certo”. Essa

visão está muitas vezes associada à menos valia da figura do professor em nossa

sociedade, mas também está de certa forma relacionada ao fato de que a maioria dos

professores de arte não produz arte em sala com seus grupos. Sei que existe todo um

debate a respeito da questão modelar, para que o aluno não copie o que o professor

efetiva como única opção de execução. Mas não é disto que estou falando. Estou

falando de produzirem arte juntos, todos juntos.

Muitos colegas se queixam de que a atividade de sala de aula lhes toma muito

tempo e que isso faz com que suas produções artísticas estejam paradas. Eu mesmo

enfrento constantemente esse desafio. Mas se assumíssemos nossa produção pedagógica

como produção artística a sensação seria outra do que essa de frustração.

Este é mais um momento em que me pergunto se estamos preparados para a

mudança que pedimos. Pedimos melhorias e mudanças de postura e de paradigmas por

parte da instituição, dos alunos, das famílias, do estado com suas políticas públicas, mas

o quanto nós artistas-professores estamos dispostos a uma nova atitude? Estamos

dispostos a encarrar e assumir, publicamente, perante nossos pares, nossa produção de

sala de aula com crianças e jovens como nossa real produção artística? Ou isso ainda

soa menor?

Não digo isso para desqualificar as pautas de reinvindicação, elas são

imprescindíveis. Digo isso para causar desconforto e fazer uma “complicação cultural”,

me apropriando do termo de Eleonora Fabião. A luta de um reconhecimento da arte

92
como área de conhecimento e metodologia precisa começar dentro de nossas salas (de

aula/de ensaio), dentro de nossas práticas.

Essa mudança de postura diz respeito ao deslocamento da performatividade para a

área da educação. “O artista se apropria da performance num sentido de ruptura com

padrões tradicionais da arte. E eu, enquanto professor, me aproprio da palavra

performance para falar de uma atitude pedagógica diferenciada” (CIOTTI, 2014, p. 62).

Esta ruptura se dá posto que a arte contemporânea e a performance já emanam uma

função pedagógica na medida em que “habituando o olho e o pensamento do homem a

uma sucessão ininterrupta de outras visualidades [...] provocam mudanças no olhar e na

sensibilidade dos indivíduos” (CIOTTI, 2014, p. 63).

A arte é pedagógica! Para corroborar neste discurso posso evocar as palavras de

Charles R. Garoian que define “enseñar como un acto performativo” e que isto “prepara

para una ciudadanía crítica dentro de una sociedad radicalmente democrática. Propone

una resistencia a la cultura dominante en los trabajos de los estudiantes” (apud

TORRENS, 2007, p. 52). Ou ainda Bernardo Ordiz em entrevista à Pablo Helguera:

“Todos os atos pedagógicos são performativos. Eles não apenas apresentam um

discurso, eles o reapresentam. O expressam” (HELGUERA; HOFF 2011, p. 20).

Não admitir isso e ignorar os processos artísticos como ações culturais com

função de invento pedagógico é permanecer alinhado com uma pedagogia tradicional,

conteudista, bancária e espetacular, que

não reconhece três coisas: primeiro, a realização criativa do ato de


educar; segundo, o fato de que a construção coletiva de um ambiente
artístico, com obras de arte e ideias, é uma construção coletiva de
conhecimento; e, terceiro, o fato de que o conhecimento sobre arte não
termina no conhecimento da obra de arte, ele é uma ferramenta para
compreender o mundo (HELGUERA; HOFF 2011, p. 12).

É preciso ter os olhos de Naira Ciotti: “É com olhos de artista que estou vendo a

educação aqui” (CIOTTI, 2014, p. 9). Ou ainda o pensamento de Tania Bruguera

93
quando diz que não está “tão interessada na arte – como educação – mas na educação

como arte” (HELGUERA; HOFF 2011, p. 19). Ir mesclando, hibridizando e

desconstruindo as hierarquias até pensar, por exemplo, “o que os artistas podem ensinar

às instituições” (BISHOP apud HELGUERA; HOFF 2011, p. 19).

Marcos Bulhões Martins nos lembra que

o caráter pedagógico da atuação dos grandes renovadores da cena


moderna, como Stanislavski e Meyerhold, é destacada por diversos
autores contemporâneos (cf. Picon-Valin, 1988; Cruciani, 1995;
Barba, 1995; Borie, 1988), que reconhecem nas práticas poéticas dos
grandes mestres a procura de uma espécie diferente de teatro, onde o
elemento essencial seja a pedagogia (MARTINS, 2002, p. 241).

Por mais que os mestres citados trabalhem dentro de um horizonte do drama e do

teatro moderno podemos fazer uma transposição para a cena contemporânea e entender

o professor-performer na mesma busca por uma pedagogia que reinvente a cena. Não

mais a cena teatral tradicional encerrada no palco italiano, mas a cena performativa,

contemporânea. A opção pela performatividade não é a negação da cena teatral, ao

contrário, é a busca por oxigená-la para mantê-la viva.

E, considerando que o teatro contemporâneo não está mais limitado às paredes da

sala de teatro, mas está inserido e atravessado pela rua; reinventar este teatro é também,

em certa medida, reinventar a rua – seja a cidade como um todo, seja a escola como

microcosmos. Assim, o teatro contemporâneo possibilita reinventar a escola pela

pedagogia performativa.

A pedagogia, entendida não só como a comunicação de uma


experiência e de um saber, mas também como uma investigação
coletiva sobre o homem e o teatro, permite o aprofundamento da
relação entre os atores e o encenador e projeta novas expectativas de
relação com o público (MARTINS, 2002, p. 241).

94
O autor nos fala desse processo de investigação coletiva mediado pela figura do

mestre-encenador11. Este se aproxima da ideia do professor-performer não só pelo

aspecto do binômio, mas também por carregar a noção de que é fundamental ao

professor estar efetivando suas práticas artísticas. O que nem sempre é conciliador ou

harmonioso, mas antes, tem a ver com a noção de “complicadores culturais” (FABIÃO,

2008):

A confiança que os participantes depositam nele [mestre-encenador] é


resultado do fato de que ele é capaz de decifrar aquilo que não é a
solução. Sendo assim, o encenador deve utilizar os mais variados
estímulos, provocando a multiplicidade de pontos de vista,
estimulando novas experiências e a atitude de pesquisa dos
participantes (MARTINS, 2002, p. 242).

É preciso, porém, ter a lucidez de entender que tudo isso parece muito bom para

quem está disposto a reinventar a situação da educação. A consciência de que a

“práctica perfomativa procuce la desestabilización de los patrones de pensamiento”

(TORRENS, 2007, p. 45) e de que tipo de ação pode ser “desorganizadora da lógica

espetacular que rege a escola” (RACHEL, 2013, p. 21) soam quase como palavras de

barbárie para aqueles que detém o poder e controlam atualmente as instituições de

ensino. Não é interessante para uma instituição escolar que busca manter seu poder e

funcionamento centralizado.

Será possível usar e expor essas ideias abertamente ao escrever nossos projetos?

Ou, por hora, é preciso assumir uma posição de guerrilha?

O fato é que por mais pontual que possa parecer, a mudança de postura desse

professor, professora de teatro dentro da escola já é capaz de questionar e fazer

estremecer as estruturas da escola, por isso ela é tão resistente. Mas é preciso “cavar o

espaço” (ANDRÉ, 2007, p. 73), ser pirata.

11
Tradução para o conceito metteur-en-scéne-pédagogue, Monique Borie (MARTINS, 2002).

95
2.6 – Sobre os meus processos

Quando comecei o trabalho com a performatividade em sala de aula não era

exatamente porque eu tivesse interesse nesta área, porque a bem dizer não tinha. Tinha

até, devo admitir, um certo preconceito. Algum mal-estar relacionado a uma sensação

de precariedade ou inacabamento. Difícil definir, ainda mais com o deslocamento

temporal. Hoje, entendo essa leitura como uma falta de entendimento da proposta e de

uma perspectiva que talvez só quem já se envolveu com a performatividade, seja pela

ação ou por ter sido atravessado, é que pode entender a potência dela. Naquele

momento, eu ainda não tinha sido atravessado.

***

Sobre como comecei performativamente. Uma outra versão.

Eu comecei a trabalhar com a performance de maneira recorrente na minha prática

pedagógica por uma necessidade. A escola vinha demandando cada vez mais a presença

da Oficina de Teatro e o meu posicionamento nas festas do calendário acadêmico, em

especial as de cunho religioso: festa de Dom Bosco, fundador da ordem salesiana da

qual a escola faz parte; festa de N. S. Auxiliadora, padroeira da escola e Páscoa. Outras

atividades também pediam a participação do grupo, como Feira do livro, Mostra de

Artes.

