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RESUMO:
O presente trabalho pretende apresentar, em um primeiro momento, um breve histórico da origem do gênero
musical denominado milonga, seu surgimento, os aspectos culturais a ele ligados e sua transmissão de forma oral
e de raiz popular. A seguir serão feitas algumas considerações sobre a obra Para las seis cuerdas, de Jorge Luis
Borges, de 1965, na qual o escritor argentino adotou a métrica característica das milongas em seus poemas. Por
fim, entendendo a milonga como um texto híbrido, este trabalho apontará conceitos de teoria do conto, que
servirão de parâmetro para uma análise das referidas milongas da obra em questão.
PALAVRAS-CHAVE: Borges, milonga, conto.
RESUMEN:
Este trabajo pretende presentar, en un primer momento, una breve historia del origen del género musical llamado
milonga, de su aparición, los aspectos culturales vinculados a la misma y de su transmisión en las raíces orales y
populares. A continuación se presentan algunos comentarios sobre el libro Para las seis cuerdas, de Jorge Luis
Borges, 1965, en lo que el escritor argentino adoptó la característica métrica de las milongas en sus poemas. Por
último, comprendendo la milonga como un texto híbrido, en este trabajo se presentan los conceptos de la historia,
que sirven como parámetros para el análisis de estas milongas de la obra en cuestión.
PALABRAS CLAVE: Borges, milonga, cuento.
Introdução
1 A milonga
O termo milonga, que denomina hoje um gênero musical bastante difundido no sul do
continente americano, é também nome de uma das cidades de onde provinham muitos dos
africanos que desembarcaram na região do Prata, situada, hoje, na República Democrática do
Congo, antigo Império Lunda. O surgimento do referido gênero deu-se na zona de grande
miscigenação cultural supracitada e as primeiras notícias que se tem de milonga como uma
variedade dentro do universo musical referem-se ao Uruguai, nas últimas décadas do século
XIX. Era, fundamentalmente, ligada a três aspectos culturais: denominava-se milonga um
baile com dança de pares comum nas periferias urbanas, também as payadas de contraponto,
espécies de desafios entre trovadores, e finalmente, denominava-se milonga canções
compostas em poesias rimadas e acompanhadas de violão, estas mais restritas ao âmbito
urbano, ao contrário da anterior ligada normalmente ao gaucho payador.
No entanto, bem antes disto, em 1800, encontramos um gênero chamado estilo, uma
mistura de milonga e payada, que era praticado no Rio da Prata. No mesmo momento, fazia
grande sucesso no Uruguai um poema também intitulado "Milonga", uma referência, talvez, à
cidade no Congo, ou ainda à ideia de 'palavra falada', que é a tradução do termo milonga do
idioma quimbundo para o português. O referido texto oral surgiu na antiga localidade uruguaia
de Minas (fundada em 1783) e sua transmissão, sempre oral então, demonstrava fortes traços
da trova provençal o que pode atestá-la como uma variante da mesma, que era praticada
duzentos anos antes.
MILONGA¹
¹ O compositor e escritor gaúcho Vitor Ramil musicou e gravou Milonga, a qual faz parte de seu CD Ramilonga,
de 1997.
A voz adquire peso fundamental na medida em que representa a atitude poética do
indivíduo, ele afirma a posição do dizer "digo que siento..." e a partir disto dirá o que vem
depois, caracterizando uma atitude de aparente independência que solidificará a imagem do
payador como constituinte da nova nação. Ele será o orillero ou o compadrito solitário que
entoando milongas dentro da nova ordem social, legitimará este gênero como uma das mais
importantes expressões de arte poética nas periferias. Com isso, pode-se verificar que a
milonga e a payada entrelaçaram-se em suas origens e tem em comum o traço da oralidade, no
qual o indivíduo é quem toma a palavra, numa atitude poética singular, o que não exclui, no
entanto, o elo coletivo, de afirmação, de pertencimento, de criação de uma nova identidade,
fruto da miscigenação cultural.
Conforme Ludmer (2002, p.198), "existe uma zona da literatura e da cultura que
transcende muitas vezes os enunciados", adquirindo formas de entonação e postura diversas,
ressoando ritmos e gestos representativos de grupos, podendo tornar-se representações
identitárias, não raro intraduzíveis aos que do mesmo não fazem parte. São assim transmitidos
como forma de perpetuar a cultura e condensar as saudades para os que desta se afastam.
