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1.

A intertextualidade

Entender a poesia do século XX requer a exploração do conceito de


Modernidade, que nasce dois séculos antes, nas Revoluções Francesa e Industrial. Para
Eric Hobsbawm (1981, p. 45), o “mais importante acontecimento na história do
mundo”, quando toda a Europa passa por profundas mudanças sociais, que impulsionam
outra revolução nas ciências e nas artes.
O surgimento de uma economia industrial auto-sustentável, a decorrente
explosão demográfica em espaços urbanos e a busca por avanços tecnológicos para
nutrir a máquina produtora tornaram o homem pré-revolução – basicamente rural e
submetido às leis divinas – em um “homem-massa”, denominação que Ortega y Gasset
(1987, p. 12) dá a quem “carece de um ‘dentro’, de uma intimidade própria”. A
multidão da cidade grande e o trabalho repetitivo e mecânico das linhas de produção
fazem surgir um paradoxo: o aumento do número de pessoas ao redor não faz do ser
humano um ente mais social. Ao contrário, a sociabilidade toma ares de mera
representação, e cada pessoa volta-se mais a si mesma.
“Por um lado, vivemos um individualismo narcisista; por outro, somos tomados
pela nostalgia do ser ou do sujeito” (TOURAINE, 2002, p. 221). Tal “sujeito” havia
sido perdido em algum ponto durante as revoluções, já que a cultura econômica de
expansão em uma sociedade democrática requer meios de controle social limitantes. A
coerção absolutista dava lugar à invisibilidade do Estado, que tornava o indivíduo
“fraco, não apenas dominado pelos aparelhos de poder, mas privado de uma grande
parte de si mesmo” (Ibid., p. 295).
Este é o “homem moderno”: sozinho dentro de si no meio da multidão,
impotente mesmo na democracia em que participa, e frustrado apesar de deter cada vez
mais controle sobre tempo e espaço, com o desenvolvimento e difusão de relógios
mecânicos e mapas universais.
Nas Artes, o individualismo romântico é ainda uma reação de quem nega o
progresso com esperança de uma solução. Na Literatura, quem primeiramente atingirá o
total afastamento daquele real será Poe, nos Estados Unidos, e Baudelaire, na França.
Em ambos, o “ser” passa-se exclusivamente em suas próprias obras, “blindadas” contra
o mundo exterior. Era o início de uma tendência que permanece até os dias atuais.
Assim, o poema moderno não significa nem representa nada, mas simplesmente
é. Com a supressão do referente, sobra sua estrutura, cuja relevância leva o artista a
procurar a exatidão de um matemático. O efeito estético desejado ocorre a partir da
forma da poesia, do som das palavras, de sua disposição na página: é a “mímese
interna”, ou o “sistema das correspondências entre os vários elementos do significante”
(MERQUIOR, 1972, p. 21).
O ponto de maior radicalidade de tal processo foi a abolição total da
transcendência em Mallarmé, cuja poesia tinha como objeto exclusivamente sua própria
criação poética. Constitui-se aí a “poesia da poesia” (ibid., p.22), a poesia como forma
de se construir uma nova ontologia.
Mais que uma “mímese interna”, a obra mallarmaica exige uma “mímese de
produção”, que faz do leitor a latência do vir-a-ser, cuja função é “fazer o apenas
possível transitar para o real” (LIMA, 1980, p. 170). O poema então deixa de ser, e
passa a “poder ser”.
Essa arte não-engajada e alheia à realidade exterior produz em seu ser um
espaço-tempo totalmente próprio. O novo tempo poético é a própria evolução histórica
da poesia. Cada obra responde à anterior, em uma escala evolutiva natural da história da
arte. A “mímese interna” e a “mímese de produção” fazem da intertextualidade um dos
recursos mais comuns desde o fim do século XIX, ação facilitada pelo avanço dos
meios de comunicação e o crescente intercâmbio entre artistas. Além de constantes
alusões, traduções e apropriações, os artistas unem-se em movimentos organizados,
apóiam ou contestam outras tendências e fazem a análise crítica de sua própria obra. O
engajamento social torna-se engajamento artístico.
O poeta do século XX, portanto, não visa à sublimação do real, mas constrói
uma realidade totalmente nova, um mundo independente e fechado que se realiza na
presença do leitor, e comunica-se apenas com outros poemas, na busca da evolução
poética.
2. Mallarmé Bashô