Na instituição onde trabalho, esses eventos tem caráter espetacular: a equipe

pedagógica concebe o evento meio às pressas, porque na correria do cotidiano escolar

de provas, conselhos de classe, reuniões, esses eventos não são a prioridade e,

normalmente, ficam a encardo das equipes de artes, educação física ou da biblioteca.

96
Ao longo dos anos trabalhando nessa instituição eu tentei me esquivar dessas

datas comemorativas de todos os modos possíveis. Por um tempo funcionou. Mas só por

um tempo.

O fato é que a demanda existia e eu precisava de um modo para resolvê-la que não

fosse interrompendo os processos artísticos e pedagógicos que as turmas já vinham

desenvolvendo.12 Como no final do ano anterior eu tinha tido aquela breve experiência

com performance, que culminaria no “Rotula-me”, me parecei oportuno tentar estender

aquela investigação. O que me parecia oportuno nessa ideia era que a performance me

exigia um menor aparato material, sem figurinos, e um menor investimento de tempo,

uma vez que não demandava o ensaio da ação. É claro que exigia um tempo de trabalhar

as questões de performatividade com os alunos-performers – o entendimento do que é a

ação performativa, concentração, presença, apropriação do espaço, concepção da ação –

mas isso me parecia muito mais razoável do que ensaiar uma cena curta.

A parte menos oportuna dessa ideia é que eu praticamente não tinha vivência

nesse universo da performance. Mas optei por inventar a partir das adversidades.

Vejo hoje nas escolas ou nas universidades a possibilidade de que


professores, pesquisadores, estudantes façam dessas margens que
habitamos, das desarticulações e precariedades dos sistemas
preestabelecidos o próprio espaço de constituição de si mesmos, de
reinvenção, fruição e questionamento da performatividade das
relações” (CAON, 2017, p. 128).

***

“Para que seja possível esta instauração, torna-se necessária uma força de ignição,

um desejo, uma inquietação que detone o processo” (RACHEL, 2013, p. 94). A autora

12
Tradicionalmente, o caminho que construo com os grupos é: no primeiro semestre, os encontros se
baseiam nos jogos e exercícios de iniciação à linguagem teatral (conscientização corporal, concentração,
dentre outros) além de jogos dramáticos – que a bem dizer não dialogam frontalmente com a questão da
performatividade; no segundo semestre, o grupo decide se quer seguir com os jogos teatrais ou se prefere
se dedicar a um projeto de montagem teatral, o que na maioria das vezes ocorre. Este pode ser de criação
coletiva, ou escrito por algum integrante do grupo, ou se desenvolver a partir de um texto dramatúrgico
que dialogue com as questões levantadas pelo grupo durante o primeiro semestre.

97
fala que na prática dela, esse detonador tem sido o dispositivo de instrução, inspirada

primeiramente nas instruções propostas pela performer Yoko Ono. Já eu, na minha

prática de pedagogia e performance, que tem se constituído no próprio fazer, acabei

intuindo e desenvolvendo a prática das perguntas, ou como passei a chamar numa

segunda etapa do trabalho: perguntas performativas.

O trabalho com as perguntas se iniciou da urgência de inventar processos para

suprir a demandas das festas e eventos escolares, como descrito acima. Meu intuito com

esse procedimento, inicialmente, era repassar ao grupo a responsabilidade da concepção

da ação. Fazer com que eles pensassem sobre como gostariam de abordar a celebração

em questão promovida pela escola.

De modo geral, os jovens acham pouco instigante preparar as apresentações para

esses eventos. São celebrações que têm um aspecto gasto e tendem a não dialogar muito

com o universo dos alunos. Uma das maneiras que eu tinha de provocá-los era dizendo

que poderíamos deixar para que a festa fosse feita mais uma vez do mesmo modo, ou

que poderíamos propor uma intervenção, ainda que pontual, mas que fizesse sentido

para eles.

“O que é Páscoa para vocês?”, ou “Auxiliadora de que? De quem?” são

interrogações que servem de exemplo para ilustrar o tipo de provocação que eu buscava

para os inícios de processo (nestes casos, respectivamente, as ações para a Páscoa e a

festa de N. S. Auxiliadora).

A pergunta precisava ser instigante o suficiente para gerar um debate interessante,

que pudesse tirar a festa e o tema de um lugar comum. Desterritorializador. A conversa

também tinha esse objetivo, criar relação com outros temas, enfocar a questão de um

outro ângulo, ampliando a rede de conexões e, assim, de reflexões.

98
A etapa seguinte, de acordar coletivamente um conceito poderia ser expressa

através um verbo, um objeto, uma imagem, ou já vir na forma de uma ação. A ideia aqui

de conceito não é sintética, posto que a rede é múltipla, mas ser representativa, até

mesmo alegórica, do debate efetivado. Ou seja, representativa de como aquele grupo

entende a questão que foi levantada.

Num esquema simplificado, o processo se dava assim:

pergunta  debate / conversa / brainstorm  acordo coletivo de um conceito

ou ideia  elaboração de imagens para “colocar o conceito em ação”

Aos poucos, fui vendo que a proposta de trabalhar com a pergunta como ignição

era muito pertinente ao projeto performativo, pois como nos aponta Eleonora Fabião:

“Cada performance é uma resposta momentânea para questões recorrentes” (FABIÃO,

2008, p. 238). Desse modo, a abordagem a partir das perguntas coloca o trabalho numa

proposta que evoca uma ação, uma atitude (resposta); compreende o efêmero e as

reterritorializações (momentânea) e desponta a partir de angústias e questionamentos

que nos atravessam cotidianamente (questões recorrentes).

***

Aos poucos, o trabalho que tinha uma função pontual de resolver a demanda das

celebrações da escola pareceu ganhar uma dimensão maior. Os alunos e alunas

começaram se entusiasmar com a proposta. E com os debates que surgiam depois de

realizadas as ações. Eram levantadas questões sobre recepção da arte; o quanto o

público se sente à vontade para intervir e participar; a compreensão e sentido por parte

da plateia. Eles se sentiam efetivamente donos das propostas, empoderados e

empoderadas!

99
Eu mesmo, comecei a ver o trabalho da perfomance de um outro lugar:

percebendo o potencial para fazer mais teatro. Era possível executar as ações mais vezes

devido à demanda mais simplificada de aspecto material, de ensaios e de espaço - a

princípio, qualquer espaço pode receber uma performance não só um teatro tradicional,

italiano. Bem ou mal, o regime dramático demanda um longo tempo de preparação

(ensaio, marcação, decorar texto, ...). É claro que tudo isso tem seu valor na jornada

estética e pessoal de cada um, mas faz com que o teatro entre numa lógica da fabricação

em que se prepara muito para chegar num produto final. Ou na lógica da Escola do

Espetáculo em que aluno se prepara muito, porque não é, para poder se tornar um

indivíduo melhor, mais capacitado.

Já a lógica performativa faz com que tudo que acontece na caminhada seja tão

relevante quanto uma montagem final tradicional de fim de ano. É claro que os jogos

dramáticos e exercícios processuais tem a sua importância, mas quando o professor-

performer propõe ao grupo – e este aceita – fazer a partilha de uma ação que nunca foi

ensaiada, ou desdobrar um exercício de aula no pátio, o grupo vivencia a ideia de que o

processo é o foco.

Automaticamente, o processo passa a ser ele mesmo uma série de pequenas

unidades de partilha, ao contrário de um grande produto acabado ao final.13 Isso é,

principalmente, uma mudança de atitude e de entendimento. Abrir a porta da sala de

ensaio e deixar o processo vazar. Escorrer. Como um rio que flui escada abaixo e

inunda o edifício escolar. Deixar o processo ser no mundo – na cidade, no pátio.

Hoje, percebo a questão muito menos do ponto de vista de fazer performance e

muito mais do assumir a performatividade que já é latente nas ações e processos.

13
Atentos, é claro, ao risco de não transformar essas partilhas em pequenos produtos. Isto seria apropriar
a performance à lógica do mercado.

100
***

Nem tudo cabe na pesquisa. Alguns elementos vão ficando pelo caminho. Mas

isso também constitui o discurso: o não dito. É o fora, a linha de fuga, que também

reterritorializa o indivíduo, o objeto.

Dentre as coisas, muitas, que deixei de fora está a noção da preparação. Qual a

preparação para chegar com o trabalho da performatividade junto aos alunos-

performers? Não gostaria de correr o risco de insinuar que este é um trabalho que se

instaura a partir do nada. Ao contrário, existe uma preparação rigorosa. Tanto que só

tenho conseguido desenvolvê-lo com meus alunos mais velhos, que estão na Oficina a

mais tempo e com os quais consigo um maior nível de concentração.

