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Subúrbio em Transe e em trânsito


Ana Paula Alves Ribeiro

Poderia falar que o subúrbio é apenas paixão, mas entendo que o mesmo se
configura também como vocação e compromisso. Capitaneado pelo professor de
geografia e cineasta Luiz Claudio Motta Lima e seus parceiros, as produções coletivas do
Cineclube Subúrbio em Transe se organizam de maneiras diversas e ao mesmo tempo
complementares: na atividade cineclubista que o constitui, nos processos formativos
ofertados e na realização de filmes. Acrescentaria uma quarta dimensão: a de integrante
desde as primeiras horas de uma rede de valorização dos subúrbios, engajados no debate
sobre imagens das cidades, paisagem urbana, patrimônio material e imaterial, bens e
movimentos culturais e transformações urbanísticas.
Longe de ser um olhar externo que, ao priorizar imagens não hegemônicas ou
estereotipadas sobre o subúrbio carioca fala e filma de maneira superficial e distanciada,
encontramos nesta produção um espaço muito distinto entre as questões que se
apresentam, tão distintos entre si quanto os bairros que compõe o que chamamos de
subúrbio carioca. Para quem não está familiarizado com o Rio de Janeiro, tecnicamente
(e os dados são do Instituto Pereira Passos/Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro) este
subúrbio está englobado em uma área de planejamento, a AP3, três subáreas de
planejamento (AP 3.1, 3.2 e 3.3) e é composto por treze (13) Regiões Administrativas e
que se diferenciam internamente e do resto da cidade. São 80 bairros, uma parte
significativa da população da cidade concentrada neles e uma quase ausência de
equipamentos culturais frente a outras áreas da cidade.
Tendo iniciado suas atividades em 2007, percebemos que o coletivo é condutor
que faz o Subúrbio em Transe se locomover pelos espaços da própria cidade, tecendo
redes e costurando afetos em uma produção que se desenvolve muito próxima a uma
relação de confiança entre vizinhos, amigos e parceiros-interlocutores, por que assim
também o é.
Sobre os filmes escolhidos para esta mostra-homenagem, o corte temporal são os
anos 2010 e como os acontecimentos desta década acabam por impactar a vida dos
moradores da cidade, principalmente desta região da cidade. Processos de remoções,
ressignificação de espaços, disputas de memórias e narrativas afetando diretamente os
corpos de quem vive e circula nestes bairros são correntes.
Ao apreender o processo de transformações na cidade para os Mega-eventos e
como de muitas formas isso afeta outras partes da cidade, se elege filmes para falar destes
movimentos. E neste sentido, gostaria de ressaltar alguns aspectos: o da memória de um
espaço da cidade muitas vezes esquecido ou atropelado por políticas públicas e suas
ausências, mas que é feito por pessoas de carne e osso, de cotidiano, de res do chão, poesia
e muita luta.
Dez anos em transe (9´38) é um balanço do braço cineclubista e realizador das
imagens: a valorização de espaços culturais no subúrbio, o diálogo com a Casa do Artista
Independente – Casarti se faz presente, assim como imagens de exibições do cineclube e

Mostra Subúrbio em Transe. Festival Visões Periféricas, de 25 a 29 de setembro de 2019.


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eventos, de diárias de filmagens, das principais parcerias. Ao mesmo tempo, registros de