O poema Mallarmé Bashô, de Paulo Leminski – publicado em 1991 no livro


póstumo “La vie em close” – encarna alguns dos conceitos caracterizadores da poesia
moderna: a presença da intertextualidade, a tradução como forma de re-leitura e re-
criação, a globalização da arte e a busca do silêncio.
O título do poema evoca dois importantes poetas de épocas distintas: o japonês
Matsuô Bashô, que viveu no século XVII, e o francês Stéphane Mallarmé, do século
XIX.
Apesar de terem vivido em contextos histórico-espaciais completamente
diferentes, há um ponto em comum entre ambos: são inventores de formas. O samurai é
o inventor do haicai, forma de “poema-instante” que se espalhou pelo mundo. Já o
francês foi o primeiro a explorar o branco da página sintática e semanticamente.
O poema de Leminski é um haicai, embora não siga o esquema métrico de
sílabas poéticas “5-7-5”, consagrado em japonês e de difícil fidelidade em línguas
ocidentais. Tal forma poética preza pela simplicidade e informalidade: é o retrato de um
instante, a fotografia da sensação do poeta. Não deve sofrer interferência do
pensamento, mas transmitir uma percepção ao leitor.
Ao escolher fazer um haicai que incorpora em seu título o criador de tal
estrutura, o poeta brasileiro subentende que aquele é um instante de sua percepção que
ficou congelado, e virá a ser a partir do insight do leitor/receptor.
Já ao unir Bashô a Mallarmé, em uma forma poética usada apenas pelo primeiro,
Leminski incorpora o legado do japonês ao do francês, e não o contrário. Assim,
“Mallarmé Bashô” é uma releitura do Simbolista “à maneira de Bashô”. O nome
“Bashô”, no título, adquire função adjetiva. O poema configura-se como a captação da
percepção de Leminski frente à obra de Mallarmé, tal qual o samurai fazia com a
natureza.
Nos três versos do poema, a apropriação-tradução das obras mais consagradas
dos dois poetas: “um salto de sapo” e “o velho poço” remetem ao mais famoso haicai de
Bashô1, provavelmente publicado em 1686. “Jamais abolirá” refere a Um lance de
dados jamais abolirá o acaso, poema cosmológico de Mallarmé.
A escolha de “Um salto de sapo” em vez de “uma rã mergulha”, como nas
traduções de Alberto Marsicano, Cecília Meireles e Paulo Franchetti, é coerente com a
tradução do próprio Leminski para o haicai de Bashô 2: “Velha lagoa/o sapo salta/o som
da água”. Entretanto, o uso do substantivo “salto” em vez do verbo cognato traça um
paralelismo com o título do poema de Mallarmé aludido: “Um lance de dados” é,
através desse paralelismo sintático, retomado por “um salto de sapo”.
Já o último verso de Mallarmé Bashô, “o velho poço”, difere das traduções de
Alberto Marsicano (“velho lago”), Cecília Meireles e Paulo Franchetti (“velho tanque”,
em ambas) e até do próprio Paulo Leminski (“velha lagoa”). A imagem e o som
emanados por “poço” sugerem o abismo, a incerteza, a obscuridade, se aproximando do
“acaso” do poema de Mallarmé.
O paralelismo entre o poema de Leminski e o título do poema de Mallarmé fica
claro: mediados por “jamais abolirá”, “um salto de sapo” remete a “um lance de dados”
e “o velho poço” simboliza o “abismo”. É a releitura, “a la Bashô”, de Mallarmé.
Um lance de dados jamais abolirá o acaso, ápice da ousadia mallarmaica, foi,
para Augusto de Campos (1974, p. 178), o “primeiro poema funcionalmente moderno”,
“futuro-demais para sua época” e uma “equação poética que vale por si só o vozerio das
vanguardas reformadoras”. Usando tipografias diferentes e dispondo as palavras pela
página, Mallarmé simula uma constelação, formada a partir do lançamento de dados, os
dados da criação poética. Entretanto, não serão capazes de abolir o acaso, pois este
reside na apreensão do leitor. Como o poema é uma latência, e apenas se realizará
quando chegar a seu receptor, o poeta não tem nenhum controle de sua obra: por isso o
acaso é invencível.
Ao fundir as imagens de Mallarmé e de Bashô, Leminski capta o medo do acaso,
do velho poço, fundo, escuro, cujo fim não se conhece, e cujo conteúdo será sempre

1
Em japonês: furuike ya/ kawazu tobikomu/ mizu no oto; diversas vezes
traduzido/transcriado para a língua portuguesa, literalmente significa “o velho tanque/uma rã
salta/barulho de água”.