Como nos lembra Carminda Mendes André: “o discurso pós-dramático do

performer supõe, em um primeiro momento, uma preparação rigorosa, um domínio do

corpo/voz e uma disponibilidade para o mergulho no inconsciente (tal como no

processo criativo de Grotowski)” (ANDRÉ, 2007, p. 77).

Não desdobrarei o assunto posto que isto ainda é o que fica de fora. Mas, modo

geral, preparo os grupos com jogos de concentração, espelho, conexão, olho no olho,

algumas práticas com bola ou bastão, viewpoints, experimentação do espaço (inspirado

em Ryngaert).

Mas não falarei mais sobre o assunto.

Se bem que não dizer já é dizer...

***

A medida que o interesse na performatividade foi crescendo, senti necessidade de

estudar e me apropriar mais do assunto. Fui me dando conta que a proposta de ignição

pelas perguntas, apesar de oportuna estava um pouco enviesada. As perguntas que eu

101
usava no início ao mesmo tempo que eram vagas geravam respostas que eram mais

palavras. Por mais que esse procedimento gerasse um debate muito produtivo sobre o

tema, eu permanecia da lógica do texto que leva à cena.

Percebi, então, que eu precisava de perguntas que me retornassem não palavras,

mas ações e imagens. Não mais a lógica do discurso que explica, mas de um afeto com

complica o entendimento. Eleonora Fabião lista uma série de perguntas levantadas pelo

grupo teatral Forced Entertainment como processo de seu espetáculo Quizoola! que

dialoga muito com essas questões, tais como: “porque o medo de escuro?; você possui

escravos?; você é um escravo?; você sabe fabricar um veneno?; descreva o primeiro

beijo da sua vida; o que é fogo?; porque você conta tantas mentiras?” (FABIÃO, 2008,

p. 245). Ainda a mesma autora usa em certo ponto de sua escrita o termo “interrogação

performativa” (FABIÃO, 2008, p. 245) para contrapor a uma questão de natureza

ontológica: do ser, do que é. Foi a partir dela que passei a usar a expressão perguntas

performativas na minha busca por provocar os alunos-performers para além das

palavras.

Em paralelo, comecei também a me questionar sobre o fato de que era eu quem

fazia as perguntas. Se o meu objetivo era criar nos jovens um pensamento questionador

e desmontar as situações espetaculares que já chegam prontas para eles, porque eles

deveriam responder as minhas perguntas? Charles Garoian fala, por exemplo, de que

“los alumnos dejem de depender de una metáfora externa” (apud TORRENS, 2007, p.

50). Comecei a pensar, então, que o trabalho deveria partir das próprias perguntas deles.

Num projeto desenvolvido em março/abril de 2018 para a feira do livro da escola

resolvi experimentar esse novo pensamento e ver até onde ele nos levaria. Depois de

uma breve conversa com o grupo a respeito da relevância deles produzirem as próprias

perguntas fizemos um brainstorm para produzir questões a respeito do “ser poeta”, que

102
era o tema da feira. Eu provoquei o grupo no sentido de que as questões fossem de certo

modo desestabilizadoras de conceitos tradicionais e do modo como comumente vemos

aquele tema. Além disso, que as perguntas já tivessem uma provocação de nível

sensorial (temperatura, cor, textura, sonoridade, afeto) e uma motivação de ação. Algo

que não pudesse ser respondido satisfatoriamente na voz: aquilo que não cabe na

palavra e precisa ir para o corpo, para o espaço.

As questões que este grupo do terceiro ano do ensino médio produziu foram muito

interessantes. Alguns exemplos são: Qual a ponte entre o desconhecido e o louco?; Qual

é o som do silêncio interior?; Qual é a cor da liberdade?; Como me ver fora de mim?;

Sentir muito é ruim?

O trabalho não chegou a se concluir nem a ser apresentado porque no meio do

caminho a comissão organizadora do evento propôs uma mudança na abordagem. De

qualquer modo, o processo foi muito rico e marcou o grupo, influenciando em outros

fazeres dentro do fluxo da Oficina.

A etapa seguinte ao levantamento de questões é experimentar elas no espaço,

selecioná-las ou fundi-las, decidir se vai ser uma questão para o grupo ou cada

performer com sua questão individual, estudar a possibilidade de entrada de objetos, a

relação com o espaço. Cada processo vai ter suas especificidades. Mas que fique claro

que não são ensaios. São experimentos dos diferentes graus de potência das

possibilidades. Por fim, o grupo define a sequência de ações a ser executada.

Eleonora Fabião fala:

chamo as ações performativas programas, [...] um tipo de ação


metodicamente calculada, conceitualmente polida, que em geral exige
extrema tenacidade para ser levada a cabo, e que se aproxima do
improvisacional exclusivamente na medida em que não seja
previamente ensaiada (FABIÃO, 2008, p. 237).

103
Programas assim como os programas de ações que descreverei no próximo

capítulo.

104
CAPÍTULO 3: RELATOS DE MEUS INVENTOS PERFORMATIVOS EM

AMBIENTE ESCOLAR

Os relatos que seguem são referentes as experiências propostas, concebidas e

vivenciadas coletivamente por mim e alguns de meus grupos de alunos referentes aos

conceitos de performance e performatividade. Essas experiências ocorreram em âmbito

escolar, através da Oficina Livre de Teatro, no Colégio Salesiano Santa Rosa,

instituição particular de ensino da cidade de Niterói, estado do Rio de Janeiro, entre o

final do ano letivo de 2016 e o início o ano letivo de 2018.

Como descrito ao longo deste trabalho, foram essas vivências que me conduziram

à pesquisa e reflexão acadêmica e mais sistematizada (o tanto quanto possível) no

âmbito da performace e performatividade. Não o contrário.

Os relatos constam dos roteiros de ações das performances; informações

referentes à data, local e participantes; alguns registros em imagem e algumas reflexões.

Estas foram elaboradas agora, no ato desta escrita, já sob a luz da pesquisa desenvolvida

para este trabalho, e não no momento em que as ações foram executadas. Guardam, por

isso, um certo distanciamento temporal dos acontecimentos. Este distanciamento lida

então com o que parte da minha memória e dos registros de imagem, assumindo assim o

trabalho a partir dos resíduos. Isto, o que fica, acaba por constituir o meu repertório de

professor-performer e é a partir dele que construo as reflexões que se seguem.

3.1 – Relato da performance “Aula de Artes”

Programa de ações constituinte da performance Aula de Artes:

105
O grupo de alunos-performers e o professor-performer se colocam no pátio da

escola na hora do recreio munidos de papéis, tintas e pinceis.

O grupo irá desenhar e pintar.

Performance realizada em 16 de junho de 2016 no pátio do Colégio Salesiano

Santa Rosa. Participaram duas alunas, uma do 2º ano do Ensino Médio e outra do 3º ano

do Ensino Médio, e um aluno visitante (ex-aluno da escola e da Oficina Livre de Teatro

que tinha ido fazer uma visita ao grupo), além do professor-peformer.

Comentários: Esta foi a primeira ação que desenvolvi com um grupo de alunos. O

grupo era pequeno devido, provavelmente ao calendário de provas. Muitos faltam

nessas datas. Foi por isso, inclusive que abandonei o planejamento da aula e iniciei uma

conversa sobre performatividade, teatro-dança, teatro contemporâneo. As duas alunas e

o ex-aluno que estavam presentes aceitaram a provocação de efetivarmos uma ação no

pátio da escola.

O que estava em questão era o contato da arte com a vida e, por isso, a ideia de

levar a aula de artes/aula de teatro para o pátio. Eu, enquanto professor-performer, me

propus a fazer alusão à figura do artista ou, antes, do mestre em artes. Vesti o meu

jaleco de trabalho, que a escola entrega a todos os professores para que eles usem em

aula, mas que eu nunca tinha usado. Além deste, coloquei também uma boina, em estilo

francês, que fazia parte do nosso acervo de figurino e adereços.

As duas alunas foram uniformizadas, como estavam. O ex-aluno foi também

como estava, em sua roupa cotidiana. Estávamos descalços, eu acho.

Fomos e pintamos. Surgiram palavras e uma espécie de placa. Pintamos também

sobre o corpo e usamos o corpo para pintar – com as mãos, os pés. Nos divertimos.

106
Mantivemos uma atitude de silêncio na tentativa de evitar a comunicação verbal e

para ajudar a nos concentrarmos.

As pessoas que passavam, alguns achavam estranho, pouco se aproximaram.

Muitas das crianças nem deram atenção.