Em sendo assim, pode-se pensar que a dupla condição da milonga, de se desenvolver em
forma oral e de estar enraizada no popular, permite aproximá-la de outro gênero, o conto.
Naqueles anos, o termo las orillas designava os bairros distantes e pobres, limítrofes
com a planície que cercava a cidade. O orillero, morador desses bairros, muitas vezes
trabalhador dos matadouros e frigoríficos onde ainda se estimavam as destrezas rurais
no manejo do cavalo e da faca, inscreve-se numa tradição criolla de maneira muito
mais plena do que o compadrito suburbano (de quem Borges não propõe nenhuma
idealização), cuja vulgaridade denuncia o recém chegado, o imitador de costumes que
não lhe pertencem. O orillero arquetípico é de linhagem hispano-criolla, e sua origem
é anterior à imigração; o compadrito suburbano, ao contrário, traz as marcas de uma
cultura baixa e faz alarde de coragem ou ousadia para imitar as qualidades que são
naturais ao orillero. O compadrito é vistoso; o orillero é discreto e taciturno: "essa
mistura de zombaria e cortesia, essa humildade exagerada, sobretudo quando estava a
ponto de provocar alguém para um duelo". (SARLO, 2003, p. 48)
Milongas, sim, escrevi muitas, e tratam todas de homens reais. Quer dizer, de
cuchilleros, ou de um de meus bairros, de Palermo, sobretudo do lado da
Penitenciária, dos fundos da Recoleta, o que chamavam “a terra do fogo”. E outras
mais recentes, de cuchilleros de Turdera, próximo de Adrogué, próximo de Lomas. Ou
seja, do Norte e do Sul. (BORGES In http://www.revista.agulha.nom.br)
Para Ludmer (2002, p. 204), em Borges "não há oposição entre literatura e vida, mas
entre modos diversos da literatura e da língua e modos diversos da vida". Se por vezes ele
inscreve sua literatura no espaço urbano-criollo, demonstrando interesse particular pelas vozes
dos indivíduos locais, também entende que a verdade não está entre os homens rudes, entre
orilleros e compadritos, mas sim no que deles é ouvido. A matéria literária para o autor, como
diz Josefina Ludmer (2002. p.204) é "um misto que produz choque e confronto".
No prólogo de seu livro Para las seis cuerdas (1965), obra composta somente de
milongas, que lhe permitiram improvisações que divagam sobre a vida e a morte, Borges cria
o ambiente e descreve o indivíduo, o payador, que as entoaria “En el modesto caso de mis
milongas, el lector debe suplir la música ausente por la imagen de un hombre que canturrea, en
el umbral de su zaguán o en un almacén, acompañándose con la guitarra. La mano se demora
en las cuerdas y las palabras cuentan menos que los acordes.”
Não criando fronteiras entre os meios considerados periféricos e centrais, Borges
escreve sobre o homem dos arrabaldes de Buenos Aires, não sobre o gaucho de seus
antecessores, nem tampouco sobre o homem 'civilizado' da cidade. O homem escolhido por
Borges é o que se apresenta híbrido, por sua condição de não pertencimento que lhe permite
transitar por civilização e barbárie. A morte apresenta-se entremeada em seus versos, nos
quais a voz dos que estão à margem toma um aspecto de portadora de um 'ouvir falar',
configurando ao indivíduo escolhido, desta maneira, o papel de narrador oral, o que transmite
a tradição. Como nos diz Walter Benjamin (1975, p.64) “a experiência transmitida oralmente é
a fonte de que hauriram todos os narradores. E, entre os que transcreveram as estórias,
sobressaem aqueles cuja transcrição pouco se destaca dos relatos orais dos muitos narradores
desconhecidos”.
Borges talvez tenha sido o principal crítico de seu próprio trabalho, revisou por várias
vezes suas obras condenando os 'excessos' de linguagem oral, suprimindo palavras
consideradas por ele demasiado criollas. No entanto identificamos, por exemplo, no conto
"Historia de Rosendo Juarez" fortes traços da linguagem coloquial, típica dos compadritos,
traços que também suas milongas apresentam.