realizadores apontando a importância e pioneirismo de um cineclube no subúrbio como
janela de exibição de “filmes alternativos” ou de “um cinema underground”, como aponta
um dos entrevistados. Desta forma, nos dá indícios desta atividade múltipla do que se
elege para compartilhar – seja ao filmar, na própria atividade cineclubista ou nas oficinas.
Como uma equipe que vive os dilemas da cidade, Subúrbio em Transe apresenta
Educação em Chamas (4´20) – um registro fundamental de 2013 trazendo o ponto de
vista dos professores do Rio de Janeiro, do município e do estado, em um ato unificado
da educação realizado durante as greves daquele ano. Se é com professores e na atividade
docente que Subúrbio em Transe inicia suas atividades, este olhar é um olhar de dentro.
É logo no início do filme que se apresenta o mote do filme e que também sintetiza a sua
produção: - “Nossa voz está ganhando as ruas. É hora de construir a história da cidade de
forma diferente”. A construção de um movimento unificado dos professores explicitando
a luta por uma escola pública de qualidade assim como se pensar a educação no país como
um direito a ser conquistado e mantido. Fala-se aqui de estrutura, de caveirão na porta
das escolas, em melhores condições de trabalho e de plano de cargos e salários dos
professores, e principalmente de dignidade no exercício do ofício de ser professor e o que
se quer legar para os estudantes. Legado é uma questão para a cidade e também o é quando
pensamos em imagens não hegemônicas. Cenas da ocupação e resistência, do
posicionamento de professores dentro do movimento Ocupa Câmara e a violência da
polícia militar na repressão ao movimento trazem os paradoxos de um estado que reprime
e agride seus professores. O curta é integra o filme Rio em Chamas (2014), produção
coletiva que aponta o engajamento de realizadores audiovisuais nas jornadas de junho e,
principalmente, na documentação das lutas pelo direito à cidade e educação, circulação e
mobilidade urbana, denunciando a violência policial.
Queremos ficar em Madureira (16´21) costura este diálogo com o direito à cidade
e a moradia e os tensionamentos de um processo de remoção como indenizações precárias
na Vila das Torres, habitações construídas no entorno da via férrea a partir dos anos 1920
e que dará lugar – e este é o acionamento para a remoções – ao Parque Madureira.
Apresentando moradores, lideranças comunitárias, agricultores e presidente e vice-
presidente da Associação de Moradores da Vila das Torres, questões como memória
coletiva, pertencimento, comunidade, remoção, disparidade em indenizações e política
habitacional e moradia digna para a população mais pobre encontra aprofundamento nas
imagens do processo de desapropriação e de como a saída daquele espaço se resolve com
a instalação de um equipamento urbano de grande porte que beneficia parte da população
e por outro exclui moradores que há décadas faziam a história daquele espaço. Em um
ciclo, Vila das Torres e Parque Madureira são como lados de uma moeda que nos incita
a pensar em uma política habitacional e urbanística mais humana e a refletir sobre os
compromissos do capital.
Da mesma forma, 856 – A casa do poeta (30´), nos apresenta a angústia da perda
do lar, das referências e da memória da família do poeta J. Cardias, morador de Vicente
de Carvalho. Da poesia compartilhada com estudantes, professores, vizinhos e familiares,
com um daqueles jardins de casas que se esparramam nos terrenos e trazem frutas, sons
e cores ao ponto de virada que é a demolição e canteiro de obras de uma casa para a
passagem da via Transcarioca. No filme, acompanhamos este processo e como o mesmo

Mostra Subúrbio em Transe. Festival Visões Periféricas, de 25 a 29 de setembro de 2019.


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impacta a vida do poeta. Assim como em Queremos ficar em Madureira, o que se vai? O
que se perde? O que fica para as pessoas, para o bairro, e a cidade?
Por último e não menos importante, Cine Vaz Lobo (6´10), contemplado pelo
Prêmio Curta Rio, registra o edifício e sua relação com a vizinhança de um dos maiores
cinemas do subúrbio. Lugar de encontro, símbolo de sociabilidade, ou relíquia, como
lembram os entrevistados, Cine Vaz Lobo faz parte desta urgência que, pelas imagens
trazidas nos filmes, mudam o rumo de uma história. Na luta pelo patrimônio urbanístico
do lugar e sua memória, quais as emoções e significados trazidos por um cinema de rua,
em um país que teima em acabar com os seus?
Personagens aparecem em mais de um curta, ou as redes vão se organizando de
forma mais óbvia a partir da estrutura de realização dos filmes, por engajamentos e
afinidades, dando a dimensão de movimento, pela agenda e ação coletiva, e movimento,
pela forma como as interlocuções os levam a outros pontos da região metropolitana e a
outros coletivos: Hugo Labanca, Escola Municipal Grécia, Casarti, Linhas de Fuga, MIC
– Movimento de Integração Cultural, assim como cineclubes da Baixada Fluminense, por
exemplo, o Cinema de Guerrilha da Baixada e Cineclube Mate com Angu, sendo injusta
e trazendo uma pequena parte desta rede.
Comecei falando do subúrbio como paixão, vocação e compromisso. Passei pela
produção coletiva e o diálogo em redes. Documentário se inscreve na mesma chave. Entre
as imagens urgentes (Educação em Chamas, Cine Vaz Lobo), o processo de
documentação dos micro acontecimentos e resistências no cotidiano destes bairros
(Queremos ficar em Madureira, 856 – A casa do poeta) e o cuidado com a própria
memória (Dez anos em transe) a produção do Subúrbio em Transe se faz tão múltipla e
intensa quanto esta parte da cidade do Rio de Janeiro. Que sorte a nossa.

Mostra Subúrbio em Transe. Festival Visões Periféricas, de 25 a 29 de setembro de 2019.

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