Figura 5: registro da performance "Aula de artes".

Figura 6: o professor-performer pinta a


aluna-performer durante a ação de "Aula
de artes".

Figura 7: detalhe dos registros gráficos produzidos durante a performance "Aula de artes".

3.2 – Relato da performance “Rotule”

Programa de ações constituinte da performance Rotule:

107
Duas alunas-performers em roupas neutras se colocam de olhos vendados, lado a

lado, no pátio da escola. Elas ficam de mãos dadas. A frente delas uma mesa com vários

adesivos/etiquetas. Cada um deles tem uma palavra escrita, como um rótulo: estudiosa,

piranha, mentirosa, honesta,... Alguns dos adesivos estão em branco com canetas ao

lado para que os passantes possam escrever. Na mesma mesa uma placa: rotule.

Performance realizada em 15 de julho de 2016 no pátio do Colégio Salesiano

Santa Rosa, no recreio do turno da manhã (alunos do Ensino Médio). Participaram duas

alunas, uma do 2º ano do Ensino Médio e outra do 3º ano do Ensino Médio.

Comentários: Essa foi uma das ações mais contundentes que tive a oportunidade

de participar. Isso porque ela surgiu e foi concebida integralmente pelas alunas que

executaram a ação. É um daqueles momentos em que você percebe que as conversas e

atividades de sala de aula conseguem provocar o grupo para além da aula. As duas

alunas chegaram para conversar comigo com a proposta já toda elaborada (espaço, ação,

vestimenta). A única coisa que elas me pediram foi “ajuda”. Essa ajuda constava do

meu apoio e presença no momento em que a ação estivesse sendo realizada, além de

pedir a liberação das duas minutos antes do recreio para que elas pudessem se prepara

para a ação.

Essa demanda vinda da parte das alunas-performers diz respeito, na verdade, a

minha figura de autoridade enquanto professor dentro da instituição e, automaticamente,

à situação de vulnerabilidade delas enquanto alunas. A expectativa é de que nenhum

professor ou professora de uma escola tradicional fosse liberar duas alunas mais cedo só

porque elas estão pedindo. Mesmo que seja para se preparar para uma atividade (do

teatro) - até porque isso poria em cheque a questão do elemento surpresa que para elas

108
era uma questão importante. Se fazia necessário que o professor autoridade fosse até a

sala e liberasse as alunas.

O outro pedido, de ficar próximo a elas durante a execução da ação, também tem a

ver com a autoridade do professor no que diz respeito à segurança delas. O pedido era

que eu estivesse por perto para coibir qualquer atitude mais violenta e agressiva por

parte dos passantes enquanto elas estivessem de olhos vendados. Além de garantir a

permanência delas caso algum funcionário da escola tentasse removê-las.

Esses pedidos, na verdade, reduzem os riscos que elas estavam assumindo –

lembrando que o risco é intrínseco a performance e é nele que reside grande parte da

potência da ação. Mas também é possível entender que não é preciso assumir todos os

riscos. Acho pertinente pensar que fica a critério de cada um decidir em que situação vai

se expor (e isto dialoga diretamente com a proposta da ação e que estruturas ela quer

tencionar) e onde vai se resguardar, até para ter mais força para passar pelo risco da

ação. Tanto a temática da autoridade do professor e da desautorização dos alunos e

alunas, quanto a situação de violência física no espaço escolar são questões que valem a

pena ser questionadas, mas, naquele momento, não eram elas que estavam em pauta.

Fazer essa reflexão me faz pensar também sobre a minha prática de professor-

performer, professor de artes dentro da instituição. Em que momento é necessário ou

oportuno reivindicar quais pautas e quando é preciso se resguardar, jogando nos moldes

da escola. Modos de ir cavando esses buracos.

No que diz respeito à ação, propriamente dita, a recepção de quem estava no local

foi muito positiva. Num primeiro momento, o público ficou só observando e aos poucos

as interações foram surgindo. Algumas pessoas colando as etiquetas que já estavam

escritas, outras criando suas próprias interferências. Estas saíram do caráter estrito do

rótulo, do “título”, e vazaram para reprodução de frases feitas de cunho machista. Pela

109
redação é possível notar que algumas tem caráter de ironia quando justaposto ao corpo

das performers, funcionando como uma resistência; já outras sugerem a reprodução do

discurso.

Ao longo de toda a ação algumas pessoas que sabiam que eu era o professor de

teatro me procuravam para perguntar o que estava acontecendo, o que era aquilo. Eu

buscava não dar respostas óbvias, ao contrário, instigar o interlocutor devolvendo a

pergunta.

A grande surpresa desta ação foi quando algumas alunas e um aluno decidiram

não só interferir através da colagem dos papeis, mas também se colocando de mãos

dadas ao lado das duas performers na atitude de, assim como elas, se colocarem em

situação de serem rotulados.

Após encerrada a performance, as duas alunas-performers que haviam concebido

a ação estavam muito entusiasmadas com a recepção e participação dos outros alunos.

Vale dizer que durante a execução, alguns professores e funcionários se

aproximaram para assistir, dentre eles a diretora pedagógica da escola. Ela apreciou a

ação com o que eu classificaria como aprovação comedida. Seu único comentário foi de

que era uma pena que o trabalho não tivesse sido notificado com antecedência com o

objetivo de que os diversos setores da escola pudessem se articular melhor e saber uns

da produção dos outros. Essa fala tem, de fato, um cuidado e uma vontade de integrar as

equipes e dar visibilidade ao trabalho. Mas ao mesmo tempo diz respeito a um certo

controle – quando o objetivo da ação é furar esses controles.

110
Figura 8: alunas-performers durante a performance "Rotule" já com as intervenções dos passantes.

Figura 9: detalhe dos adesivos colados na aluna-performer durante a performance "Rotule".

Figura 10: detalhe dos adesivos colados em um dos passantes que se juntou às alunas-performers durante a ação de
"Rotule".

111
3.3 – Relato da performance “Renascer?”

Programa de ações constituinte da performance Renascer?:

O grupo de alunos-performers se posiciona nos corredores que dão acesso ao

auditório da escola. Cada um pode se relacionar com o espaço e com o grupo como

quiser, se posicionando em grupo ou individualmente, de modo a explorar e entrar em

relação com o espaço. Cada indivíduo segura uma placa (folha A4) onde se lê:

“RENASCER?”.

Os atores-performers serão “embrulhados” em plástico bolha tento o cuidado de

não obstruir a respiração destes.

Performance realizada em 18 de abril de 2017, na parte da manhã, nos corredores

do Colégio Salesiano Santa Rosa. Participaram da ação 19 alunos e alunas do 9º ano do

Ensino Fundamental e do 1º ano do Ensino Médio integrantes da Oficina Livre de

Teatro. A ação fez parte da celebração oficial de Páscoa da escola.

Comentários: Esta foi a primeira ação que a Oficina de Teatro efetivou no ano de

2017. Surgiu de uma “encomenda” da escola quando o padre responsável pela pastoral

pediu a participação do grupo na celebração de páscoa. Foi também a primeira vez com

tantos alunos envolvidos. As ações do ano anterior tiveram contingente bem menor.

O grupo concebeu a ação conjuntamente, após conversa sobre como gostaria de

abordar a questão da páscoa. “O que vocês gostariam que fosse a páscoa?”, eu perguntei

à eles. O retorno se deu no sentido de que eles gostariam que fosse uma oportunidade

para efetivamente se mudar padrões de comportamento, se redimir e pedir desculpas.

Falamos também sobre a questão comercial que se estabelece diante da compra dos

112
ovos de páscoa. Esses dois debates geraram, respectivamente, 1) a placa que cada aluno-

performer segurava durante a ação - onde, após a palavra “renascer”, era colocada uma

interrogação, questionando se de fato a páscoa estava servindo para a pessoas se

reinventarem - e 2) a presença do plástico bolha que envolveria todos os performers

individualmente, fazendo alusão ao ovo de páscoa.

Todo o projeto durou cerca de um mês, desde a apresentação do formato

performativo ao grupo, passando pela concepção até chegar na preparação, que se deu

através de atividades de concentração e apropriação do espaço.

O grupo estava muito entusiasmado em poder efetivar algo diferente do que é

comumente visto no espaço da escola e ficou mais engajado ainda quando apresentamos

a proposta ao padre da pastoral, que havia “encomendado” nossa participação. Havia

dúvida se a proposta seria aceita.

Outra decisão que para nós era muito importante – talvez mais para mim do que

para os alunos-performers – era de que a ação se passaria nos corredores que dão acesso

ao auditório e não dentro da celebração, do regime dramático com causa, efeito e

linearidade.