MILONGA DE ALBORNOZ
² Tendo conhecido as milongas de Jorge Luis Borges ainda adolescente, Vitor Ramil musicou aos dezenove anos
a milonga borgeana intitulada Milonga de Manuel Flores. Entretanto, foi em 2009, com o disco délibab, que
outras sete milongas do autor argentino receberam a música do compositor gaúcho. A gravação do referido CD
foi realizada na cidade de Buenos Aires.
Albornoz pasa silbando
Una milonga entrerriana;
Bajo el ala del chambergo
Sus ojos ven la mañana,
De amores y trucadas
Hasta el alba y de entreveros
A fierro con los sargentos,
Con propios y forasteros.
As duas milongas, ou como pretende este breve artigo, os dois contos em versos,
apresentam uma temática muitas vezes adotada por Borges em seus contos em prosa, a qual
foi abordada anteriormente, os arrabaldes de Buenos Aires e seus tipos que permeiam os
versos carregados de oralidade. O narrador coloca-se, desde o início, como o contador de
histórias, aquele que sabe porque viu ou porque lhe disseram. Não há qualquer tipo de floreio,
a objetividade toma conta do relato, como nos versos iniciais de "Milonga para Manuel
flores": Manuel Flores va a morir, eso es moneda corriente. A palavra está a serviço do
propósito, contar a morte da personagem. Não há palavras a mais, nem a menos, a realidade
está implícita nos fragmentos apresentados, são os instantâneos dos quais nos fala Cortázar, e
com eles pode-se muito bem imaginar o cenário, a rua ou bairro, a noite, a esquina.
O conto em verso, ou poema rimado, por preservar o caráter épico, pode ser considerado
superior ao conto em prosa no que diz respeito ao efeito único, sendo este alcançado através
de extremo domínio do autor sobre seu material narrativo. Os versos que constituem as
milongas de Borges carregam em suas linhas o universo que o autor quis retratar, sem que, no
entanto, se utilize de excesso de palavras; desta forma, faz jus a outra característica de
construção de contos apontada por Edgar Alan Poe, a economia dos meios narrativos.
Entretanto, por se tratar de poética, essa economia de meios considera outros elementos, como
repetições, pontuação, e explora elementos mais musicais que a prosa.
Jorge Luis Borges mantém o leitor ligado às narrativas que compõem suas milongas,
seja ao dar-nos o aviso de que Manuel Flores vai morrer, o que nos deixa em constante
expectativa e curiosidade sobre o fato, seja ao discorrer sobre Albornoz e seus entreveros, de
onde se pode supor um possível desfecho trágico. Ao mesmo tempo em que nos conta sobre as
mortes das personagens de maneira concisa, direta e fria, tece considerações sobre a
fragilidade da condição humana. O autor argentino faz isto habilmente, de maneira fluida mas
intensa, não obedecendo, obrigatoriamente, aos preceitos tradicionais de início, meio e fim,
mantendo, assim mesmo, a estrutura do texto organizada através da relação perfeita entre as
partes constituintes e criando possibilidades para que o próprio texto desvende sua alma.
Entendendo as milongas, ou os contos em versos como as mesmas foram denominadas
até aqui, como textos híbridos, verifica-se que estas podem participar tanto do espaço teórico
do conto quanto do da poesia. Assim, um estudo como esse, que as aproxima do conto,
pretende expandir suas possibilidades de leitura, incluindo outro ponto de vista, menos
explorado.
REFERÊNCIAS
ÂNGELO, Andréa Lúcia Paiva Padrão. Borges e o conto policial metafísico: "El jardins de
los senderos que se bifurcan"
In www.periodicos.ufsc.br/index.php/fragmentos/article/ acesso de 20/09/11 a 13/10/11
CHIAPPINI, Lígia & AGUIAR, Flávio (orgs). Literatura e história na América Latina SP:
EDUSP, 2001
GOTLIB, Nádia Battella. A Teoria do Conto digitalizada por Coletivo Sabotagem, 2004 In
www.sabotagem.cjb.net acesso de 20/09/11 a 31/10/11
LUDMER, Josefina. O gênero gauchesco um tratado sobre a pátria CHAPECÓ: Argos, 2002