2
A tradução de Leminski para o poema de Bashô foi publicada em “A lágrima do
peixe”, em 1983.
desconhecido. O poeta pode dispor de seus dados lançados, ou de seus sapos em salto,
mas jamais abolirá o acaso-poço.
A disposição dos versos na página, com o recuo do segundo em relação aos
outros dois, sugere a ação do poeta, embora inútil: um “salto”, ou o “lance de dados” é
delineado. Aqui há outra característica da poesia moderna impressa em Leminski: a
exploração do significante, da “palavra-coisa”, do nível topográfico das palavras.
A união de um “revolucionário das formas” ocidental com outro oriental
simboliza a globalização da arte, fruto da “diminuição das distâncias” do mundo devido
aos avanços dos meios de comunicação e de transporte.
Em Literatura, entretanto, a universalização da Arte esbarra na dificuldade das
diferentes línguas. Por isso, como no poema de Leminski, cabe à tradução, ou à trans-
criação, possibilitar a difusão entre diferentes literaturas. Para Lefevre (apud LAGES,
2002, p. 76), “é o principal meio pelo qual uma Literatura influencia a outra”. A
liberdade de tradução constatada em Leminski justifica-se na transposição poética, pois
“as equações verbais são elevadas à categoria de princípio construtivo do texto”
(JAKOBSON, 1969, p. 72); deve-se comunicar a “informação estética”,
independentemente da escolha de termos.
3. A busca do silêncio

Como visto, as facilidades tecnológicas permitiram que o intercâmbio entre


artistas fosse cada vez maior no século XX. Além disso, autores do passado até então
ignorados foram descobertos, e suas obras exploradas. A partir disso, a figura do
tradutor/poeta ganhou força, já que a existência de diferentes línguas é uma barreira à
difusão de uma obra literária.
A necessidade da tradução, pois, “nasce da deficiência da sentença”, o que faz
dela “crítica” por natureza, para Albrecht Fabri. (apud CAMPOS, 1970, p. 21). Traduzir
é evidenciar o limite da língua, a insuficiência da frase, é criticar e corrigir o autor do
original.
A transcriação, por isso, é a realização mais próxima da “língua pura”, ou seja,
da língua despragmatizada, anterior ao desgaste da experiência cotidiana e uso
funcional. Cabe ao tradutor captar a intenção cognitiva do traduzido e vencer a
arbitrariedade do signo lingüístico para atingir a semelhança máxima.
Em seu “haicai-tradução”, Paulo Leminski escolhe o lapidar verso de Mallarmé
não por acaso: o poeta francês sempre buscou a “poesia pura”, a raiz da linguagem, o
momento imediatamente anterior à apropriação do significante pelo significado. Poetar,
para ele, era a renovação do ato criativo da linguagem, era dizer o que jamais havia sido
dito: dizer o indizível. Por isso mesmo, o poema ideal seria o poema em branco, o
silêncio, a utopia do Nada.
Ao transcriar, “à maneira de Bashô”, o verso de Mallarmé, Leminski se abstém
da necessidade de dizer algo. Sua busca, no poema, é também o silêncio, e para isso dá
voz a outros dois poetas. Sua criação é uma isomorfia de dois dos axiomas mais
famosos da história da Literatura: ao recontextualizá-los, está de fato negando-os,
remodelando-os, em uma atitude típica da Modernidade, como atesta Alberto Pimenta:

A constatação é evidente: a destruição dos processos anteriormente usados resulta do espírito de


concorrência, faz parte da fonomenologia da modernidade. [...] Esse processo de destruição é um
passo na via do silêncio. (1978, p. 150-151)

O verso que se destrói a cada instante ruma ao silêncio, embora ele seja utópico.
A intertextualidade, em Leminski, é um recurso que lhe permite não dizer nada, e
permanecer invisível atrás dos traduzidos. Seu intertexto é, assim, o limite do Nada: seu
haicai
HOBSBAWM, Eric J. A era das revoluções: Europa, 1789:1848. 3.ed. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1981.

______. A era do capital. 4.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

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LAGES, Susana Kampff. Walter Banjamin: tradução e melancolia. São Paulo: Edusp,
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72.

FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas Cidades, 1978.

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GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade pessoal. 2.ed. Oeiras: Celta, 2001. p.


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