No dia da ação, os alunos-performers se posicionaram da maneira que lhes

pareceu mais interessante e eu fiquei responsável por passar embrulhando eles no

plástico bolha e usando fita crepe para firmar o invólucro no corpo deles. Alguns

invólucros parecem estar grudados à parede, com a fita mantendo o corpo dos jovens

grudados à superfície. No ato de cumprir essa tarefa é que me dei conta que era o

momento em que eu estava mais propositivo, mais em ação, me aproximando da ideia

do professor-performer.

A reação do público foi inicialmente de surpresa e estranhamento. As pessoas que

estavam se direcionando e preparadas para uma atividade no auditório eram

113
surpreendidas pelos 19 corpos imóveis e silenciosos dispostos pelo corredor. A maior

parte das pessoas levava, literalmente, um susto quando virava o corredor e se deparava

com a cena. Alguns passavam com rapidez, um pouco receosos da interação – uma certa

suspeita de que fosse uma pegadinha e que a qualquer momento as figuras fossem se

mexer dando um susto no passante. Outros passavam ainda rápido, mas cochichando

entre si. Um terceiro grupo se demorava: buscava dialogar com os performers, ou

tentava testá-los (fazê-los rir ou implicar com eles). Alguns alunos que me conheciam e

ao meu trabalho, quando me encontravam próximo à ação exclamavam: sabia que isso

era coisa sua...

Lembro de certa situação que se estabeleceu: um grupo de três ou quatro rapazes

do ensino médio para diante de um aluno-performer também de ensino médio. Este, o

aluno P., era um aluno com grande dificuldade de se concentrar, novo na escola e no

teatro; esses, os três ou quatro, pela fala e modo de agir eram daquele grupo chamado de

“popular”, com grande autoconfiança e hábitos de depreciar alguns. Pois bem, este

grupo parou diante do P. e tentou demovê-lo de sua atitude altiva, concentrada, focada e

silenciosa. Eles buscavam fazer o rapaz rir provocando-o, fazendo galhofa da ação. Eu

observava a meia distância, pensando s seria necessária a minha intervenção. Qual era o

limite que eu, com minha autoridade (e cuidado) de professor, iria estabelecer para a

sabatina dos “populares”.

P. permanecia firme e confiante em sua atitude, cumprindo seu roteiro de ação

performativa. A certa altura os meninos perceberam que nada iria acontecer e que não

tinha ninguém para rir das gracinhas sem propósito deles. Um deles, então, resolve

interromper o movimento: “Hey, kara, você não está vendo que ele é uma estátua, uma

parte da obra?! Ele não pode se mexer. Vamos embora.” Essa fala se dá de maneira

lúcida, clara e sem ironia. É o momento em que um dos opressores, provavelmente não

114
o líder deles, se dá conta do quão vil e descabido é aquilo que está acontecendo. Eles

vão embora. P. permanece.

Eu poderia propor uma reflexão de que ele não estava com a escuta aberta para o

aqui e agora e que não dialogou com os acontecimentos. Mas, a verdade, é que para

aquele jovem tímido, que muito provavelmente recebe esse tipo de tratamento no

cotidiano escolar, aquela atitude não era de ignorar os acontecimentos, mas de resistir a

eles. Permanecer em seu propósito e não ser demovido de suas intenções apesar do

esforço externo para que isso acontecesse.

O fato é que eu não precisei intervir. Ele venceu sozinho a situação, não precisava

mais de minha ajuda. Eu tenho orgulho desses momentos. Essa vitória não é minha, é

do corpo e da coragem daquele jovem. Mas eu tenho parte nisso.

Depois de terminada a passada dos alunos para o auditório, quando teria então

terminado a ação inicialmente proposta, os alunos-performers permaneciam engajados

na prática e imóveis. Parece que depois de atingir certo estado de concentração tudo se

torna um pouco hipnotizante, é difícil sair desse estado. Nesse momento ainda, a

professora de artes da escola, andava por entre eles feliz da vida, exaltando a nossa

proposta. Tirava fotos. Lembrava de Hélio Oiticica e tantos outros.

Quando finalmente o grupo optou por desmontar, saímos – eu com eles – pelo

pátio da escola com nossos grandes recortes de plásticos. Felizes por sermos tão (um

pouco) subversivos.

As reflexões que fizemos a partir dessa experiência giraram basicamente em torno

de duas questões: a recepção por parte dos expectadores e sobre a possibilidade de

interação destes com a performance.

115
Sobre a recepção, os alunos pontuaram o quanto que as pessoas ficam tentando

buscar um sentido, uma razão para a proposição artística e quando não encontram

parece haver uma decepção ou mesmo um sentido de falha. Eles narraram isso ao

falarem que muitos colegas e professores haviam perguntado para eles, após a ação,

qual era a “explicação da obra”, na palavra de alguns.

Eu pontuei para o grupo o quanto esse comportamento se adequa ao modo de

funcionamento da escola em que existe um modelo de conhecimento a ser assimilado e

reproduzido, como na prova, além de uma busca constante pela razão, pelo sentido dos

artefatos, como por exemplo numa situação de “explique o sentido do texto lido”.

Quando isso não se estabelece a pessoa fica um pouco perdida, como se as regras do

jogo tivessem sido mudadas. Eles mesmos, eu lembrei, não tinham entendido no início

do trabalho a proposta com a performance.

O próprio uso das placas “renascer?” é uma atitude que eu questiono um pouco,

essa uma reflexão de agora, na medida em que funciona como uma espécie de título ou

legenda e propõe uma linha de leitura. O uso desse recurso é uma insegurança do grupo

(alunos-performers e professor-performer) e está lá para minimamente amparar o

trabalho no que tange a sua significação? Talvez ela também possa ser entendida como

um rótulo que é colado sobre as ideias/teorias/pensamentos/pessoas/ações para

classificá-los, mas que no fundo só faz saltar a incoerência desse enquadramento. Não

que isto tenha sido pensado quando da concepção da ação, mas alguns elementos

surgem por associação e só ganham seu pleno sentido na execução.

Sobe a possibilidade de participação dos passantes, a expectativa do grupo era de

que as pessoas tirassem os plásticos bolha que os envolviam, desembrulhassem os

alunos-performers. Isso não aconteceu. Eles ficaram um pouco frustrados, mas o fato

serviu para conversamos sobre como a participação, proatividade e espontaneidade

116
(não) são estimulados no ambiente escolar. E mais, o quanto essa questão da

participação do público está associada a ideia de uma produção de sentido: quando

alguém entende o que se passa e que tipo de interação é proposta ela é efetivada sem o

medo de estar fazendo algo errado. Quando não existem instruções e códigos claros o

medo do erro inibe a participação dos indivíduos que estão habituados a produzir em

situações condicionadas. Enquanto que para indivíduos habituados a viver no exercício

da liberdade (de expressão e de vida), a ausência dos códigos, na verdade, contém em si

todas as possibilidades.

O grupo pontuou que o hábito de interagir com as ações performáticas poderia ser

criado se essas ações ocorressem com maior frequência na escola. Isso nos levou a

conceber, meses depois, a intervenção que se daria na Mostra de Artes, chamada de “O

rastro da liberdade”.

Figura 11: alunos-performers no corredor da escola durante a ação "Renascer?".

117
Figura 12: registro da performance "Renascer?".

Figura 13: aluna-performer durante sua intervenção na performance "Renascer?".

118
3.4 – Relato da performance “Os cegos”

Programa de ações constituinte da performance Os cegos:

O grupo de alunos-performers está sentado nas fileiras finais da basílica. Eles

estão vendados e seguram, cada um, um cajado.

Uma aluna-performer negra, vestida com um manto de chita se posiciona no

centro do altar com os braços abertos, em postura que faz referência a uma santa.

Quando começa a tocar a música, os performers vendados se levantam, no fundo

da igreja, e buscam seguir o caminho central até o altar.

Quando chegam no altar, a figura religiosa tira a venda dos olhos deles.

Os cegos agora desvendados se colocam ao redor da figura religiosa compondo

uma imagem de referência sacra.

A música que toca é “Os cegos do castelo”, de Nando Reis na versão do grupo

Titãs.

Performance realizada em 24 de maio de 2017, dia de N. S. Auxiliadora, na

basílica da escola. Participaram da ação cerca de 20 alunos e alunas do 9º ano do Ensino

Fundamental e do 1º ano do Ensino Médio integrantes da Oficina Livre de Teatro.

Comentários: De todas as ações desenvolvidas, esta foi a que menos conseguiu se

descolar na narrativa tradicional do drama - fato que para mim gera uma certa

insatisfação. A performance foi realizada inserida no contexto de uma celebração dentro

da basílica da escola. Por isso, tinha momento certo para acontecer, início e fim

determinados e uma relação de “palco” e plateia bem demarcadas. As fissuras que

conseguimos criar, ou tentamos, nessa estrutura de cena mais tradicional foram: a saída

119
dos alunos-performers de dentro da plateia e o fato de que eles estavam genuinamente

vendados, assumindo um risco e não fazendo uma mimese de determinada situação.

Minha análise é de que os alunos-performers ficaram ansiosos em executar a ação

e não tiveram calma de efetivamente performar a ação, valorizar o aqui e agora. Essa

ansiedade, na minha avaliação se potencializa quando a situação de cena tradicional se

estabelece (como descrito no parágrafo acima). Sustentar o “só fazer” se torna difícil

porque deflagra a suspensão do momento. Talvez o grupo não estivesse concentrado o

suficiente naquele momento, ou a preparação para a ação não tenha sido adequada – no

que assumo também essa responsabilidade. Não que a ação tenha sido ruim, mas avalio

que não atingiu toda a potência que poderia.

Apesar dessa avaliação que faço, a recepção foi boa por parte da plateia no que

diz respeito tanto ao entendimento da proposta quanto ao estranhamento proposto.

Julgo que no quadro geral da situação, a grande diferença que pudemos fazer foi o

fato de termos escolhido uma aluna negra para performar a figura religiosa, identificada

como N. S. Auxiliadora. Além disso, a aluna-performer usava um manto composto por

um pano de chita, evocando também a questão da cultura popular. Após a ação, algumas

pessoas, principalmente funcionários negros e negras vieram comentar comigo a

respeito da escolha da aluna.

Vale comentar ainda que a concepção da ação se deu a partir do questionamento

de que esta Nossa Senhora é Auxiliadora do que e de quem? Após debate, chegamos ao

consenso de que, para nós, essa figura poderia ser auxiliadora dos intolerantes e que

estes eram como cegos. Não só cegos, mas que iam se guiando uns aos outros, todos

cegos. Lembrei então da pintura “A parábola dos cegos”, do pintor flamengo Pieter

Bruegel, o Velho, concluída em 1580. Partilhei a imagem com o grupo e chegamos à

conclusão de que a nossa ação se basearia nela: ação, imagem e alegoria partiriam da

120
referência da pintura. Fizemos alguns experimentos com a situação dos alunos-

performers vendados e de como eles poderiam se locomover e explorar o espaço

coletivamente até chegarmos a uma solução que julgássemos interessante.

Quando disse anteriormente que avaliava a performance como não tendo

aproveitado todo o seu potencial foi baseado nos experimentos realizados em sala e no

pátio, visto que estes foram muito mais ricos do que a situação vivenciada na basílica.

Figura 14: alunos-performers caminhando vendados na performance "Os cegos".

Figura 15 : imagem final da performance "Os cegos", no altar da basílica.

121
É interessante pensarmos que ao propor um processo que busca dialogar com

questões atuais, neste caso a situação da intolerância enquanto cegueira, o trabalho

acaba encontrando ecos em outras produções. Exemplo disso é o caso desta ação “Os

Cegos” que guarda algumas semelhanças com a performance urbana CEGOS do Desvio

Coletivo14 onde

Dezenas de executivos, homens e mulheres, trajados a rigor, portando


maletas, bolsas, celulares e documentos caminham lentamente
cobertos de argila e de olhos vendados, misturam-se aos pedestres e
desestabilizam o fluxo cotidiano do centro financeiro e político da
cidade (RODRIGUES, 2018).

Figura 16 e 17: performance urbana CEGOS em São Paulo. 2012. Fotos de Eduardo Bernardino. Disponível em:
<https://desviocoletivo.wordpress.com/2012/12/13/performance-cegos-na-avenida-paulista-e-regiao-central-de-
sao-paulo/>. Acesso em 12 jun. 2018.

No trabalho do Desvio Coletivo, saltam aos olhos as questões da produtividade no

mercado de trabalho, do consumo e do embrutecimento da vida. Isso se faz em grande

parte pelo uso dos paletós e terninhos cobertos de lama, bem como pela relação que a

ação estabelece com os espaços de poder da cidade. Já o trabalho desenvolvido pela

14
“O Desvio Coletivo é um grupo artivista, com independência política e sem nenhum financiamento
institucional, que se dedica à criação da cena contemporânea na zona de fronteira entre o teatro, a
performance, a intervenção urbana e a produção de vídeo. O coletivo, sediado em São Paulo, vem
apresentando desde 2011 diversas ações performativas e espetáculos em quase todas as capitais
brasileiras, além de ter circulado por Barcelona, Paris, Amsterdam, Nova Iorque, Praga, Santiago, Ilha da
Madeira, dentre outras” (DESVIO COLETIVO, 2012)

122
Oficina Livre de Teatro, pelo uso da música e por ter sido executado dentro da igreja,

acaba por evocar outras questões mais introspectivas como o medo e a dificuldade dos

jovens em trilhar seus próprios caminhos.

Encontrei os relatos e referências da performance CEGOS durante esta pesquisa,

em momento posterior ao trabalho que fiz com meus alunos. De qualquer modo, as

imagens finais se assemelham, até porque, ambas tem como referência o mesmo quadro:

“o título da ação é inspirada no quadro „A Parábola dos Cegos‟, de Pieter Bruegel

(1580), em que se vêem cegos conduzindo cegos, cada qual tentando encontrar algum

apoio para avançar pelo caminho” (RODRIGUES, 2018).

Figura 18: Brueguel, P. A Parábola dos Cegos. 1580. 1 original de arte, óleo e têmpera sobre tela, 58 cm x 154 cm.

3.5 – Relato da performance “O rastro da liberdade”

Programa de ações constituinte da performance O rastro da liberdade:

Esta performance consta de dois dispositivos: uma instalação e um roteiro de

ações.

123
A instalação: no local onde será realizada a Mostra de Artes, no espaço reservado

à Oficina de Teatro, será colocado um mural coberto com papel pardo. No centro do

mural lê-se a inscrição: à vontade. Ao lado do mural estarão dispostos potes de tinta

guache de várias cores e pinceis.

Roteiro de ações: previamente, antes da ação iniciar, o espaço a ser usado (ao lado

do mural-instalação) será forrado com plástico.

Neste espaço forrado, ocorrerão uma série de ações. São elas:

Ação - Duas meninas, uma de frente para a outra. Usando o dedo para pintar, elas

fazem arabescos no papel do chão. Aos poucos, o ato de pintar vai migrando para os

corpos. Uma pinta o corpo da outra.

Ação – Duas meninas. Uma delas está sentada no chão e segura um guarda-chuva

transparente. Ele está aberto cobrindo a cabeça dela. A outra pega um pote de tinta e

despeja tinta por sobre o guarda-chuva.

Ação – Alguns alunos. Todos munidos de pincel com tinta. Eles começam a se

atacar mutuamente, duelar, jogando tinta uns sobre os outros usando o pincel como

armas.

Ação - 4 pessoas estão andando perfeitamente iguais e limpas até que alguém sai

do grupo e começa a dançar interagindo com as tintas, se sujando. As outras pessoas

debocham dela até que mais alguém sai do grupo e se junta ao dançante. Isso se repete

até sobrar somente uma pessoa limpa e rindo dos outros. Esta se dá conta que ela é a

diferente, a minoria. Esta pode tanto sair quanto se juntar ao grupo.

Performance realizada em 5 de agosto de 2017 durante a Mostra de Artes do

Colégio Salesiano Santa Rosa, na quadra da escola. Evento ocorrido no sábado com

presença de alunos, familiares, professores e funcionários da escola. Participaram da

124
ação cerca de 10 alunos e alunas, entre os quais 1 ex-aluno da escola que tinha

participação regular na Oficina Livre de Teatro.

Figura 49: mural-instalação da Performance "O rastro da liberdade".

Figura 20: confecção do cartaz para a Performance "O rastro da liberdade".


Figura 21: o grupo se prepara para a performance "O rastro da liberdade".

Comentários: A primeira coisa a ser dita é que a ação não se cumpriu como

havíamos concebido. Não que isso seja um problema, mas precisa ser pontuado. A

instalação do mural ocorreu dentro do previsto: as pessoas que estavam passando pela

Mostra de Artes foram interagindo com o material criando desenhos, pinturas,

escrevendo palavras, frases. Vale narrar que a primeira pessoa a se aproximar foi um

125
aluno que na época era do 7º ano do Ensino Fundamental e que recebia

acompanhamento especial por estar diagnosticado como portador da Síndrome de

Asperger, ele é acompanhado todo o tempo por uma mediadora. Pois foi exatamente

este aluno que ao ver o mural com as tintas e pinceis não teve dúvidas e se aproximou.

Quando ele chegou, tínhamos acabado de instalar o dispositivo e não tinha ninguém

interagindo ainda. A mediadora, que o acompanhava, ficou na dúvida se era “permitido”

interagir e tentou impedir o menino. Eu me aproximei e interferi, disse que não havia

problema e que a proposta era exatamente aquela.

Vale comentar que toda essa intervenção da Mostra de Artes (o mural, as ações, o

nome) foram concebidos a partir da experiência decorrida da performance “Renascer?”

e do debate que se desdobrou a partir dela sobre a (não)participação do público em

atividades interativas e de como provocar isso dentro da escola. Tudo foi pensado a

partir da reflexão sobre o quanto os alunos se sentem à vontade para se expressão dentro

do ambiente escolar. O aluno descrito acima, é o tipo de indivíduo que não se enquadra

e não aceita de imediato as amarras da instituição. Por isso mesmo ele é tido como

especial e por isso mesmo ele é o primeiro a interagir com a proposta. É curioso, e

potente, pensarmos que num gesto de deslocamento das hierarquias e das lógicas,

aquele que estava em situação marginal passa a ocupar o lugar de destaque.

Sobre o roteiro de ações e o seu não cumprimento, a proposta inicial era que as

várias pequenas ações se sucedessem ao longo da duração da feira, para tentar abarcar

um maior número de pessoas. Porém, devido as outras atividades que aconteciam em

simultâneo, não conseguimos efetivar essa proposta. O que se deu foi que mais próximo

ao fim do evento os alunos começaram a preparar para executar as ações, mas o próprio

processo de se preparar (concentrar, entrar em conexão com o grupo, entrar em contato

com o material disponível – as tintas e pinceis) foi se tornando a própria ação. Não só

126
pela visibilidade que isso foi ganhando, uma vez que eles estavam se preparando a vista

do público, mas também pelo engajamento e presença dos alunos-performers que

começou a surgir.

Eles iniciaram, por conta própria, com um “Guli-guli”15 em que as mãos estavam

já com tintas e a medida que eles efetivavam a percussão corporal própria da atividade,

a tinta ia sendo espirrada. Aos poucos eles foram ativando os roteiros de ações (a guerra

de tintas, a situação com o guarda-chuva) mas sem início e fim definidos entre eles, as

transições foram se dando organicamente, sem as pausas que havíamos concebido

originalmente. Não sei precisar quanto tempo durou a ação, mas estimo algo em torno

de vinte minutos. Nesse fluxo, algumas situações originalmente programadas não foram

executadas (como a ação dos arabescos e a ação em que um grupo ri dos que estão

dançando com as tintas). Em contrapartida, surgiram situações que não tinham sido

programadas (como o Guli-guli e a coreografia de “as quatro estações”) mas que ao

serem propostas por um indivíduo o grupo rapidamente reconhecia, abraçava a proposta

e acionava coletivamente – pensando essa ideia de acionar tanto do ponto de vista da

ignição, mas também do por em ação. Entendo, agora analisando, que essas situações

evocadas funcionaram como repertório do grupo: “construção de conhecimentos

encarnados” (PHELAN apud RACHEL, 2013, p. 47). Uma espécie de resíduo que fica

impregnado no corpo e que pode ser evocado quando necessário e por isso é uma

espécie de inteligência. Gallo também nos fala da “aprendizagem como pertencente ao

campo da construção de repertório” (apud RACHEL, 2013, p. 47).16

Mesmo sem saber, essa noção de repertório, como algo que deixa um vestígio,

dialoga com a noção de rastro que já estava presente no título da ação (o rastro da

15
Guli-guli é uma atividade que eu uso com os grupos para aquecimento. Faz-se uma roda e uma
sequência de gestos e sons é repetida sempre aumentando a velocidade.
16
A reflexão sobre arquivo e repertório se faz pertinente dentro desta pesquisa sobre performatividade
como resistência na Escola do Espetáculo, mas não é o recorte aqui proposto. Por se tratar de um tema
muito potente, guardo para um momento de pesquisa futura.

127
liberdade). Quando inicialmente pensamos nesse título era porque isso tinha uma

relação com a ideia de trabalhar com as tintas, estas numa referência da livre expressão,

da criatividade e da liberdade. Revisitando a questão agora, refaço a pergunta do

seguinte modo: qual é o repertório de liberdades que esses jovens conseguem construir

no espaço da escola? Arrisco dizer que é um repertório bem reduzido.

Figura 22: ação com os guarda-chuvas na performance "O rastro da liberdade".

Figura 23: alunos-performers ao fim da performance "O rastro da liberdade".

Figura 24: roupa de um dos alunos-performers após a performance "O rastro da liberdade".

128
3.6 – Relato da performance “As quatro estações”

Programa de ações constituinte da performance As quatro estações:

O grupo de alunas-performers desde para o pátio executando a partitura

coreográfica “as quatro estações” de Pina Bausch. As dinâmicas de ocupação espacial

(fila, suspensão, deslocamento pelo espaço, dentre outros) bem como o momento e o

modo de retornar à sala ficam a cargo do jogo que o grupo irá estabelecer no momento

da ação. No alto-falante da escola toca a música escolhida pelo grupo.

Performance realizada no dia 30 de junho de 2017, no pátio do Colégio Salesiano

Santa Rosa, no horário do recreio do turno da tarde. Participaram da ação 10 alunas, das

quais 3 ex-alunas da escola, mas que participavam regularmente das atividades da

Oficina Livre de Teatro.

Figura 25: registro da performance "As quatro estações" no pátio da escola.

129
Figura 56: alunas-performers em cortejo com participação espontânea de outros jovens durante a ação "As quatro
estações".

Comentários: Esta ação foi desenvolvida dentro de uma proposta maior que foi o

projeto de montagem para o fim de ano de um dos grupos da Oficina de Teatro de 2017.

Grupo formado exclusivamente por alunas, única experiência desse tipo em toda a

minha vivência de professor de teatro, depois de muito pensar optamos por investigar

cenicamente o mito de Medéia. E optamos por fazê-lo por um viés performático: não

esta ou aquela dramaturgia, mas uma apropriação do mito por uma aproximação dos

corpos, vozes e vivências daquelas atrizes para a construção de imagens cênicas.

Ao longo do processo, fomos entrando em contato com várias referências, dentre

elas a obra de Pina Bausch. Esse contato, feito através do filme Pina, de Win Wenders,

tocou o grupo em especial na fruição da coreografia “As quatro estações”. A conversa

que se seguiu desdobrou questões sobre a relação entre o feminino e os ciclos da

natureza. O grupo ficou tão impactado que decidiu sair da sala de teatro e ir ao pátio

executar a coreografia.

Assistir aos trechos do filme, conversar, experimentar a coreografia, decidir por

descer ao pátio e ir, aconteceu tudo em uma única aula. Descemos bem na hora do

130
recreio do turno da tarde, alunos de sexto, sétimo e oitavo anos do Ensino Fundamental

II.

Foi lindo ver a coragem, concentração e desenvoltura daquele grupo de alunas em

movimento dançante pelo pátio da escola. Mas o ponto alto da ação foi, sem dúvida, o

modo como as crianças foram atraídas pela performance e construíram interações.

Muitos olhavam a distância, mas alguns imitavam os gestos de longe. Outros, não só

imitavam, como entravam na fila e passavam a compor o cortejo. O poder e a

pregnância dos poucos movimentos repetidos que permitiam a quem estivesse

observando apreender rapidamente a sequência e se apropriar dela e executá-la ao seu

próprio modo. Uma espécie de jogo, ou mais, uma celebração.

Ao contrário do que tínhamos planejado, essa sequência não chegou a entrar na

composição do espetáculo “Reflexos de Medéia” que viemos a estrear no final de

Novembro. Apesar disso, o contato com a obra de Pina Bausch e a performance de “As

quatro estações” no pátio da escola foram fundamentais para o projeto. Serviram,

principalmente para encorajar o grupo a seguir com a pesquisa sobre performatividade

na cena teatral.

131
Figura 27: registro da performance "As quatro estações" na praça de alimentação da escola com funcionários e
alunos observando ao fundo.

Figura 28: crianças da escola aderem ao cortejo da ação "As quatro estações".

3.7 – Relato da performance “Beber água”

Programa de ações constituinte da performance Beber água:

132
O aluno-performer, ou o grupo deles, deve ir até o bebedouro mais próximo da

sala de teatro - no pátio –, beber água e voltar para a sala. Toda a ação deverá ser feita o

mais lentamente possível.

Performance realizada em 26 de março de 2018 no pátio do Colégio Salesiano

Santa Rosa. Participaram da ação 14 alunos e alunas de 1o, 2o e 3o anos do Ensino

Médio.

Figura 29: contraste entre um passante caminhando em velocidade cotidiana


e dois alunos-performers caminhada lentamente.

Figura 30: duas alunas (em primeiro plano) aderem ao cortejo de alunos-performer na ação "Beber água".

Comentários: Essa performance nasceu da oportunidade. Foi a única das ações

realizada já no fluxo da intensa pesquisa deste trabalho sobre performatividade e é a

133
aplicação de uma situação descrita pela professora Carmela Soares: “em meio à aula de

teatro, o garoto pede licença à professora para ir beber água. Obtém seu acordo e algo

mais: ela solicita que ele vá ao bebedouro, beba água e na volta para a classe faça todo o

percurso o mais devagar possível, em câmera lenta” (apud PUPO, 2008, p. 227).

No caso da situação que eu vivenciei enquanto professor-performer como meu

grupo, estava em fluxo uma aula em que eu estava abordando exatamente o caminhar, a

atenção dos movimentos e do contato dos pés com o chão, o modo como a caminhada

influencia a construção do corpo e o surgimento de relações entre os indivíduos, além

do desacelerar do andar para que o grupo pudesse ficar mais atento a essas questões.

Pois que bem nesse dia um menino me pede para beber água. Eu lembrei do relado

citado acima e fiz a proposta: você pode ir beber água, mas precisa ser na caminhada

mais lenta do mundo.

Eu tinha certeza que o aluno em questão, pela timidez, não iria aceitar o desafio.

Mas para a minha surpresa toda a turma ficou empolgada com a proposição e optou por

descer em grande coro, todos na caminhada mais lenta do mundo. Poucos foram os que

ficaram da janela observando o movimento.

No momento em que a ação se deu, não haviam muitas pessoas no pátio, onde o

bebedouro mais próximo se localizava, somente algumas crianças na aula de educação

física em uma quadra próxima. Mas este grupo, ainda que pequeno, ficou bastante

instigado com a ação. Alguns se aproximaram, tentaram imitar os movimentos, se

misturaram aos alunos-performers.

Na volta à sala, conversamos sobre a dificuldade de sustentar a lentidão e como

eles tinham sido perseverantes em manter o ritmo ao longo de toda a caminhada sem

abandonar o propósito. Ficamos todos animados pela experiência.

134
***

Estes relatos e reflexões são um recorte da minha atividade docente. Além dessas

propostas com foco na performance, tenho desenvolvido com os grupos uma gama de

vivências que passam por: montagens teatrais dentro de uma noção mais tradicional

(com clássicos da dramaturgia e divisão tradicional de personagem); processos

colaborativos onde os grupos partem dos jogos teatrais e improvisos desenvolvidos ao

longo do ano e propõe um roteiro de ações; drama como método (CABRAL, 2006);

aulas abertas e até mesmo montagens influenciadas pelo teatro autobiográfico e pela

performatividade – sendo estes três últimos exemplos aqueles que mais se articulam

com os processos descritos aqui neste trabalho.

Essas várias abordagens reiteram a noção de multiplicidade. Cada grupo acaba

estabelecendo uma demanda e uma trajetória. Nesse sentido, é honesto que o professor-

performer saiba por onde deixar escorrer as possibilidades criativas. Além disso,

defender o modelo rizomático não é para colocá-lo em prioridade a outro modelo – até

porque essa hierarquia seria contra o próprio rizoma. De outro modo, propor olhar e

efetivar o modelo rizomático é porque ele comporta vários outros funcionamentos:

múltiplos.

Desse modo, nunca foi meu objetivo estabelecer um manual de ações ou

abordagens pedagógicas para abarcar a performatividade no ensino do teatro na escola.

Era tão só o desejo de partilhar algumas experiências. Nunca num lugar de acerto, mas

de travessia – tanto que alguns relatos se contradizem ou se reelaboram (como a ação

“Os cegos” onde se estabelece a relação de palco/plateia e a questão das perguntas que

ao longo do trabalho passo a buscar que surja dos jovens).

135
Se estes relatos puderem servir para fomentar outras travessias - como inspiração,

motivação, ou mesmo em direção contrária – considero ter atingido parte de meus

objetivos.

136
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando o modelo rizomático, a performatividade e a experiência, não é

possível estabelecer a ideia de conclusão enquanto final da trajetória, ponto final ou

produto acabado. Por outro lado, propor territorializações é potente no sentido em que

ajuda a fechar os ciclos (da pesquisa, da graduação). Sedimentar algumas ideias, como

grãos de pólem dispersos no ar que ao se juntarem vão se adensando e tendem ao chão.

São atraídos pela gravidade na medida em que se tornam mais concretos e materiais,

agora que estão articulados entre si. Nessa imagem de uma poeira que baixa e permite

olhar um horizonte mais amplo e projetar assim novas caminhadas.

Assim, das inconclusões que cabem nesse momento – territorializações

provisórias - gostaria de destacar duas: o híbrido professor-performer e a aula

performática, ambos como recursos para driblar a lógica da Escola e da Sociedade do

Espetáculo criando multiplicidades dentro destas.

No caso do híbrido professor-performer, ele consegue deslizar através das

situações de professor, artista/performer, espectador/participador e também de aluno.

Mas no momento em que o professor coabita o espaço do aluno, este aluno também é

atravessado pela instância professor e os deslizamentos deste também passam a fazer

parte das possibilidades do aluno. Ou seja, todos os indivíduos coabitam professor,

aluno, performer, artista, pesquisador, participante. Essa lógica que não é mais do ser,

onde cada um está num lugar específico do esquema de hierarquia, mas se torna uma

lógica do e, em que é possível estar em mais de um lugar ao mesmo tempo e que faz

parte de um entendimento rizomático, é capaz de confundir a lógica da Escola do

Espetáculo. Isso porque a disciplina, procedimento principal da instituição da qual

falamos, se baseia na individualização dos seres para melhor controlá-los: “cada

indivíduo no seu lugar; e em cada lugar, um indivíduo. [...] A disciplina organiza um


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espaço analítico” (FOUCAULT, 1997, p. 140). Mas quando os indivíduos não estão

mais cada um em uma única cela, ao contrário, estão em todas ao mesmo tempo como

hologramas; isso serve para confundir os mecanismos de controle e poder da Escola.

De maneira correlata, a ideia de uma aula performática vem também para criar

multiplicidades: produzir num mesmo evento hibridizações de conteúdo, arquivo,

repertório, crítica, produção. Isso permite não só furar os controles da escola, mas

também construir a partir da experiência e do saber da experiência.

Proponho que essa multiplicidade seja olhada como um aspecto de musicalidade e

coralidade dentro da escola e dessa aula performática. Múltiplas vozes coabitam a

narrativa que não é mais una, mas repleta de nuances. Diferentes melodias se alternam

no tema principal, instrumentos entram e saem em diferentes momentos, ritmos se

alteram. Hora uma valsa, hora um addagio, hora um funk ou um rap, ou um frevo.

Todos esses atravessamentos constituem um todo (que não é coeso ou delimitado) mas

que funciona como uma espécie de poema ou sonho (LEHMANN apud PUPO, 2008, p.

223).

É nesse sentido que proponho o título deste trabalho: partituras e canções. Além

de abarcar a noção de multiplicidade e coralidade que fura a disciplina e controle da

escola e contribui para o saber da experiência, traz a ideia de que ninguém executa as

partituras do mesmo modo. Elas são pontos de partida, disparadores de jogos, e cada um

pode executar sua melodia como achar mais oportuno. Por isso também não cabem aqui

fórmulas ou propostas de encaminhamentos para o trabalho em aula. Tão somente, cabe

a partilha dos caminhos que trilhei para que outros possam se servir de partes desses

caminhos, se lhes for útil.

Além disso, o título sugere a ideia da festividade. Só piratas, como Larrosa, ou

loucos, como Artaud, poderiam propor uma festa dentro da fábrica ou da prisão. Somos

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nós, os artistas, essas figuras. Assim, não mais o espetáculo, onde a plateia assiste, mas

a festa, onde todos dançam, passa a ser a imagem para onde apontam nossos desejos.

Desejo de que possamos ir abrindo espaço nos muros da escola, fazendo entrar lufadas

de ar vindas de fora da muralha. Oxigenando os processos internos.

Mais ar, mais ar, mais ar. Para trazer a vida de volta, para fazer respirar.

Inspirando. Expirando. Trocando.

Afinando os instrumentos e as vozes para fazer ecoar nossas próprias canções

sempre reinventadas.

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